Tim Marshall é um jornalista britânico experimentado na cobertura de conflitos em várias frentes, como o Afeganistão e os Balcãs.
O livro em título trata de geoestratégias regionais e mundiais, as quais são ancestralmente influenciadas pela Geografia. Marshall aborda nos primeiros quatro capítulos os principais blocos mundias – Rússia, China, Estados Unidos e União Europeia – nos quatro capítulos seguintes, as zonas onde ocorrem conflitos mundiais antigos, latentes ou em curso – África, Médio Oriente, Índia e Paquistão, Coreia e Japão – num nono capítulo analisa o que se passa na América Latina e no décimo e último capítulo faz uma análise muito interessante sobre o futuro do Ártico, que se desenha já hoje. Vejamos, muito sucintamente, o essencial que Tim Marshall nos diz em cada um dos dez capítulos, complementando com algumas observações nossas.
Rússia
A Rússia é o maior país do mundo. Os seus primórdios remontam ao século IX, quando algumas tribos eslavas se reuniram numa área que corresponde à atual Kiev. Após as invasões mongóis do século XIII, essas tribos deslocaram-se para a região de Moscovo e, embora começassem a expandir o seu território antes, foi com o primeiro czar, Ivan, o Terrível, no século XVI, que o aumentaram enormemente. A zona Ocidental da Rússia integra a zona da grande planície europeia, onde a circulação se faz com grande facilidade, pelo que a Rússia (e a União Soviética) sempre teve necessidade de criar “zonas tampão”. Atualmente, a Rússia depara-se com vários problemas: a) apesar de ser muitíssimo grande, não tem uma grande população; b) a sua economia é fraca, extremamente dependente da venda de combustíveis fósseis[1], e a sua democracia débil, com grandes assimetrias regionais e sociais; c) não tem acesso independente a qualquer porto de águas quentes[2]; d) após a Guerra Fria, vários países europeus vizinhos, nomeadamente no Báltico, aderiram à NATO e isso representa uma ameaça para a Rússia; e) os Russos não têm angariado muitos amigos: para além dos problemas na Ucrânia, Geórgia e outros países, devido a conflitos recentes, há as desconfianças “naturais” com Finlândia, Turquia, Japão e, agora, com o Reino Unido e outros países ocidentais, depois das alegadas execuções de cidadãos russos exilados; f) face a todos estes problemas, o papel de potência militar que a Rússia quer reconquistar é apenas teórico e não efetivo, pois esse país não pode ainda (nem se vislumbra quando poderá) rivalizar com a grande potência que são os Estados Unidos, nem, sequer, com a China, e a expansão para Ocidente está-lhe vedada pelas NATO e União Europeia – a Rússia é um gigante isolado.
China
Se a Rússia é o maior país do mundo, a China é o mais populoso. E um colosso económico em ascensão. Mas o progresso começa a acarretar inúmeros problemas. A poluição é um deles, e muito sério. Uma população de 1.400 milhões de seres humanos requer uma gigantesca produção alimentar, mas estima-se que mais de 40% dos solos férteis para a agricultura estejam poluídos ou exaustos. Por outro lado, a economia chinesa não pode deixar de crescer, pois isso implicaria desemprego em massa e revoltas pontuais que se poderiam generalizar. Do ponto de vista militar, a China está a construir uma Marinha que (a manter o seu crescimento económico) poderá, dentro de trinta anos, desafiar os Estados Unidos. O controlo das zonas marítimas circundantes é vital para a China, uma vez que este país necessita de importações maciças de combustíveis, transportados por via marítima do Golfo Pérsico e outras regiões do globo, e de garantir a passagem dos navios. A China anexou o Tibete (do qual não abrirá mão) em 1950 e tem tentado melhorar as condições de vida na região. Mas, se o Tibete, tudo o leva a crer, é um facto consumado (pelo menos nos tempos mais próximos), o mesmo não se passa com Taiwan, cujo estatuto, pese embora a autonomia, permanece ambíguo, dependendo do ponto de vista (província chinesa ou país soberano?), embora não seja reconhecido como estado pelas Nações Unidas[3]. Por outro lado, as relações da China com a Índia são tradicionalmente difíceis, mas entre ambas encontram-se, felizmente, os Himalaias, o que mostra o poder da geografia. Já a Leste e Sudeste, existem problemas com vários países da região por causa da disputa sobre algumas ilhas, sobretudo no Mar da China Meridional. Muitos destes países, incluindo a ilha de Taiwan[4], Japão, Filipinas, Malásia, Vietname e Brunei são aliados, mais ou menos próximos, dos Estados Unidos, que mantêm presença militar na região.
Estados Unidos da América
Se a Rússia é o maior país do mundo e a China o mais populoso, os Estados Unidos são o país mais poderoso. A sua história foi, durante muitos anos, incrivelmente bem sucedida. Logo depois da Declaração da Independência[5], com o Tratado de Paris de 1783, a jovem nação viu duplicado o seu território[6]; em 1803, os Estados Unidos compraram a Luisiana à França (que Napoleão tinha obrigado os espanhóis a ceder), por 15 milhões de dólares, e voltaram a duplicar o território[7]; em 1819, os espanhóis cederam a Florida aos americanos, através do Tratado Adams-Onis; e, depois do Texas se ter juntado à União (1845) e da consequente guerra com o México, em 1848, através do Tratado de Guadalupe Hidalgo, os Estados Unidos anexaram os atuais estados da Califórnia, Novo México, Arizona, Utah e Nevada. Esta é considerada a “expansão continental”. Já a “expansão extra-continental” efetivou-se com a compra aos russos do Alasca, em 1867, por 7,2 milhões de dólares e a anexação do Hawai e, na sequência da guerra de 1898 contra a Espanha, Porto Rico, Guam e Filipinas[8]. No início do século XX, os Estados Unidos eram já uma grande, se não a maior, potência mundial. As vantagens dos Estados Unidos são de vária ordem e muito significativas. Em primeiro lugar, a geografia beneficia-os. Têm apenas dois países nas suas fronteiras: o pacífico Canadá, a Norte, e uma região desértica a separá-los do México, a Sul; a Leste e Oeste os dois maiores oceanos do mundo. Depois, o solo americano é, em geral, fértil. As suas universidades são as melhores do mundo (o que significa que continuam à frente nas áreas científicas e tecnológicas). Com a exploração do gás e do petróleo de xisto, estão prestes a tornar-se autossuficientes em termos energéticos. Não têm divisões internas, são uma democracia consolidada, têm a classe média mais rica do mundo e as forças armadas mais poderosas. O conjunto destas características não se reúnem em qualquer outro país.
Europa
Se a Rússia é o maior país do mundo, a China o mais populoso e os Estados Unidos os mais poderosos, a Europa Ocidental é a socialmente mais desenvolvida. O que ressalta, desde logo, na União Europeia são as diferenças acentuadas entre o Norte e o Sul. O primeiro bastante mais rico que o segundo. De acordo com uma teoria muito conhecida do sociólogo Max Weber, a ética protestante seria responsável pelo maior desenvolvimento dos países nórdicos em relação aos do Sul católico. Isso não parece ser muito lógico, se atendermos ao que se passa no sul da Alemanha, na Baviera, com uma maioria católica e um grande desenvolvimento económico e industrial, sede de grandes empresas, como a BMW ou a Siemens. Parece que, mais uma vez, a geografia é o mais importante: o Sul da Europa tem poucas planícies e muito mais barreiras naturais (os Pirenéus, os Alpes), ao passo que o Norte é todo ele uma imensa planície fértil, desde a França aos Urais, com rios navegáveis, o que permitiu as trocas comerciais e o desenvolvimento. O principal problema da União Europeia é a sua dependência energética relativamente à Rússia. No entanto, com o aumento da produção de gás de xisto nos Estados Unidos, há a possibilidade deste ser liquidificado e transportado por navio para a Europa, constituindo, assim, uma alternativa ao gás russo, libertando a Europa da ameaça russa de fechamento das torneiras em caso de tomadas de posição políticas dos países europeus face a investidas russas, como as iniciativas militares na Ucrânia, Geórgia e Síria, ou envenenamento de cidadãos, recentemente (embora seja já uma prática tradicional), em Inglaterra. Além do elevado nível social, há outra grande conquista, e esta advém diretamente da integração de quase todos os países ocidentais do velho continente (apesar do brexit) na União Europeia: a paz. Ninguém deveria subestimá-la.
África
Geograficamente, África tem vários problemas. Desde logo, e apesar das ótimas praias, tem poucos portos naturais e rios navegáveis. Os seus maiores rios, o Nilo, o Zambeze, o Congo e o Niger, não comunicam entre si. Isso dividiu muito o continente, não permitiu que uma grande cultura se disseminasse, pelo contrário, proliferaram milhares de línguas e tribos em áreas limitadas. Depois, como mostrou Jared Diamond (ver nosso artigo aqui), África é um continente que se estende em latitude[9], com barreiras naturais, como o deserto do Sahara, e isso fez com que os povos africanos vivessem muito tempo isolados entre si e, sobretudo, do continente euroasiático, mais avançado, não absorvendo, portanto, o conhecimento de outras culturas. Mas há, ainda, um problema grave, talvez o mais grave de todos, que não se prende com a geografia: as fronteiras dos países africanos foram desenhadas por potências colonizadoras[10], como a Alemanha, a Bélgica, a França, a Inglaterra, a Itália, a Espanha e Portugal, entre outros. “A ideia europeia de geografia não se enquadrou na realidade da demografia africana”[11]. Juntar vários povos antagónicos dentro de um mesmo estado-nação (um conceito imposto aos africanos) foi uma receita explosiva que esses povos ainda hoje pagam amargamente em conflitos étnicos no Sudão, no Quénia, na Somália, em Angola, na República Democrática do Congo (só este país tem mais de 200 grupos étnicos), na Nigéria, na África do Sul, no Burundi e no Mali, entre outros. Além disto, África é um continente rico, com petróleo, minerais e metais preciosos, mas tem sido explorado por potências estrangeiras, da América e da Europa, às quais podemos agora juntar a China, que está a investir fortemente em África. Outro elemento relevante a acrescentar a todos estes problemas é a corrupção da classe política. Tudo isto somado dá um resultado desastroso. A enorme mortalidade infantil por subnutrição é uma realidade a que ninguém pode ficar indiferente. Vai demorar muito tempo antes dos africanos conseguirem libertar-se do seu atraso ancestral.
Médio Oriente
Os povos do Médio Oriente sofrem de um mal idêntico ao dos povos africanos. As fronteiras dos seus países foram igualmente desenhadas por potências estrangeiras, embora, no caso do Médio Oriente, apenas dois estados imperiais tenham sido suficientes para criar a confusão. Ainda antes de decidida a Grande Guerra, Inglaterra e França[12] decidiram dividir aquela zona, (que, à época, pertencia ao Império Otomano) entre si, traçando uma linha que ia da atual cidade de Haifa, em Israel, até Kirkurk, no atual Iraque. A parte acima dessa linha seria para a França e a parte abaixo da linha seria para a Inglaterra. A história da região foi muito conturbada desde o fim da Grande Guerra e a efetivação do acordo Sykes-Picot, até hoje. Foi criado o estado de Israel e com ele um conflito que parece não ter fim. A recente “Primavera Árabe” mais parece um interminável outono. O ódio entre xiitas e sunitas, protagonizados, respetivamente e sobretudo, por Irão e Arábia Saudita, não parece abrandar. A guerra na Síria dura há mais de sete anos e não se vislumbra o fim. O massacrado povo curdo não consegue ter paz, muito menos a independência. A Turquia radicalizou-se. As economias de quase todos os países do Médio Oriente degradou-se, face à baixa do preço do petróleo, por um lado, mas sobretudo face à enorme quebra das receitas do turismo, porque as pessoas evitam zonas inseguras e instáveis. O Médio Oriente continua uma grande confusão.
Índia e Paquistão
Ambos os países – e ainda o Paquistão Oriental (atual Bangladesh) e a Birmânia (atual Mianmar) – faziam parte da chamada Índia britânica ou Raj britânico, até adquirirem a independência em 1947, quando logo se deu uma fuga em massa de muçulmanos da Índia para o Paquistão e de hindus e siques em sentido contrário. Já ocorreram quatro guerras, além de muitas pequenas contendas, entre a Índia e o Paquistão, que partilham uma fronteira de 3.000 quilómetros, a primeira logo em 1947 por causa da disputa por Caxemira, disputa latente até hoje. “O Paquistão é geográfica, económica, demográfica e militarmente mais fraco do que a Índia. A sua identidade nacional também não é tão forte como a desta última”[13]. De facto, o Paquistão está dividido em cinco regiões distintas, cada uma com sua língua, culturalmente bastante diferentes, algumas com claras intenções separatistas, enquanto a Índia, embora seja um país multicultural, é mais unida, baseando essa identidade numa democracia secular. Além de que a Índia é maior, mais populosa e mais rica que o Paquistão. O Paquistão tem relações próximas com o Afeganistão e tradicionalmente apoia os talibãs. Isso custou-lhe um ultimato dos Estados Unidos que exigem a Islamabade colaboração efetiva no combate aos jihadistas. Na equação geoestratégica da região há que contar com a China, que está a investir no Paquistão, tem também interesses em Caxemira e mantém relações tensas com a Índia por causa do Tibete e procura, ainda, controlar toda a zona do sudeste asiático. O Nepal é um país que quer a China quer a Índia procuram controlar, zelando por manter boas relações. China e Índia são duas grandes potências em crescimento, que felizmente têm uma grande fronteira natural a separá-las – os Himalaias. Mas a relação mais complicada no sub-continente continua a ser o diferendo entre a Índia e o Paquistão.
Coreia e Japão
O comportamento agressivo da Coreia do Norte não permite que 30.000 soldados americanos saiam da Coreia do Sul. Isso poderia ser mal interpretado. A tensão entre a Coreia do Norte e a China, por um lado, e os Estados Unidos, a Coreia do Sul e o Japão, por outro, não se resolve, gere-se. A Coreia foi dividida, depois da derrota do Japão em 1945, pelo paralelo 38, linha que em 1950 a Coreia do Norte ultrapassou para invadir a Coreia do Sul. Pensaram que os Estados unidos não estavam muito interessados naquela zona do globo, mas enganaram-se. Os americanos sabiam que se não fossem em auxílio do seu aliado sul-coreano, perderiam a confiança de outros aliados em todo o mundo. “Existe aqui um paralelo com a política atual dos Estados Unidos no Leste Asiático e na Europa de Leste. Países como a Polónia, os Estados Bálticos, o Japão e as Filipinas têm de confiar na proteção da América nas suas relações com a Rússia e a China”[14). O Japão está ao alcance dos mísseis norte-coreanos e as suas relações com as duas coreias não são as melhores. Tóquio mantém um diferendo com Seul sobre as ilhas Dokdo (de “solitárias”, para a Coreia do Sul) ou Takeshima (de “bambu”, para o Japão) – os Rochedos de Liancourt. Aliás, muitas das pequenas ilhas e arquipélagos dos mares do Sudeste Asiático são disputados. Alguns são verdadeiramente estratégicos, como o arquipélago de Ryukyu, onde o Japão tem forças militares estacionadas, que serve de primeira frente de defesa a qualquer tentativa de invasão marítima. O Japão tem vindo a rearmar-se paulatinamente, flexibilizando a sua interpretação da Constituição, depois de Hiroshima e Nagasaqui, e das sansões impostas pelos Estados Unidos, que incluíam limites de 1% do PIB para as despesas militares e ocupação militar americana. Trinta e dois mil soldados americanos ainda estão no Japão.
América Latina
Os países sul-americanos estão muito atrasados em relação aos norte-americanos e europeus, em grande parte devido à geografia, a qual, como se sabe, condiciona o clima. Existe uma certa animosidade nos países latinos da América relativamente aos Estados Unidos. Isto é compreensível, pois “os EUA usaram a força na América Latina quase 50 vezes entre 1890 e o fim da Guerra Fria”[15]. Isto abriu as portas à China, que vende ou doa armamento a vários países, como Uruguai, Colômbia, Chile, Peru e México, e já substituiu os Estados Unidos como maior parceiro comercial do Brasil, o maior país da América do Sul, bastante semelhante aos EUA em dimensão. Mas as semelhanças entre ambos ficam por aí. O Brasil é muito mais pobre, com solos menos produtivos, e muito atrasado em termos de infraestruturas, sobretudo viárias e ferroviárias, mas também ao nível do saneamento. A América Latina poderia cooperar no sentido de reunir sinergias que favorecessem o comércio e a economia da região, mas as diferenças políticas e sociais dos países que a compõem não permitem que essa cooperação se faça com a eficiência da União Europeia, por exemplo, cujos países têm sistemas políticos e económicos semelhantes. Mas o Brasil tem uma vantagem: mantém relações pacíficas com os seus vizinhos. Espera-se que, ultrapassados os graves problemas internos, possa assumir o estatuto, nem sempre plenamente atingido, de ser o coração económico da América Latina.
Ártico
O Oceano Ártico é maior do que parece – tem 14 milhões de quilómetros quadrados e confina com os Estados Unidos (Alasca), o Canadá, a Dinamarca (Gronelândia), a Islândia, a Noruega, a Suécia, a Finlândia e a Rússia. Este último é o país com presença mais forte no Ártico. A Rússia possui 32 quebra-gelos, sendo seis deles movidos a energia nuclear, os únicos com essas características em todo o mundo, e está empenhada na construção do mais poderoso quebra-gelo mundial, com capacidade de romper gelo com mais de três metros de profundidade e de rebocar petroleiros de 70.000 toneladas. Os Estados Unidos têm um único quebra-gelo[16]. A aparente indiferença dos Estados Unidos em relação ao Ártico contrasta fortemente com o empenho da Rússia, que está a construir um exército do Ártico e seis novas bases militares, e a deslocar 6.000 soldados de combate para a região de Murmansk[17], entre outras medidas. Uma das razões para que no Ártico haja “muito a ser reivindicado e muito a ser discutido”[18] prende-se com as alterações climáticas: o derretimento da camada de gelo[19], que permite aos navios passarem do Mar de Bering ao Oceano Atlântico, por períodos cada vez maiores, sem a ajuda de quebra-gelos. Há dois caminhos principais: a Passagem do Noroeste (no arquipélago canadiano) e a Rota do Nordeste (na linha de costa da Sibéria)[20] Estas passagens permitirão encurtar distâncias e, logicamente, diminuir os custos do transporte marítimo. Por outro lado, o derretimento do gelo veio pôr a descoberto outras riquezas. Estima-se que possam extrair-se do Ártico 44 mil milhões de barris de gás natural liquefeito e 90 mil milhões de barris de petróleo[21]. Por tudo isto, muito se irá discutir no futuro sobre zonas económicas exclusivas, direitos de passagem e de exploração, etc. O Ártico é potencialmente uma zona de conflitos.
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Notas:
[1] A Rússia possui os maiores recursos de gás natural do mundo, o segundo maior em carvão e está entre os dez maiores produtores mundiais de petróleo. Além disso, é o maior exportador de gás natural, petróleo e carvão para a União Europeia, que, por sua vez, é o maior consumidor mundial de energia (os seus 505 milhões de habitantes consomem 20% da energia produzida no mundo).
[2] “Sevastópol é o único verdadeiro porto importante de águas quentes da Rússia. Contudo, o acesso do Mar Negro para o Mediterrâneo está restrito pela Convenção de Montreux de 1936, que concedeu à Turquia – agora membro da NATO – o controlo sobre o Bósforo. A marinha naval russa transita pelo estreito, mas em números limitados, e tal não seria permitido em caso de conflito. Mesmo depois de atravessarem o Bósforo, os russos precisam de passar pelo Mar Egeu para chegarem ao Mediterrâneo, e ainda teriam de cruzar o Estreito de Gibraltar para terem acesso ao Oceano Atlântico, ou de obter permissão para descer o Canal de Suez para alcançarem o Oceano Índico” (ob. cit., p.29).
[3] Apenas vinte e dois países reconheceram até hoje a soberania de Taiwan.
[4] “Os americanos comprometeram-se a defender Taiwan em caso de invasão da China, ao abrigo da Lei de Relações com Taiwan de 1979. Todavia, se Taiwan declarasse a independência total da China, o que a China consideraria um ato de guerra, os EUA não estariam obrigados a vir em seu auxílio, visto que uma tal declaração seria considerada provocadora.” (ob. cit. p. 59).
[5] 4 de julho de 1776.
[6] A Grã-Bretanha reconheceu a independência das Treze Colónias norte-americanas, que ficaram com o território compreendido entre os Grandes Lagos, a Norte, os Montes Apalaches e o rio Mississipi, a Oeste, e o paralelo 31, a Sul.
[7] A Luisiana era um território gigantesco, que corresponde hoje a mais de dez estados, bem no centro dos Estados Unidos, indo do Norte ao Sul do atual território americano.
[8] As Filipinas são um país independente desde 1946.
[9] Marshall chama a nossa atenção para algo bastante curioso. Normalmente usamos o mapa-mundi Mercator padronizado. Como se sabe, qualquer mapa representa uma esfera num plano, o que distorce as formas dos continentes. África, particularmente, parece muito mais pequena do que na realidade é. De facto, olhando para o mapa, ninguém diria que em África cabem EUA, Gronelândia, Alemanha, França, Reino Unido, Espanha, Índia, China e ainda resta espaço para grande parte do território da Europa Oriental.
[10] Sobretudo na Conferência de Berlim de 1884/85.
[11] Ob. cit., p. 112.
[12] As negociações secretas entre França e Inglaterra para dividirem o Médio Oriente foram protagonizadas pelos diplomatas francês François Georges-Picot e britânico Myke Sykes, em novembro de 1915.
[13] Ob. cit., p. 165.
[14] Ob. cit., p. 188.
[15] Ob. cit., p. 213.
[16] A Finlândia tem oito quebra-gelos, A Suécia sete, o Canadá seis e a Dinamarca quatro. China, Alemanha e Noruega têm apenas um.
[17] Junto ao Mar de Barents e perto da fronteira com a Finlândia.
[18] Ob. cit., p. 224.
[19] Há quem afirme que no final do século já não haverá gelo no Ártico, no verão. Há modelos de previsão climática que mostram que isso poderá ocorrer ainda mais cedo.
[20] Os russos chamam-lhe Rota Marítima do Norte.
[21] Estimativa do Levantamento Geológico dos Estados Unidos, em 2008.
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A nossa edição:
Tim Marshall, Prisioneiros da Geografia, Editora Desassossego, Lisboa, 2017.
A ciência será talvez a arma com a qual a nossa espécie provocará a sua própria destruição. Eis a inquietação principal subjacente a este livro de Yuval Harari.
Yuval Noah Harari é um académico e historiador israelita que, na esteira de Jared Diamond, aborda a história humana de uma perspetiva holística, reunindo conhecimento de várias ciências, como a biologia, a sociologia, a economia e a psicologia evolutiva, entre outras. É isso que faz em Sapiens, Uma Breve História da Humanidade, a sua obra mais conhecida (um bestseller), não incluindo, porém, no vasto leque de disciplinas, aquela que poderia “colar” todas as outras num todo homogéneo: a filosofia (particularmente, a filosofia da ciência, ou epistemologia, sem a qual, dificilmente, qualquer obra que reúna várias ciências poderá constituir uma unidade). Temos, pois, um conjunto de informações, algumas de indiscutível interesse (e que, sem dúvida, revelam a erudição do autor), e uma linha pessimista, bastante popular, que acredita na degenerescência humana, desde os tempos da chamada “Revolução Cognitiva” até os dias de hoje. O futuro do novo e autocriado “homem-deus” apresenta-se, assim, sombrio.
Resumamos, em breves pontos, as informações e interrogações de Harari.
Os biólogos organizam os organismos em espécies; as espécies são reunidas em géneros[1]; e os géneros são englobados em famílias[2]. Dois animais pertencem à mesma espécie se tenderem a acasalar entre si, dando origem a crias férteis. Neste sentido, o homo sapiens é uma espécie única, mas isto é assim apenas desde há cerca de 10 mil anos. Antes disso havia mais espécies humanas (o verdadeiro significado de “humano” é o de “espécie pertencente ao género Homo“), como por exemplo, os neandertais, os desinovas, os ergasteres, os solensis ou os erectus. O conhecimento científico atual aponta para que os sapiens tenham exterminado as outras espécies homo, apesar de uma percentagem muito pequena de misturas. Depois, uma mutação terá impossibilitado a reprodução entre o sapiens e os outros homo.
Uma das principais características da nossa espécie é a criação de mitos[3]. Essa criação de mitos – de ficções – permitiu-nos fazer revoluções culturais, provocando alterações sociais profundas, só possíveis às outras espécies através de alterações genéticas ou ambientais. O sapiens, através da cultura, ultrapassou a genética. A capacidade ficcional, por sua vez, permitiu aos sapiens colaborarem entre si. Os mitos e os símbolos são o motivo pelo qual milhares ou mesmo milhões de sapiens se reúnem num mesmo local. Isso não acontece com qualquer outra espécie. Esta cooperação entre os seres humanos é fundamental para o avanço científico, tecnológico, político, social, cultural, e constituiu a base da chamada Revolução Cognitiva, iniciada há cerca de 70 mil anos. Depois disso deu-se a Revolução Agrícola, há 12 mil anos; a Revolução Industrial, há 500 anos; e estamos a viver hoje em plena Revolução Científica (digital, genética, etc.).
Antes da Revolução Agrícola éramos caçadores-recoletores. Os psicólogos evolutivos acham que a nossa mente atual se formou nesse período. É por isso que devoramos alimento doces e gordurosos, uma praga nos tempos modernos, mas que constituía o único meio de sobrevivência, além da caça, nos tempos de recoleção: ficou gravado nos nossos genes o instinto de devorar alimentos calóricos. Há também psicólogos evolutivos que acreditam que a nossa tendência para a poligamia se deve ao facto de as sociedades primitivas crerem que as mulheres eram fertilizadas por vários homens e que as crianças podiam nascer com as melhores qualidades de cada um deles. Para estes cientistas, proponentes da “comuna ancestral”, as nossas famílias monogâmicas são incompatíveis com o software biológico que carregamos. Outros académicos rejeitam veementemente esta teoria, frisando que a nossa tendência para a monogamia, uma das mais importantes características humanas, é praticamente universal.
O sapiens-recoletor tinha um vasto conhecimento sobre o ambiente em que vivia, muito mais que o sapiens atual. Existem provas de que o tamanho médio do nosso cérebro diminuiu desde os tempos da recoleção. Fisicamente, éramos também mais dotados que atualmente. Hoje em dia, dado que passámos a depender muito mais da capacidade dos outros, formam-se novos “nichos de imbecis”, com a transmissão de genes banais à geração seguinte. Os recoletores tinham uma dieta mais rica e variada que os seus descendentes agrícolas. Tinham também menos doenças infecciosas, pois estas surgiram apenas com a domesticação de animais, depois de se iniciar a revolução agrícola. O único animal domesticado nos tempos da recoleção era o cão.
Os recoletores eram animistas, mas pouco mais podemos saber sobre as suas mentes. Interpretações sobre artefactos e pinturas rupestres revelam mais os preconceitos dos cientistas do que a realidade. Esta é uma importante lacuna na nossa compreensão da história humana. Seriam os recoletores pacíficos ou violentos? O mais provável é que a resposta dependa do local e da época, mas, na verdade, não se sabe. Há uma cortina de silêncio que nos separa desses 60 mil anos de história humana, anteriores à Revolução Agrícola.
Só a partir da Revolução Cognitiva é que os seres humanos saíram da região afro-asiática. A primeira grande travessia marítima foi até a Austrália, há cerca de 45 mil anos, a partir da Indonésia. O momento em que os caçadores-recoletores pisaram pela primeira vez uma praia australiana, foi quando o homo sapiens subiu ao último patamar da cadeia alimentar, tornando-se, a partir daí, a espécie mais mortífera do planeta. A fauna australiana era constituída por animais de grande porte, sobretudo mamíferos, mas o sapiens conseguiu destruí-la em 90%. O mesmo aconteceu na Nova Zelândia, há 800 anos, quando os maoris, os primeiros colonizadores sapiens, chegaram à ilha; ou quando os primeiros sapiens chegaram à ilha de Wrangel, no Ártico, há 4.000 anos, e exterminaram os mamutes.
Os registos históricos indicam que o homo sapiens é, em termos ecológicos, um homicida em série, tal como provou, igualmente, na América, o último continente colonizado, e por todo o lado. E isto aconteceu em todos os períodos históricos, sobretudo nas áreas terrestres. No entanto, hoje em dia também os grandes animais marinhos se encontram em perigo, graças à ação humana. É duvidoso que baleias, golfinhos, algumas espécies de tubarões e outros animais marinhos escapem à extinção.
A agricultura terá começado entre 9.500 e 8.500 a.C. na zona que corresponde ao atual Sudeste da Turquia, o Oeste do Irão e do Levante, e, mais tarde, de forma independente, noutros locais. Houve zonas do globo onde a agricultura não vingou naquela época, nomeadamente na Austrália e na África do Sul, simplesmente porque há plantas e animais (na verdade, a maioria) que não são domesticáveis. Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, a agricultura não trouxe uma maior qualidade de vida, apesar do aumento da produção de alimentos (sobretudo, trigo) e do exponencial aumento da população. A sedentarização não constituiu, por si só, uma vantagem, e a dieta do sapiens tornou-se mais pobre, embora mais abundante. As colheitas ficaram sujeitas a epidemias e a espécie humana também, sobretudo devido ao convívio com os animais domésticos. Não houve, assim, um salto qualitativo com a passagem da sociedade recoletora para a sociedade agrícola. E hoje já se sabe, com a descoberta das estruturas de Göbekli Tepe, no Sudeste da Turquia, que algumas sociedades recoletoras tinham culturas complexas e sistemas religiosos ou ideológicos sofisticados.
Do ponto de vista dos animais, a sua vida a partir da Revolução Agrícola foi uma catástrofe. Embora nunca tenha havido um número tão grande de galinhas (25 mil milhões), bois, porcos e ovelhas como hoje, a verdade é que a vida destes animais é um verdadeiro inferno. O mesmo se passa com os animais de carga, cujos instintos naturais tiveram que ser quebrados para possibilitar a domesticação. A Revolução Agrícola marca o início de um período extremamente controverso; há quem defenda que colocou a humanidade no caminho do progresso, e outros dizem que a conduziu à perdição.
A Revolução Agrícola, permitiu a sedentarização, a criação de grandes urbes e os impérios. O primeiro grande império foi o acadiano, forjado por Sargão, o Grande, em 2.250 a.C.; só depois, entre 1.000 a.C e 500 d.C, terão surgido os mega-impérios do Médio Oriente: o Império Assírio tardio, o Império Babilónico e o Império Persa. Em 221 d.C. a dinastia Qin uniu a China e, pouco depois, Roma unificava a bacia do Mediterrâneo. Os mitos sustentavam estes impérios. O exemplo de um mito é o Código de Hammurabi, de há cerca de 1776 a.C., quando a Babilónia era a maior cidade do mundo, juntamente com o seu império (Irão, Iraque e Síria atuais). Outro, a Declaração de Independência americana, de 4 de julho de 1776. Os mitos passaram a difundir-se com uma eficácia muito maior a partir da invenção da escrita.
Tudo começou com os números sumérios. Depois desenvolver-se-iam as escritas cuneiforme (na Mesopotâmia) e hieroglífica (no Egito), e outras na China e na América Central. No entanto, a especialização tornou a linguagem matemática a mais universal, após os árabes inventarem os números de 0 a 9 que, na verdade, haviam descoberto na Índia.
Parece haver um sentido para a História, pelo menos a avaliar o que tem acontecido no passado, ou seja, uma tendência para a unificação. Praticamente já não existem sociedades isoladas; há uma tendência clara para a globalização (iniciada pelos euroasiáticos – mas também por partes do Norte de África), como por exemplo, as viagens do tangerino Ibn Battuta, ainda no século XIV. Hoje em dia, a maioria dos seres humanos partilham os mesmos sistemas geopolítico e económico, legal e científico. Isto nasce, talvez, de uma peculiar faceta humana: dar-se com estranhos, cooperar, ter uma noção da espécie, da humanidade. Isto só foi possível após deixarmos de considerar aqueles que pensam de forma diferente da nossa como bárbaros.
Foi no primeiro milénio antes de Cristo que surgiram três ordens potencialmente universais: monetária (económica), imperial (política) e religiosa. Os primeiros unificadores foram os mercadores, os conquistadores e os profetas. Mas o que unificou a humanidade, acima de todas as coisas, foi o dinheiro. A tendência é para o dinheiro ser cada vez mais imaterial, um mero registo num servidor de um banco. O dinheiro físico (em papel) não representa mais do que 10% (10 biliões de dólares) do total (60 biliões) em circulação. O dinheiro virtual será o futuro e um bom exemplo é o bitcoin. “O dinheiro é o mais universal e eficiente dos sistemas de confiança mútua alguma vez criados”. A primeira moeda que, de alguma forma, se assemelha ao conceito de moeda que temos hoje em dia foi criada na antiga Mesopotâmia – o shekel de prata – que, de facto, não era uma moeda mas, simplesmente, 8,33 gramas de prata. Só por volta de 640 a.C. apareceram as primeiras moedas cunhadas, no reino de Aliates da Lídia, na Anatólia Ocidental. Todas as moedas hoje existentes são descendentes destas moedas da Lídia.
Depois da moeda, o maior fator de união entre os povos foram os impérios. “A maior parte da população mundial nos últimos 2.500 anos viveu sob um império”. Há uma certa aversão à palavra “império”, talvez apenas “fascista” a supere em negatividade. Mas isto é injusto e não corresponde à realidade. Imperadores generosos, como Ciro, preocupavam-se genuinamente com o povo. Além disso, os impérios são, sem dúvida, mais integradores que os estados-nação, e opõem-se de múltiplas formas ao nacionalismo. A visão de Ciro foi passada para Alexandre, o Grande, e para vários imperadores romanos, entre outros. Na China, os períodos de fragmentação política eram vistos como idades das trevas, de caos e injustiça. Parece já ter começado um império global onde dominarão padrões mundiais de comportamento financeiro, políticas ambiental e de justiça. Crescentes correntes de informação, trabalho e capitais circulam já pelo mundo, indiferentes a fronteiras e estados.
Além do dinheiro e dos impérios, a religião tem sido, também ela, um fator de união da humanidade. Ou desunião. As religiões monoteístas revelar-se-iam bem menos tolerantes (em geral) que as suas antecessoras politeístas e, antes destas, animistas. Há também que considerar, ainda hoje, alguns resquícios de religiões dualistas (o duelo entre as duas forças universais – Bem e Mal), sobretudo a veiculada pelo profeta Zaratustra, entre 1500 e 1000 a.C. Existem, depois, as religiões baseadas nas leis da Natureza, sendo destas a mais conhecida, o Budismo. E, claro, as religiões não-teístas, como o marxismo e outras religiões “humanistas” como o liberalismo e o nazismo (o “humanismo evolutivo”)[4].
Até à Revolução Científica, a maioria das culturas não acreditava no progresso; achavam que a idade de ouro se encontrava no passado. Hoje não é assim: há uma confiança desmedida nas possibilidades científicas e técnicas (áreas que até há uns meros 300 anos estavam separadas), sendo o projeto mais ambicioso o chamado “Projeto Gilgamesh”, através do qual, supostamente, o homem atingirá a eternidade. Mas como foi possível chegarmos a este ponto? Através da combinação, na Europa oitocentista e mesmo antes, de três elementos essenciais: ciência, capitalismo e imperialismo. Os imperialistas levaram a destruição consigo – como foram os casos de Cortés, em relação aos aztecas[5], e Pizarro sobre os incas – mas também o conhecimento: vejam-se os casos dos britânicos Henry Rawlinson e William Jones.
O oficial britânico Henry Rawlinson, enviado para a Pérsia em 1830, haveria de decifrar a escrita cuneiforme e, assim, abrir uma nova luz sobre o mundo antigo. E William Jones, chegado à Índia em 1783, fundou, pouco depois, a Sociedade Asiática, acabando por descobrir, ao estudar o sânscrito antigo, a origem comum das chamadas línguas indo-europeias. Claro que os académicos quiseram saber que povo falava essa língua original; chegaram à conclusão de que os mais antigos falantes de sânscrito, que tinham invadido a Índia a partir da Ásia Central há mais de 3.000 anos, se autodenominavam Arya. O povo que falava essa língua primordial, que dera origem a todas as línguas indo-europeias, era, portanto, o povo ariano. Não demorou muito até que alguns biólogos, sob a influência de Darwin, afirmassem que os arianos eram também uma raça, casando a linguística com a seleção natural. Esse povo “puro”, de indivíduos altos, louros, de olhos azuis, inteligentes e trabalhadores, ter-se-ia, infelizmente, misturado com os indianos e persas, aquando das suas incursões para Sul. Enquanto ali as civilizações indianas e persas declinaram, na Europa, onde a raça ariana se manteve intacta, a civilização progrediu. Os resultados destas teorias são por demais conhecidos…
Se estas questões relacionadas com as raças estão de certa forma ultrapassadas, há que contar, atualmente, com um outro tipo de discurso xenófobo, o “culturalismo”: não são as raças que são superiores ou inferiores, mas sim as culturas. É por isso que a extrema-direita explora o discurso da inadaptação de certos povos aos nossos valores ocidentais (democracia, direitos humanos, liberdade, tolerância, etc.).
Como vimos, a ciência e o capitalismo estiveram na base do imperialismo moderno. E o capitalismo só se desenvolveu porque a ciência trouxe consigo a ideia de progresso, de confiança no futuro. Antes da ideologia capitalista pensava-se que a riqueza era sempre a mesma, apenas mudava de mãos: para uns ficarem mais ricos, outros tinham de ficar mais pobres. Com a confiança no progresso e no crescimento, isto deixou de ser assim. Para alguém ficar mais rico não é necessário que outrém fique mais pobre. A principal característica do capitalismo é o reinvestimento dos lucros da produção em mais produção. Podemos caracterizar esquematicamente da seguinte forma o capitalismo: confiança –> crédito –> crescimento.
Os primeiros grandes especialistas em crédito foram os holandeses. Criaram companhias por ações, como a VOC, no Oriente, e a WIC, no Ocidente[6], as quais só perderam as imensas riquezas quando a Holanda se viu envolvida na “complacência” e em dispendiosas guerras continentais. O lugar vago de motor financeiro da Europa foi então disputado por França e Inglaterra. Face ao comportamento da coroa francesa, bem patente no episódio que ficou conhecido por “A Bolha do Mississipi”[7], quem aproveitou este lugar vago foi a Inglaterra. A decadência francesa, o elevado pagamento de juros, haveria de ser a principal causa da revolução de 1789. Tal como aconteceu como os holandeses, também as colónias britânicas foram financiadas por investidores privados, os quais, mesmo depois das nacionalizações das colónias, quer pelo estado holandês, quer pelo estado britânico, continuaram, na prática, a controlar a situação e a deter a maioria das ações nas bolsas de Londres e de Amesterdão, podendo contar com o Estado para defender os seus interesses.
Exemplos dessa defesa são incontáveis: a Guerra do Ópio (1840-1842), quando a China foi obrigada pela Inglaterra a abrir os seus portos aos comerciantes de droga britânicos e, no final do século XIX, acabou com 10% da sua população viciada no ópio; a invasão do Egito pelos ingleses em 1882, para controlo do Canal de Suez, que durou até depois da II Guerra Mundial; a intervenção da armada britânica na guerra entre gregos e turcos, derrotando os otomanos na batalha de Navarino, em 1827; e tantos outros acontecimentos semelhantes, que reforçaram o papel imperial da Grã-Bretanha no século XIX. Foram, portanto, os próprios Estados que protegeram e difundiram o credo capitalista.
O motor do capitalismo é a confiança no futuro. Mas o que acontecerá quando os recursos do planeta (matérias-primas e energia) se esgotarem?
Antes da Revolução Industrial todos os seres vivos eram abastecidos pela energia solar captada pelas plantas. A grande revolução foi, na verdade, a da conversão da energia, a qual praticamente não conhece limites, a não ser a nossa ignorância. Mas onde a Revolução Industrial mais se fez sentir foi na agricultura, libertando as pessoas da terra e aumentando exponencialmente as produções agrícola e pecuária. O homem começou a selecionar as espécies, privilegiando os animais domésticos e a si próprio, e provocando a extinção de muitas outras espécies. No entanto, as mudanças provocadas pelo homem no planeta poderão conduzir à extinção da sua própria espécie. Será que as grandes transformações provocadas pelo homem têm contribuído para uma maior felicidade humana?
A felicidade não depende de fatores externos a nós, mas da bioquímica de cada indivíduo, dos níveis de serotonina, dopamina e oxitocina. O budismo, porém, vai mais longe: a felicidade não depende fatores externos, mas também não depende de fatores internos. Depende de não buscarmos nada, nem interna nem externamente; de não criarmos qualquer expectativa. No entanto, a busca por uma vida melhor e mais longa levou-nos a usar a engenharia genética, e corremos o risco de transformar o sapiens numa espécie até agora desconhecida, através de tecnologias como a engenharia ciborgue, combinando a vida orgânica com a vida inorgânica. A tecnologia pode levar-nos ao desconhecido, transformando-nos em deuses criadores, algo inimaginável até há muito pouco tempo. É muito duvidoso que estejamos preparados para essa tarefa divina.
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Notas:
[1] O nosso género é o “homo”.
[2] A nossa família é a dos “grandes símios”. Todos os membros de cada família têm um ancestral comum.
[3] Para Yuval Noah Harari, um dos maiores mitos do sapiens, criado já na época capitalista, é a sociedade anónima limitada.
[4] Embora entendamos a intenção de Harari, dado que certas ideologias são verdadeiras religiões criadas pelo Homem, apelidá-las de “humanistas” parece-nos, se não incorreto, pelo menos desnecessário.
[7] A “Bolha do Mississipi” ocorreu em França e constituiu a maior crise financeira na Europa do século XVIII. A Companhia do Mississipi, uma sociedade por ações, fez correr a notícia de que havia riquezas imensas no Vale do Mississipi e rapidamente o preço das ações atingiu níveis astronómicos, formando uma enorme bolha. Quando alguns especuladores perceberam o problema procuraram vender, o que induziu muitos outros a fazer o mesmo. O preço das ações caiu a pique, provocando uma avalanche. Numa tentativa para estabilizar os preços, o banco central francês começou a comprar ações, mas a derrocada total já era inevitável. No fim, as ações perderam todo o valor. Os grandes investidores haviam vendido a tempo, mas o pequenos perderam tudo e muitos suicidaram-se.
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Foto retirada de youtube.com.
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A nossa edição:
Yuval Noah Harari, Sapiens: História Breve da Humanidade, Editora Elsinore, 9ª impressão, Amadora, 2017.
Comemoram-se um pouco por todo o mundo os cem anos da Revolução Russa de 1917, que se completam precisamente hoje, dia 7 de novembro (de acordo com o calendário gregoriano, que a Rússia só adotou em 1918). As análises publicadas sobre tão importante efeméride refletem inevitavelmente posições ideológicas vincadas, de acordo com o apoio ou a rejeição (é difícil um meio-termo), mais ou menos explícitos, à doutrina de Marx. Tendo em conta que através da revolução na Rússia, bem como noutros lugares, se procurou pôr em prática as ideias daquele sociólogo alemão, a nossa análise, aqui e agora, não se baseará exclusivamente numa perspetiva histórica (relatar o que aconteceu e, por vezes, divagar sobre o que poderia ter acontecido), como as que, em geral, têm sido veiculadas, mas também numa crítica ao materialismo dialético de Marx, base dos inúmeros marxismos que povoam a Esquerda Radical. Será uma crítica sintética, assente em dez pontos, como se segue.
A teoria de Marx é uma profecia histórico-económica. Decreta o fim do capitalismo, mas esse fim nunca ocorreu nem se vislumbra como possa ocorrer. O máximo que se conseguiu foi a transferência dos meios de produção das mãos dos capitalistas para as mãos do novo poder instituído – o capitalismo de Estado.
Dado que, de acordo com a teoria, o capitalismo não é mais do que uma etapa no processo histórico que culminará no comunismo, a sua eliminação só será possível se houver uma regressão no tempo. O fim do lucro, o fim do juro, o fim do dinheiro, o fim do comércio, o fim das trocas, e assim sucessivamente até à vida fechada da tribo. É isso que, precisamente, quer dizer “comunismo” – a integração da produção e do consumo, sem intermediários, no mesmo espaço fechado.
Por isso (por não ser possível com um estalar de dedos voltar ao comunismo), Marx não tinha qualquer proposta económica para o tempo pós-revolução, para a vida dos operários após a conquista do poder: tudo teria de começar do zero. Por essa razão, Lenine não sabia o que fazer quando o poder lhe caiu nas mãos. Nada na teoria de Marx lhe indicava um caminho. Como o próprio Lenine admitiu, dificilmente se encontra na obra de Marx uma palavra sobre a economia do socialismo. Não admira, portanto, que, do ponto de vista económico, os regimes marxistas, um a um, tivessem falhado.
A profecia de Marx aponta para o fim das classes, logo que a “classe operária” vença a burguesia (de acordo com a teoria de Marx todas as outras classes desaparecem) e tome o poder. Ora, não é logicamente possível provar que, após a vitória do proletariado, persista para sempre uma única classe e que, com ela, acabe a exploração. Será muito mais provável que se formem (ou se mantenham) sub-classes dentro da classe operária, (ou que outras classes, ou sub-classes, não sejam absorvidas por ela), com interesses diversos, que logo entrarão em conflito entre si. E, mais uma vez, teríamos de recuar no tempo, provavelmente até à época em que Marx viveu (ao contrário do que Marx previra a revolução não se deu num país onde o capitalismo estava desenvolvido, mas numa Rússia pouco industrializada), para que a revolução proletária fosse possível, uma vez que hoje, e mais ainda no futuro, o número de operários e a correspondente classe é (será) cada vez menor no mundo desenvolvido. As classes sociais estão em constante transformação. Mas, além do argumento lógico, há também o teste empírico: não ocorreu, de facto, o fim das classes, como prevê a teoria, após a revolução: antes se formou uma classe dirigente, com todos os privilégios, e uma massa enorme, sem privilégio algum. Portanto, a profecia do fim das classes também falhou.
A teoria marxiana só pode ser entendida e explicável como uma resposta humanitária à subjugação terrível a que foi submetido o operariado daquele tempo (sobretudo mulheres e crianças), vítima de um capitalismo selvagem. É por isso, mais do que muitas outras, uma teoria datada. E apesar de ser uma resposta justa e humanitária, querer validá-la por “mil anos”, constitui, por si só, uma demonstração do espírito determinista, da inconsistência científica e da arrogância intelectual de Marx.
Karl Marx e o seu amigo Engels concluíram que o Estado, através das instituições políticas, não seria capaz de reformar a sociedade e evitar que os operários fossem tratados como escravos. A única forma de libertar os trabalhadores do jugo capitalista seria a revolução, dado que a estrutura do Estado e o enquadramento legal eram controlados pela burguesia. Ora, o que aconteceu foi precisamente o contrário. As sociedades capitalistas foram capazes de reformar-se (criando, por exemplo, o welfare state) e as sociedades revolucionárias transformaram-se em tiranias: repressão aos opositores e notória decadência social, com todo o tipo de carências materiais, mas sobretudo com a carência de liberdade.
O foco exclusivo da filosofia marxiana nas questões económicas é claramente exorbitado. Segundo Marx, é a condição económica que determina quer a pertença a uma classe, quer a consciência dessa pertença. O próprio pensamento humano é, assim, condicionado pela consciência de classe. Acontece que, neste aspeto, pese embora o contributo para uma visão mais apurada sobre a importância da condição material da humanidade, o “economismo” de Marx é demasiado redutor. O pensamento humano, mais concretamente o pensamento social humano, não pode ser reduzido à consciência de classe, é muito mais do que isso. O altruísmo ou o egoísmo não dependem da consciência de classe. E é muito curioso observar que na Rússia revolucionária foi precisamente uma ideia – a crença no marxismo – que manteve o regime, uma vez que a miséria era mais que muita, contrariando, assim, mais uma vez, a teoria de Marx.
O caráter profético da doutrina de Marx cria nos espíritos mais desavisados a ideia de inevitabilidade: se é certo que a revolução chegará (o que é legitimado pelo estatuto “científico” da teoria), nada mais resta do que tudo fazer para que chegue o mais depressa possível. Como é evidente, qualquer profecia histórica (e esta não foge à regra) tem um claro fundo religioso. E é o caráter religioso do marxismo que inevitavelmente o conduz a contradições internas – por uma lado é necessário lutar por uma melhoria da situação dos trabalhadores, mas por outro tem de se desejar o pior para precipitar a revolução – como se pode verificar pela atuação dos partidos marxistas de hoje, visível sobretudo nos países socialmente mais atrasados, uma vez que nos países desenvolvidos o peso específico do marxismo é cada vez menor (facto que, como vimos no ponto 4, mais uma vez, contradiz as previsões de Marx).
Mas o efeito mais nefasto da profecia marxiana tem que ver com a forma como se dará a revolução. Há duas hipóteses: a) os trabalhadores podem simplesmente aproveitar o colapso da estrutura capitalista para tomarem o poder, que cairá de maduro, praticamente sem derramamento de sangue ou b) podem ter que precipitar uma revolução violenta. Marx não é claro sobre isto, e a sua ambiguidade permite todo o tipo de leituras. É, em grande parte, graças a esta ambiguidade que existem tantos marxismos (radicais e moderados), alguns adeptos ou, pelo menos, tolerantes face à violência. (Relacionado com isto está, evidentemente, a ideia de que só através da luta nas ruas se garantirão os direitos dos trabalhadores). A teoria de Marx, como outras teorias radicais, revela-se um claríssimo obstáculo à paz social.
Marx não acreditava no poder político para transformar a sociedade. Para ele, o poder efetivo dependia da evolução das máquinas e do sistema das relações económicas de classe. É significativo que se comemorem os cem anos da revolução russa quando se realiza mais um congresso da Web Summit em Lisboa. Hoje também muitos falam do poder da tecnologia; em contraponto, caberá, aos que acreditam na política, impor o primado da política. É certo que vivemos um período histórico complicado (houve algum que não o fosse?). Tal como aconteceu no período da revolução industrial, também a revolução digital produzirá (já está produzindo) problemas sociais graves. Mas tal como a revolução industrial vingou, também vingará a revolução digital. Muitos reclamarão, certamente. Mas os países que mais rapidamente se adaptarem à nova era ganharão vantagem sobre os que não o fizerem. Que a humanidade seja capaz de fazer as reformas necessárias para enfrentar esta revolução tecnológica, sem necessidade (mesmo que seja uma necessidade meramente teórica) de recorrer a uma revolução política violenta. Que tenhamos aprendido alguma coisa com as tragédias desencadeadas pela revolução bolchevique de há cem anos.
Na edição de 28 de outubro do semanário “Expresso”, podemos ler dois curiosos depoimentos sobre Marcelo Rebelo de Sousa. No caderno principal, escreve assim o comentador político Daniel Oliveira:
Que a população não descodifique cada gesto do Presidente é natural. Cabe-nos a nós, na imprensa, retirar a capa das emoções ao seu cálculo. Foi um Paulo Portas chocado por encontrar uma alma gémea quem melhor descreveu Marcelo: “É filho de Deus e do Diabo – Deus deu-lhe a inteligência, o Diabo deu-lhe a maldade”. (…) Mesmo quando exibe os seus afetos Marcelo está a fazer política. Está a usar o ambiente de comoção nacional e o consenso que se criou à sua volta para pôr todo o sistema político, do Parlamento ao Governo, sob sua tutela. E isso é perigoso para a democracia.
Já na “Revista”, diz-nos o psiquiatra José Gameiro, num artigo intitulado “As emoções”:
As emoções revelam o que de mais profundo temos, não estou a falar da sua expressão, estou a falar de qualquer coisa muito pessoal que é a empatia e a compaixão. (…) Marcelo não é um ingénuo, longe disso, mas teve sempre ao longo da vida uma prática de solidariedade que o torna genuíno quando mostra a compaixão pelos que sofrem. E isto não tem nada a ver com conceções de sociedade, naquilo que, classicamente, divide a direita da esquerda. Tem a ver com sentimentos e emoções e só com isto… (…) A dupla personalidade é uma ficção, pura e simplesmente não existe. As pessoas são o que sempre foram e serão.
Seria difícil duas visões mais antagónicas. A primeira ideológica, reacionária (“cabe-nos a nós” e não ao povo) e conspirativa (“um perigo para a democracia”); a segunda, independente, desmistificadora, realista. E esta sumária caracterização bastará para desvendar a nossa posição relativamente a cada uma delas.
Uma ideologia começa por ser uma receita: um medicamento criado para combater um problema social específico, num determinado contexto histórico. Querer que esse medicamento seja universal – eficaz em todas as enfermidades sociais e em todas as épocas – é algo que está para além da racionalidade: é crença, religião, fanatismo, precisamente o que são as ideologias mais radicais, de esquerda ou de direita. Os seus acólitos convencem-se e tentam convencer-nos de que existe uma banha da cobra milagrosa que cura todas as maleitas sociais. Esse insano utopismo, constitui, na prática, o maior obstáculo à erradicação da violência, à Paz Perpétua sonhada por Kant e tantos outros humanistas. Paz que temos conseguido manter numa Europa unida; União que alguns fanáticos estão empenhados em destruir.
O nacionalismo faz apelo aos nossos instintos tribais, à paixão e ao preconceito, e ao desejo nostálgico de sermos libertados da tensão da responsabilidade individual, que tenta substituir por uma responsabilidade coletiva ou de grupo. É na linha dessas tendências que verificamos que as obras mais antigas sobre teoria política, mesmo a do Velho Oligarca, mas mais marcadamente as de Platão e Aristóteles, refletem conceções decididamente nacionalistas, já que tais obras foram escritas numa tentativa de combater a sociedade aberta e as novas ideias de imperialismo, cosmopolitismo e igualitarismo. Este primeiro desenvolvimento de uma teoria político-nacionalista é cerceado, porém, com Aristóteles. Com o império de Alexandre, o nacionalismo tribal genuíno desaparece para sempre da prática política e, durante muito tempo, da teoria política. A partir de Alexandre, todos os Estados civilizados da Europa e da Ásia foram impérios, abrangendo populações de origens infinitamente diversificadas. A civilização europeia e todas as unidades políticas nela integradas permaneceram internacionais, ou, mais precisamente, intertribais, desde então. (…) (Claro que os sentimentos tribais e paroquiais sempre foram fortes). Quando o nacionalismo ressurgiu há cem anos, foi justamente na região mais mesclada de todas as regiões profundamente mescladas da Europa, na Alemanha, e especialmente na Prússia, com uma população fortemente eslava. (Ignora-se que, há cerca de um século apenas, a Prússia, com a sua população então predominantemente eslava, não era considerada de modo algum um Estado alemão, embora os seus reis, que, na sua qualidade de príncipes de Brandenburgo, eram “Eleitores” do império Germânico, fossem considerados príncipes alemães. No Congresso de Viena, a Prússia foi registada como um “reino eslavo”; e, em 1830, Hegel ainda se referia a Brandenburgo e a Mecklenburgo, como sendo povoados por “eslavos germanizados”).
Por conseguinte, pouco tempo decorreu desde que o princípio do Estado nacional foi reintroduzido na teoria política. Apesar disso, ele é tão amplamente aceite nos nosso dias que é usualmente tomado como ponto assente, e muitas das vezes sem que se tenha consciência disso. Constitui agora, por assim dizer, um pressuposto implícito do pensamento político popular. É inclusivamente considerado por muitos como o postulado básico da ética política, especialmente desde o princípio, bem-intencionado mas não tão bem ponderado, de Wilson sobre a autodeterminação nacional. É difícil entender como é que alguém com um mínimo de conhecimentos da história europeia, das migrações e misturas de todas as espécies de tribos, das inúmeras vagas de povos vindos do seu habitat asiático original e que se disseminaram e entrecruzaram ao alcançar esse labirinto de penínsulas a que se chama continente europeu, como é que alguém com esses conhecimentos tenha podido alguma vez propor um princípio tão inaplicável. A explicação está em que Wilson, que era um democrata sincero (e também Masaryk, um dos maiores defensores da sociedade aberta), foi vítima de um movimento oriundo da filosofia política mais reacionária e servil jamais imposta à submissa e paciente humanidade. Foi vítima da sua formação nas teorias metafísico-políticas de Platão e Hegel e do movimento nacionalista baseado nelas.
O princípio do Estado nacional, isto é, a exigência política de que o território de cada Estado coincida com o território habitado por uma nação, não é de modo algum tão evidente em si mesmo como parece ser para tanta gente, nos dias de hoje. Mesmo que se soubesse o que se quer dizer quando se fala de nacionalidade, não é evidente, em absoluto, por que razão a nacionalidade deve ser aceite como uma categoria política fundamental, mais importante, por exemplo, do que a religião, ou o nascimento dentro de uma determinada região geográfica, ou a lealdade a uma dinastia, ou a um credo político como a democracia (que forma, poder-se-á dizer, o fator de união da Suíça multilingue). Mas enquanto a religião, o território ou um credo político podem ser mais ou menos claramente determinados, ninguém foi jamais capaz de explicar o que entende por nação, de modo que possa ser usado como base de prática política. (Evidentemente, se dissermos que uma nação é um certo número de pessoas que vivem ou nascem em determinado Estado, então tudo é claro; mas isso significaria renunciar ao princípio do Estado nacional, que exige que o Estado seja determinado pela nação, e não o inverso). Nenhuma das teorias que defendem que uma nação é unificada por uma origem comum, ou por uma história comum, é aceitável ou aplicável na prática. O princípio de Estado nacional não só é inaplicável como nunca foi claramente concebido. É um mito. É um sonho irracional, romântico e utópico, um sonho de naturalismo e de coletivismo tribal.
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A nossa edição:
Karl Popper, A Sociedade Aberta e seus Inimigos,Editora Fragmentos, 1993, Lisboa, vol. II. pp. 53-55.
A adaptação da realidade à ideologia é apenas um dos aspetos religiosos do marxismo.
É sabido que dos dois regimes totalitários do século XX, o estalinismo é o que está menos documentado. Estaline não só foi um criminoso sem escrúpulos, como procurou a todo o custo deturpar a História. Apesar disto, há factos que inúmeros testemunhos resgataram das trevas e nos permitem, cruzados com outras fontes de informação, ir conhecendo melhor, a cada dia, esse período tenebroso dos tempos soviéticos. Não é objetivo deste curto artigo apresentar bibliografia sobre o tema, até porque qualquer interessado pode encontrar imensa documentação numa simples pesquisa na internet. E, fora da rede (é sempre aconselhável não ficar “enredado”), todos os anos são publicados inúmeros livros e artigos sobre o assunto. É sabido, por exemplo, que graças à desastrosa política agrícola de Estaline morreram, vítimas da fome, milhões de pessoas. Na Ucrânia, uma das repúblicas mais afetadas, esse morticínio ficou conhecido por “Holodomor” (que etimologicamente quer dizer, precisamente, “morte pela fome”). Podem ver aqui um interessante documentário sobre esse massacre do início dos anos 30 do século passado.
Mas o que nos interessa neste artigo não é documentar Holodomor ou o estalinismo. O que nos propomos é evidenciar o caráter religioso do marxismo, algo que pode parecer surpreendente, mas que está identificado e estudado por vários historiadores e sociólogos, entre outros1. Mais: ao contrário de outras religiões, o marxismo é irreformável, pois alimenta-se de um radicalismo que, além de constituir uma das suas principais características, faz parte da sua identidade. Se hoje é praticamente impensável assistirmos a uma alta figura da Igreja negar, por exemplo, a Inquisição (vimos recentemente o Papa pedir desculpa pelas atrocidades cometidas pela Igreja Católica), o mesmo não se pode dizer de um marxista, como ficou patente, na presente semana, pela declaração no Parlamento de António Filipe, negando que o Holomor tenha existido (aqui). Tudo não terá passado de uma invenção da “extrema-direita ucrâniana” e “uma grosseira violação da verdade histórica”. Esta projeção típica dos marxistas, advém, precisamente, da sua atitude irracional e religiosa: reescrever a história, deturpá-la, negá-la, apagá-la nos aspetos que podem, na sua perspetiva, manchar a doutrina (na verdade, o dogma) marxista. Muitos se lembrarão ainda do que disse Bernardino Soares, outro membro do PCP, relativamente à Coreia do Norte: “Tenho dúvidas de que não haja lá uma democracia”.
Voltando à questão de Holodomor, vejamos o que acrescenta o ilustre deputado António Filipe. Segundo ele, as causas da fome na União Soviética e, particularmente, na Ucrânia, deveram-se “aos efeitos devastadores da crise económica mundial de 1929”, às “condições climatéricas extremamente adversas” e também a “conflitos gerados em torno das alterações verificadas na estrutura da organização da propriedade fundiária” (bela frase!). É verdade que, embora existam provas a favor da tese de genocídio, não há um consenso absoluto entre os historiadores sobre esta matéria (há muita discussão em torno do conceito jurídico de “genocídio”); mas, apesar disso, ninguém minimamente honesto ousa negar a responsabilidade direta de Estaline na fome que atingiu não apenas a Ucrânia mas também o Cazaquistão, o Norte do Cáucaso e algumas regiões do Volga, entre outras. Essa fome foi o resultado da coletivização agrícola forçada (apropriação das terras por parte do Estado) e da perseguição (expropriação, deportação e assassinato) aos camponeses.
Poderemos ver através de uma busca rápida na internet um sem-número de blogues, sítios, portais, etc. onde se nega a responsabilidade de Moscovo sobre esses milhões de mortos. (Esta negação dos crimes de Estaline por parte dos marxistas mostra a ligação entre ambos, apesar dos esforços que muitos desenvolvem — como é o caso da historiadora Raquel Varela — para separá-los). Não admira. Outra vertente religiosa dos marxismos (sim, há muitos, mas os elementos apontados neste artigo são comuns a todos) é a propaganda e, associado a esta, o proselitismo. Procura-se por todos os meios arregimentar forças, deturpando a realidade se for preciso. Os marxistas não andam de porta-em-porta como as testemunhas de Jeová ou os mórmons, mas tal como eles têm uma “cassete”, sempre pronta a ser usada em comícios, manifestações, tempos de antena, etc. Qualquer discordância será sempre vista como sintoma de ignorância ou perversidade, pois a doutrina é a verdade e a salvação. Enquanto um homem livre estará disposto a aceitar ideias diferentes e, inclusive, estará disposto, se a tal o convencerem com argumentos, a alterar as que defende, o marxista jamais mudará as suas. Tal como os profetas, a missão dos marxistas é mostrar que existe um paraíso (a sociedade sem classes), e angariar para a sua causa o maior número possível de discípulos.
Mas o caráter religioso do marxismo não se revela apenas pelo negacionismo histórico e pelo proselitismo, longe disso. Um outro elemento, relacionado com estes, é a completa rejeição de responsabilidades, sempre que algo corre mal. Tal como em muitas religiões (veja-se o que acontece hoje com o islamismo radical), a culpa é dos infiéis, dos não-crentes (no caso do marxismo, os não-crentes são os “capitalistas”, a “direita”, a “burguesia”, o “grande capital”, o “imperialismo” e outras abstrações do género), ou seja, é sempre o inimigo quem é responsável pelos males do mundo e pelo insucesso das tentativas de erradicá-los. Ou então é porque a verdadeira doutrina não foi aplicada, houve um desvio, um percalço, um erro humano, porque o marxismo, esse, é certo e científico. O insucesso, quando não pode ser negado, transforma-se num castigo que resulta do desvio à doutrina, por não terem sido cumpridos os preceitos da ortodoxia, tal como alguém que, desviando-se dos ensinamentos dos evangelhos, sofre as inevitáveis consequências da heresia que cometeu.
Há ainda um outro elemento que já foi tratado por nós noutros artigos: a ideia de degenerescência. O mundo (capitalista) piora sempre. Será salvo apenas quando vivermos numa sociedade comunista, para a qual não há qualquer alternativa válida. (Tal como os judeus esperam o Messias, a humanidade espera o advento do comunismo: não se sabe quando virá, mas é certo e inevitável que virá um dia). As consequências disto são que: a) uma vez que o advento do comunismo é inevitável, não importa que tenha sido derrotado algumas vezes e que venha a sê-lo ainda algumas mais, pois, no final, ele vencerá; e b) o mundo capitalista piora a cada dia, mas isto não é apenas uma constatação, é também um desejo, pois só a destruição do capitalismo (seja de que maneira for: por implosão ou por revolução) permitirá o regresso à pureza do comunismo, quando não existia propriedade privada, nem comércio, nem dinheiro, nem mais valia. Esta atitude do “quanto pior, melhor” já teve várias consequências trágicas. O exemplo mais conhecido foi o que se passou com a ascensão do nazismo: os marxistas não se lhe opuseram porque pensavam, precisamente, que quanto pior a Alemanha ficasse, tanto melhor para eles e para as suas hipóteses de implantarem o regime comunista. O resultado foi trágico, como se sabe.
O moralismo ideológico (confundindo ideologia com ética) é mais um dos elementos do marxismo. Consubstancia-se no ataque ao caráter dos adversários, e não numa crítica às suas ideias. (Quem estiver interessado em ler um artigo sobre o maior moralista português — José Saramago — pode fazê-lo aqui). Os capitalistas são maus porque são egoístas, exploram os trabalhadores, só pensam no lucro e não hesitam em subjugar outros povos. E não existe nenhuma gradação de capitalismo, não há capitalismo melhor ou pior, qualquer forma é igualmente malévola. Esta visão maniqueísta da sociedade é, evidentemente, outro dos elementos religiosos do marxismo: há os crentes e os hereges; nós e os outros; os bons e os maus. Claro que este radicalismo conduz facilmente ao ódio sobre os adversários — um ódio quantas vezes mascarado de amor (ver, por exemplo, o nosso artigo sobre Zizek aqui), pois baseia-se, assim creem os marxistas, na visão científica de um paraíso na terra. O “amor”, a palavra mais sedutora de qualquer vocabulário, serve frequentemente para camuflar embustes monumentais.
Já quando aplicado aos próprios marxistas, o moralismo transforma-se — deixa de ser maniqueísta e passa a ser relativo. Se, por exemplo, devido a uma ação revolucionária, há alguém inocente que morre, isso é considerado um dano colateral não condenável, porque a intenção era boa, plena de amor, e isso é que é importante. Eis o que disse Arthur Koestler, um judeu comunista, nascido na Hungria e naturalizado britânico, que, apesar de romper com o estalinismo, manteve esse sentimento nostálgico, e simultaneamente desastroso, de que as intenções são mais importantes que os resultados:
Nos anos 30, a conversão à fé comunista (…) foi a expressão sincera e espontânea de um otimismo nascido do desespero (…). Deixar-se atrair pela nova fé, penso-o ainda, foi um erro louvável. Estávamos enganados pelas boas razões; e continuo a acreditar que, apenas com algumas exceções (…) aqueles que, desde o início, denegriram a revolução russa o fizeram por motivos menos louváveis do que o nosso erro. Existe um mundo entre o amoroso desencantado e os seres incapazes de amar.
Ou seja: aqueles que não embarcaram na aventura comunista, que não sujaram as mãos com o sangue do povo inocente (e podem até ter estado entre o povo vítima do desvario comunista), eram incapazes de amar. E (só) os que amam podem ser desculpados do ódio porque esse ódio, afinal, brota do amor. Eis a posição (tipicamente hegeliana) de um marxista nostálgico (imagine-se, a partir dela, como será a de um marxista sonhador!)… Como se pode constatar, o marxismo tem muito mais de religião (aquilo que não quer ser, mas é) do que de ciência (aquilo que pretende ser, mas não é).
Uma teoria científica pode (e deve) ser testada, pois é confrontável com a realidade. Como disse Einstein, o espaço é o que se mede com uma régua, e o tempo é o que se mede com um relógio. Ora, o instrumento mais adequado para medir teorias sociais, a prazo, é a História. Mas quando os resultados da História não são agradáveis, os marxistas não reagem como cientistas (aceitando-os) mas como crentes (negando-os, deturpando-os ou desculpabilizando-os). É a aspiração científica que torna, ao contrário de outras, a religião marxista irreformável.
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Adenda:
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) foi criado em 1990 por dois economistas insuspeitos, preocupados com a pobreza e a injustiça social – Amartya Sen e Mahbud ul Haq. A partir de 1993, o IDH vem sendo usado pelo PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento para elaboração do seu relatório anual. Em 2015 (último relatório divulgado – aqui), os dez países onde o IDH foi mais elevado foram os seguintes: 1º Noruega; 2º Austrália; 3º Suiça; 4º Dinamarca; 5º Holanda; 6º Alemanha; 7º Irlanda; 8º Estados Unidos; 9º Canadá; 10º Nova Zelândia. Destes dez países, o único que tem no seu parlamento deputados de um partido marxista é a Irlanda (3 dos 218 lugares das duas câmaras do país, ou seja, 1,4%); os restantes nove países não têm quaisquer deputados ou senadores marxistas nos seus parlamentos. Entre câmaras altas, baixas e únicas, estamos a falar de um universo de 2.991 representantes. Destes, apenas três são de um partido de inspiração marxista (formado em 1996 por Joe Higgins, que é ainda o seu líder – o Partido Socialista da Irlanda). Ou seja: os marxistas têm 0,1% de representatividade parlamentar no universo dos 10 países socialmente mais desenvolvidos do mundo. Ao que parece, há aqui uma tendência que podemos, talvez, resumir desta maneira: quanto mais desenvolvido é um país, menor é a representação marxista no seu parlamento.
Finalmente, sabemos que estes dados, e sobretudo a tendência que evidenciam, não impressionarão os brilhantes intelectuais da Esquerda extremista (que, como vimos, os deturparão, dissimularão ou desvalorizarão). Ainda assim, são reais.
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Notas:
1 Deixamos apenas duas citações ilustrativas da nossa afirmação.
1ª- “o comunismo, ao contrário do que sucede com os socialistas, apresenta-se como uma filosofia que é na realidade uma fé; e fé com dois aspectos: um para a acção imediata do revolucionário, o outro para sustentar uma futura sociedade. O único ponto fraco desta fé é o seguinte: é uma fé na vida em si, ou melhor, nos aspectos temporais e espaciais da vida, no que, por exemplo, vai em contradição com a própria ciência de que se socorre para os aproveitamentos técnicos, a qual, como se sabe, é cada vez menos temporal e menos espacial. Além de tudo nunca filosofia alguma foi mais frágil e, para falarmos francamente, mais absurda que a materialista em que os comunistas se apoiam. Mas é simples, compreensível e aí pode residir um dos seus elementos de vitória. Isto é, podemos ter de um momento para o outro uma sociedade comunista, economicamente certa, na medida em que for socialista, e não, como agora, um capitalismo de Estado, mas filosoficamente errada; e, para a Humanidade, o que está filosoficamente errado está vitalmente errado; quer dizer: condenado à morte” (Agostinho da Silva, “Textos e Ensaios Filosóficos II”, Âncora Editora, Lisboa, 1999, p. 91).
2ª- “Parece que Engels estava preparado para tolerar a intolerância e ortodoxia dos marxistas. No seu Prefácio à primeira tradução inglesa do Capital escreve (cf. Cap., 886) que esse livro “é muitas vezes chamado, no Continente, a Bíblia da classe trabalhadora”. E em vez de protestar contra um qualificativo que converte o socialismo “científico” numa religião, Engels vai demonstrar, nos seus comentários, que o Capital merece esse título, porquanto “as conclusões a que se chega nessa obra, estão cada vez mais a converter-se nos princípios fundamentais do grande movimento das classes trabalhadoras” em todo o mundo. A partir daqui basta um passo para a perseguição aos herejes e a excomunhão dos que conservarem o espírito crítico, isto é, científico. O mesmo espírito que um dia inspirou Engels, assim como Marx”. (Karl Popper, “A Sociedade Aberta e seus Inimigos”, Editorial Fragmentos, Lisboa, 1993, p. 316).
Os preços num posto de venda de combustíveis de Ayamonte, em 20 de fevereiro de 2017.
Temos a sorte de morar a pouco mais de 20 quilómetros de Espanha, onde a gasolina é cerca de 25% mais barata que em Portugal. Por outras palavras, em quatro depósitos cheios em Espanha, um é oferecido, se compararmos com os preços no nosso país. Mas não são apenas os combustíveis líquidos que são mais baratos em Espanha. Em termos comparativos, o gás é ainda mais barato que a gasolina. Na mesma bomba onde abastecemos o carro, em Ayamonte, o preço de uma garrafa de gás é de € 12,89 cerca de metade do custo em Portugal, que ronda os €25,30. E o mais espantoso é que essas garrafas de gás são de uma marca bem nossa conhecida — a Galp.
Para lá dos combustíveis (cujo imposto, só em 2016, rendeu cerca de 2.600 milhões de euros ao Estado) há que referir ainda os custos da eletricidade, que são igualmente (ou talvez ainda mais) exorbitantes aqui. O elevado custo da energia no nosso país conduz-nos desde logo a duas questões fundamentais.
1- A quem servem as entidades reguladoras e da concorrência em Portugal?
Essas entidades podem servir determinados fins — nomeadamente os dos membros das administrações das mesmas (cujas remunerações, curiosamente, são quase sempre muito acima dos 10.000 euros mensais) e os das empresas que supostamente deveriam fiscalizar— mas dificilmente os interesses dos consumidores, como obrigam, aliás, os seus estatutos. E não se pense que isto se passa apenas no setor energético, onde os preços dos combustíveis são sensivelmente os mesmos nas principais gasolineiras. Veja-se o que acontece com as empresas de telecomunicações, que levam a cabo contratos absurdos (verdadeiros atentados num país da dimensão de Portugal), dando às principais sociedades anónimas desportivas os milhares de milhões que nos roubam aos poucos, todos os meses, através de contratos leoninos, perante a passividade geral.
2- Que impacto têm estes impostos indiretos e esses monopólios ou cartéis sobre a economia?
Como é evidente, têm um impacto enorme, quer nas famílias quer nas empresas (cerca de um terço dos custos das pequenas e médias empresas – que representam 99% do total – provém do consumo de combustível). E as vantagens são sempre para os mesmos: os dezenas de milhar de boys da administração pública que aí permanecem com cargos de chefia intermédios, e os milhares de que circulam entre o Parlamento, os ministérios, os bancos e a cúpula das grandes empresas públicas e algumas privadas, muitas destas com negócios privilegiados com o Estado. O que se passou na Caixa-Geral de Depósitos, na PT, na REN, etc. está aí bem presente nas nossas memórias para nos lembrar que o sistema político-administrativo-económico em Portugal está doente.
Garrafas de gás da Galp à venda em Ayamonte.
Esta é a situação geral. Os políticos, da esquerda à direita e da direita à esquerda, estejam no Governo, na Assembleia da República, nas empresas públicas ou naquelas com negócios com o Estado, estão lá para se governar. É para isso que, salvo honrosas exceções, se inscrevem nos partidos políticos. Portugal não tem recursos para alimentar tanta voracidade dos militantes políticos (nem, há que dizê-lo, de alguns empresários sem escrúpulos). E enquanto não deixarmos de ser uma sociedade egoísta, onde impera a ganância desmedida, não podemos acreditar no Estado: minado como está por parasitas partidários, ele consumirá uma fatia exageradamente grande da riqueza do país. É isso que acontece nos países atrasados, e Portugal é ainda em larga medida um país atrasado, algures entre o primeiro e o terceiro mundos. Continuamos a precisar de melhores políticas de Educação (uma das áreas que mereceria um amplo consenso nacional, como acontece em alguns países) para crescermos de forma mais homogénea. Até lá, temos não só o direito mas sobretudo o dever de desconfiar de um Estado todo-poderoso. E temos igualmente o dever de exigir, por todos os meios legítimos possíveis, a condenação dos políticos corruptos bem como dos testas-de-ferro que despudoradamente usam para roubar o país. Os passos que damos são demasiado lentos e, dado que não estamos sozinhos (metade dos países de Leste que entraram muito depois de nós na UE já nos ultrapassaram), precisamos de diminuir aceleradamente o pesado “custo Portugal”.
A Associação de Turismo de Lisboa divulgou hoje um relatório do qual destacamos os seguintes dados, relativos ao ano de 2015.
– 8.437 milhões de euros gerados pelo turismo na região de Lisboa.
– 149.914 novos postos de trabalho motivados pelo turismo.
– 7,3 milhões de hóspedes (o dobro de 2005).
– Aumentos proporcionados pelo turismo em 2015, relativamente ao ano anterior (2014): + 240 milhões de euros na hotelaria; + 200 milhões de euros na restauração; + 140 milhões de euros em transportes e compras; + 100 milhões de euros em congressos.
– De acordo com pesquisa levada a cabo pela ATL, 91% da população lisboeta considera que o turismo causa um impacto positivo na cidade.
As pessoas que estão cansadas e incomodadas devido ao aumento do número de turistas em Lisboa, sobretudo nos bairros históricos, deveriam olhar com atenção para estes números. A realidade mostra que o turismo é o setor que mais contribui para que a economia não esteja, nestes tempos difíceis, muito pior. A diminuição do desemprego em Portugal deve-se, em larguíssima medida, ao aumento do turismo. O “comportamento” positivo das nossas exportações deve-se também ao turismo, que representa 15% do total. Em suma, os milhões de cidadãos que nos visitam são os grandes responsáveis pela melhoria dos dados económicos do país. As receitas do turismo em 2016 ascendem, em todo o país, aos 12.680 milhões de euros, um crescimento de 10,7% face a 2015.
Entretanto, o Porto foi considerado o melhor destino europeu para 2017. O turismo diversifica-se em Portugal, já não é apenas Lisboa e o Algarve. Os prémios recorrentes que vencemos provam a nossa vocação turística. Uma vocação que se baseia numa característica genuinamente lusa — a universalidade do nosso povo e a qualidade, tão nossa, de bem-receber.
A cruz dos Cavaleiros Hospitalários num portão de Valeta.
1- Tempos Remotos
De acordo com uma conhecida teoria científica, Malta, Gozo e Comino (as ilhas habitadas de Malta) nem sempre foram ilhas. Há uns seis milhões de anos, após um movimento das placas tectónicas ter fechado o que chamamos Estreito de Gibraltar, a água do grande lago em que se transformou então o Mediterrâneo começou a evaporar-se, a um ritmo muito mais rápido que o da fornecida pelos rios, até restar apenas um enorme deserto de sal[1]. O tempo continuou correndo até que o movimento das placas, depois do choque entre os continentes africano e europeu[2], começou a retroceder, abrindo novamente o estreito. Foi quando a água do Atlântico invadiu o leito do Mediterrâneo – qualquer coisa como 17.000 quilómetros cúbicos de água por dia, uma catarata gigantesca[3]. Ao Mar Negro terá sucedido o mesmo: aumentou significativamente de tamanho quando o Estreito de Dardanelos se formou, mas isto ocorreu muito mais tarde, quando já havia gente a habitar as margens, as quais terão submergido a um ritmo de 10 centímetros por hora. Esta é a teoria da Grande Inundação[4] e, ao que parece, ela faz sentido, face, entre outras evidências que referiremos a seguir, à descoberta de uma gruta em Malta, que ficou conhecida como Ghar Dalam, ondeforam encontrados ossos de hipopótamos e de elefantes-anões, que não poderiam ter ali vivido se o local estivesse inserido numa ilha, pois estes animais necessitam de grandes áreas para se reproduzirem.
O início da ocupação humana no arquipélago deve remontar, pois, à época pré-diluviana, como comprovam as ferramentas da Idade da Pedra encontradas em Ghar Dalam. Não restam dúvidas de que esta gruta existe há centenas de milhares de anos, o que se pode provar pelas abundantes estalagmites e estalactites ali presentes. As várias camadas do solo revelam que a gruta foi ocupada consecutivamente desde tempos ancestrais. Já o complexo de Hagar Qim, situado no Sudoeste da ilha de Malta, remonta ao período Neolítico, há cerca de 10.000 anos. Aqui se encontra o que resta de um templo, que, surpreendentemente, pode ser o mais antigo do mundo. Esta longevidade está comprovada pelos cientistas, sobretudo pela análise de dois tipos de pedras calcárias que serviram às construções, particularmente o desgaste que as mesmas sofreram pela erosão, o qual pode ser calculado em anos. Este complexo foi ocupado por séculos, ou mesmo milénios, e as colinas torcidas de algumas edificações, bem como as grandes pedras atiradas para fora do seu lugar, no sentido oeste-leste, parecem dar crédito à teoria da Grande Inundação, uma vez que as águas, vindas em marés gigantescas do Atlântico, devem ter atingido grande parte da superfície do arquipélago. Mais do que isso: arrancaram grandes pedaços de terra da costa ocidental de Malta[5]. Como sabemos isto? Sabemo-lo porque em vários locais do arquipélago são visíveis linhas de sulcos paralelos que terminam abruptamente à beira de penhascos. Estes sulcos foram feitos pelas rodas de pedra dos veículos que transportavam materiais para as construções.
Os primitivos habitantes de Malta construíram templos não apenas em Hagar Qim, mas também em Mnajdra, Ggantija, Borg in-Nadur e Hal Saflieni. Eram engenhosos, adoravam vários deuses e sacrificavam animais em altares, recolhendo o seu sangue em cálices de pedra para satisfazê-los, particularmente a Deity, deusa da fertilidade. Os seus conhecimentos de astronomia eram profundos. O templo de Hagar Qim está orientado no sentido da lua e a entrada principal virada para o nascer da lua cheia no seu ponto máximo, enquanto a porta traseira enfrenta o ocaso dessa mesma lua cheia. As técnicas de construção deste povo primitivo mantiveram-se durante milénios e foram usadas ainda pelos cavaleiros hospitalários na construção de Valeta: os buracos escavados no solo para se retirarem as pedras com as quais se construíram palácios e habitações, foram transformados em estábulos, armazéns, lojas e poços. O longo hiato entre o fim desta civilização primitiva e o aparecimento de um novo povo em Malta é difícil de preencher mas, face à localização geográfica de Malta, bem no centro do Mediterrâneo, seria expectável que os novos ocupantes do arquipélago fossem comerciantes e navegadores.
2- Fenícios, Cartagineses e Romanos
Ora, os primeiros no mundo a reunir estes requisitos foram os fenícios, povo oriundo da zona onde se situa hoje o Líbano. Há quem diga que o maltês, a língua nacional de Malta, ainda deriva da língua falada pelos fenícios[6], e como tal consideram-no uma língua semítica, enquanto outros dizem tratar-se de uma língua originalmente púnica, trazida pelos cartagineses. Mas isto é muito controverso. Certo é que, após os fenícios, foram os cartagineses, enquanto principal potência do Mediterrâneo, os que se lhes seguiram como ocupantes do arquipélago. Para além de vários objetos, como moedas, amuletos, etc, estes povos deixaram em Malta a sua marca genética, comprovável na aptidão para a navegação dos malteses, a par da sua tolerância e resiliência, enquanto povo habituado a conviver com a diferença, desde logo pelo longo período da sua história em que estiveram submetidos a potências estrangeiras.
A invejável localização estratégica de Malta (bem como os excelentes portos naturais) foi aproveitada pelos romanos para se tornarem os novos grandes senhores da bacia do Mediterrâneo, após desalojarem os cartagineses de Malta e os derrotarem definitivamente na Terceira Guerra Púnica. Consolidada a vitória e depois o império, o domínio romano em Melita[7] estender-se-ia por mais de sete séculos. Face à larga comunidade romana ali estabelecida, Malta tinha um estatuto relevante dentro do Império Romano (provavelmente, uma civitas sine foedere libera), com um governador que respondia diretamente a Roma. Como seria de esperar, o legado romano é relevante no arquipélago: Edificações diversas, como o domus, em Rabat, com um peristylium de mosaico no centro para reter a agua da chuva; estátuas de mármore, como a bem preservada cabeça de Tibério; as termas em Ghajn Tufficha, com banhos quentes e frios e o seu hypocaustum (um compartimento para o aquecimento da água); poços; túmulos; estátuas de deuses e deusas; ânforas; moedas. Enfim, pelos longos anos de permanência, os romanos implantaram em Malta as suas crenças, religião, língua e cultura.
Como se sabe, só a partir do século IV os romanos se converteram oficialmente ao cristianismo, após Constantino ter dado início ao Império Bizantino. Antes disso os cristãos foram perseguidos e muitas vezes mortos[8], pois movimentavam-se dentro do espaço controlado por Roma. O apóstolo Paulo, que antes fora o judeu Saúl de Tarso, foi um desses cristãos. Após se converter ao cristianismo, ele fez várias viagens de evangelização até regressar a Jerusalém e ser preso. Levado para Roma, o navio onde seguia naufragou junto a Malta, e todos os ocupantes se salvaram, sendo bem acolhidos pelos locais. São Paulo ficou em Malta três meses, antes de retomar viagem para a capital do império. Este episódio é narrado nos Atos dos Apóstolos (capítulos 27 e 28), e os malteses baseiam-se nele para afirmar que São Paulo é o fundador do cristianismo no arquipélago. Há quem conteste a presença do apóstolo em Malta e diga que o naufrágio terá ocorrido em Creta, mas, em geral, o relato é aceite. Paulo terá praticado o seu proselitismo junto de uns dois ou três milhares de malteses, sobretudo perto da capital, (que à época se situava numa colina de Rabat), corria o ano 60 da nossa era. Posteriormente morreu em Roma, sob as ordens de Nero. A passagem de Paulo de Tarso por Malta marcou indelevelmente os malteses. De tal ordem, que estes se mantiveram até hoje, ainda que por vezes subjugados e impedidos de praticar a sua religião, crentes da Igreja Católica Apostólica Romana. Durante ainda três séculos a Igreja de Malta, supostamente criada por Paulo, teve de conviver com os pagãos que veneravam os deuses romanos. Ao que parece isto decorreu pacificamente. E Malta escaparia também à fúria de vândalos e godos, quando estes puseram fim ao grande Império Romano do Ocidente, espalhando o terror por onde passavam, algo que parece não ter acontecido em Malta, uma vez que não foram encontrados registos nesse sentido.
Valeta
3- Bizantinos e Árabes
O que se sabe ao certo é que os bizantinos acabariam por expulsar os bárbaros e tornar-se os grandes dominadores do Mediterrâneo e, como seria de esperar, de Malta também. A capital do novo império rumara a Oriente, de Roma para Constantinopla. A era bizantina em Malta durou cerca de 400 anos, sem grandes registos dado que as pequenas ilhas de Gozo e Malta estavam administrativamente integradas na sub-divisão regional que incluía Sicília, Calábria, Basilicata e Puglia, no Sul de Itália. A sua importância estratégica deveria resumir-se às excelentes condições naturais para receber navios em escala ou necessitados de abrigo. Sabe-se também que Malta serviu como local de desterro para prisioneiros durante essa época. Certamente que o grego era a língua oficial, e isso é constatável em algumas palavras, sobretudo de caráter religioso, que ainda hoje fazem parte da língua maltesa. A principal razão para a quase completa ausência de registos desta época bizantina prende-se com os ocupantes que vieram depois – os muçulmanos. Estes devem ter destruído imagens e símbolos religiosos, além de construírem as suas mesquitas sobre os restos das igrejas bizantinas derrubadas. Como sempre, os novos senhores do Mediterrâneo passaram a ser simultaneamente os donos do pequeno arquipélago situado bem no seu centro.
Os árabes chegaram a Malta no século VIII e aqui permaneceram até o século XI, durante cerca de 300 anos. Como seria de esperar impuseram a sua língua, religião e cultura. A capital de Malta foi construída no topo de uma colina, como era costume naquela época. A cidade de Medina[9] albergava dentro das muralhas toda a população, algo bastante inteligente do ponto de vista defensivo, pois assim seria menos difícil resistir a um invasor em caso de cerco. Os muçulmanos deixaram os seus traços um pouco por toda a ilha, não apenas em Medina. Mesquitas, túmulos, vocábulos. Os exemplos são vastos, e um bastante significativo é o da palavra que significa Deus em maltês – “Alia” – obviamente derivada de “Allah”, em árabe. Muitos apelidos árabes (Abdilla, Axiaq, Cassar, Fenech, etc.) foram adotados pelos malteses e o nome próprio Mohammed, como mostram os registos, foi atribuído a um grande número de crianças masculinas. De acordo com alguns historiadores, a aderência a este nome próprio árabe não foi tanto uma aceitação dos costumes muçulmanos – e muito menos uma conversão ao islamismo – mas sobretudo uma tática adotada por questões de sobrevivência.
O fervor católico, porém, continua a sentir-se em Malta, como aliás veremos mais à frente. Muitos historiadores, eles próprios católicos, interpretaram a história de acordo com as suas crenças, ao ponto de alguns confundirem factos com lendas. Só nos últimos tempos têm surgido historiadores verdadeiramente independentes. Isto pode ver-se pela importância que atribuíram à chegada a Malta, em 1091, do normando (os normandos seguiram-se aos muçulmanos no domínio do arquipélago) Count Roger[10], que governava a Sicília. Muitos lhe atribuem a reintrodução do catolicismo como religião intrinsecamente maltesa, mas de facto as coisas não se passaram dessa maneira. É muito mais provável que várias confissões religiosas tenham convivido em Malta durante o período normando, que durou efetivamente de 1127 até 1266. Só com Count Roger II se consolidou o domínio normando. E este domínio, uma vez que se exercia muito longe do coração do reino, tinha de seguir uma estratégia tolerante para evitar conflitos e sobreviver. Foram encontrados túmulos muçulmanos que provam a prática do islamismo durante essa época. E o ritual cristão grego era tolerado, pois o mesmo era conveniente para manter a distância entre as classes mais desfavorecidas, que o praticavam, e os senhores normandos e a aristocracia mais abastada, que praticavam o rito católico. Não existiu, pois, uma generalização do catolicismo.
4- Angevinos e Aragoneses
Este foi um período muito conturbado na Europa, sobretudo em Itália, onde próprios católicos lutavam entre si. Os apoiantes do imperador germânico (ghibellines) lutavam contra os apoiantes do papa (guelphs) – e este era muito mais um chefe militar empenhado na gestão dos respetivos estados papais do que um guia espiritual e religioso. Foi nesta época que surgiu também a ideia das cruzadas, com o intuito de libertar a Terra Santa das mãos dos infiéis. Eram tempos realmente conturbados, onde a administração da justiça não existia e prevalecia a lei do mais forte. Este cenário constituiu o início de um tipo de “justiça” que mais tarde se chamaria omertà, popularmente conhecida como máfia. Não constitui surpresa que nestes tempos se tivesse desenvolvido a pirataria, com tripulações bem equipadas e exclusivamente dedicadas a essa atividade, sobretudo no Mediterrâneo. Foi neste ambiente confuso e incerto que o papa Urbano IV, em 1266, ofereceu o reino das Duas Sicílias (Nápoles e Sicília) a Carlos de Anjou[11]. Malta, considerado um apêndice, na realidade um feudo, da Sicília ficou assim sob o domínio dos angevinos[12]. Estes dominaram a região com crueldade e eram odiados pelos locais. Até que na terça-feira de Páscoa de 1282, os sicilianos se revoltaram contra os franceses – intentona que ficou conhecida como Vespri Siciliani, por ter ocorrido à hora da missa do fim de tarde. No espaço de um mês todos os angevinos franceses tiveram de fugir da Sicília e o trono foi concedido a Pedro III de Aragão. Só um ano depois, em 1283, os aragoneses ocupariam o lugar dos angevinos em Malta. Essa ocupação, porém, também não deixaria saudades, com a desvantagem de que decorreu por muito mais tempo.
Apesar de derrotados na Sicília, os angevinos mantiveram-se em Nápoles. Venezianos e genoveses eram seus aliados. Os aragoneses impuseram-se na Sicília. Pedro III entregou o reino de Aragão ao seu filho Afonso e o reino da Sicília, que incluía Malta, a outro filho – Jaime. Este jurou solenemente que jamais abandonaria seus súbditos, mas cinco anos depois, quando seu irmão Afonso morreu, tornou-se rei de Aragão, com o título de Jaime II. Logo em 1295, encetou negociações com o papa da época – Bonifácio VIII – no sentido de trocar a Sicília, o arquipélago de Malta e Pantelleria[13] pelas Córsega e Sardenha. Ao saberem desta traição, os sicilianos proclamaram como seu rei Frederico, irmão de Jaime II e terceiro filho de Pedro. Deram-lhe o título de Frederico III, em Catânia, corria o mês de janeiro de 1296, e o novo rei haveria de manter-se à frente do seu reino por mais 41 anos, perante o desagrado de Jaime II e do Papa. Este vingou-se do apoio dos malteses a Frederico e não nomeou um novo bispo para Malta quando o que estava na ilha faleceu. Mas Frederico III também não foi um bom soberano. Para manter os nobres satisfeitos acabou por lhes oferecer terras (feudos), sendo o caso de Malta e Gozo, que passaram de mão em mão ao sabor das negociatas entre as famílias nobres e ricas, incluindo a real.
Os malteses continuaram sendo explorados de uma maneira ou de outra – e as sucessivas promessas que lhes fizeram jamais foram cumpridas. A vida de muitos deles estava ligada à pirataria. De facto, a par com os gregos, genoveses e sardenhos, os malteses foram os maiores piratas do Mediterrâneo até o século XVIII. Para piratear, porém, era necessária uma licença, passada pelo vice-almirante da Sicília, e esta atividade só podia ser exercida sobre os inimigos, isto é, islamistas – turcos ou árabes. A pirataria era importante também para afugentar intrusos, sobretudo num arquipélago, e os nobres tinham obrigação de financiar a construção naval. Por isso a carpintaria era uma profissão importante, tal como as profissões de ferreiro e pedreiro, a primeira necessária para o fabrico de armas e a segunda para a construção em geral. Na época dos aragoneses, a agricultura em Malta baseava-se sobretudo na produção de azeite e de algodão. Mas havia também vinhas e culturas de cominho. Assim decorreram os anos, as décadas e os séculos nestas sociedades estritamente hierarquizadas, autocráticas e déspotas,[14] até se cumprirem mil e quinhentos anos depois do nascimento de Cristo. Foi então que apareceu na cena europeia um dos monarcas mais poderosos de sempre – Carlos V (Carlos I de Espanha), que se tornaria o líder máximo do Sacro Império Romano-Germânico, a partir de 1519[15]. Considerado o primeiro rei de Espanha – governando sobre Castela, Aragão e Leão simultaneamente – Carlos governaria ainda a Alemanha, a Sardenha, o Reino das Duas Sicílias (do qual Malta fazia parte), bem como as novas terras de além-mar conquistadas pela Espanha. De facto, o Sacro Império Romano, criado para substituir os velhos impérios constantiniano e carolíngio, compreendia a maior parte do mundo conhecido naquela época.
O albergue hospitalário de Castela, Leão e Portugal.
5- Hospitalários
Investido de tamanho poder, Carlos decidiu – através de um decreto, em maio de 1530 – entregar Malta à ordem religiosa, constituída por monges militares, conhecida como Cavaleiros Hospitalários de São João de Jerusalém. Fora em Jerusalém, em 1099, que um tal Gerard criara uma irmandade para acolher e tratar os peregrinos cristãos, oriundos, sobretudo, do Ocidente europeu[16]. Esta irmandade foi reconhecida em 1104 pelo rei Balduíno I de Jerusalém, e em 1113 através de bula papal de Pascoal II, foram superiormente sancionados os seus estatutos. Assim nasceu a Ordem dos Cavaleiros Hospitalários de São João de Jerusalém. Naquela época (sobretudo no glorioso período das Cruzadas, entre 1095 e 1272), foram criadas ainda outras duas importantes ordens religiosas e militares: os Cavaleiros do Santo Sepulcro (mais tarde também conhecidos comoCavaleiros Templários) e os Cavaleiros Teutónicos de Santa Maria de Jerusalém. A maior parte dos membros destas ordens era de origem nobre, e isso contribuía para o prestígio militar e a riqueza material das mesmas, para além da evidente característica religiosa que obrigava aos votos de obediência, pobreza e castidade.
Após cerca de um século em Jerusalém, os Cavaleiros Hospitalários foram expulsos da cidade pelos muçulmanos-turcos, refugiando-se em Acre[17], corria o ano de 1187. Os turcos, porém, não deixaram de os perseguir e os hospitalários foram obrigados a refugiar-se em Chipre, aonde chegaram em 1291. Mas este lugar não era ainda o adequado para as suas necessidades pelo que, em 1309-10, chegaram à ilha de Rodes – onde se fixaram até 1522. O poderio turco era então incontestável no Mediterrâneo, e os otomanos cercaram Rodes, obrigando os hospitalários a render-se, após uma longa e heróica resistência (de acordo com fontes provenientes da própria ordem) a um implacável cerco turco. Esse heroísmo terá sido reconhecido pelos próprios otomanos, que deixaram partir os cavaleiros-monges com seus bens, apesar de, de novo, sem lar e sem estado.
Foi então que, após vaguearem por alguns anos à procura de um novo refúgio, Carlos V lhes concedeu, como feudo, o arquipélago de Malta. Mas os turcos não desistiram e voltaram a cercar os hospitalários. Após meses de cerco a Borgo (cidade-vizinha a sudeste da atual Valeta), cortados todos os meios de abastecimento, já sem qualquer reserva de comida, os malteses estavam próximos da capitulação. Este episódio ficou conhecido na História de Malta como o Grande Cerco – e mais uma vez os historiadores hospitalários destacaram a extraordinária e heróica resistência da ordem, face os invasores otomanos. Há uma grande dose de romantismo sobre este período, bem patente na poesia épica maltesa, referindo a bravura dos habitantes que lutaram lado-a-lado com os hospitalários em ações de puro heroísmo. Subitamente, quando a resistência estava chegando ao seu limite e a derrota parecia iminente, miraculosamente, em 8 de setembro de 1565, os turcos levantaram o cerco e partiram. Foi um alívio não apenas para os cavaleiros e os malteses, mas para toda a Europa ocidental.
Em consequência deste grande cerco, foi considerado que Borgo não era o local ideal para sediar o quartel-general da ordem. Decidiu-se que o mesmo deveria deslocalizar-se para o Monte Sciberras, um lugar considerado muito mais seguro. Assim se erigiu a cidade de Valeta, a primeira da era moderna a ser planeada e construída em forma de rede. Grande parte das edificações da cidade datam, pois, deste período. Além do quartel-general, um deslumbrante palácio, erigiram-se os albergues das diversas langues (grupos linguísticos dentro da ordem), que eram em número de oito[18], bem como as respetivas capelas e igrejas, onde os serviços religiosos eram celebrados nas línguas nativas dos diversos monges, e a grande catedral, comum a todos, dedicada ao santo padroeiro da ordem, João Batista. Mas, sobretudo, era preciso tornar a cidade inexpugnável. Foram chamados os melhores arquitetos europeus, os melhores pedreiros e mestres, e reunidas as melhores mentes. E assim se usaram as pedras locais para construção dos edifícios, enquanto o espaço que as mesmas anteriormente ocupavam eram utilizados como labirintos subterrâneos, que serviriam para fugir de potenciais inimigos e como passagem para mensageiros. Debaixo desses edifícios ficavam igualmente poços, estábulos e armazéns. Os Cavaleiros da Ordem Militar de São João de Jerusalém quiseram que a nova cidade fosse uma Civitas Humillima e, simultaneamente, a mais nobre da Europa, uma obra-prima do seu vigor estético e um exemplo para o mundo, não tendo poupado esforços para o conseguir. O resultado é a deslumbrante Valeta, que tivemos o privilégio de visitar e conhecer.
Os membros da Ordem Soberana e Militar Hospitalária de São João de Jerusalém, Rodes e Malta[19] mantiveram-se durante mais de dois séculos no pequeno arquipélago, mas não foram os únicos com poder. Não podemos esquecer-nos que aquela foi uma época em que atuava a Inquisição[20]. Na verdade, em Malta existia uma sobreposição de legislação, originada por três fontes – hospitalária, inquisitorial e episcopal. No final do século XVI, Roma atribuía ao inquisidor plenos poderes, relativamente a questões morais, espirituais e materiais. Este era o representante do Santo Padre em Malta e como tal, reclamava absoluta jurisdição sobre o que se passava nas ilhas. Este poder paralelo criava grande tensão e fricção com os cavaleiros hospitalários, habituados ao poder absoluto. Estes tinham os seus tribunais próprios e, na sua perspetiva, deveria ser o seu Grão-Mestre, auxiliado pelo venerável Conselho Hospitalário, o governante máximo das ilhas, dono da palavra final sobre qualquer assunto dentro do seu território. Na prática, porém, os inquisidores não estavam sobre a tutela dos hospitalários, o que criava nestes uma grande irritação.
Com as disputas entre estas duas forças – Inquisição e Hospitalários – tendemos a esquecer uma terceira: o Governo, sediado em Medina (a “velha capital”), conhecido como a Università dei grant, cujo Mayor e respetivos conselheiros se ocupavam sobretudo do aprovisionamento de comida. A Università, no fundo, o governo das pessoas comuns, era constituída por nobres, empenhados na cobrança de impostos – a maior parte em géneros, como, por exemplo, cereais – e no seu armazenamento; em cobrar taxas sobre os navios que demandavam os portos malteses; em defender as localidades e quintas costeiras dos ataques dos piratas; e em recrutar homens habilitados a combater nas forças armadas, na luta contra os invasores e na manutenção da lei e da ordem. Com a vinda dos monges militares hospitalários, muitas destas funções passaram a ser exercidas por eles. A presença da ordem em Malta não era bem vista pela população. Desde logo porque trouxe atrás dela a ameaça dos turcos, mas também porque a população era obrigada a realizar as mais duras tarefas sob a jurisdição hospitalária, como remadores nas galés, enfermeiros nas guerras, construtores de muralhas e palácios, entre muitas outras ocupações servis. Assim, foi com alegria que muitos viram chegar à ilha os franceses. Mas, uma vez mais, os acontecimentos mostraram que não havia qualquer motivo para regojizo.
Placa evocativa do auxílio da esquadra portuguesa, comandada pelo Marquês de Nisa, à população de Malta, aquando da ocupação das ilhas pelos franceses, que aqui permaneceram em 1798 e 1799. Esta placa foi descerrada pelo Presidente da República de Malta, Eddie Fenesh Adami, em 2 de setembro de 2008, nos “Upper Barracks Gardens”, em Valeta.
6- Franceses
Nos últimos anos do século XVIII apareceu na cena europeia Napoleão Bonaparte, apostado em construir o maior império de sempre. Uma das primeiras incursões de Bonaparte foi ao Médio Oriente, mais propriamente ao Egito, uma tentativa (que se revelaria frustrada) de conquistar à Inglaterra o território que servia de entreposto no comércio daquele país com a Índia. Pelo caminho os franceses passaram por Malta, e conquistaram facilmente o arquipélago. Esta conquista aparentemente insignificante representou muito pois, apesar de pequeno, este território possuía uma importante localização estratégica, e Napoleão pôde destronar os nobres hospitalários do poder, e assim satisfazer um dos seus maiores desejos: perseguir e vergar os membros da aristocracia, que detestava. Em junho de 1798 o Grão-Mestre dos Hospitalários, o alemão Ferdinand von Hompesch, rendia-se aos franceses, evitando o derramamento de sangue. A Ordem de Malta – designação que deriva da presença dos hospitalários neste arquipélago – que tão heroicamente resistira aos turcos, era agora desfeiteada em apenas dois dias – e os seus membros regressavam às terras de origem, não mais voltando a ter, até hoje, um lar comum.
Não houve resistência à invasão francesa porque os malteses estavam cansados dos hospitalários. O Governo do povo, a Università, não aceitava não ser consultado em matérias como a coleta de impostos e outras que diziam respeito, afinal, ao seu país. Viam os cavaleiros como intrusos de quem queriam livrar-se quanto antes. Por outro lado, havia nas ilhas muitos elementos da maçonaria, que também detestavam os hospitalários. Não devemos esquecer-nos que originalmente os templários eram designados por Cavaleiros do Santo Sepúlcro, isto é, do templo, daí a sua designação de Templários. A sua razão de ser, mesmo se tivermos em conta os símbolos que apresentavam, devia-se à condição de construtores. Eles edificavam muralhas e fortalezas inexpugnáveis, fabulosos palácios e majestosos edifícios até a sua ordem ter sido extinta por decreto Papal. Tornaram-se então maçons (“pedreiros”) livres, sem que tivessem de obedecer a qualquer tipo de votos, e vivendo clandestinamente, com medo de serem julgados como heréticos pela Inquisição. Grande parte das riquezas dos hospitalários resultaram da dissolução dos templários[21]. Mas também agora aqueles conheceriam, e de forma definitiva, a sua diáspora.
Os franceses não deixariam um legado feliz em Malta. Determinados em demolir tudo o que fizesse recordar os hospitalários, dedicaram-se a pilhar e destruir palácios, conventos, igrejas, edifícios estatais e casas senhoriais. Deixando um subordinado como Governador-Geral do arquipélago, Napoleão continuou a viagem rumo ao Nilo, com grande parte do saque a bordo dos seus navios. Ali chegados, na boca do rio, os franceses sofreram uma tremenda derrota às mãos dos britânicos e muito do que roubaram em Malta deve estar ainda hoje, debaixo de camadas de sedimentos, no leito do Nilo. Há ainda material roubado que foi incorporar coleções públicas ou privadas, como é o caso da espada oferecida ao Grão-Mestre Jean Parisot de La Vallette pelo rei Filipe II de Espanha, exibida no Museu do Louvre como uma oferta dos malteses, quando na verdade foi roubada pelos franceses quando estiveram no arquipélago. Os franceses governaram com mão de ferro, de tal forma que os malteses se revoltaram, pois não tinham já nada a perder[22]. Muitos foram mortos em combate ou fuzilados sumariamente, mas por fim conseguiram remeter os franceses aos seus redutos fortificados. Isolados, sem possibilidades de abastecimento, estes cederam aos populares.
A Cruz de George figura na bandeira de Malta.
7- Britânicos
Entretanto, Lord Nelson e a sua armada vieram em socorro dos malteses e ofereceram-lhes a sua proteção. Em 1800 Malta passou a fazer parte do maior império do mundo, aquele onde o sol jamais deixava de brilhar. A condição do arquipélago foi legalmente consolidada através do Tratado de Paris de 1814, quando passou a integrar o Império Britânico e a ser oficialmente um domínio subordinado, em última análise, à Coroa Inglesa. Assim, Malta passou a ter um representante local dos monarcas britânicos, ou seja, um governador. Naturalmente, este seria britânico, e os seus homens de confiança, integrantes do governo, também. Estes, por sua vez, necessitariam de auxiliares para levarem a cabo as tarefas inerentes à construção, ao abastecimento de água, ao saneamento, às reformas educacionais, ao sistema de justiça, entre outros assuntos importantes e, naturalmente, toda esta gente seria igualmente britânica. Até mesmo a moeda seria britânica, exatamente as mesmas moedas e notas que circulavam em Londres. Quem desejasse uma boa educação tinha de deslocar-se a Inglaterra e de ter dinheiro para tal. Desta forma, os malteses, uma vez mais, ver-se-iam relegados para tarefas menores. E embora fizessem agora parte de um enorme império e possuíssem um passaporte britânico, a sua situação imediata não melhorou substancialmente com a chegada dos ingleses.
Assim, em pouco mais de dois anos, os malteses estiveram sucessivamente submetidos à magnificente aristocracia dos hospitalários, ao arrogante republicanismo dos franceses e à adulação britânica da monarquia. Apesar de tudo, esta última forma parece ter sido a menos má, até chegar a melhor de todas, sem dúvida, a independência – alcançada apenas depois de 160 anos de domínio inglês. Até porque, uma vez integrados no Império Britânico, os malteses se viram envolvidos em guerras que pouco ou nada tinham a ver com eles, como foram os casos da Guerra da Crimeia, a Grande Guerra e a II Guerra Mundial. Dada a privilegiada posição estratégica do arquipélago, este foi severa e consecutivamente bombardeado no decorrer da II Guerra Mundial. Os habitantes viviam como ratos, escondidos em abrigos subterrâneos. Os navios de abastecimentos eram atacados e algumas vezes faltava tudo nas ilhas, incluindo água potável. Os mortos foram incontáveis. E as guerras vieram pôr a nu as deficiências do sistema de saúde, sobretudo a escassez de médicos e hospitais. Isto tinha o seu quê de irónico, uma vez que Malta fora governada durante centenas de anos por uma Ordem cuja missão original era a assistência aos enfermos.
No decorrer da II Guerra Mundial os habitantes de Malta (afinal tão perto da Itália inimiga[23]) estiveram por diversas vezes à beira da capitulação. Mas, com a ajuda das forças britânicas, resistiram sempre. No dia 15 de agosto de 1942, um comboio de navios, carregados com víveres básicos e munições necessárias à defesa das ilhas, chegou miraculosamente ao Grande Porto de Malta. Alguns navios vinham semi-afundados e entraram no porto puxados e amparados por rebocadores. O facto deste acontecimento ter ocorrido no Dia da Assunção de Maria contribuiu para que a maioria dos malteses, fervorosos católicos, lhe atribuíssem um significado religioso. Culturalmente, os britânicos deixaram um legado importante em Malta – sobretudo a sua aposta no parlamentarismo – mas não mudaram o catolicismo maltês. A heróica resistência dos malteses foi reconhecida pelo rei Jorge VI de Inglaterra, que concedeu a Malta a George Cross (“Cruz de Jorge”), o símbolo que desde então figura na sua bandeira branca e vermelha.
Após a guerra e a destruição que causou, muitos malteses foram obrigados a emigrar. Não havia empregos e grassava a pobreza e mesmo a fome. A maioria dos emigrantes dirigiu-se-se à Austrália, mas outros rumaram ao Canadá e aos Estados Unidos. Foi um autêntico êxodo o que ocorreu nas ilhas nos anos quarenta do século XX. E, assim, as mais pequenas línguas de terra do Império Britânico, apenas maiores que Gibraltar, esvaziaram-se do bem mais precioso: as suas gentes. Apesar disso, os malteses conseguiram uma abertura política sem conflitos graves nem derramamento de sangue. Alguns dos habitantes com formação em Inglaterra – sobretudo médicos e advogados – começaram a fazer parte do serviço público. A transição deu-se paulatinamente, com as primeiras eleições controladas pelos britânicos, mas com passos firmes, rumo, primeiro, a uma certa autonomia e, finalmente à independência.
As indústrias relacionadas com o mar têm um peso significativo na economia maltesa.
8- Independência
No fim dos anos quarenta já havia alguma autonomia ao nível autárquico, mas ainda com a supervisão e controlo do Governador sobre as medidas legislativas locais. Isto não era suficiente, é claro, para os malteses mais esclarecidos, sobretudo aqueles que tinham vivido em Inglaterra e reclamavam a implementação em Malta do parlamentarismo. Foram criados partidos políticos. Enfim, o movimento, com várias ramificações, rumo à independência, que se iniciara nos anos vinte, haveria de ver o seu objetivo realizado em 21 de setembro de 1964. Apesar da independência, Malta ainda dependia largamente de potências exteriores. Era ainda um espaço militar alugado à NATO e com uma presença militar em seu território – a Grã-Bretanha. Isto não era ainda a situação esperada por muitos. Mas só após quinze anos de independência, em 31 de março de 1979, foi assinado um acordo que pôs fim à presença militar britânica em Malta e Gozo. Os dois grandes partidos de Malta – Nacionalista e Trabalhista – não concordam sobre qual a verdadeira data da independência. Enquanto os nacionalistas aceitam o dia 21 de setembro de 1964, os trabalhistas afirmam que só quando o último soldado estrangeiro abandonou o país – em 31 de março de 1979 – é que este se tornou independente. Como consequência deste desacordo jamais sanado, celebram-se dois feriados nacionais distintos em Malta: 21 de setembro – o Dia da Independência – e 31 de março – o Dia da Liberdade. Finalmente, cansados de serem envolvidos em guerras, os malteses asseguraram a neutralidade na Constituição através da inclusão de um artigo que estabelecia o seu não-alinhamento.
O sistema político escolhido pelos malteses foi o da república presidencial parlamentar. O parlamento maltês é muito parecido, na sua forma, como o parlamento britânico, e é o parlamento quem elege o presidente, ou seja, tradicionalmente, este é escolhido pelo partido mais votado. Existe um debate na sociedade maltesa sobre a possibilidade de mudar a eleição do presidente da república para uma forma mais parecida com a americana (entre outras), isto é, através do voto popular. Com o destino nas próprias mãos, os malteses mobilizaram-se para a criação das condições necessárias ao desenvolvimento do país. O Partido Trabalhista e o Partido Nacionalista tiveram importantes papéis complementares. O primeiro foi responsável, nos anos imediatamente após da independência, pela laicização do país[24] e o Partido Nacionalista conduziu Malta, já no século XXI, à integração na União Europeia. Uma integração que suscitava muitas dúvidas, e mesmo a oposição, do Partido Trabalhista, mas que se revelou um sucesso, proporcionando mais investimento e desenvolvimento.
Antes disso, porém, foi preciso reconstruir as infraestruturas e criar as condições para o desenvolvimento da economia. O turismo era uma atividade natural em Malta e, ainda hoje, uma importante fonte de receitas, de criação de emprego e de diversificação de indústrias associadas a essa atividade. Depois, face à relativa mão-de-obra barata, floresceram no pós-guerra pequenas indústrias de capital estrangeiro (inglês, alemão, italiano), sobretudo nas áreas têxtil, do calçado e eletrónica. A subida do nível de vida da população fez com que a mão-de-obra deixasse de ser barata e muitas empresas deslocalizaram-se, havendo necessidade de uma readaptação do tecido empresarial. Outra indústria importante acabou por ser a da construção naval, substituindo, ou melhor, readaptando uma tradição em Malta, a da reparação, pois os cavaleiros hospitalários, mas sobretudo os britânicos, tinham uma significativa frota naval. Malta recolhe hoje os frutos de grandes investimentos: na construção de docas secas[25]; na melhoria dos cais para acostagem dos navios de cruzeiro; em instalações para limpeza dos tanques dos navios de combustíveis; na criação de uma companhia de navegação maltesa (Sea Malta); e em outras infraestruturas ligadas às indústrias do mar, como por exemplo uma importante plataforma logística e um dos maiores terminais de contentores do Mediterrâneo. Malta faz jus à sua vocação marítima, embora o mesmo conceito hub esteja a ser adotado no antigo aeroporto de passageiros – agora transformado em aeroporto de carga – depois de outro, ultramoderno e já em funcionamento, ter sido construído.
O mercado do imobiliário floresceu também, depois de uma abordagem mais liberal por parte do Governo. Os preços subiram bastante pois a escassez de terras é notória para tanta procura de terrenos onde se possam construir supermercados, edifícios de negócios e hotéis turísticos. O setor financeiro parece estar, igualmente, de boa saúde. Malta tem vindo a diversificar ainda mais a sua economia para setores dinâmicos como os serviços e as novas tecnologias. Para completar, é justo dizer que também nas artes se verifica um grande dinamismo, com uma produção jamais vista em áreas como o teatro, a música, a pintura, a escultura e a literatura. Em 1 de maio de 2004, Malta, juntamente com oito países da Europa Central e de Leste, e também Chipre, passou a fazer parte da União Europeia; em 2008 aderiu à Zona Euro; no primeiro semestre de 2017 presidirá à União Europeia. Foi pois um país amigo, membro do mesmo espaço económico, que visitámos. Um país pujante, vibrante, transbordando história; um país bonito, quer na vertente natural, quer na edificada pelo homem. Um país bem no coração do mar que desde a Antiguidade é o centro do mundo – o sempre novo Mediterrâneo.
Pormenor do edifício do Parlamento, em Valeta.
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Notas:
[1] Foi encontrado um gigantesco depósito de sal debaixo da ilha da Sicília que parece comprovar a evaporação do Mediterrâneo. Isto é, de facto, bastante plausível – verificámos que está acontecendo algo semelhante no Mar Morto quando ali estivemos há dias e podemos sentir a sua salinidade (36% de sal) e flutuar nas suas águas a cada dia mais reduzidas.
[2] Choque que deu origem entre outras coisas às altas montanhas que se podem encontrar em ambos os continentes.
[3] Mesmo assim, foram precisos uns 250 dias até o Mediterrâneo se encher. Isto parece estar de acordo com o relato bíblico e pode ter ocorrido há uns 5.000 anos.
[4] Um dos seus mentores é o cientista espanhol Daniel Garcia-Castellanos.
[5] Um desses “pedaços” pode ser a pequeníssima e desabitada ilha de Filfla, a mais meridional do arquipélago de Malta, em tempos reivindicada pela Líbia.
[6] Há quem defenda que o próprio termo “Malta” deriva de maleth, que em fenício queria dizer “paraíso”.
[7] Este foi o nome que os romanos atribuíram ao arquipélago. Significava “terra do mel”.
[8] Sobretudo pelos imperadores Nero, Trajano, Marco Aurélio, Décio, Valeriano e Diocleciano.
[9] Ao contrário de Valleta, Medina não se situa na costa, está situada no interior da ilha a cerca de 12 quilómetros da capital.
[10] Os normandos eram um povo oriundo da Escandinávia (vikings e dinamarqueses) que se estabeleceu no Noroeste de França (onde hoje existe a Normandia), aí fundando o seu reino, e se converteu ao cristianismo. O papa Nicolau II concedeu-lhes em 1059, no Sínodo regional de Melfi o poder para combaterem os bizantinos e os muçulmanos – o que foi interpretado pelos normandos como uma espécie da carta-branca para construírem um império conquistando toda a Europa.
[11] Carlos de Anjou era irmão de Luís IX, rei de França.
[12] O Império Angevino ou Império Plantageneta é o conjunto de Estados que se estendiam dos confins anglo-escoceses aos Pirenéus e da Irlanda a Limousin, unidos a meio do século XII por Henrique II de Inglaterra. (in https://pt.wikipedia.org/wiki/Império_Angevino).
[13] Uma ilha localizada a sudoeste da Sicília, muito perto da costa africana, particularmente da Tunísia.
[14] Estas sociedades estritamente hierarquizadas, praticamente um sistema de castas, eram típicas da época medieval, período que ficou conhecido, sob o ponto de vista político e social, como feudalismo. Em Malta existiriam umas 20 famílias cujos membros pertenciam à classe mais alta; depois vinha a classe dos artesãos e finalmente as classes mais baixas – classe média e povo.
[15] Carlos viveu entre 1500 e 1558, e foi casado com a Infanta Dona Isabel de Portugal, considerada uma das mulheres mais belas da época. Isabel, filha do rei D. Manuel e irmã de João III, era também muito culta. Morreu muito jovem, com 35 anos, na sequência de um parto. Seu filho primogénito, Filipe II de Espanha, foi educado por suas damas lusitanas na mais genuína tradição portuguesa.
[16] Estes peregrinos chegavam muitas vezes exaustos, doentes ou feridos, vítimas de ataques – não apenas dos inimigos muçulmanos, mas também dos “amigos” orientais: cristãos ortodoxos, gregos e bizantinos (não esquecer que o cisma religioso protagonizado pela Igreja Grega-Ortodoxa, sediada em Constantinopla, ocorreu em 1054). As disputas não ocorriam, porém, apenas entre ortodoxos, católicos e muçulmanos, mas igualmente entre as próprias ordens religiosas (e militares) católicas. Os Hospitalários e os Templários foram na prática e durante a maior parte do tempo inimigos.
[17] Cidade situada no Norte de Israel, perto de Haifa.
[18] Eram oito as langues, tal como as pontas da cruz de Malta: Auvergne, Provence, Itália, Castela e Portugal, França, Alemanha, Inglaterra e Aragão.
[19] Designação completa da ordem também conhecida como Ordem de Malta.
[20] Houve três grandes períodos inquisitoriais: A Inquisição Medieval; a Inquisição Ibérica e a Inquisição Romana. A primeira foi iniciada pelo Papa Lúcio III, em 1184, e reforçada no Conselho de Latrão de 1215; a segunda, a pedido dos reis católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, teve a chancela do Papa em 1478 (constituiu uma das páginas mais negras do antissemitismo europeu); e a terceira iniciou-se em 1542, através da Bula Papal de Paulo III – Licet ah Initio. Foi esta última que vigorou em Malta no período em que ali estiveram os Cavaleiros Hospitalários.
[21] A Ordem dos Templários, em Portugal, transformou-se na Ordem de Cristo e esteve na base dos Descobrimentos portugueses. Perseguidos (e muitos mortos) em França pelo rei Filipe IV e em Roma pelo papa Clemente V – que emitiu a bula Pastorali praeminentiae, dirigida a todos os monarcas da cristandade, determinando a prisão dos Templários nos diversos países e o confisco de todos os seus bens, o que,na prática ditou o fim da Ordem. No entanto, em Portugal, D. Dinis, simulando acatar a decisão papal, acabou por criar uma nova ordem – a de Cristo – que era, afinal, constituída por Templários. Os membros da ordem que tinham escapada às perseguições vieram juntar-se à Ordem de Cristo, em Portugal.
[22] A primeira revolta da população de Malta contra a ocupação francesa ocorreu a dois de Setembro de 1798. Pouco depois, em 19 de setembro, chegavam a Malta os navios portugueses da esquadra comandada pelo Marquês de Nisa, através dos quais se fez um primeiro bloqueio às ilhas. Os portugueses também desembarcaram para auxiliarem a população. Este auxílio teve grande importância psicológica, animando as forças maltesas que puseram cerco a Valeta. O Marquês recebeu representantes de Malta e de Gozo, a quem prometeu apoio, cedendo-lhes quinhentos mosquetes e vários barris de pólvora, mandando desembarcar o Capitão-tenente António Gonçalves Pereira e vinte artilheiros para ajudarem em terra os malteses. Um segundo bloqueio ocorreu em finais de agosto de 1799 e novamente os portugueses desembarcaram para auxiliarem a população. Apesar das ordens do governo português para regressar a Lisboa (recebidas em 9 de outubro), o Marquês de Nisa (Domingos Xavier de Lima) manteve-se mais dois meses em Malta, zarpando rumo a Portugal apenas após a chegada de reforços ingleses, em 13 de dezembro de 1799. Como se sabe, a esquadra portuguesa (que na época tinha uma dimensão importante) foi auxiliar os britânicos no Mediterrâneo tendo ficado sob comando do Almirante inglês Jervis e posteriormente do almirante Nelson.
[23] Na verdade, os italianos não eram vistos por todos como inimigos. Havia uma importante fação pró-Itália em Malta, antes, durante e depois da guerra. Embora em épocas diferentes, Garibaldi procurou asilo em Malta, e o mesmo fez o Papa Pio IX. Havia também o que poderíamos designar por “facção francesa”, apesar da desastrosa passagem dos gauleses pelo arquipélago.
[24] Há uma forte tradição católica em Malta baseada na narração que encontramos nos Atos dos Apóstolos sobre a chegada de São Paulo à ilha e a conversão dos nativos ao cristianismo. O Partido Trabalhista criou várias leis que ajudaram a separar o Estado da Igreja, abrindo o caminho para que surgissem outras confissões e práticas religiosas (na época da independência apenas era permitido o protestantismo anglicano, além do catolicismo, devido, claro, à presença britânica no arquipélago), e abrindo também uma guerra com a Igreja. Hoje, apesar da abertura religiosa se ter concretizado, a sociedade maltesa é ainda bastante conservadora, sob o ponto de vista religioso. Basta pensar que o divórcio apenas foi legalizado em maio de 2011, através de um referendo. Nessa altura, além de Malta, apenas as Filipinas não tinha uma lei do divórcio.
[25] Uma grande doca seca foi construída com a ajuda financeira e técnica da China comunista, durante o mandato de Dom Mintoff, oitavo primeiro-ministro de Malta, entre 1971 e 1984.
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Artigo baseado no livro de Joseph S. Abela, Malta, a Brief History, BDL Publishing, 2015.
A foto da bandeira de Malta foi retirada de yesmalta.wordpress.com