Veneza

Chegámos a Veneza ao anoitecer, mas a cidade é bonita a qualquer hora.

Veneza é uma daquelas cidades que todos querem conhecer: famosa, monumental, romântica, uma potência marítima mundial na Idade Média e no Renascimento, cuja riqueza se pode observar hoje através dos belos palácios, catedrais, pontes e outros emblemáticos edifícios da cidade. Quando lá chegamos – refiro-me à ilha principal, cortada pelo Grande Canal – só podemos circular de barco ou a pé. Veneza parece uma cidade flutuante, e de certa maneira é-o: foi construída em cima de plataformas de pedra colocadas sobre estacas de madeira cravadas no fundo da lagoa. Um trabalho engenhoso que requer muita manutenção. É difícil evitar a erosão que assola estas ilhas, provocada sobretudo pela invernia, mas também pelo intenso tráfego marítimo. As embarcações são variadas, desde as carreiras de transporte de passageiros, os cruzeiros turísticos e os táxis, passando pelas ambulâncias, a recolha de lixo e os funerais, até todo o tipo de abastecimentos; tudo é realizado com o recurso a embarcações. Veneza é, pois, seja onde for que o visitante já tenha estado, uma cidade única, inigualável, de uma beleza vibrante e quase surreal.

Praça de São Marcos e a basílica homónima.

Trata-se também de uma cidade frágil. Há sempre o receio que a chuva e as marés se associem para a inundarem, e essa condição delicada sente-se quando a visitamos. Veneza é feminina.

Chegámos já de noite ao nosso hotel e só no dia seguinte iniciámos as deambulações pela cidade que visitáramos há quarenta anos, no longínquo ano de 1979. Começámos por uma caminhada até à Praça de São Marcos. Aqui se impõe a basílica homónima e, ao lado, o Palácio Ducal, que podem e devem ser visitados. A longa varanda da basílica é um local privilegiado para observar a praça, as suas esplanadas e o formigueiro de transeuntes caminhando em todas as direções. A Basílica de São Marcos é provavelmente o edifício mais simbólico de Veneza e também um dos mais antigos. Embora a sua configuração atual seja relativamente recente, a construção realizou-se por fases ao longo de muitos séculos. Visitámos primeiro a igreja e depois, subindo uma escadaria exterior, à direita do portão principal, o museu.

A bela quadrilha do evangelista, no Museu da Basílica de São Marcos, situado no piso superior.

O resto do dia passámo-lo a fazer o que de melhor se pode em Veneza: percorrer as ruas sinuosas e estreitas, cruzar os canais por pontes de variadíssimos tamanhos e estilos, observar as gôndolas, governadas por hábeis barqueiros de camisolas listadas, azuis (ou vermelhas) e brancas, onde casais abraçados se reclinam para trás, para melhor observarem as belas fachadas dos edifícios da cidade. Como seria de esperar, parámos algumas vezes para provar as comidas rápidas e típicas de Itália – pasta e pizza – e apreciar o trânsito do Grande Canal, numa das tantas esplanadas espalhadas pelos cais, que aqui também são ruas.

No dia seguinte apanhámos um vaporetto para Burano, uma pequena ilha a cerca de uma hora de distância.

Ao que dizem, as casas típicas de Burano são repintadas a cada dois anos.

A principal atração deste burgo são as típicas casas coloridas e as suas rendas merletto. Durante a nossa visita o tempo esteve quase sempre escuro, com chuva frequente, o que não nos permitiu presenciar todo o esplendor do colorido das fachadas que se duplicam nos espelhos de água, que são os canais. As principais atividades económicas entre os cerca de 3 mil habitantes da ilha são, pois, o turismo, o artesanato (sobretudo renda) e a pesca. O que se deve fazer por aqui é, como seria expectável, calcorrear o que se puder. Foi o que fizemos. No final da visita a Burano, antes de nos dirigirmos ao cais de embarque para regressarmos a Veneza, retemperámos forças num dos cafés/restaurantes da praça central – Piazza Baldassare Galuppi – cujo nome celebra um ilustre compositor italiano, filho da terra.

O Grande Canal.

Chegados a Veneza caminhámos um bom par de quilómetros até ao hotel, desfrutando das vistas magníficas e do ambiente romântico do anoitecer. Esta seria a nossa última noite em Veneza e, embora o tempo não fosse o mais convidativo, despedimo-nos com um jantar na rua, junto ao rio Cannaregio, de frente para a formosa Ponte delle Guglie.

No dia seguinte regressámos a Portugal.

Ponte de Rialto. Ao lado (edifício ocre) situa-se o magnífico Hotel Rialto.

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Tito

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Diogo Mainardi e o filho, Tito.

Diogo Mainardi é um escritor e jornalista brasileiro de 50 anos que vive em Veneza. Em 30 de setembro de 2000, ele e sua mulher, Anna, dirigiram-se ao hospital do Campo Santi Giovanni e Paolo, onde, nesse mesmo dia, nasceria Tito. Devido a um erro médico grosseiro – uma amniotomia inadequada – Tito nasceu com paralisia cerebral. Isso modificou para sempre a vida de Mainardi e levou-o a escrever “A Queda”, uma das mais belas e verídicas histórias de amor alguma vez contadas. “Até aquele momento, eu sempre pensara que, se meu filho permanecesse em estado vegetativo, eu esperaria que ele morresse. Depois do primeiro contacto com Tito no corredor do claustro do hospital de Veneza, tudo se transformou. Eu só queria que ele sobrevivesse, porque eu o amaria e acudiria de qualquer maneira”. Diogo Mainardi passou a viver em função de Tito. Vasculhou tudo o que estava publicado sobre paralisia cerebral, consultou especialistas, médicos, terapeutas, experimentou, inovou, viajou com o filho pelos quatro cantos do mundo. E escreveu um livro contando a sua história. Através de “A Queda” viajamos no tempo, somos confrontados com lugares, obras de arte, pessoas, episódios, conflitos que de alguma forma se relacionam com Tito, porque a “história de Tito é assim: circular”.

Um desses círculos começa no primeiro dia da II Guerra Mundial, quando Adolf Hitler assinou o seu programa secreto de eutanásia involuntária, denominado T4. Na primeira fase foram mortos, com altas doses de Luminal, cinco mil recém-nascidos, considerados inválidos, muitos com paralisia cerebral. Na segunda fase, o programa alargou-se aos adultos inválidos, aos doentes mentais, aos epilépticos e aos alcoólatras. Seis hospitais foram convertidos em centros de extermínio, onde os pacientes eram eliminados com uma mistura de morfina, escopolamina, curare e cianeto. Em menos de dois anos foram assassinadas mais de cem mil pessoas. Hitler encerrou o programa em agosto de 1941. Nos meses seguintes seriam inaugurados os conhecidos campos de extermínio onde foram gaseados e cremados, industrialmente, judeus, inválidos, ciganos, polacos, russos, etc. Entretanto, Karel Bobath, ortopedista, e Berta Busse, professora de ginástica, ambos nascidos em Berlim, tiveram de fugir da Alemanha porque eram judeus. Casaram em Londres e desenvolveram juntos um programa de fisioterapia para o tratamento da paralisia cerebral, conhecido como Conceito Bobath. Eles se suicidariam, juntos, em 1991, quando ele tinha 85 e ela 83 anos de idade. Mas o seu programa ficou, e dele viria a beneficiar-se Tito, na sua luta contra a paralisia. A História tem algumas curiosidades fantásticas: “Enquanto Hitler, na Alemanha, exterminava judeus e meninos com paralisia cerebral, um casal de judeus escapava da Alemanha de Hitler e desenvolvia um método para o tratamento de meninos com paralisia cerebral”.

Desde que Tito nasceu, Diogo Mainardi dedicou-lhe a vida e interrompeu o quinto romance da sua promissora carreira de escritor. Os progressos do filho eram e são as suas vitórias. Através de veículos adaptados às suas necessidades, Tito aprendeu a explorar o mundo. Mainardi contava sempre os passos de Tito durante as inúmeras vezes que saía com ele. “A Queda” está dividida em 424 pequenos capítulos, que correspondem ao número máximo de passos que Tito conseguiu dar sozinho até à data em que o livro foi escrito. Outra consequência da paralisia cerebral foi uma dispraxia, que impedia Tito de falar, mas ele  ultrapassou isso, aprendendo a comunicar-se através de um aparelho digital Tech/Speak. Em junho de 2005 Tito ganhou um irmão – Nico. A partir daí, começou a falar sem parar: primeiro de forma desconexa mas, pouco depois, articuladamente. No fim de 2005 abandonou o comunicador. Em agosto de 2009 o tribunal civil de Veneza condenou o hospital de Santi Giovanni e Paolo ao pagamento de 3.162.761 euros, uma indemnização pouco usual, como ressarcimento do que acontecera em setembro de 2000. Hoje, acompanhado apenas por uma pessoa contratada para o ajudar a subir e descer as pontes, Tito caminha livremente durante horas pelas ruas de Veneza com o seu andador.

A vida de alguém com deficiência e a de seus familiares não é fácil. Neil Young, em vez de um, teve dois filhos com paralisia cerebral. O primeiro, com paralisia cerebral leve, nasceu em 1972 e chama-se Zeke. O segundo, com paralisia cerebral severa, nasceu em 1978 e chama-se Ben. O desespero por não conseguir comunicar com Ben levou Neil Young a compor, em 1982, as músicas que constituem o álbum Trans, no qual utiliza – particularmente no tema Transformer Man – um vocoder para distorcer a voz. Foi um dos maiores insucessos da sua longa carreira. A revolta de Neil Young ficou bem patente numa entrevista que concedeu a respeito deste álbum: “Quero que as pessoas se fodam. Ninguém entende as letras em Trans porque eu mesmo era incapaz de entender o que o meu filho dizia”. Em “A Queda”, porém, não há em algum momento lugar para a revolta, a impotência ou o desespero. Da primeira à última páginas, o que transparece é uma incontida alegria: alegria verdadeira, genuína, baseada naquele sentimento cuja falta, essa sim, é causa da mais profunda e perniciosa deficiência humana – o incondicional amor. Devorei as 150 páginas de “A Queda” em cerca de duas horas. Depois, senti uma vontade irresistível de ver minha pequena filha Rafaela. Ela estava dormindo em sua cama. Meu coração sorriu: podia ser Tito, talvez fosse Tito… “Sempre vou te amar”. Afaguei e beijei-lhe suavemente o cabelo. E fui dormir também.

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Foto retirada de: emgeral.com

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A nossa edição:

” A Queda”, Diogo Mainardi, Editora Record, 5ª edição, Rio de Janeiro, 2012.