Sobre a Liberdade. Um texto de Karl Popper.

Escola Karl Popper em Viena.

Sobre a Liberdade*

I

Pouco se sabe sobre o povoamento humano dos Alpes austríacos, suíços e franceses, que remonta a tempos pré-históricos. Mas devíamos realmente considerar como é que pessoas que cultivavam a terra e criavam gado, se mudaram para a zona intransitável e bravia dos Altos Alpes onde, de início na melhor das hipóteses podiam levar uma existência difícil, pobre, cheia de perigos. A explicação mais provável é que estes povos preferiam uma vida incerta em regiões ermas à subjugação a povos vizinhos mais poderosos. Apesar da incerteza e do perigo, escolheram a liberdade. Muitas vezes gosto de alimentar a ideia de que a tradição de liberdade suíça e tirolesa, em particular, remonta aos tempos do povoamento pré-histórico da Suíça.

Seja como for, é um facto interessante e notório que a Grã-Bretanha e a Suíça, as duas democracias mais antigas da Europa contemporânea, são hoje muito semelhantes no seu amor pela liberdade e na sua prontidão em defendê-la. Porque, em muitos outros aspectos, especialmente nas suas origens políticas, estas duas democracias são fundamentalmente diferentes. A democracia britânica deve o seu surgimento ao sentido de orgulho e independência entre a alta nobreza e o seu desenvolvimento posterior à mentalidade protestante, consciência pessoal e tolerância religiosa – consequências dos grandes conflitos religiosos e políticos associados à Revolução Puritana. A democracia suíça não resultou do orgulho, independência e individualismo de uma alta nobreza, mas do orgulho, independência e individualismo dos agricultores das montanhas.

Estes início e tradições totalmente diferentes levaram a instituições tradicionais bastante diferentes e a sistemas de valores tradicionais bastante diferentes. O que um suíço ou um tirolês espera da vida é, penso eu, geralmente diferente daquilo que um britânico espera da vida. Provavelmente, as diferenças dos sistemas de valores baseia-se em parte na diferença dos sistemas educativos; mas é extremamente interessante a diferença nos sistemas educativos encontrar-se ela própria profundamente enraizada nos contrastes históricos e sociais a que me referi. Na Inglaterra, ainda neste século, a instrução era um privilégio da nobreza e dos proprietários de terras – a fidalguia rural; não dos habitantes das cidades e dos burgueses, mas das famílias donas de grandes extensões de terra, que viviam no campo. Estas famílias eram as detentoras da cultura. É delas também que provêm os académicos e os cientistas (muitas vezes amadores influentes e originais) e os membros das profissões mais qualificadas – políticos, homens do clero, juízes, oficiais militares. Pelo contrário, os grandes titulares da cultura no continente eram os habitantes das cidades; provinham na sua maior parte da burguesia urbana. A educação e a cultura não eram coisas que se herdassem; eram coisas que se adquiriam. A educação e a cultura não eram um símbolo de uma posição social herdada, mas um meio e um símbolo de evolução social, de auto-emancipação através do conhecimento. Isto explica também porque é que a luta vitoriosa contra a miséria na Inglaterra foi uma espécie de continuação das lutas religiosas a um nível diferente – uma luta em que o apelo dos aristocratas e das gentes das cidades à consciência religiosa desempenhava um papel decisivo – ao passo que a luta contra a miséria na Suíça e na Áustria era inspirada pela ideia de auto-emancipação através do conhecimento, pela fantástica visão de Pestalozzi quanto à educação. Apesar de todas estas profundas diferenças, tanto a Inglaterra como a Suíça sabem que existem valores que têm de ser defendidos a qualquer preço e os primeiros entres estes valores são a independência pessoal, a liberdade pessoal. E ambos os países aprenderam que tem de se lutar pela liberdade, e que tem de se defendê-la, mesmo que a possibilidade de sucesso pareça diminuta. Em 1940, quando a Grã-Bretanha lutava isolada pela liberdade, Churchill não prometeu a vitória aos britânicos. “Não posso prometer-vos nada melhor do que sangue e lágrimas”, disse. Essas palavras deram à Grã-Bretanha coragem para continuara a lutar.

Também na Suíça foi apenas uma tradicional determinação para lutar – mesmo contra um inimigo claramente superior, como os Habsburgos e, mais tarde, o Terceiro Reich – que permitiu aos suíços manterem a sua liberdade durante a Segunda Guerra Mundial.

II

Receio bem que os magníficos arredores da nossa querida Alpbach, esta maravilhosa interacção da natureza e da mão do homem, tenham feito que as minhas palavras de abertura fossem um pouco sentimentais e românticas. Sinto-me pois na obrigação de contrabalançar de imediato estas palavras sentimentais e românticas com uma segunda introdução dirigida contra o romantismo – em especial o romantismo na filosofia. E gostaria de começar esta segunda introdução com uma confissão.

É especialmente importante para mim que aquilo que vou dizer não seja considerado verdadeiro na base da confiança. Na realidade, preferiria que isto fosse considerado com o maior ceticismo. Ao contrário de muitos dos meus colegas filósofos não sou um líder percorrendo novos caminhos, anunciando a chegada de novas direções na filosofia. Sou um filósofo perfeitamente antiquado que acredita numa filosofia completamente antiquada: ou seja, a filosofia de tempos antigos, os tempos do racionalismo e do Iluminismo. Como um dos últimos defensores solitários do racionalismo e do Iluminismo, creio na auto-emancipação do homem através do conhecimento – tal como outrora Kant, o maior filósofo do Iluminismo, acreditou, ou como Pestalozzi usou o conhecimento para lutar contra a miséria. Por isso, gostaria de dizer claramente que represento pontos de vista que foram já considerados ultrapassados e totalmente errados há uns 150 anos. Porque foi um pouco antes de 1800 que o Romantismo expôs o Iluminismo [die Aufklärung] como mera “busca sem direção precisa” [die Aufklärerei] ou como Aufkläricht – uma alusão a Kebricht ou “lixo”. Mas infelizmente eu estou tão atrasado que ainda me agarro a esta filosofia obsoleta, ultrapassada. Sendo tão retrógrado, não consigo ver a filosofia do romantismo – principalmente a dos três expoentes do Idealismo Alemão, Fischte, Schelling e Hegel – como algo mais do que uma catástrofe intelectual e moral, a maior catástrofe intelectual e moral que alguma vez atingiu os intelectuais alemães e europeus. Em minha opinião, esta catástrofe intelectual e moral teve um efeito devastador e de descrédito que continua a espalhar-se como uma nuvem atómica. Provocou aquilo a que Konrad Heiden, no seu livro sobre Hitler, chamou há alguns anos, “a época da desonestidade moral e intelectual”.

É Zeitgeist [espírito da sua época] e movimento inspirado num Zeitgeist que ninguém vai conseguir facilmente deter – muito menos um defensor solitário tardio do Iluminismo como eu, bem ciente do poder da moda ou do Zeitgeist, mas que não está disposto a fazer-lhe quaisquer concessões. Ao contrário dos grandes românticos e autoridades contemporâneas, não creio ser tarefa do filósofo exprimir o espírito da sua época. Creio (tal como Nietzsche) que um filósofo tem de estar continuamente a verificar se não terá começado a fazer concessões ao Zeitgeist que possam colocar em risco a sua independência intelectual. Concordo inteiramente com Hugo von Hofmannsthal quando afirma: “A Filosofia deve ser um juiz do seu tempo; as coisas não vão bem quando ela se torna a expressão do espírito do seu tempo.”

III

As minhas acusações contra mim próprio e a minha confissão de que sou um racionalista e um homem do Iluminismo de pouco serviriam se não explicasse em breves palavras o que entendo por racionalismo e por Iluminismo.

Quando falo de racionalismo, não estou a pensar numa teoria filosófica (como a de Descartes) e de forma alguma na crença muito pouco razoável de que o homem é uma criatura puramente racional. Quando falo de razão ou racionalismo apenas me refiro à convicção de que podemos aprender com a crítica dos nosso enganos e dos nosso erros, especialmente com a crítica feita por outros, e por fim também com a autocrítica. Um racionalista é simplesmente alguém para quem é mais importante aprender do que vir a provar-se que está certo; alguém que está disposto a aprender com os outros – não simplesmente apossando-se das opiniões dos outros, mas permitindo de bom grado que os outros critiquem as suas ideias e criticando de bom grado as ideias dos outros. O ênfase aqui reside na ideia de crítica, ou, mais exatamente, discussão crítica. O racionalista genuíno não pensa que ele, ou outra pessoa qualquer, está de posse da verdade; nem pensa que a simples crítica como tal ajuda a chegar a novas ideias. Pensa sim que na esfera das ideias só a discussão crítica pode ajudar-nos a separar o trigo do joio. Tem consciência que a aceitação ou rejeição de uma ideia nunca é uma questão puramente racional; mas acredita que só a discussão crítica pode conferir-nos a maturidade necessária para considerar uma ideia sob cada vez mais aspetos e para fazer um juízo correto dessa ideia.

Esta avaliação da discussão crítica tem também o seu lado humano. Porque o racionalista sabe muito bem que a discussão crítica não é a única relação entre pessoas: que, pelo contrário, a discussão crítica racional é um fenómeno raro nas nossas vidas. Todavia, ele acha que a atitude de “dar e receber”, fundamental para a discussão crítica, é da maior relevância puramente humana. Porque o racionalista sabe que deve a sua razão a outras pessoas. Sabe que a atitude crítica racional só pode ser o resultado da crítica de outros, e que só através da crítica de outros se pode chegar à autocrítica.

A abordagem do racionalista pode ser descrita da forma que se segue. Talvez eu esteja errado e tu certo; de qualquer forma, ambos podemos esperar que, depois da nossa discussão, ambos vejamos as coisas mais claramente do que antes, desde que nos lembremos que o facto de nos irmos aproximando da verdade é mais importante do que quem está certo. Só com este objetivo em mente é que nos defendemos o melhor possível na discussão.

É isto, em suma, o que quero dizer quando falo de racionalismo. Mas quando falo de Iluminismo quero também dizer uma outra coisa. Penso acima de tudo na ideia da auto-emancipação através do conhecimento, na ideia que Kant e Pestalozzi inspiraram. E penso no dever que todos os intelectuais têm de ajudar outros a libertarem as suas mentes e a perceberem a abordagem crítica – um dever que a maior parte dos intelectuais esqueceu desde o tempo de Fichte, Schelling e Hegel. Porque infelizmente é extremamente comum entre os intelectuais querer impressionar os outros e, como disse Schopenhauer, não ensinar mas cativar. Surgem como dirigentes ou profetas – em parte porque se espera deles que surjam como profetas, como proclamadores dos segredos obscuros da vida e do mundo, do homem, da história e da existência. Aqui, como tantas vezes acontece, uma incessante procura produz uma oferta. Procuram-se dirigentes e profetas, por isso não admira que se encontrem dirigentes e profetas. Mas “os homens adultos não precisam de dirigentes”, como uma vez disse H.G. Wells. E os homens adultos deviam saber que não precisam de dirigentes. Quanto aos profetas, acredito no dever de todos os intelectuais de os manter à distância.

IV

O que é que distingue exteriormente a abordagem do Iluminismo da dos autoproclamados profetas? É a linguagem. O pensador iluminista fala de forma tão simples quanto possível. Pretende ser compreendido. Neste aspeto Bertrand Russell é o nosso mestre sem igual entre os filósofos. Mesmo quando não concordamos com ele temos de admirá-lo. Fala sempre de uma forma extremamente clara, simples e direta.

Por que é a simplicidade da linguagem tão importante para os pensadores iluministas? Porque o verdadeiro pensador iluminista, o verdadeiro racionalista, nunca pretende convencer ninguém a fazer nada. Não, nem sequer deseja convencer ninguém: tem permanentemente consciência de que pode estar errado. Acima de tudo, valoriza demasiado a independência intelectual dos outros para querer convencê-los em questões importantes. Prefere provocar a contradição, preferivelmente sob a forma de crítica racional e disciplinada. Não procura convencer mas despertar – desafiar os outros a formarem opiniões livres. A formação de opiniões livres é para ele preciosa: não apenas porque isso nos aproxima a todos da verdade, mas também porque respeita a formação de opiniões livres como tal. Respeita-as mesmo que considere uma opinião assim formada fundamentalmente errada. Uma das razões por que o pensador iluminista não quer convencer ninguém de nada é a seguinte. Ele sabe que, fora do estreito campo da lógica, e talvez da matemática, nada pode ser provado. Podem obviamente apresentar-se argumentos e podem examinar-se criticamente pontos de vista. Mas fora da matemática elementar os nossos argumentos nunca são conclusivos e destituídos de lacunas. Temos sempre de pesar as razões, sempre de decidir que razões pesam mais: as razões a favor de um determinado ponto de vista, ou as razões contra ele. Afinal, então, a formação de opinião contém um elemento de livre arbítrio. E é esse livre arbítrio que torna uma opinião preciosa do ponto de vista humano.

Foi com John Locke que o Iluminismo adquiriu e desenvolveu esta elevada estima pela opinião pessoal livre. Esta foi sem dúvida o resultado das lutas religiosas inglesas e continentais, que acabaram por fazer surgir a ideia de tolerância religiosa. E esta ideia da tolerância religiosa não é de modo algum uma ideia meramente negativa como tantos (por exemplo, Arnold Toynbee) defenderam. Não é apenas uma expressão do desgaste da guerra e uma compreensão de que o terror não oferece a perspetiva da imposição de uma conformidade de credo religioso. Antes, a tolerância religiosa provém precisamente do contrário: de uma compreensão positiva de que uma unanimidade religiosa forçada não tem qualquer valor; que só um credo religioso livremente assumido pode ter algum valor. E esta compreensão leva-nos mais longe. Leva ao respeito por qualquer credo honesto e consequentemente ao respeito pelo indivíduo e pela sua opinião. Nas palavras de Immanuel Kant, o último grande filósofo do Iluminismo, leva ao reconhecimento do valor da pessoa humana.

Ao falar do valor da pessoa humana, Kant queria dizer que todo o ser humano e as suas convicções devem ser respeitados. Kant combinou este preceito com o princípio hilleliano a que se chama corretamente a regra de ouro, mas que em alemão soa bastante banal: “Não faças aos outros aquilo que não gostarias que os outros te fizessem!”. Kant associou intimamente este princípio à ideia de liberdade – a liberdade de pensamento exigida pelo Marquês de Posa, de Schiller, a Filipe II; a liberdade de pensamento que Spinoza procurou justificar, declarando ser esta uma liberdade inalienável que os tiranos, por mais que tentem, nunca podem tirar-nos.

Creio que já não podemos concordar com Spinoza a este respeito. Talvez seja verdade que a liberdade de pensamento não pode nunca ser inteiramente suprimida, mas pode ser suprimida até um ponto bastante considerável. Porque sem uma livre troca de ideias não pode haver verdadeira liberdade de pensamento. Para descobrir se as nossas ideias são sólidas, precisamos que outras pessoas as testem. A discussão crítica é a base do livre pensamento para cada indivíduo. Contudo, isto significa que a liberdade de pensamento é impossível sem liberdade política. E significa também que a liberdade política é condição prévia do livre uso da razão por cada indivíduo.

Tentei explicar em breves palavras o que entendo por racionalismo e Iluminismo. Ao mesmo tempo tentei resumidamente indicar porque é que o racionalismo, tal como eu o entendo, bem como Iluminismo, requer liberdade de pensamento, liberdade religiosa, respeito pelas opiniões honestas das outras pessoas e, finalmente, liberdade política. Mas estou muito longe de afirmar que só o racionalismo ama a liberdade ou é capaz de dar razões para a exigir. Pelo contrário, estou convencido de que existem atitudes inteiramente diferentes, especialmente atitudes religiosas, que exigem liberdade de consciência e que, levando mais longe essa exigência, chegam também ao respeito pelas opiniões alheias e a uma justificação da exigência de liberdade política. E se há pouco, talvez com um pouco de ironia, vos avisei do meu racionalismo ultrapassado, gostaria agora de repetir este aviso com toda a seriedade. Pelo facto de eu ser um racionalista não pretendo converter ninguém. Nem desejo abusar da palavra “liberdade” para tornar outros racionalistas. Mas gostaria de desafiar outros a contradizerem-me; gostaria, se possível, de incitar outras pessoas a verem as coisas a uma nova luz, para que cada um possa tomar a sua própria decisão, da maneira mais livre possível de formar opinião. Todo o racionalista deverá subscrever as palavras de Kant: não se pode ensinar filosofias – no máximo apenas filosofar, o que significa uma atitude crítica.

V

Claro que não sabemos ao certo de onde vem este filosofar, esta atitude crítica. Mas tudo indica que é muito rara e portanto pode reivindicar o valor da raridade (além de outros valores). Tanto quanto se sabe, teve origem na Grécia e foi inventado por Tales de Mileto, o fundador da escola jónica de filosofia natural.

Existem escolas até entre povos bastante primitivos. A tarefa de uma escola é sempre preservar e transmitir os ensinamentos do seu fundador. Se um membro da escola tentar mudar a doutrina, é expulso como herege e dá-se uma cisão. Deste modo, o número de escolas por norma aumenta através de cisões. Mas por vezes, evidentemente, a doutrina tradicional da escola tem de se adaptar a novas condições externas – por exemplo, a um conhecimento recentemente adquirido que se tenha tornado propriedade comum. Nesses casos, a alteração da doutrina oficial da escola é quase sempre introduzida subrepticiamente através da reinterpretação da velha doutrina, para que mais tarde afirmar-se que nada mudou realmente na doutrina. A doutrina recentemente alterada (que não se diz que foi alterada) é atribuída ao mestre que fundou inicialmente a escola. “Disse o próprio mestre”, é o que constantemente se ouve na escola pitagórica.

É pois normalmente impossível, ou invulgarmente difícil, reconstruir a história das ideias de uma escola deste tipo. Porque é parte essencial do seu método que todas as ideias sejam atribuídas ao fundador. Que eu tenha conhecimento, a única escola tradicional que se afasta deste esquema rígido é a tradição da escola jónica de Tales, que ao longo dos tempos se tornou a tradição da filosofia grega e por fim, após o reaparecimento desta filosofia no Renascimento, a tradição da ciência europeia.

Tentemos imaginar por um momento o que significa quebrar com a tradição dogmática de uma doutrina pura da escola e substituí-la por uma tradição de debate crítico, uma tradição de pluralismo, em que muitas doutrinas concorrentes tentam aproximar-se de uma verdade única.

Que foi Tales a dar este passo verdadeiramente histórico, pode ver-se no facto de na escola jónica, e só na escola jónica, os membros tentarem de uma forma bastante aberta aperfeiçoar a doutrina do mestre. Só podemos perceber isto imaginando Tales a dizer aos seus seguidores: “Estes são os meus ensinamentos. É esta a minha conceção das coisas. Tentem aperfeiçoá-la”.

Foi assim que Tales criou uma nova tradição – uma tradição a dois níveis. Primeiro a sua própria doutrina era transmitida pela tradição da escola, tal como o eram as diferentes doutrinas de cada nova geração de seguidores. Segundo, preserva-se uma tradição de criticar o próprio professor e tentar fazer melhor. Nesta escola, portanto, modificar ou ultrapassar uma doutrina era considerado algo de positivo. E essa mudança era registada com o nome da pessoa que a introduziria. Isto tornou pela primeira vez possível uma verdadeira história das ideias.

A tradição de dois níveis que descrevi é a tradição da nossa ciência moderna. É um dos elementos mais importantes do nosso mundo ocidental. Que eu saiba, foi inventada apenas uma vez. Perdeu-se passados dois ou três séculos, mas foi redescoberta pelo Renascimento – essencialmente por Galileu Galilei – passados mais mil e quinhentos anos. É portanto bastante possível que seja destruída e esquecida. E apenas poderá desenvolver-se totalmente onde houver liberdade política.

Embora o racionalismo, tal como o descrevi, continue a ser uma coisa rara, mesmo na Europa, e não possa ser considerado uma das religiões características da Europa e embora as ideias do racionalismo sejam hoje tratadas com soberano desprezo pela maior parte dos intelectuais, o racionalismo de Tales é apesar de tudo uma ideia e uma tradição sem a qual a nossa civilização europeia não existiria. Porque não há nada mais característico da nossa civilização europeia do que o seu zelo pela ciência. É a única civilização que produziu ciências naturais, e a única onde esse facto desempenha um papel bastante decisivo. Mas as ciências naturais não são produto direto do racionalismo; são produto do racionalismo da antiga filosofia grega.

VI

O que até agora fiz foi apresentar-me como racionalista e seguidor do Iluminismo, e tentar explicar o que quero dizer com racionalismo e Iluminismo. Referi também sucintamente que o racionalismo e o Iluminismo postulam liberdade política. Mas seria ridículo identificar o amor pela liberdade com o racionalismo ou com o Iluminismo, ou mesmo afirmar a existência de uma relação muito próxima entre eles.

O desejo de liberdade é claramente algo primitivo, que encontramos já em variadíssimos graus entre os animais – mesmo nos animais domésticos – e em crianças muito pequenas. Mas a liberdade torna-se um problema no campo da política. Porque a coexistência humana significa naturalmente que a liberdade ilimitada para cada indivíduo é uma impossibilidade. Se eu for livre de fazer tudo o que quiser, então também sou livre de privar os outros de liberdade.

A solução de Kant era exigir que o Estado limitasse a liberdade individual apenas na medida necessária para a coexistência humana, e que esta limitação necessária se aplicasse a todos os cidadãos da forma mais igual possível. Este princípio genuinamente kantiano demonstra que o problema da liberdade política é pelo menos conceptualmente solúvel. Mas não nos oferece um critério de liberdade política. Porque muitas vezes, em casos individuais, não conseguimos determinar se uma certa limitação da liberdade é realmente necessária, nem se é um fardo imposto a todos os cidadãos por igual. Necessitamos pois de outro critério que possa ser mais facilmente aplicado. A minha proposta de critério é a seguinte. Um estado é politicamente livre se na prática as suas instituições políticas derem aos cidadãos a possibilidade de mudar de governo sem derramamento de sangue caso haja uma maioria que o deseje. Ou, mais sucintamente: somos livres se pudermos ver-nos livres dos nossos governantes sem derramamento de sangue.

Aqui temos um critério que nos permite distinguir a liberdade política da falta dela ou, se preferirem, uma democracia de uma tirania.

Claro que nada depende das palavras “democracia” e “tirania”. Se, por exemplo, alguém chamasse a alguns estados não livres “democracias” e à Constituição do Reino Unido ou da Suíça uma “tirania” eu não me envolveria numa disputa sobre se esses termos estão certos ou errados. Apenas diria: “Se eu tivesse de usar a vossa terminologia teria de me descrever como inimigo da democracia e amigo da tirania”. Isto evita que uma pessoa se perca em disputas terminológicas; o que é importante não são as palavras mas os verdadeiros valores.

O critério de liberdade política que acabei de propor é um instrumento simples, mas evidentemente algo rudimentar. Particularmente, não nos diz nada acerca da importantíssima questão da proteção das minorias – por exemplo, minorias religiosas, linguísticas ou étnicas.

VII

Estive, com tudo o que disse até ao momento, a tentar criar uma espécie de contexto em que tenham cabimento mais algumas questões relativas à presente situação de liberdade e ao mundo ocidental livre. Formularia então a questão central do seguinte modo:

O que é que a liberdade nos trouxe? O bem ou o mal? Qual deles existe em maior quantidade? O que é que revelam as escalas de medida do bem e do mal?

Considero esta pergunta altamente estimulante e vou tentar responder-lhe tão clara e concisamente quanto possível num conjunto de teses.

A minha primeira tese é que o nosso mundo, o mundo das democracias ocidentais, pode não ser o melhor de todos os mundos políticos concebíveis ou logicamente possíveis, mas é sem dúvida o melhor de todos os mundos políticos de cuja existência temos algum conhecimento histórico. Logo, sou um otimista declarado a este respeito.

Para explicar e justificar esta minha primeira tese otimista permitam-me primeiro que diga que quando elogio os nossos tempos não estou a pensar principalmente no milagre da explosão económica, embora não seja despiciendo que na nossa sociedade cada vez menos pessoas passem fome. O que tenho em mente é uma coisa totalmente diferente. Talvez consiga explicar-me melhor apresentando um contraste. Em 1942, o antigo bispo de Bradford condenou o nosso mundo ocidental como um mundo de Satanás e apelou a todos os ministros da religião cristã para que tomassem parte na destruição desta obra do diabo e para que ajudassem o comunismo de Estaline a vencer. Desde essa altura o caráter satânico de Estaline foi reconhecido pelos próprios comunistas, e durante um breve mas altamente refrescante período o seu caráter satânico foi uma importante componente da linha geral do partido, se não mesmo do programa do partido. Todavia ainda há crentes – e na Inglaterra, mesmo cristãos genuinamente devotos – que continuam a pensar como pensava o antigo bispo de Bradford.

Para expressar claramente a minha otimista primeira tese, gostaria de dizer que, partindo precisamente do mesmo ponto de vista a partir do qual o bispo condenou o nosso mundo ocidental como obra do diabo, eu descrevo-o como o melhor de todos os mundos do qual temos conhecimento histórico.

Para o bispo tratava-se principalmente de uma questão de valores puramente humanos – aquilo a que Kant chamava dignidade humana e disponibilidade humana para prestar auxílio. Considerava que estes valores estavam em risco no Ocidente e assegurados na Rússia. Mas parece-me que, no seu idealismo, não analisou corretamente os factos. Nunca antes houve uma sociedade com tão pouca repressão, em que tão pouca gente seja humilhada e insultada, como a nossa sociedade. Nunca antes tanta gente esteve preparada para fazer sacrifícios para aliviar a fome e miséria dos outros.

Penso portanto que nós, no Ocidente, não temos razão para nos envergonharmos em relação ao Leste. Mas não afirmo que nós no Ocidente não devamos criticar as nossas instituições – pelo contrário. Embora o nosso mundo seja o melhor que houve até ao momento muitas coisas nele estão bastante erradas. E aquilo que conseguimos pode perder-se em qualquer altura. Esse é, e sempre será, um grande perigo. Passo agora à minha segunda tese.

Embora considere o nosso mundo político o melhor dos quais temos conhecimento histórico, devemos ser cautelosos em atribuir esse facto à democracia ou à liberdade. A liberdade não é um fornecedor que entrega as mercadorias da vida à nossa porta. A democracia não garante que se consiga realizar coisa alguma – e não por certo um milagre económico. É errado e extremamente perigoso enaltecer a liberdade dizendo às pessoas que vão certamente ficar todas bem quando forem livres. A forma como alguém singra na vida é em grande medida uma questão de sorte e num grau comparativamente pequeno talvez também de competência, diligência e outras virtudes. O mais que se pode dizer da democracia ou da liberdade é que conferem às nossas aptidões pessoais um pouco mais de influência no nosso bem-estar. Isto conduz-me à minha terceira tese.

Devíamos escolher a liberdade política não por esperarmos uma vida mais fácil, mas porque a liberdade é ela própria um valor fundamental que não pode ser reduzido a valores materiais. Devemos escolhê-la à maneira de Demócrito que disse um dia: “Prefiro uma vida de pobreza numa democracia à riqueza sob uma tirania”, e “A miséria de uma democracia é melhor do que qualquer riqueza sob uma aristocracia ou autocracia, porque a liberdade é melhor do que a escravatura”.

Na minha quarta tese gostaria de ir um pouco mais longe. A liberdade, a democracia, e a nossa crença nelas podem tornar-se desastrosas para nós. É errado pensar que acreditar na liberdade conduz sempre à vitória; devemos estar sempre preparados para poder conduzir-nos à derrota. Se escolhermos a liberdade, então devemos estar preparados para perecer com ela. A Polónia lutou pela liberdade como nenhum outro país. A nação checa estava preparada para lutar pela sua liberdade em 1938: não foi falta de coragem que ditou o seu destino. A Revolução Húngara de 1956 – empreendida por gente jovem que não tinha nada a perder a não ser as suas correntes – triunfou e depois acabou em fracasso.

A luta pela liberdade pode também falhar de outras formas. Pode degenerar em terrorismo, como nas Revoluções Francesa e Russa. Pode levar a uma sujeição extrema. A democracia e a liberdade não garantem uma futura idade de ouro. Não, não escolhemos a liberdade política porque ela nos promete isto ou aquilo. Escolhemo-la porque ela torna possível a única forma digna de coexistência humana, a única forma em que podemos ser totalmente responsáveis por nós próprios. Se concretizamos ou não as possibilidades que ela encerra depende de todo o tipo de fatores – e acima de tudo de nós próprios.

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*Texto de um seminário dado em Alpach, a 25 de agosto de 1958, e extraído do livro A Vida é Aprendizagem, pp. 113-126.

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Sardenha

Baunei, a nossa base na Sardenha.

A Sardenha é uma ilha espetacular, multifacetada, com praias magníficas, montanhas, rica gastronomia, bom vinho e uma cultura ancestral. Apesar de fazer parte da Itália, a Sardenha tem uma identidade própria, com uma história e uma língua singulares. Uma língua – o sardo – que se divide em dois dialetos principais: o logudorês, no centro-norte, e o campidanês, a sul, sendo que o primeiro tem ainda três variantes. Mas quanto a dialetos, pelo menos, existem mais três: na cidade de Alghero, no noroeste, fala-se catalão; em Carloforte e Calasseta, no extremo sudoeste, um dialeto originário da Ligúria; no norte, em La Madallena, Gallura, Sassari e na zona costeira de Anglona, fala-se gallura e sassarese, por influências italiana e toscana. Finalmente, claro, fala-se italiano, a língua oficial.

Esta diversidade linguística pressupõe, como seria de esperar, uma grande diversidade cultural. De facto, desde os tempos do Paleolítico que a Sardenha é visitada por humanos e desde o Neolítico antigo, há cerca de 6000 anos, que é permanentemente ocupada. Os primeiros homens que se fixaram em Gallura e na parte mais setentrional da ilha provinham provavelmente da península italiana, particularmente, da Etrúria; os que povoaram a parte central da Sardenha, em torno das lagoas de Cabras e Santa Justa, procediam da Península Ibérica, através das ilhas Baleares; e os que se instalaram na zona do Golfo de Cagliari eram oriundos de África. Mais tarde chegariam outros grupos, vindos da Anatólia e do Mar Egeu.

Assim, é justo dizer que a Sardenha nunca foi composta por um único povo, mas sim por muitos.

Recanto em Santa Maria Navarrese.

Estes povos mantiveram-se politicamente divididos, umas vezes confederados, outras vezes em guerra uns contra os outros. Ao princípio as tribos viviam em aldeias constituídas por casas circulares, de pedra com tetos de palha, e a partir de 1500 a. C. começaram a construir as aldeias junto a fortalezas posicionadas estrategicamente em zonas elevadas para melhor avistarem os inimigos. Estas fortalezas, de forma cónica, reforçadas e ampliadas com torres de vigia, chamavam-se nuraghes. Ainda se encontram hoje, na Sardenha, cerca de 7000.

Por volta do ano 1000 a. C., os fenícios começaram a visitar cada vez mais frequentemente as costas da Sardenha para se abrigarem durante a noite ou em ocasiões de mau tempo. Em 509 a. C., a expansão dos fenícios para o interior da ilha era já demasiado ameaçadora e profunda, provocando uma reação violenta dos sardos, que atacaram as cidades costeiras onde os fenícios se haviam instalado, obrigando-os a pedir ajuda a Cartago.

Punta Predalonga.

Foi então que os cartagineses ou púnicos, em distintas campanhas militares, venceram os sardos e conquistaram toda a Sardenha, exceto a parte montanhosa, mais tarde chamada de Barbaria ou Barbagia. Durante 271 anos, a esplêndida civilização cartaginesa confrontou-se com a fascinante civilização nurágica indígena. Porém, em 238 a. C., os cartagineses, derrotados pelos romanos na Primeira Guerra Púnica, foram obrigados a ceder a Sardenha, que se tornou uma província de Roma. A ocupação romana durou 694 anos e, apesar das lutas que frequentemente os sardos travavam, atingiu a própria Barbagia, acabando com a civilização nurágica. Os romanos impuseram assim, apesar da resistência, a língua e civilização latinas.

Em 456, quando o império romano se encontrava já em plena decadência, os vândalos de África ocuparam Caralis (Cagliari) e as demais cidades costeiras da Sardenha, mas em 534 os vândalos foram foram derrotados, perto de Cartago, pelas tropas do imperador Justiniano, e a Sardenha passou a ser bizantina. A ilha foi dividida em distritos e o cristianismo difundiu-se, exceto na Barbagia onde, em finais do ano 500, se formara um novo e efémero estado independente, com tradições religiosas e laicas sardo-pagãs, do qual Ospitone foi um dos soberanos. Os quatro distritos, chamados merèie, eram governados por um judex residente em Caralis.

Francisco passeando por Tortolì.

Desde 640 até 732 os árabes ocuparam o Norte de África, Espanha, Portugal e parte de França, e em 827 empreenderam a conquista da Sicília. A Sardenha permaneceu isolada e teve de defender-se por si mesma. Os ataques dos árabes começaram em 703 e tornaram-se mais ferozes com o decorrer do tempo. O judex provinciae, para melhor defender a ilha, delegou os seus próprios poderes civis e militares aos seus quatro lugar-tenentes das merèie de Cálari, Torres, Gallura e Arborea que, em 900, conseguiram a sua independência, tornando-se eles próprios judices (em sardo judikes, ou seja, reis) desses territórios.

Cada reino tinha fronteiras, parlamento, leis (Cartas de Logu), línguas nacionais, emblemas e símbolos estatais próprios; e cada um destes quatro estados – comummente chamados giudicati – era um reino não apenas soberano mas igualmente democrático, porque todas as importantes decisões nacionais não cabiam ao rei, mas aos representantes do povo reunidos num parlamento chamado Corona de Logu.

Cala Goloritzè.

Em 1297, o papa Bonifácio VIII, para resolver diplomaticamente a Guerra das Vésperas, que havia estalado em 1282 entre angevinos (reino de Nápoles) e aragoneses pela posse da Sicília, instituiu por motu proprio um “regnum Sardiniae et Corsicae” outorgando-o, como feudo, ao catalão Jaime II, “o Justo”, rei da coroa de Aragão (uma união real formada pelos reinos de Aragão e Valência, mais o Principado da Catalunha), prometendo-lhe o seu apoio, se este quisesse conquistar a Sardenha, em troca da Sicília.

Em 1323, Jaime II de Aragão aliou-se aos reis de Arborea e, ao cabo de uma campanha militar que durou cerca de um ano, conquistou os territórios da Cagliari e de Gallura bem como a cidade de Sassari formando um estado com o título e nome de reino de “Sardenha e Córsega”, incorporado posteriormente à coroa de Aragão, sob o governo de um lugar-tenente do rei, primeiro, governador-geral e depois vice-rei. As cidades de Cagliari, Iglesias e Sassari pagavam os seus tributos diretamente ao rei e, por essa razão, tinham o título de reais; por seu lado, as aldeias estavam sob o regime de feudo e portanto pagavam tributo aos barões locais.

Descansando um pouco em pleno Parque Nacional do Golfo de Orosei e do Gennargentu.

Em 1353 estalou a guerra entre o reino de Arborea, que pretendia reunir a ilha sob o seu domínio, e o reino de “Sardenha e Córsega”. Em 1354 os aragoneses apoderaram-se de Alghero, que se converteu numa cidade plenamente catalã e que mantém, ainda hoje as suas tradições ibéricas. Em 1355, Pedro IV de Aragão permitiu a criação no reino de “Sardenha e Córsega” de um parlamento com poder legislativo e de um Real Conselho de Justiça com poder judicial

Em 1409, Martinho I, o Jovem, rei da Sicília e herdeiro de Aragão, derrotou os sardos giudicali en Sanluri e conquistou definitivamente toda a Sardenha, morrendo pouco depois de malária, em Cagliari, sem deixar descendentes, tendo a sucessão da coroa de Aragão sido determinada pelo Compromisso de Caspe de 1412, passando assim para as mãos dos castelhanos. Em 1479 nasceu a coroa de Espanha, através da união pessoal entre Fernando II de Aragão e Isabel de Castela (chamados de “Reis Católicos”), que se haviam casado dez anos antes. E o reino da Sardenha (agora separado da Córsega, pois esta ilha nunca fora conquistada) tornou-se espanhol, com o símbolo statuale dos Quatro Mouros.

Conquistando a Barbagia, o coração da Sardenha.

Depois de fracassadas as expedições militares contra os muçulmanos em Tunes (1535) e Argel (1541), Carlos V fortaleceu as costas da Sardenha com uma série de torres-vigia para defender os seus territórios mediterrânicos das incursões corsárias dos berberes africanos. O reino da Sardenha permaneceu ibérico durante quase 400 anos, desde 1324 até 1720, absorvendo muitas tradições, costumes, expressões linguísticas e modos de viver espanhóis que se podem observar ainda hoje nos desfiles folclóricos de Santo Efísio, em Cagliari (1º de maio), da Cavalcata, em Sassari (penúltimo domingo de maio) e do Redentore, em Nuoro (29 de agosto).

Em 1708, devido à Guerra de Sucessão espanhola que opunha Filipe de Bourbon a Carlos da Áustria, o governo do reino da Sardenha passou para as mãos dos austríacos, que haviam desembarcado na ilha. Em 1717, o cardeal Alberoni, ministro de Filipe V de Espanha, voltou a ocupar a Sardenha. Em 1718, através do Tratado de Londres, o reino da Sardenha foi entregue aos duques de Saboia, príncipes do Piamonte que o juntaram, sob a forma federativa, aos seus estados continentais. O reino italianizou-se.

Um jantar memorável.

Em 1799, devido às guerras de Napoleão em Itália, os Saboia abandonaram Torino refugiando-se, durante uns 15 anos, em Cagliari, capital do reino. Em 1847, os sardos renunciaram espontaneamente à sua própria personalidade de Estado e fundiram-se com o Piamonte para terem, assim, um único parlamento, uma única magistratura e um único governo em Torino.

Em 1848 começaram as guerras independentistas para alcançar a unidade política da península italiana dirigidas pelos reis da Sardenha durante 13 anos. Em 17 de março de 1861 o Reino de Sardenha mudou o seu nome para Reino de Itália. Finalmente, em 1946, através de um referendo popular, o Estado italiano constituiu-se como República e, em 1948, a Sardenha garantiu uma autonomia especial, com as suas quatro províncias de Sassari (norte), Oristano (oeste), Nuoro (leste) e Cagliari (sul), as quais remarcam com alguma aproximação os quatro antigos e gloriosos estados giudicali.

Esta introdução histórica, talvez demasiado longa, tem como fonte o livro de Francesco Cesare Casula indicado no fim deste artigo.

Cale dei Gabbiani.

Tal como a história da Sardenha, também a nossa visita à ilha foi bastante atribulada. O nosso voo tinha uma escala em Barcelona, mas uma tempestade nesta cidade, nesse preciso dia, provocou atrasos em inúmeros voos, incluindo o nosso, fazendo com que milhares de pessoas perdessem os voos de ligação programados. Para complicar ainda mais as coisas, três das malas que transportávamos desapareceram, ficando três, dos cinco que viajávamos, sem muda de roupa. Finalmente, face ao elevado número de pessoas em situação idêntica à nossa, os hotéis em Barcelona estavam esgotados, pelo que nos levaram num autocarro para um hotel a uns 100 quilómetros de distância, já muito perto da fronteira com a França, aonde chegámos de madrugada, cansados e desiludidos. Passadas três horas tivemos de acordar (os que conseguiram dormir alguma coisa) para regressarmos ao aeroporto, desta vez num táxi que, dada a confusão gerada (as pessoas que foram no mesmo autocarro para o hotel tinham voos diversificados) tivemos de lutar para apanhar, pois havia outro grupo pretendente (os taxistas só sabiam o número de pessoas que vinham buscar, e a que hora, não tinham nenhuma indicação sobre a identidade dos passageiros). A nossa sorte foi que, em desespero – um de nós era uma criança de ano e meio que um dia antes de viajar tinha ficado doente – nos atirámos para dentro do táxi e nos recusámos a sair… E lá fomos para o aeroporto, sem dormir, sem roupa e sem a certeza de que apanharíamos o avião para Cagliari, pois a distância era longa e teríamos de atravessar a região de Barcelona para chegarmos ao aeroporto, e estava um trânsito monumental. Mas lá conseguimos. As três malas é que teimavam em não aparecer…

Francisco com os seus novos amigos – o cão de salvamento “Arturo” e Gianni Scanu – na Cale dei Gabbiani.

Chegámos assim à Sardenha um dia depois do previsto. O carro que tínhamos previamente alugado já não estava disponível. Tivemos que alugar outro carro, pagando o dobro e perdendo o valor total do aluguer do anterior veículo, que já tínhamos pago. Enfim, lá fomos no nosso carro novo em direção a Baunei, onde alugáramos alojamento, mas antes parámos em Cagliari para comprar alguma roupa, pois três de nós só tínhamos a que trazíamos vestida há muitas horas. Apesar de tudo, quando nos fizemos à estrada íamos animados, com a sensação de que o pior já teria passado. E tínhamos razão. Instalados na nossa casa de Baunei fizemos um spaguetti com carne para o jantar, acompanhado por um vinho branco da Sardenha, que nos souberam divinalmente.

No dia seguinte acordámos revigorados e fomos dar uma volta pelas redondezas. Descemos a Santa Maria Navarrese, uma pequena e agradável vila com porto de recreio, posto de turismo, praias, restaurantes e outros serviços, e visitámos a Punta Pedralonga, um local onde, como o nome indica, se formou uma enorme rocha, em forma de ponta de lança, apontada ao céu. À tarde deslocámo-nos a Tortolì, uma cidade maior, com muito comércio, onde aproveitámos para, com tempo, comprarmos mais alguma roupa que nos fazia falta. Dois dias após a nossa chega à Sardenha, as três malas continuavam sem aparecer.

São inúmeras as pequenas praias escavadas nas rochas do Golfo de Orosei.

Baunei, a pequena vila onde nos instalámos, fica no topo de uma montanha, mesmo ao lado do Parque Nacional do Golfo de Orosei e do Gennargentu, instituído em 30 de março de 1998. Gennargentu é um maciço que inclui vários picos, entre eles o mais alto da ilha – Punta la Marmora, 1834 metros acima do nível do mar. Aos pés desse alto maciço encontram-se algumas das praias mais bonitas da Europa. Estas praias são de difícil acesso, escavadas na rocha, mas isso, apesar de representar algum perigo, só as torna mais exclusivas e tentadoras. Cala Goloritzé é uma delas. Quem quer visitá-la por terra só pode fazê-lo a pé, caminhando por mais de 3 horas (ida e volta). Nós quisemos. E valeu a pena. Trata-se de uma praia pequena mas incrivelmente bonita, rodeada pela montanha escarpada, e por uma água azul-turquesa de agradável temperatura. Depois de descermos e subirmos por caminhos de pedra solta, carregando o Francisco, sentimos que o nosso terceiro dia na Sardenha estava mais que preenchido. Só restava regressar a Baunei, comer e… dormir.

No quarto dia da nossa estadia decidimos ir para Norte. Seguimos a SS 125, atravessámos o maciço, passámos por Urzulei (a zona da antiga Barbagia) e iniciámos a descida para Orosei. Aqui chegados fomos até à praia para darmos um mergulho e nos refrescarmos um pouco. Pouco tempo volvido reparámos num rapaz que, caminhando pela praia, envergava uma camisola do Sporting e, claro, fomos falar com ele. Para nossa surpresa era um irlandês, casado com uma sarda (dito assim tem a sua a sua piada…), e a camisola do Sporting tinha-lhe sido oferecida por um amigo conterrâneo que vivera em Lisboa. É comum acontecerem coincidências agradáveis a quem viaja, somos testemunhas disso, e este irlandês, por solidariedade clubística, que sempre ajuda, aconselhou-nos um restaurante, situado na montanha, para jantarmos.

Regressando da nossa visita por mar ao Golfo de Orosei.

Bom, na verdade não se trata apenas de um restaurante, mas mais de uma quinta de agroturismo que também serve refeições. Para obterem autorização de exercício de atividade, pelo menos 80% do que é servido no restaurante tem que ser produzido na quinta. Escusado será dizer que comemos e bebemos com plena satisfação. Regressámos a Baunei quando a noite já ia adiantada, debatendo sobre o que fazer no dia seguinte. Soubemos que em Santa Maria Navarrese faziam passeios marítimos e decidimos ir lá ver.

No dia seguinte, já no porto de recreio de Santa Maria Navarrese disseram-nos que poderíamos alugar uma embarcação a motor e passearmos pela costa por nossa conta, sem necessidade de guia. Pareceu-nos uma ótima ideia e, depois de comprarmos alguns mantimentos para a viagem, embarcámos em mais esta aventura. Com o embalar da ondulação, o Francisco adormeceu durante uma boa hora, ou mais. Fomos navegando junto à costa, observando as escarpas, as grutas, as pequenas praias, os diferentes tons do mar… Parámos em frente à praia da Cala Goloritzè, arriamos ferro e, um por um, fomos mergulhando no mar magnífico. O Francisco, por seu turno, continuava mergulhado no sono. Quando nos apeteceu, levantámos ferro e seguimos. Até que encontrámos uma praia com acesso pelo mar (o que é proibido na Cale Goloritzè), e decidimos ir até lá. O Diogo manobrou para que pudéssemos sair do barco, com o Francisco, em segurança, foi depois estacioná-lo onde é permitido, e veio a nado ter connosco.

Outro amigo sardo que aceitou posar connosco por troca com o colega que estava a tirar a fotografia.

A praia chama-se Cale dei Gabbiani (em tradução livre: praia das Gaivotas) e é, sem dúvida muito bonita, embora não tenha areia, antes calhaus provenientes das rochas. Depois de comermos travámos conhecimento com um senhor da Proteção Civil da Sardenha – Gianni Scanu – que se fazia acompanhar por um belo cão de salvamento, equipado a rigor, o Arturo. Estes cães, muito bem treinados, são extremamente dóceis, e o Francisco rapidamente fez amizade com o Arturo.

(Soubemos recentemente que uma das raças a que a Guarda Costeira italiana mais recorre é o cão d’água português, dada a extraordinária apetência destes cães para tarefas no mar. O próprio Gianni tem agora um cão d’água chamado Pancho. Estes cães são muito admirados pelos treinadores e instrutores da Escola Italiana de Cães de Salvamento. Um artigo sobre o cão d’água português pode ser lido no nosso blogue em https://ilovealfama.com/2013/10/08/cao-de-agua-portugues/).

Ao fim da tarde regressámos a Santa Maria Navarrese, inteiros, incluindo o barco. Apesar de o tempo não ter ajudado muito, fora um passeio memorável. Aquela zona da costa, junto ao maciço de Gennargentu, é de uma beleza singular. Tivemos o privilégio de visitar as suas praias, por terra e por mar. E por conta própria.

Ir a Itália e não comer pizza é como ir a Roma e não ver o papa. Na praia de Orrì.

A nossa estadia na Sardenha estava a chegar ao fim. No dia seguinte teríamos de rumar a Cagliari para os voos de regresso, desta vez via Madrid. Mas antes de terminarmos, queremos deixar uma palavra ao acolhedor povo de Baunei: o senhor do talho que já nos cumprimentava quando passávamos à sua porta; as moças do minimercado sempre atenciosas e disponíveis; as jovens da gelataria onde comprávamos os sorvetes com leite de cabra; e mesmo as velhinhas vestidas de preto que víamos nas ruas de Baunei. Sempre nos rodearam de simpatia.

Assim, no nosso último dia de viagem, às 11 da manhã, saímos da casa que durante seis dias (deveriam ter sido sete) habitáramos em Baunei. Não percorremos diretamente os 150 quilómetros até Cagliari, fizemos uma paragem em Tortolì para almoçarmos. Quando estávamos a chegar a Tortolì, recebemos uma chamada da dona da casa que alugáramos, dizendo que tinha à porta um funcionário de uma transportadora que nos queria entregar umas malas… As malas! No último dia na Sardenha, quando já nem sequer estávamos na morada indicada, chegaram as três malas perdidas! In extremis. Pedimos então ao senhor da transportadora que nos entregasse as malas em Tortolì. E assim se fez. Metidas todas as malas no carro, lá rumámos à capital da Sardenha para apanharmos o avião de regresso, desta vez sem peripécias de maior.

Cagliari vista do avião na hora da despedida.

A Sardenha é uma ilha fantástica e só conhecemos uma parte muito pequena dela, ainda que uma belíssima parte. Ficou a vontade de voltarmos. Veremos se se concretizará um dia. Até lá ficam as recordações de uma viagem cujo registo aqui realizado tem mais de ano e meio de atraso. A nossa estadia na Sardenha deu-se entre 12 e 17 de junho de 2019, iniciando-se um dia depois do previsto.

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A nossa edição: Historia de Cerdeña, Francesco Cesare Casula, Carlo Delfino Editore, Sassari, 2000.

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Maldivas, Malé

Crepúsculo no Oceano Índico.

A República das Maldivas é um arquipélago composto por 1.190 pequenas ilhas agrupadas em 26 grupos ou atóis. Estes atóis formam uma longa e estreita cadeia com cerca de 750 quilómetros (de norte para sul, ou vice versa) no Oceano Índico, cobrindo uma área total de cerca de 90.000 quilómetros quadrados. As massas terrestres mais próxima são o cabo Comorim, no extremo sul da Índia, 480 quilómetros a nordeste; e o Sri Lanka, um pouquinho mais para leste, a 650 quilómetros. A capital é Malé, uma ilha muito pequena, com menos de 2 quilómetros de comprimento e de largura, totalmente plana – como, aliás, todas as outras ilhas, cuja altura máxima não ultrapassa os 2,5 metros – onde se concentram, além de edifícios, veículos, embarcações, a maior parte dos 500.000 habitantes das Maldivas. Uma ponte construída pelos chineses liga Malé à ilha vizinha de Hulmumale, a única com espaço para albergar um aeroporto – o internacional de Velana.

Malé, uma cidade incrível, plana, demasiado exposta ao mar. Uma onda gigante pode literalmente varrê-la do mapa.

Os turistas que visitam as Maldivas raramente ficam em Malé; alguma embarcação rápida (para os hotéis mais perto) ou hidroavião (para os atóis mais longínquos) levá-los-á a um dos resorts, mais ou menos exclusivos, onde podem desfrutar de alguns dias paradisíacos com o mar sempre aos pés. Nós, pelo contrário, não saímos de Malé. Caminhámos por toda a cidade, falámos com as pessoas, visitámos os mercados, as docas, os restaurantes (onde não se pode beber álcool), as lojas, algumas pequenas livrarias (sempre buscamos um livro local) e os edifícios públicos. Tudo fica perto de tudo, alcançável depois de alguns minutos a pé.

Os maldívios autogovernaram-se durante a maior parte do tempo histórico, excetuando um breve período no século XVI em que foram governados pelos portugueses a partir de Goa. Em 1752, houve também um período de apenas 3 meses de regência “malabari”. Em 1887, as Maldivas tornaram-se um protetorado britânico, mas não houve nunca presença física dos britânicos em Malé, que continuou a ser dirigida pelos seus próprios sultões até ao fim de 1952. No dia 1 de janeiro de de 1953 formou-se a primeira república, que teve vida curta, regressando as Maldivas ao sultanato em 1954. Por sua vez, o sultanato foi abolido em 1968 com a formação da segunda república. A independência foi alcançada em 1965. Apesar de não dever lealdade à rainha, em 1984 as Maldivas tornaram-se membro da Comunidade Britânica (British Commonwealth).

Zona central de Malé.

A sociedade maldívia é profundamente muçulmana. Avisos afixados em diversos locais apelam aos turistas para respeitarem as tradições locais. Por exemplo, as mulheres não podem usar bikini e ninguém pode estar de tronco nu nas pequenas praias da capital. Por outro lado, as atrações arquitetónicas são escassas ou nulas. Assim, se quiser ir às Maldivas, escolha um resort de acordo com a sua bolsa, desfrute das águas magníficas do Índico, da paz de uma pequena ilha que por alguns dias é de apenas de uns quantos sortudos, entre os quais você – e relaxe. É do turismo que as Maldivas vivem. Aqui só o peixe não é importado.

Há, porém, um lado preocupante neste paraíso. Um aumento da temperatura global e a consequente subida das águas pode submergir estas magníficas ilhas praticamente planas, que os maldívios terão de abandonar. Um segundo perigo ainda mais preocupante é a possibilidade de algum tsunami as varrer, não dando tempo aos habitantes de abandoná-las. O tsunami de 26 de dezembro de 2004 provocou ondas de até 1,5 metros de altura, mas é possível que ocorra um tsunami maior e, claro, muito mais devastador. O nosso conceito de paraíso não contempla tamanha fragilidade.

A nossa visita às Maldivas foi curta. Ficámos apenas na sala de visitas – Malé.

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A nossa edição:

Mysticism in the Maldives, Ali Hussain, Novelty Publication, Malé, 1991.

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A ressurreição, por Gustav Mahler

Mahler trabalhou na sua Segunda Sinfonia entre 1888 e 1894, e reviu-a em 1903.

Em dia de Páscoa deixamos um apontamento dessa magnífica obra mahleriana, a sinfonia nº 2, “Ressurreição” (em que, tal como nas sinfonias 3 e 4 – as chamadas Sinfonias Wunderhorn – intervem a voz humana), registado em Leipzig, Alemanha, no ano de 2011. O maestro é o carismático italiano Riccardo Chailly, que tivemos a felicidade de ver ao vivo noutras ocasiões. Páscoa Feliz!

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