Como o Mundo Realmente Funciona

Foto retirada de: https://www.christiancourier.ca/are-we-actually-doomed/.

A Terra é a nossa única casa comum. Os cientistas dizem-nos que não existem condições, pelo menos nos tempos mais próximos, de emigrarmos para outro planeta e, portanto, é imperioso cuidarmos do que temos. Os líderes dos países mais desenvolvidos, o secretário-geral da ONU, a maioria das associações ambientalistas e dos cientistas concordam em que é urgente descarbonizar, diminuindo as emissões de CO2 que contribuem para o tão falado efeito de estufa, evitando que a temperatura média da Terra suba mais do que 1,5º C até ao final do século (Acordo de Paris, 2015).

Mas como?

A tarefa é praticamente impossível e quem diz o contrário não tem noção de como o mundo realmente funciona. Porquê? Em primeiro lugar porque o CO2 permanece na atmosfera durante décadas e mesmo que diminuíssemos drasticamente as emissões, a concentração de CO2 na atmosfera continuaria a aumentar. É de realçar que 60% do CO2 permanece na atmosfera 20 anos; entre 30% e 55% do CO2 permanece um século; e ente 15% e 30% do CO2 permanecerá na atmosfera durante um milénio (Koonin, 2021).

Em segundo lugar, e este é o aspeto mais importante, porque a nossa dependência dos combustíveis fósseis é gigantesca, significativamente para a produção de quatro produtos indispensáveis ao funcionamento das nossas sociedades desenvolvidas, considerados por Smil os seus quatro pilares — amoníaco; plásticos; aços; cimento.1 — mas também noutras indústrias e nos transportes (com grande destaque para o rodoviário).

a) O amoníaco é indispensável para a produção de alimentos, graças ao azoto que contém: “sem o seu uso (diretamente ou como matéria-prima para a síntese de outros compostos azotados) seria impossível alimentar pelo menos 40%, e podendo chegar aos 50%, dos atuais oito mil milhões de habitantes do mundo” (p. 99)2. A síntese do amoníaco foi inventada em 1909 por Fritz Haber e, quatro anos depois, começou a funcionar a primeira fábrica de síntese de amoníaco em Oppau, na Alemanha. Na segunda metade do século XX a produção de amoníaco aumentou exponencialmente, com este adubo sintético a proporcionar, ainda na década de 60, o início da Revolução Verde. Sintetizam-se, hoje, cerca de 150 megatoneladas de amoníaco por ano, com cerca de 80% a ser usado como adubo (p. 104). As atividades humanas na agricultura, silvicultura e uso da terra provocam 18,4% do total de emissões dos gases com efeito de estufa.3

b) A síntese dos dos plásticos é realizada a partir de matérias-primas de hidrocarbonetos. A maleabilidade dos plásticos, os seus baixo peso e considerável resistência, permitem a sua aplicabilidade numa miríade de estruturas, aparelhos e instrumentos — desde tubagens nas nossas casas à indústria aeronáutica, passando por materiais hospitalares (sobretudo de PVC), computadores e telemóveis — fazendo com que os plásticos estejam omnipresentes no nosso dia-a-dia. A produção de plásticos tem vindo sempre a crescer, e de uma forma exponencial. Apesar do despejo irresponsável de materiais plásticos que atingem os oceanos, estes materiais sintéticos tão diversificados são amiúde indispensáveis à nossa vida. É interessante constatar que um estudo a amostras de água do mar mostrou que as microfibras encontradas são sobretudo naturais (mais de 90%) e não de origem sintética, como muitos erradamente pressupõem (p. 109). 4

c) As mais de 3500 variedades de aço são ligas dominadas pelo ferro. “A gusa, ou ferro fundido, o metal quente produzido pelos altos-fornos, tem, de um modo geral, 95 a 97% de ferro, 1,8 a 4% de carbono e 0,5 a 3% de silicone, com vestígios de outros elementos” (p. 109-10), o que o torna quebradiço, pouco maleável e resistente. Atualmente, os aços são produzidos reduzindo o carbono a níveis que vão dos 0.08 a 2,1%, o que, para além de obviar aos problemas do excesso de carbono, faz também com que o aço seja altamente resistente ao calor, só derretendo aos 1425º. A composição do aço é muito variável e permite a construção de objetos gigantes, como pontes, gruas, arranha-céus, equipamentos e infraestruturas de transportes (cascos de navios, carris para comboios, oleodutos), e pequenos, como bisturis ou talheres, além de maquinaria adequada ao fabrico das próprias máquinas. O aço é reciclável e grandes quantidades de eletricidade são necessárias para alimentar os fornos de arco voltaico (EAF) onde o aço é derretido para reutilização. Para se ter uma ideia, um EAF moderno necessita de tanta eletricidade como uma cidade norte-americana de cerca de 150 mil pessoas. Os altos-fornos são, aliás, responsáveis por cerca de 75% das necessidades totais de energia para a produção do aço. A produção primária de aço emite 900 megatoneladas de carbono por ano, ou seja, 7 a 9% de emissões diretas da combustão mundial de combustíveis fósseis. O ferro, constituinte do núcleo da Terra, é abundante também na crosta terrestre5 e os recursos mundiais desta matéria-prima ultrapassam os 800 mil milhões de toneladas, suficientes para mais de 300 anos, atendendo à relação recurso/produção (R/P).

d) O cimento é um composto produzido através do aquecimento (pelo menos, a 1450º C) de calcário moído e de argila, xisto ou desperdícios (fontes de silicone, alumínio e ferro) em grandes fornos. Esta sinterização produz clínquer (calcário e silicatos de alumínio fundidos) que é triturado para se obter um pó fino — o cimento. Este material, misturado com inertes de dimensão variável (areia ou cascalho) e água dá origem ao betão, profusamente usado na construção civil. O cimento representa apenas 10% a 15% da massa final de betão, os inertes, 65% a 85% e a água, 15% a 20%. O betão atual é bastante mais forte do que o betão antigo e aguenta bastante a compressão, mas é fraco na tensão, sendo por isso frequentemente reforçado com aço, dando origem ao betão armado. Assim, o betão é amplamente usado na construção de arranha-céus, túneis, pistas de aeroporto, estradas, barragens. O betão pré-esforçado (com o aço a ser tensionado e, em seguida, libertado quando o betão se funde com o metal) veio melhorar a resistência à tração do aço reforçado e permitir a sua utilização em pontes, viadutos e edifícios com estruturas arrojadas como a Ópera de Sidney. O betão não é um material muito durável pois pode ser atacado pela humidade, pelo frio, pelo crescimento de bactérias e algas que causam a sua deterioração. A necessidade de renovação é por isso permanente e as necessidades de cimento para a produção de betão são contínuas.

Finalmente, e em terceiro lugar, a descarbonização é extremamente difícil de concretizar porque, se por um lado, os países desenvolvidos poderiam (e deveriam) poupar combustível — através da redução do desperdício alimentar, comendo menos carne, viajando menos, consumindo menos calorias, produzindo menos SUVs, por exemplo — por outro lado, os habitantes dos países subdesenvolvidos (uma parte muito substancial da humanidade) precisam de consumir mais calorias, comer mais carne, aquecer ou refrigerar as suas casas, ser mais ricos (e, logo, viajar mais, ter mais carros, mais infraestruturas e equipamentos), isto é, precisam de aumentar o consumo de combustíveis.

Dir-se-á: há que acelerar a produção de energia “verde” pois essa é a única forma de diminuir drasticamente as emissões. No entanto, continuamos, aqui, a debater-nos com imensas dificuldades. Uma única torre eólica requer para sua construção, transporte, implantação no terreno e manutenção uma quantidade enorme de energia proveniente dos combustíveis fósseis, além de que acumula grandes quantidades de aço, cimento e plásticos; uma bateria de lítio típica, cerca de 450 quilogramas, contém à volta de 11kg de lítio, quase 14 quilogramas de cobalto, 27 quilogramas de níquel, mais de 40 quilogramas de cobre e 50 quilogramas de grafite — mas também 181 quilogramas de aço, alumínio e plásticos (p. 124). Além disso, como instalar baterias nos aviões a jato se a densidade energética das baterias a lítio é 40 vezes menor do que a densidade energética do combustível consumido pelos atuais aviões? O processo de descarbonização dos transportes de longa distância é ainda desconhecido. Devido à enorme dificuldade de armazenamento de energia, a chamada energia verde está vocacionada essencialmente para a produção de eletricidade, e a eletricidade representa apenas 18% do consumo total da energia final usada no mundo (p.53).

A solução óbvia parece ser a energia nuclear. Além de limpa, tem densidade energética e é (ao contrário do que geralmente se pensa) bastante segura. Porém, os únicos países que estão a expandir a sua capacidade nuclear para produção de energia, são a Índia, a China e a Coreia do Sul. Em parte por pressão dos ambientalistas, em parte devido ao acidente nuclear de Fukushima em março de 2011, em parte pelos grandes investimentos necessários e os atrasos na construção, aliados à disponibilidade de gás natural barato nos EUA, e à aposta nas energias eólica e solar na Europa, em parte por puros preconceito e ignorância, a energia nuclear foi surpreendentemente negligenciada. Isto parece-nos um enorme erro (aqui a opinião é mesmo nossa) e a própria União Europeia considera que não será possível a descarbonização total até 2050 sem que 20% de energia total provenha da fusão nuclear.

A situação é, portanto, difícil, e a recusa de vários países em utilizarem a energia nuclear, só a agrava. A transição energética parece não ser suficiente — será necessária uma mudança no nosso estilo de vida. Mas quem está disposto a viajar menos (a indústria do turismo — as viagens de avião e em navios de cruzeiro — não para de crescer), a comer menos (com tanta gente a passar fome no mundo), a comprar menos automóveis (com tantos países a ansiarem pelo crescimento económico e níveis de consumo do primeiro mundo)? A assimetria entre países ricos e pobres provoca graves problemas, como desigualdade, crises migratórias e também crise climática. Os países ricos têm bastante margem para diminuírem o desperdício, reduzirem o consumo, comprarem carros menos potentes, construírem edifícios mais eficientes e até, eventualmente, fazerem menos viagens de longa distância. Mas isso não é possível nos países em vias de desenvolvimento e nos países mais pobres, e assim a descarbonização e a transição energética serão inevitavelmente mais lentas do que a velocidade reclamada por ambientalistas radicais e esperada por políticos ingénuos e otimistas.

Vaclav Smil não é otimista nem pessimista, é realista. Acredita na Ciência e não em hipóteses extremistas, como o apocalipse climático ou o triunfo avassalador da tecnologia. As previsões historicamente falham e o futuro é aberto — depende de muitas coisas, e também de nós. Uma posição realista implica colocar em cima da mesa dois conceitos muito pouco falados, mas que provavelmente impulsionarão a humanidade para um novo patamar de desenvolvimento científico e tecnológico: mitigação e resiliência.

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A emissões globais de gases com efeito de estufa, por setor. (https://ourworldindata.org/emissions-by-sector#energy-electricity-heat-and-transport-73-2).
O consumo de energia por tipo e região, em 2022. Repare-se na pouca representatividade das energias renováveis e, sobretudo, da energia nuclear. A eletricidade proveniente de barragens tem grande incidência na América do Sul. Em: https://www.energyinst.org/statistical-review

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Notas:

1 “A produção global destes quatro materiais indispensáveis consome cerca de 17% do fornecimento de energia primária do mundo, e é responsável por 25% de todas as emissões de CO2 com origem na combustão de combustíveis fósseis” (p.98).

O silicone, transformado em lâminas finas, é o material indispensável para a produção de microchips — e sabe-se como, num mundo ligado pela internet, os microchips são importantes. No entanto, as pessoas poderiam ter vidas prósperas e boas sem internet e eletrónica. Por isso, o silicone (Si), que é bastante abundante na Natureza — o segundo elemento mais comum na crosta terrestre (28%) depois do oxigénio (49%) — não é um material vital para a civilização contemporânea, e não é considerado por Smil como um dos pilares da mesma (p. 96).

2 “O amoníaco é um composto inorgânico simples, com um azoto e três hidrogénios (NH3), o que significa que o azoto compõe até 82% da sua massa”. (p. 101). “Pode ser aplicado diretamente nos campos, caso se tomem as devidas precauções e se usem equipamentos especiais; mas o composto é usado, sobretudo, como matéria-prima indispensável para a produção de fertilizantes azotados líquidos.” (p. 104).

3 https://ourworldindata.org/emissions-by-sector#energy-electricity-heat-and-transport-73-2.

4 https://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.aay8493.

5 Só o oxigénio, o silicone e o alumínio são mais comuns. O ferro, com quase 6%, está em 4º lugar.

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https://brasil.elpais.com/eps/2021-10-27/vaclav-smil-em-cinco-anos-havera-escassez-de-agua-e-alimentos.html

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