O preconceito ideológico antiamericano

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Parece-me evidente que o antiamericanismo tem crescido no mundo. Não sei se tem crescido também nos países ocidentais. Sei, porque o vejo todos os dias, que é efetivo, quer no Brasil, quer em Portugal.

Se, por um lado, esse sentimento é compreensível – sobretudo em tempos de grave crise económica e financeira – por outro, é completamente ilógico. Em primeiro lugar, porque os EUA são compostos por várias gerações de homens e mulheres do mundo inteiro – europeus, sul-americanos, portugueses, brasileiros, etc. Em segundo lugar, e principalmente, porque a partir do momento em que os EUA se tornaram o país dominante no mundo este ficou, de facto, melhor.

Os que criticam a política internacional americana esquecem-se de que, não muito antes dos EUA se tornarem a maior potência mundial, os países que o antecederam nesse papel dividiram entre si um inteiro continente, sentados confortavelmente, em torno de uma mesa, numa reunião em Berlim[1]. E que, para manterem seus impérios, alguns deles praticaram o extermínio sobre milhões de seres humanos[2].  Essa partilha imperial, inicialmente traçada a lápis, culminaria numa guerra fratricida, com duas partes distintas, traçada, desta vez, com projéteis de diversas dimensões – as primeira e segunda Guerras Mundiais. E o extermínio ampliou-se, brutalmente, até o inconcebível.

Se os EUA se demitissem do papel de líder mundial, é quase certo que a potência que ocupasse o seu lugar – e só um sonhador pode imaginar um mundo sem nenhum país mais poderoso, pois não há no mundo vazios de poder – seria pior. Claro que o exercício do poder, por mais democrático que seja, contém sempre alguma arbitrariedade e, consequentemente, alguma injustiça; e é ainda verdade que alguns presidentes americanos interpretaram de forma muito negativa, e por vezes trágica, o papel dos EUA no mundo[3]. Mas isso não invalida que a supremacia militar dos EUA (entre outras) seja muito menos agressiva do que todas as que a antecederam no decorrer dos últimos séculos.

Essa supremacia iniciou-se ainda no decorrer da Grande Guerra e consolidar-se-ia com a Conferência de Paz que se lhe seguiu, em Paris[4], onde as ideias e propostas progressistas do presidente democrata Woodrow Wilson prevaleceram – ideias e propostas que defendiam a autodeterminação dos povos, a proteção das minorias étnicas e a criação da Liga das Nações[5]. Foi o estertor dos estados imperiais[6].

Apesar do desmantelamento dos impérios, muitos consideram, hoje, os EUA um país imperial. Isso deve-se sobretudo à ação americana durante a Guerra Fria e, mais recentemente,  às intervenções no Médio Oriente, nomeadamente no Iraque[7]. Cumpre dizer que esta foi, de facto, completamente despropositada, imprudente e injusta – uma reação irrefletida aos atentados de 11 de setembro[8]. Tal não invalida, porém, que outras intervenções se justifiquem, como é o caso da presente luta contra o ISIS – o Estado Islâmico no Iraque e na Síria.

A grande diferença entre os americanos e os outros é que, nos EUA, em qualquer decisão, participam sempre várias pessoas que pensam de forma diferente entre si. Nos países seus inimigos, sejam governados por radicais islâmicos pela esquerda radical marxista ou por autocratas como Putin, quem participa das decisões são pessoas que pensam da mesma forma[9], subjugadas, sempre, seja por um ditador, seja pela crença cega numa religião ou ideologia, sendo que ambos quase sempre se confundem. Os EUA – e os países ocidentais que partilham os mesmos valores – são a expressão última de um tipo de sociedade que se iniciou há 2.500 anos na Grécia Antiga, e o resultado de uma luta constante e interminável pela Liberdade e pela Democracia.

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A foto incluída neste post foi retirada do sítio http://www.veja.abril.com.br.

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Notas:

[1] Conferência de Berlim, realizada entre 19 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885. Curiosamente,  foi proposta por Portugal. Participaram Grã-Bretanha, Bélgica, Dinamarca, Holanda, França, Espanha, Estados Unidos, Itália, Suécia, Áustria-Hungria, Império Otomano, Alemanha e Portugal.

[2] Na verdade, os negros exterminados em África eram considerados seres inferiores aos brancos pela maioria dos colonizadores da época.

[3] Os casos mais evidentes são os de Richard Nixon (Guerra do Vietnam) e George W. Bush (Guerra do Iraque).

[4] A Conferência de Paz de Paris decorreu durante cerca de um ano, entre janeiro de 1919 e janeiro de 1920.

[5] As ideias de Wilson foram anunciadas pela primeira vez ao Congresso dos Estados Unidos num discurso realizado em 8 de janeiro de 1918. Esse discurso ficou célebre e conhecido pelo discurso dos “quatorze pontos”. Ver em http://pt.wikipedia.org/wiki/Quatorze_Pontos. Apesar das boas intenções de Wilson, há (e houve, claro) quem ponha em causa a aplicação do conceito de “estado-nação”, sobretudo porque contribuiu para o aumento dos problemas, relativamente aos impérios tradicionais.

[6] Um livro interessante sobre esta matéria é “Impérios em Guerra: 1911-1923”, org. de Robert Gerwarth e Erez Manela, Editora D. Quixote, Lisboa, 2014.

[7] Como é evidente, os americanos são também muito criticados por intervirem militarmente na defesa de seus interesses económicos. Mas, tal como o mundo está organizado hoje – e convém dizer que essa organização deve muito aos EUA – essas intervenções arbitrárias são cada vez mais difíceis, dado que são objecto de escrutínio por parte da comunidade internacional. e também da imprensa mundial, incluindo a própria imprensa (livre) norte-americana.

[8] Foi depois do 11 de setembro que John Perkins, um auto-intitulado “pistoleiro económico” (economic hit man) americano escreveu o seu polémico livro Confessions Of An Economic Hit Man, publicado em 2004. Perkins relata os episódios vividos enquanto consultor da empresa norte-americana Main, junto de alguns governantes de países em desenvolvimento. O papel dessas empresas era o de facilitar o empréstimo de dinheiro para infraestruturas, o qual mais tarde retornaria, naturalmente, aos EUA. Caso não fossem aceites as condições propostas, usava-se a força, ora assassinando esses líderes, ora, em último recurso, intervindo militarmente. Como seria de esperar, o livro é muito polémico, e Perkins não apresentou qualquer documento que envolva o governo americano. Esse facto é realçado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, que rejeita todas as acusações e afirma que o livro de Perkins é “pura ficção”. A propósito duma edição desta obra, em 2006, no Reino Unido, ver aqui um excelente artigo de Gary Youngue, no The Guardian.

[9] De facto, os membros dos partidos marxistas/leninistas orgulham-se de pensarem todos da mesma maneira e de eclipsarem a sua individualidade no coletivo superior do Partido. Sobre este tema “individualismo/coletivismo”, ver artigo deste blog, https://ilovealfama.com/2012/10/19/por-que-deixei-de-ser-marxista/.

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