O Tratado Lógico-Filosófico

Wittgenstein
É provável que a popularidade de Wittgenstein se deva sobretudo à sua biografia.

As obras  de Wittgenstein aqui analisadas (Tratado Lógico-Filosófico e Investigações Filosóficas) foram editadas, num único livro pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 1987[1], e basearam-se em edições inglesas de 1961 (Tratado Lógico-Filosófico) e 1983 (Investigações Filosóficas), embora os respetivos textos tenham sido escritos muito antes: o primeiro no decorrer da Primeira Guerra Mundial e o segundo entre 1936 e 1949. Muitos consideram que esses textos correspondem a dois períodos distintos, que apelidaram de “Primeiro Wittgenstein” e “Segundo Wittgenstein”. Isto faz jus ao que o próprio, em 1945, afirmou: “Há quatro anos tive ocasião de voltar a ler o meu primeiro livro (Tractatus Logico-Philosophicus) e de explicar as suas teses. De súbito, pareceu-me que devia publicar conjuntamente a minha velha com a minha nova maneira de pensar: que esta só podia ser verdadeiramente iluminada pelo contraste e contra o campo de fundo daquela. Desde que há 16 anos comecei de novo a ocupar-me de Filosofia, tive que reconhecer erros graves no que escrevi no meu primeiro livro”[2].

O próprio Wittgenstein reconhece, portanto, que não existe unidade na sua obra. Não devemos criticá-lo por isso, antes pelo contrário, mas algo mais estranho, paradoxal mesmo, ocorre quando ele anuncia no próprio Tractatus: “As minhas proposições são elucidativas pelo facto de que aquele que as compreende as reconhece afinal como falhas de sentido”[3]. Sim, Wittgenstein considera as proposições da Filosofia “sem sentido”, incluindo, coerentemente, as suas. Convém, aqui, esclarecer que Wittgenstein adotou a tríplice distinção feita por Bertrand Russell[4] entre enunciados verdadeiros, falsos e sem sentido ou “insignificativos”[5]. Assim, numa tentativa (levada a cabo muito antes, e com muito maior sucesso, por Kant) de demarcar o senso do contra-senso, o campo da experiência do campo da especulação, a ciência da metafísica, ele vai considerar que apenas nas ciências da natureza se pode afirmar que uma proposição é verdadeira ou falsa; a filosofia, pelo contrário, não produzirá proposições verdadeiras ou falsas, o seu trabalho “consiste essencialmente em elucidações” e no “esclarecimento de proposições”[6]. A filosofia, portanto, só produz proposições sem sentido.

O que terá levado Wittgenstein a esta conclusão? Teria ele noção de que, de acordo com a sua teoria, muitas das proposições do Tratactus teriam de ser consideradas “sem sentido”? (Ver nota 4). Tendo em conta o que transcrevemos acima sobre o que ele escreveu no Prólogo às Investigações Filosóficas, é bem possível que sim, que tivesse noção dos “erros graves” do Tratactus. Parece-nos que, nesta obra, Wittgenstein chegou à conclusão de que a melhor forma (talvez a única) de delimitar a ciência da metafísica é através da lógica da linguagem. Uma linguagem rigorosa que elimine a ambiguidade. Com isto, porém, Wittgenstein obteve um resultado inesperado e paradoxal: não conseguiu alcançar esse tipo de linguagem, mas abriu caminho (na verdade, levou-o mais além)[7] para um novo tipo de filosofia, cujo objeto se reporta à busca de uma metalinguagem – a “ciência” dos símbolos, das palavras, e de o que está por detrás delas – aquilo que Popper designou por “essencialismo”. E pouco importa que Wittgenstein tenha reconhecido, anos depois, erros na sua “teoria”[8] – o séquito manteve-se até hoje[9].

É, pois, bastante curioso que, ao pretender proteger as ciências naturais da especulação filosófica, Wittgenstein acabasse por introduzir nas mesmas uma discussão sobre a linguagem – algo a que nunca se dedicou, nem dedica, nenhum verdadeiro cientista. Os desafios da ciência não se prendem de forma nenhuma com a linguagem, mas sim com problemas reais e concretos que não dependem daquela. A discussão sobre a linguagem – a tentativa de rigorosamente definir os seus termos e delimitar as respetivas conotações – é estéril, não conduz a lado algum, a não ser a uma regressão infinita, pois é sempre possível (mais: é sempre necessário) definir os termos definidores de uma qualquer palavra que queiramos definir[10]. Além destes “erros graves”, a clareza do Tratactus – essa sim, uma característica verdadeiramente importante de qualquer linguagem – deixa muito a desejar.

Clareza que também está arredada das Investigações Filosóficas. Se, no Tractatus, Wittgenstein chega a algumas conclusões (mesmo que erradas), nas Investigações Filosóficas não chega a qualquer conclusão, limitando-se a emitir pensamentos, opiniões e observações, em doses homeopáticas, sobretudo de caráter psicológico. Esta fragmentação[11] é assumida por Wittgenstein logo no Prólogo quando diz: “Depois de diversas tentativas mal sucedidas para soldar os meus resultados num tal todo, compreendi que nunca conseguiria fazê-lo”[12]. Isto não ajuda à clareza do texto. É impossível seguir uma linha de pensamento coerente porque, pura e simplesmente, ela não existe. Wittgenstein perde-se em introspeções, como quem toma apontamento dos pensamentos que a cada dia lhe afloram ao espírito. Lamentavelmente, as suas elucubrações não conduzem a qualquer avanço conhecido, seja em que área do conhecimento for.

Não conseguimos discernir, como já dissemos, um fio condutor nas ideias expressas por Wittgenstein. Resta-nos dizer que, pelo menos, apreciamos a sua sinceridade. Talvez algum do fascínio que se nota à sua volta resida nas sinceridade e simplicidade, mesmo numa certa infantilidade, que parece ter mantido até o fim[13]. Pensamos que, de certa forma, as últimas palavras que Wittgenstein usou no Prólogo às Investigações Filosóficas ilustram bem essa característica sincera e quase inocente da sua personalidade: “É com sentimentos duvidosos que trago a público as minhas observações. Não é impossível que seja o destino deste trabalho, na sua escassez e nas trevas desta época, lançar luz num cérebro ou noutro; mas, claro, não é provável. Gostaria de ter escrito um bom livro. Não aconteceu assim e já passou o tempo em que eu poderia melhorá-lo”[14].

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Notas:

[1] Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico e Investigações Filosóficas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1987.

[2] Ob. cit., p. 166 (Prólogo às Investigações Filosóficas – Parte I).

[3] Ob. cit., p. 142.

[4] Russell que escreve na Introdução ao Tratactus: “As coisas que têm de ser ditas, para conduzir o leitor a compreender a teoria do senhor Wittgenstein, são todas elas coisas que a própria teoria condena como sem-sentido” (Ob. cit., p. 7). Diga-se de passagem que Wittgenstein não gostava muito da Introdução de Russell e que este não pensava em autorizar a sua republicação em 1961, permitindo-a apenas após longa insistência do editor.

[5] Um dos principais críticos desta tríplice distinção (e de Wittgenstein) é Karl Popper. Diz-nos ele: “É importante notar que o emprego dos termos “sem significado” ou “sem sentido” é, em parte, concordante com o uso comum, mas é muito mais nítido, pois muitas vezes, no uso comum, enunciados reais são classificados como “sem significado”, se, por exemplo, forem “absurdos”, isto é auto-contraditórios ou obviamente falsos. Assim, um enunciado que afirme que determinado corpo físico está ao mesmo tempo em dois lugares distintos não é um enunciado sem significado, mas um enunciado falso, ou que contradiz o emprego da palavra “corpo” na física clássica; similarmente, um enunciado asseverando que um electrão tem um lugar e um impulso precisos não é destituído de sentido – como alguns físicos asseveraram e alguns filósofos repetiram – mas simplesmente contradiz a física moderna” (in A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Vol. II, Editorial Fragmentos, Lisboa, 1993, p.286).

[6] Ob. cit., p. 62.

[7] Este caminho iniciou-se com Platão e Aristóteles, sobretudo com este último – que considerava como métodos fundamentais da obtenção de conhecimento a demonstração (ou prova) e a definição (daqui saiu a doutrina perversa  da adoração das palavras).

[8] Colocámos o termo “teoria” entre aspas porque as ideias de Wittgenstein não constituem, tanto em nossa opinião como na dele, um todo coerente.

[9] São variadíssimos os filósofos influenciados por Wittgenstein, desde Gilbert Ryle a Giorgio Agamben (ver artigo sobre ele aqui), passando por Kai Nielsen e John Searl, entre muitos, muitos outros.

[10] Popper dá-nos um exemplo concreto: “Poder-se-á dizer que o que se tem em mente, ao pedir uma definição, é a eliminação de ambiguidades tantas vezes relacionadas com palavras como “democracia”, “liberdade”, “dever”, “religião”, etc.; que é claramente impossível definir todos os termos, mas é possível definir alguns desses termos mais perigosos, e não ir além disso; e que os termos definidores têm apenas de ser aceites, isto é, que devemos deter-nos depois de avançarmos um passo ou dois, a fim de evitar uma regressão infinita. Esta defesa é, porém, indefensável. Admite-se que os termos mencionados sejam usados incorretamente. Mas nego que a tentativa de os definir possa melhorar as coisas. Só pode torná-las piores (…) De facto, visto que não poderíamos exigir que todos os termos definidores fossem por sua vez definidos, um político ou um filósofo hábil poderia facilmente satisfazer a exigência de definição. Se lhe perguntassem o que entendia por “democracia”, por exemplo, poderia dizer: “o governo da vontade geral” ou “o governo do espírito do povo”; e, como acabara de dar uma definição, satisfazendo assim os mais elevados padrões de precisão, ninguém ousaria criticá-lo mais. E, na verdade, como poderia ser criticado se a exigência de que “governo”, ou “povo” ou “vontade” ou “espírito” fossem por sua vez definidos nos colocaria no caminho e uma regressão infinita, de modo que qualquer um hesitaria em fazê-la? Mas, se apesar de tudo fosse feita, então poderia ser igualmente satisfeita sem dificuldade. Por outro lado, a questão de saber se a definição era correta, ou verdadeira, só poderia levar a uma controvérsia, fazia de sentido, sobre palavras” (in  A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Vol. II, Editorial Fragmentos, Lisboa, 1993, p. 24).

[11] Ambas as obras (quer o Tractatus, quer as Investigaçõs Filosóficas) são divididas apenas em parágrafos numerados, tal como as suras do Alcorão ou os versículos dos livros da Bíblia, sem recurso às divisões tradicionais, como sejam índice, capítulos ou secções.

[12] Ob. cit., p. 165.

[13] Fascínio que também pode ser justificado por outros aspetos da sua biografia – como a suposta homossexualidade, a participação nas duas guerras mundiais, o despojamento e a irascibilidade (manifestada, por exemplo, no episódio do atiçador, com Popper) – que não nos compete aqui desenvolver.

[14] Ob. cit., p. 167.


foto retirada de http://www.bbc.co.uk

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A nossa edição:

“Tratado Lógico-Filosófico e Investigações Filosóficas”, Ludwig Wittgenstein, Fundação Calouste Gulbenkian, 1ª edição, Lisboa, 1987.