A Construção de Jesus

Tolentino (1)
O quadro Le Repas de Simon, de Philippe Lejeune, serviu para ilustrar a capa deste excelente livro  de Tolentino Mendonça.

Conhecíamos Tolentino Mendonça das crónicas do “Expresso”, que lemos, semana a semana, religiosamente; agora conhecemo-lo também por este magnífico livro. Trata-se de uma versão abreviada e adaptada da sua tese de doutoramento em Teologia Bíblica, defendida em 2004[1]. Foi mantido o título – A Construção de Jesus – e alterado o subtítulo para A Surpresa de um Retrato. Ambos são felizes, pois se adequam perfeitamente ao que podemos ler nas cerca de duzentas páginas desta obra de excelência.

A partir de um episódio do evangelho lucano, cujos protagonistas são Jesus, um fariseu de nome Simão e uma inominada pecadora, Tolentino Mendonça parte, à boleia da narrativa de Lucas, para a descoberta da (ou de uma) identidade de Jesus, a qual se mostra, de facto, surpreendente. Quanto a nós, o livro revela três aspetos essenciais da vida de Cristo: a condição de Messias; o apego aos pecadores e o poder de perdoá-los; e o anúncio da salvação através da fé. Transcrevamos o episódio em causa narrado por Lucas, intitulado O perdão gera o amor (Lc. 7, 36-50).

Certo fariseu convidou Jesus para uma refeição em casa. Jesus entrou em casa do fariseu e pôs-Se à mesa. Apareceu então certa mulher, conhecida na cidade como pecadora. Ela, sabendo que Jesus estava à mesa na casa do fariseu, levou um frasco de alabastro com perfume. A mulher colocou-se por detrás, chorando aos pés de Jesus; com as lágrimas começou a banhar-Lhe os pés. Em seguida, enxugava-os com os cabelos, cobria-os de beijos e ungia-os com perfume. Vendo isso, o fariseu que havia convidado Jesus pensou: “Se este homem fosse mesmo um profeta, saberia que tipo de mulher Lhe está a tocar, porque é pecadora”. Jesus disse então ao fariseu: “Simão, tenho uma coisa a dizer-te”. Simão respondeu: “Fala, Mestre”. “Certo credor tinha dois devedores. Um devia-lhe quinhentas moedas de prata e o outro devia-lhe cinquenta. Como não tivessem com que pagar, o homem perdoou aos dois. Qual deles o amará mais?” Simão respondeu: “Acho que é aquele a quem ele perdoou mais”. Jesus disse-lhe: “Julgaste bem”. Então Jesus voltou-Se para a mulher e disse a Simão: “Vês esta mulher? Quando entrei em tua casa, não Me ofereceste água para lavar os pés; ela, porém, banhou-Me os pés com lágrimas e enxugou-os com os cabelos. Não Me deste o beijo de saudação; ela, porém, desde que entrei, não deixou de Me beijar os pés. Não derramaste óleo na minha cabeça; ela, porém, ungiu-Me os pés com perfume. Por esse razão Eu te declaro: os muitos pecados que ela cometeu estão perdoados, porque demonstrou muito amor. Aquele a quem foi perdoado pouco, demonstra pouco amor”. E Jesus disse à mulher, “Os teus pecados estão perdoados”. Então os convidados começaram a pensar: “Quem é este que até perdoa pecados?” Mas Jesus disse à mulher: “Salvou-te a tua fé. Vai em paz!

O que é verdadeiramente extraordinário, em muitos autores antigos, é a sua invulgar capacidade narrativa. Aqui deixamos este belíssimo texto no Dia de Páscoa do ano 2017[2].


Notas:

[1] o título da tese é “A Construção de Jesus. Uma leitura narrativa de Lc. 7,36-50”. Foi publicada na coleção de teses da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa e na editora Assírio & Alvim.

[2] De acordo com Tolentino Mendonça, Shusaku Endo (1923-1996), um romancista japonês, autor do Silêncio, um livro que deu origem ao recente filme homónimo de Martin Scorsese, teve influência sobre a abordagem de Tolentino a este texto lucano, tal como o próprio nos diz na “Abertura”: “Devo ter ouvido antes este episódio dezenas de vezes, mas o que me fez caminhar para ele intrigado, perfeitamente movido pelo espanto, foi um comentário do romancista japonês Shusaku Endo, no seu livro Uma Vida de Jesus (…). Ora, o que Shusaku Endo defende é que a peripécia da pecadora intrusa, que faz tudo para tocar naquele hóspede, é um momento central do Evangelho de Lucas, mais eficaz na transmissão de Jesus do que muitos outros, inclusive do que as histórias de milagres, porque dá de Jesus, precisamente pelo efeito de realidade, uma imagem viva, surpreendente e real. Confesso que tive um sobressalto e senti que tinha de compreender melhor o que o romancista sugeria.” E entretanto também nós fizemos nos últimos tempos um trajeto que se aproxima dos autores referidos por Tolentino e até a ele próprio. Da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto seguimos para o volume, publicado pela Universidade do Minho, intitulado Fernão Mendes Pinto e a Projeção de Portugal no Mundo, e para um dos artigos nele publicados – Os Caminhos Malditos da Projecção de Portugal no Mundo: O Caso de Cristóvão Ferreira, de M. Augusta Lima Cruz (aqui). Depois continuámos para o Silêncio, de Shusaku Endo, antes de chegarmos a esta Construção de Jesus, de José Tolentino Mendonça, que nos conduziu a uma revisitação da Bíblia. Caminhos como este – caminhos sem fim que, algures, sempre acabam por se cruzar com outros – tornam a vida mais rica, doce e surpreendente.

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A nossa edição:

“A Construção de Jesus, a Surpresa de um Retrato”, José Tolentino Mendonça, Editora Paulinas, 2ª edição, Prior Velho, 2015.

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