Aristides de Sousa Mendes

Aristides de Sousa Mendes com mulher e seus primeiros seis filhos. 1917.
A família Sousa Mendes em 1917.

Nunca é de mais recordar Aristides de Sousa Mendes: hoje, particularmente, quando passam 70 anos sobre o fim do pesadelo de Auschwitz.

Sousa Mendes salvou mais de 30.000 judeus. Oskar Schindler, o alemão celebrizado pelo filme de Spielberg, “A Lista de Schindler”, salvou 1.200.

Não nos esqueçamos nunca da frase de Aristides: “salvar uma vida é como salvar o mundo inteiro”.

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Foto: http://www.sousamendes.org/prog/banque-photos.php

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A Ilha Dourada

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A Ilha Dourada andava nas bocas do mundo. Para alcançá-la era necessário atravessar o longuíssimo e escarpado estreito de Überfluss, quase sempre assolado por ventos terríveis e correntes cruzadas que atiravam as embarcações contra as extremidades afiadas dos grandes rochedos. Para lá dos problemas com o temível estreito, os capitães dos navios, que sempre pareciam extremamente solidários em terra firme, transformavam-se durante as viagens nos piores piratas dos oceanos, e muitos marinheiros eram postos a ferros ou mortos – e outros, ainda, simplesmente atirados borda fora para servirem de alimento aos tubarões. A maioria dos navios afundava e não havia notícia de algum ter alcançado a célebre ilha, desde que o comandante Rizzo Artington dela dera conta.

A notícia que se espalhou foi a de que ali vivia um povo pacífico, próspero e feliz; não havia patrões, nem proprietários, nem capatazes; e também não havia conhecimento do dinheiro. O clima era generoso, a água puríssima, a terra fértil – e todos viviam em comunhão com a natureza-mãe. Além disso, o mais fantástico é que não existia, no seio da sociedade, lugar para o egoísmo, a avareza ou a simples ambição. Tudo o que cada um dos seus habitantes desejava era ser mais um, uma peça única e igual, do todo harmonioso e feliz.

O fascínio que a ilha provocava era enorme – embora muitos duvidassem da sua existência – e não diminuiu após a morte de Artington. Fizeram-se planos para uma viagem vitoriosa sobre ventos e correntes e marés, e a discussão sobre quem comandaria a armada foi longa e truculenta. Finalmente, um capitão se impôs como o mais capaz de conduzir uma armada de 140 navios. Seu nome era Joseph Hoffen – e o entusiasmo que a sua presença provocava era contagiante. A esquadra partiu num dia luminoso, sob um céu todo azul, e os primeiros dias de viagem foram de calmaria e paz. Na frente seguia o magnífico navio-almirante do capitão Hoffen, com 300 ocupantes, entre os quais os seus principais assessores e conselheiros; vinte navios fortemente armados e comandados por leais servidores seguiam logo atrás – entre o navio-almirante e os demais elementos do comboio.

Dezassete dias após a partida, atingiram o estreito de Überfluss. Um vento forte e endiabrado atingiu-os pela proa, como se o Adamastor soprasse do lado de lá da fresta, entre os rochedos gigantes. O ar tornou-se pesado como chumbo; do céu tombavam uma chuva cortante e o som de pedra rachando sob raios de fogo; as nuvens carregadas estavam tão perto que parecia, a todo o instante, irem despenhar-se sobre as embarcações. As águas estavam enlouquecidas, correndo em todos os sentidos, provocando oscilações inesperadas e bruscas nos navios, ameaçando quebrá-los ao meio; vinte foram atirados contra os rochedos sem que nenhum tripulante sobrevivesse; os restantes conseguiram aguentar até o dia seguinte, quando, subitamente, o vento amainou. Continuaram, muito lentamente, durante dez dias. O vento agora quase parara e os navios também; um bando de atobás acompanhava-os, curioso; o mar era um espelho onde se refletia a linha azul do céu, cortando a mancha escura das escarpas rochosas. Assim prosseguiram por 30 dias, avançando 120 milhas.

Entretanto, a água potável começou a escassear e a comida também. Era impossível escalar aquelas escarpas para procurar fosse o que fosse; começaram a ocorrer as primeiras mortes por doenças e má nutrição. Hoffen ordenou que os víveres de vinte embarcações fossem apreendidos, em nome da sobrevivência das restantes – e afundou-as em seguida com todos os que estavam a bordo.

Dias depois, chegaram a um ponto onde a escarpa a bombordo se abria num largo semicírculo e onde o sol entrava como o foco de uma lanterna colossal. As margens ali eram mais acessíveis, mas a vegetação era pobre, escassa e de pequeno porte. Hoffen mandou executar os tripulantes de mais trinta navios, lançou-os ao mar e aproveitou a madeira para construir as primeiras habitações daquele lugar, junto a uma nascente de água que haviam descoberto. Alguns dos seus mais próximos colaboradores começaram a discordar daquelas decisões, sobretudo da de ficar por ali, uma vez que o objetivo era chegar à Ilha Dourada. Hoffen prometeu que não se desviaria jamais desse caminho, mas asseverou que aquela era a única forma de prosseguirem. E mandou executar os críticos.

Depois deu ordens para que fossem abatidos mais 20 navios. Uma enorme paliçada foi construída em torno das habitações, e torres de vigia erguidas em pontos estratégicos. No interior viviam Hoffen e seus colaboradores mais diretos e do lado de fora, abandonados à sua sorte, os sobreviventes. A maioria destes morreu de fome e alguns foram executados por se revoltarem ou tentarem fugir. Entre eles, já ninguém falava da Ilha Dourada.

Os anos passaram e um dia Joseph Hoffen morreu de uma apoplexia. Os que ainda permaneciam vivos eram tão poucos que cabiam num único navio. Decidiram, então, regressar ao continente.

À chegada, a surpresa foi enorme para muitos, mas não para aqueles que nunca acreditaram que fosse possível chegar à ilha. A discussão reacendeu-se intensamente. Outras frotas – embora bem menores que a de Hoffen, e até navios isolados – partiram. Diz-se que uma delas atingiu uma pequena ilha onde as pessoas tentaram viver de forma semelhante ao que pensavam ser a vida na Ilha Dourada. Mas não foi conseguido um acordo entre todos, e acabaram por ali ficar, isolados do mundo, longe da civilização, da paz e da prosperidade prometidas.

Hoje, já quase não partem navios em busca da ilha paradisíaca: ninguém parece ter argumentos, carisma ou força para angariar uma frota adequada ao empreendimento. Ainda assim, muitos almejam alcançá-la, acreditando na versão de Rizzo Artington.

Para a maioria, porém, a Ilha Dourada é apenas um mito e, na realidade, nunca existiu.

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Raquel e o povo

Raquel Varela ionline

Ao que parece, Raquel Varela é uma figura em voga neste triste Portugal de hoje (e de quase sempre). Num brilhante artigo publicado anteontem no seu blogue, ela fala-nos do povo português. O bom e o mau. Já ontem, no programa “Barca do Inferno”, que não costumo perder, Varela brindou-nos com mais uma de suas afirmações bombásticas. Disse ela, que o voto para as legislativas não é democrático; o que é democrático é o voto de braço no ar para as Comissões de Trabalhadores.
Nada disto é novo, e não me surpreende que alguma rapaziada na casa dos vinte anos simpatize com Raquel Varela. Mas espanta-me que gente da minha geração, com experiência de vida, possa suportar afirmações deste calibre. Afirmações que incluem adjetivos como cobarde para classificar o povo do 24 de Abril de 1974[1]. Afirmações que revelam um espírito arrogante e profundamente reacionário e que, sinceramente, são tão ofensivas (e estúpidas), que chega a ser surpreendente que não provoquem maior riso ou indignação. Varela despreza com asco quem não pensa como ela (rima e é verdade). Varela, que não era nascida ainda em 25 de Abril de 74, estudou, leu e pesquisou umas coisas: e convenceu-se de que descobriu a verdade. Isso confere-lhe a legitimidade de produzir os juízos morais, simplistas, tão típicos dos extremistas fanáticos, e que culminam, sempre, numa divisão entre bons e maus. Trata-se, é claro, do mais puro e velho maniqueísmo – tão velho quanto o povo animalesco e deformado que Varela detesta e que, se pudesse, não hesitaria em extirpar.

Como extirparia, sem dúvida, o que é piroso, suburbano, fabricado por alfaiates de segunda e o que é esculpido com falos desmesurados… deformando o povo e os seus (dela, evidentemente) heróis. Não é, de facto, difícil imaginar esta educadora da classe operária como líder de um Movimento da Mão Erguida. (Desde, é claro, que a mão se mantivesse longe dela). É, aliás, estarrecedor o papel de Varela enquanto garante dos íntegros valores socialistas e operários, como se pode observar no artigo Urge “Guilhotinar” os Traidores[2], onde apresenta uma listagem dos ditos cujos – traidores (fura-greves). Como futura (e, felizmente, apenas hipotética) líder do proletariado no poder, Varela seria precisa e coerente na sua divisão do mundo entre maus e bons – como demonstrou no programa “Prós & Contras”, em 20 de maio de 2013, investindo contra um jovem de 16 anos, Martim Neves, que acabara de lançar a sua própria marca de roupa, um crime, e mais uma expressão do mundo mau.

É esta ilustre representante da “esquerda caviar”, Varela, a própria, que gosta de jantar em restaurantes caros e mostrar as fotos (que retirou depois da polémica gerada) no Facebook, aonde não vão certamente os seus queridos operários do braço no ar, quem vem dando algum brilho a este Portugal acinzentado; é ela, ainda, com sua verve, quem nos dá a receita adequada para sairmos da crise em que nos encontramos – não negociando com os credores, não pagando o que devemos, e mantendo o total controlo público sobre o setor bancário e financeiro para evitar a fuga de capitais – uma receita mais que infalível para sairmos diretamente de uma situação difícil para a completa miséria, num contraste absoluto e cómico com a caracterização de Varela para “socialismo”: liberdade e abundância; e é ela, finalmente, quem acha que o Estado tem obrigação de cuidar do povo e garantir que este tenha acesso ao Estado Social que sustenta, aliás, em impostos (saúde, educação, segurança social), alimentação e roupas, e todo o kit de sobrevivência acima do mínimo, porque a produtividade hoje permite isso, permite o decente; e cuidar, claro, que as pessoas vivem em lugares dignos e confortáveis. Confuso? Sim e não, apenas um tanto mal escrito, mas ainda assim bastante claro: se o dinheiro não chegar para tudo, a gente pede emprestado de novo e depois não paga. Ou talvez nem precisemos, e consigamos o milagre de sermos auto-sustentáveis, e vivermos todos dignos e confortáveis, mesmo aqueles que não queiram…

Outros (alguns menos fanáticos e lunáticos que Raquel Varela, pelo menos aparentemente) fizeram promessas deste tipo, as quais resultaram, quando colocadas em prática pelo Poder, em segregação, fome e miséria, quando não em perseguição, tortura e morte. Mas é claro que essas tentativas de criar o paraíso falharam porque nenhuma delas era a verdadeira. Porque, como sempre justificam os extremistas, houve falhas humanas ou não estavam criadas as condições objetivas. Em Portugal, particularmente, não tivemos ainda a oportunidade de ver a classe operária no poder. Bem vistas as coisas, isso é perfeitamente compreensível, até porque, ao contrário do que acontece hoje, o povo bom (e mau) doutro tempo não teve a felicidade de ser contemporâneo de Varela.

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[1] http://raquelcardeiravarela.wordpress.com/2015/01/04/o-bom-e-o-mau-povo-portugues/

[2] (http://5dias.net/2012/01/19/urge-guilhotinar-os-traidores/

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foto: i online.

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