Patria y Vida

Este vídeo beneficia de letra, música, interpretações e realização excecionais.

Em 1964, no final de um discurso célebre nas Nações Unidas, Che Guevara proferiu uma frase que se tornaria até hoje a palavra de ordem do regime cubano: “Patria o Muerte!” Cinquenta e sete anos depois, no início de 2021, um grupo de artistas cubanos lançou uma canção, cujo título não poderia afastar-se mais daquela célebre frase de Che: “Patria y Vida!”

O vídeo desta canção, menos de duas semanas após o seu lançamento, tem já mais de dois milhões e meio de visualizações no youtube. E, claro, a reação em Cuba foi imediata. Os órgãos do regime apressaram-se a denegrir o tema. Na televisão, o jovem apresentador Lázaro Manuel Alonso deixou claro que “Patria y Vida” não é uma expressão original, fora já usada por Fidel em 23 de dezembro de 1999, perante uma plateia estudantil. Por seu turno, o governo cubano promoveu uma campanha denominada “Morrer pela Pátria é Viver”, apelando aos cubanos para que cantassem e aplaudissem o seu hino nacional no dia 18 de fevereiro às 21:00, como resposta a “Patria y Vida”, que membros do governo classificaram de “trapaceira e cobarde” e os seus autores de “ratos” e “mercenários”1.

Tudo isso não impediu que este tema se tornasse viral em Cuba. Os depoimentos de vários jovens entrevistados em Havana pela agência Reuters, bem como inúmeros vídeos publicados nas redes sociais, provam-no. “Patria y Vida” transformou-se num símbolo da resistência ao regime, e o vídeo da canção foi profusamente divulgado nas redes sociais. A checa Dita Charanzová, vice-presidente do Parlamento Europeu, publicou-o na sua conta do Twitter, acompanhado das seguintes palavras: “Para que todo o mundo tome consciência da realidade cubana”.

Dita Charanzová é uma cidadã do mundo livre, atenta ao que se passa no mundo oprimido. No entanto, muitos dos nossos concidadãos ainda olham com simpatia ou indulgência para a ditadura cubana, talvez por a considerarem mais suave que outras ditaduras. Che Guevara e Fidel Castro são vistos como heróis de uma revolução que libertou o povo do jugo de Fulgêncio Batista, no primeiro dia de 1959. Mas o que talvez não saibam é que rapidamente Fidel Castro passou a governar baseando-se nos “ódio, poder e dinheiro”, tal como nos diz a insuspeita neurocirurgiã cubana Hilda Molina, que conviveu durante muitos anos com o próprio Fidel (foi pedida em casamento por ele). Hilda considera que Fidel era um “psicopata”2. De resto, os testemunhos sobre o ditador são inúmeros e estão acessíveis, basta procurá-los.

Mas não é suficiente ir de férias para Varadero, falar com os empregados dos hotéis, visitar os locais preparados (muitas vezes exclusivos) para os turistas e daí extrair um retrato de Cuba. É preciso contatar os cubanos comuns, aqueles que circulam pelas ruas e habitam nas casas degradadas de Havana; falar com eles, ganhar a sua confiança, perceber como vivem e, sobretudo, saber o que pensam, para se ter uma ideia mais precisa do que se passa no país.

(Há cinco anos e meio estivemos em Cuba. O relato sobre essa visita foi publicado neste blogue e pode ser lido aqui: https://ilovealfama.com/2016/03/01/havana-cuba/.)

Finalmente, o que importa perceber é que em decorrência de qualquer ditadura revolucionária em nome do povo há sempre um contraste abismal entre o ditador e esse mesmo povo: o primeiro vive sempre no luxo e na sumptuosidade; o segundo vive sempre na opressão e na miséria. Isto é válido para todas as ditaduras revolucionárias e, deste ponto de vista, não há gradação entre elas; não há – nunca houve até hoje na história humana – ditaduras suaves.

Os cubanos merecem a Liberdade.

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1 https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-56135900?fbclid=IwAR03nbvrpA-ae59hdFy90cRPa-8SGk3u1GBuBn77eHPWGkYdbcKSbyfoXyg

2 Ver entrevista a Hilda Molina aqui: https://www.youtube.com/watch?v=WbXVJ43RSQs&t=395s

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Havana, Cuba

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O centro da cidade visto da outra margem da baía de Havana.

Normalmente, a parte mais difícil de uma viagem a Cuba passa-se no aeroporto. Vencida a burocracia paranoica, o trajeto que liga o aeroporto a Havana – através de vias bordadas por edifícios descoloridos e gastos, quase arruinados – faz-se com relativa facilidade. Duas horas após o avião tocar a pista, é-se recompensado. Chegamos à capital de um país mítico – Cuba.

A viagem de táxi entre o aeroporto e o centro de Havana custa normalmente de 20 a 25 CUC (cada CUC vale cerca de um euro), os novos pesos cubanos. É possível trocar dólares ou euros pela moeda cubana, mas pode ser um pouco demorado, pelo que o melhor é fazer levantamentos nos poucos ATM da  cidade, mas atenção porque nem todos os cartões se aceitam aqui. Os preços do alojamento em Havana são muito variáveis, desde os 25 CUC de uma casa particular aos 180, 200, ou mesmo mais, de alguns hotéis históricos. As comidas e as bebidas são relativamente baratas, embora nos locais mais turísticos se inflacionem os preços.

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Na Bodeguita del Medio.

Vale a pena visitar demoradamente o Centro da cidade: os edifícios históricos; os cafés simbólicos, como Floridita ou Bodeguita del Medio; os restaurantes variados, onde a comida vem quase sempre acompanhada por uma canción, um bolero ou um cha cha chá; as lojas onde se vendem os puros cubanos (não os comprar na rua porque são invariavelmente falsos); as ruas, onde se podem admirar as belas e coloridas carroçarias dos carros antigos; e, entre outros motivos interessantes, os diversos museus de Havana.

Uma visita imperdível é a que é possível fazer à galeria Ojo del Ciclón, situada em Esq. Villegas, 501, no Centro Histórico. Aqui trabalha o artista plástico Leo D’ Lazaro, filho de um dos escultores responsáveis pela construção do mausoléu a Che, na cidade de Santa Clara. São inúmeros e fantásticos os trabalhos de Leo – pinturas, esculturas e fotografias – as quais se podem admirar e comprar. (Há também algumas obras à venda do seu falecido pai). A própria galeria é uma obra de arte – uma casa de habitação, com as respetivas divisões, incluindo cozinha e casa de banho, decorada com as obras de Leo e materiais que denotam o bom gosto de um artista excecional. Por vezes, há agrupamentos musicais atuando e outros encontros de artistas locais. Leo D’ Lázaro quase sempre está trabalhando por lá, mas, esteja ou não, uma visita ao Ojo del Ciclón é algo que não se pode deixar de fazer em Havana.

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El Ojo del Ciclón.

Como seria de esperar, o turismo constitui uma importante fonte de receita, num país onde falta quase tudo (vimos, por exemplo, camiões-tanque no centro da cidade a fornecer água à população), mas a vida do turista não é muito facilitada. Quase todos procuram tirar alguma vantagem dos visitantes, e até os pequenos mapas da cidade são pagos. A obsessão com a segurança chega a ser incómoda: uma simples travessia de uma margem à outra da baía de Havana (que custa apenas dez centavos) implica a revista de sacos e mochilas de todos os passageiros, por parte dos agentes estatais. A presença do omnipotente Estado é, aliás, visível por todo o lado: nos símbolos revolucionários; na propaganda e palavras de ordem; nas instalações militares.

A apologia da luta armada e da revolução está espalhada, em cartazes e murais, pela cidade e pelas cabeças dos mais velhos, que quase sempre se referem com nostalgia aos heróis revolucionários, Che e Fidel. Tudo muda, porém, quando falamos com os jovens.

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A propaganda revolucionária está espalhada pela cidade.

“Gosto muito de Havana mas quero conhecer outros lugares, aqui não tenho futuro”, confidenciou-nos González Pinilla, um pintor dos seus 18 anos, a quem comprámos dois quadros belíssimos, no Empedrado, junto à Catedral, logo no nosso primeiro dia na cidade. Os lápis, pincéis e tintas com que Pinilla criou estas obras não foram produzidos em Cuba; ele consegue os materiais de trabalho através de amigos ou turistas que os trazem clandestinamente do exterior.

Pouco depois, numa rua próxima dali, um distinto senhor aproximou-se e perguntou-nos se tínhamos um lápis que lhe pudéssemos oferecer. Afortunadamente havia na nossa mochila um lápis, gasto de fazer anotações e sublinhados, e, obviamente, demos-lho, pedindo desculpa por nem sequer podermos oferecer-lhe um lápis em condições. Ele agradeceu por aquele pedacinho de madeira com um fio de grafite por dentro, disse que era para o filho pequeno que andava na escola… Ficámos estupefactos.

No dia seguinte, encontrámos Olmedo, um jovem aparentemente um pouco mais velho que Pinilla, mas seguramente sem ter chegado ainda aos trinta, que pescava no Malecón, na margem oposta àquela onde se situa o Castelo dos Três Reis do Morro, uma edificação construída no tempo de Filipe II, quando Portugal se encontrava sob domínio espanhol. Após uma breve troca de impressões sobre espécimes aquáticos daquela zona, a conversa alargou-se e Olmedo afirmou estar cansado da propaganda do Governo: “A guerra já passou, não adianta continuar a falar em guerra e revolução; nós, os mais jovens, queremos desenvolvimento. Precisamos urgentemente de políticos novos, com uma nova mentalidade”.

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Casablanca. Aqui nasceu Havana e neste bairro casou e morou Che Guevara. Supostamente, estes ares minimizavam os seus problemas asmáticos.

Outro jovem, cujo nome não lográmos conhecer (e mesmo que lográssemos não o divulgaríamos aqui, pois todos os nomes das pessoas que se declararam contra o regime vigente em Cuba citados neste artigo são fictícios, por razões óbvias), garantiu-nos que ele e todos os seus amigos sonham com a abertura política e o fim do velho regime. Conversámos um pouco com ele numa paragem de autocarro, aquando do nosso terceiro dia na cidade.

Já León, um cubano de 45 anos, casado e pai de três crianças, trabalha num navio de cruzeiro, onde o encontrámos e onde com ele convivemos durante oito dias. Vive em Havana com a família, mas o curso que tirou na Escola Naval permitiu-lhe embarcar, sair de Cuba, conhecer outras realidades. Durante o circuito que o navio fez nas Caraíbas ficámos a saber o que León pensa do seu próprio país: “Os cubanos já sofreram muito e perdemos demasiado tempo; pode ainda demorar um pouco mais, mas o movimento em direção à liberdade já começou e é como uma espiral, não volta para trás”.

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Jovem cubana vai ganhando uns trocos tocando para os turistas.

Estes e outros testemunhos que recolhemos em Cuba foram muito importantes para nós. Uma coisa é o que nos contam os amigos, outra coisa é o que vemos e ouvimos, diretamente, no terreno. Depois desta experiência ficámos convencidos de que Cuba será livre num futuro mais ou menos próximo. A ânsia por liberdade é quase respirável e, como diz León, uma “espiral”.

Foi com essa sensação que regressámos. A caminho do aeroporto, num táxi desconjuntado que tresandava a gasolina, o motorista, de 43 anos, confidenciou-nos, sem que lhe perguntássemos nada, que, há cinco anos, sua mãe entregara o cartão de militante ao Partido Comunista e fugira de Cuba. Ele próprio não fez o mesmo porque tem duas filhas de 13 e 14 anos, mas pensa tentá-lo em breve: “A ilha é uma prisão”.

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A Praça da Revolução.

Estes relatos chocam violentamente com o que está inscrito junto ao retrato gigantesco de Marx, sobre a fachada de um enorme edifício, na igualmente gigantesca Praça da Revolução: “Vas bien Fidel”. Talvez. Talvez Fidel vá bem. Mas Cuba, sobretudo para os jovens cubanos, vai muitíssimo mal.

Já no aeroporto, enquanto esperávamos pelo nosso voo, decidimos comprar um livro, escrito por Julio Cúbria Vichot, editado em 2014 e traduzido em várias línguas, intitulado “Breve História de Cuba – de Colombo ao século XXI”. Pensáramos ter comprado um livro de História, como aliás o título indica. Puro engano. Trata-se de mais um instrumento de propaganda do Regime, exaltando a Revolução e deplorando os “contrarrevolucionários” e “imperialistas”, numa abordagem enviesada, maniqueísta, ideológica, absolutamente contrária aos padrões de rigor e verdade que devem guiar qualquer historiador. O regime cubano vive uma mentira, que é, afinal, a sua incontestável verdade.

Deixámos a ilha com um pensamento. Haverá sempre quem lute pela liberdade, como acontece em Cuba e noutras ditaduras, mas também haverá sempre quem queira privar-nos dela, como acontece em todos os países livres. É por isso que a liberdade – o valor social mais alto para quem a ama – nunca estará garantida, precisa que cuidemos dela, que nos mantenhamos atentos a todos os perigos que corre.

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Entrada (ou saída) da baía de Havana.

ADENDA

1- Três dias depois de deixarmos Cuba, já na Cidade do Panamá, aconteceu-nos uma daquelas coincidências que por vezes ocorrem na vida de todos nós. Comprámos um jornal local, como sempre fazemos quando visitamos um país (mas que não pudemos fazer em Cuba) – La Prensa – o qual continha um artigo de opinião da autoria de Jorge Ramos (diretor de notícias da Univisión), intitulado “Cuba Libre?”. Nesse artigo, o autor critica fortemente Obama e, sobretudo, o papa Francisco, pela condescendência relativamente ao regime cubano, manifestando mesmo indignação pelo facto de Francisco se ter recusado a reunir com dissidentes e com jornalistas independentes cubanos, como é o caso de Yoani Sánchez, e por não ter feito nada quando os seguranças do Governo, em frente a seus olhos, agrediram e prenderam um dissidente que pretendia falar com ele. Jorge Ramos, que está proibido de entrar em Cuba desde 1998, quando acompanhou a visita de João Paulo II, por ter entrevistado dissidentes e jornalistas independentes, não deposita muita esperança nos esforços de Obama e do papa.

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O senhor Domingos disse que o Mojito que nos serviu foi feito com mais amor que aquele que serviu ao Lula. A Bodeguita del Medio já foi visitada por uma legião de famosos.

Afirma, no seu artigo, que a viagem de Obama a Cuba, prevista para março, será um “momento tipo Nixon”, referindo-se à visita deste presidente americano à China, em 1972. Esse momento marca o início da atual abertura económica chinesa, mas não o início da abertura política. Assim, segundo Ramos, também a próxima visita de Obama não implicará a realização de eleições livres, a restauração da liberdade de imprensa ou a libertação dos presos políticos, em Cuba. Ramos termina o artigo com as seguintes palavras: “Cuba Libre? Em qualquer bar do mundo se sabe que isso é uma mentira”. O artigo de Jorge Ramos pode ser lido na íntegra aqui. Tal como Ramos, também nós não acreditamos numa abertura do regime. A liberdade em Cuba, infelizmente, terá de ser conquistada pela pressão dos jovens cubanos, nas ruas.

2- E, já em casa casa, ficámos a saber que os Rolling Stones vão atuar gratuitamente em Cuba, alguns dias depois de Obama chegar ao país. Aposto que Pinilla, Olmedo, León e todos os jovens cubanos estão felizes com esta notícia. Talvez não seja ainda a “espiral” mas, definitivamente, algo se passa na ilha dos Castro.

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