Em Busca de um Mundo Melhor

Sócrates, Kant e Popper – uma linha filosófica claramente definível, oposta a todas as outras.

O primeiro livro que li de Karl Popper, no início dos anos 90, foi Em Busca de um Mundo Melhor1. O seu conteúdo é muito diversificado e inclui palestras, artigos, transmissões radiofónicas e até uma carta. Documentos produzidos ao longo de trinta anos. A recolha e seleção do material foi do próprio Popper2, e podemos dizer, sem grande margem de erro, com o intuito de abranger, tanto quanto possível, todas as áreas do seu pensamento.

E que áreas são essas? Bom, Popper interessou-se pelas ciências naturais, sobretudo Física, Biologia e Cosmologia3, disciplinas em que foi inovador, mas também pelas ciências sociais, particularmente pela Sociologia, campo em que produziu, além de A Pobreza do Historicismo, a obra talvez mais odiada pelos inimigos da liberdade e, para mim, o livro de não-ficção mais importante do século XX: A Sociedade Aberta e Seus Inimigos4. Na base do pensamento de Popper encontramos profundas convicções éticas, como mostrou Mariano Artigas em As Raízes Éticas da Epistemologia de Karl Popper5, sendo, por isso, notório o seu comprometimento; e, como um não-positivista, tantas vezes autodeclarado mas nem sempre atendido, Popper não desmerecia a Metafísica como fonte de possibilidades de conhecimento. Podemos ver, assim, que a sua doutrina responde cabalmente às célebres quatro perguntas de Kant6, abrangendo todas as áreas da Filosofia.

Regressemos ao livro e ao primeiro capítulo que se intitula Conhecimento e Formação da Realidade – Em Busca de um Mundo Melhor. O seu conteúdo resume-se à transcrição de uma palestra proferida em Alpabach, uma pequena vila da província de Tirol, na Áustria7, e é apenas sobre ele que nos vamos debruçar. Todos os que estão familiarizados com a obra de Karl Popper conhecem a sua divisão do Real em “mundo 1”, “mundo 2” e “mundo 3”. O mundo 1 é o da realidade física, de tudo o que existe na Terra e fora dela, vivo ou inanimado, é o mundo material, incluindo o universo, seus mecanismos e forças; o mundo 2 é o da consciência, das experiências humanas, da nossa interação com o mundo 1; e o mundo 3 é o das realizações do mundo 2, as produções da mente humana: livros, sinfonias, esculturas, automóveis, escovas de dentes, poemas, enfim, aquilo a que poderíamos chamar “cultura”.

Enquanto elementos físicos do mundo 3, essas produções humanas passam também a pertencer ao mundo 1, o mundo das coisas materiais8. Vemos, assim, que os três mundos estão não apenas interligados, mas também, por vezes, sobrepostos, embora perfeitamente distinguíveis. Além disso, os três mundos têm uma ordenação temporal, daí a clara numeração em 1, 2 e 3: de acordo com o conhecimento científico atual9, podemos afirmar que a parte inanimada do mundo 1 é, de longe, a mais antiga; que depois vem a parte animada do mundo 1 e, quase simultaneamente, o mundo 2, o mundo das experiências; e que só depois, com a chegada do homem, aparece o mundo 3, o mundo dos produtos mentais e da cultura.

Popper liga os três mundos à história da Filosofia. De facto, há filósofos que afirmam existir exclusivamente o mundo 1 – os materialistas – enquanto outros acreditam existir apenas o mundo 2 – os idealistas – e existem ainda os que acreditam nos mundos 1 e 2, os chamados dualistas. Ele vai mais longe, e afirma que não apenas o mundo 1 e o mundo 2 são reais, mas também é real – e deveras importante – o mundo 3, a última etapa (até agora) da evolução.

E porque é tão importante o mundo 3, segundo Popper? Porque uma das mais significativas produções humanas é a formulação de teorias científicas, as quais, ao estarem disponíveis no mundo 3, são suscetíveis de crítica; e esta crítica pode conduzir a teorias científicas concorrentes. A formulação de teorias só é possível porque os seres humanos, num determinado momento da sua caminhada sobre a Terra adquiriram a capacidade de comunicar através de um tipo de linguagem único, diferente da linguagem dos outros animais. Popper denomina esse tipo de linguagem de argumentativa10.

Isto pode parecer relativamente banal, mas é relevante pelo seguinte: todo o conhecimento avança através do velhinho método de tentativa e erro, sendo que, durante um longo período evolutivo, errar significava quase sempre perder a própria vida; porém, na atual fase evolutiva, temos a felicidade de podermos deixar as teorias científicas morrer, em vez de nós. É por isso que este é igualmente o estádio que reúne as condições para que a paz entre os homens seja possível (podemos substituir armas por argumentos), evoluindo de acordo com o impulso natural de qualquer organismo, “desde a amiba a Einstein”, que é o de melhorar a sua condição.

Assim, Karl Popper aceita a teoria da evolução de Darwin apenas em parte. Enquanto o darwinismo, em larga medida sob a influência de Malthus, coloca os seres vivos sobre forte pressão do ambiente que os rodeia – uma força de fora para dentro – Popper considera que todos os seres vivos estão constante e ativamente procurando melhores nichos ecológicos – uma força de dentro para fora – transformando-se, recriando-se, para melhor captarem e utilizarem o que precisam da natureza. Em busca de um mundo melhor11.

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Notas:

1 Esse livro era uma edição (portuguesa) da editora Fragmentos, publicado em 1992, que já não possuo. Emprestei-o e não mo devolveram. Recentemente quis comprar um novo exemplar, procurei-o, e verifiquei que o livro está esgotado, não apenas em Portugal, mas também em Espanha e até no Brasil. A solução foi mandá-lo vir do Reino Unido, através da Fruugo. É com base nessa edição inglesa que escrevemos este artigo.

2 Em 1989.

3 Nas palavras do próprio Popper, “toda a ciência é cosmologia”.

4 Popper conta-nos, na sua auto-biografia, que este livro nasceu de apontamentos e reflexões acumulados durante um certo tempo. Esses textos multiplicaram-se de tal forma, que levaram Popper a pensar numa obra, que acabaria por ser “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos” (em dois volumes), escrita na Nova Zelândia e publicada em 1945.

5 Tradução nossa do artigo, aqui:https://ilovealfama.com/2017/07/13/as-raizes-eticas-da-epistemologia-de-karl-popper/

6 “O que posso saber?”, “O que devo fazer?”, “O que me é permitido esperar?”, “O que é o homem?”. Através destas 4 perguntas, Kant abarca todas as áreas clássicas da Filosofia.

7 A palestra contém as marcas inconfundíveis de Popper: rigor, clareza, elegância e, sempre que a oportunidade surge, uma pitadinha de humor.

8 De notar que um poema ou uma música são coisas imateriais enquanto estiverem apenas na nossa cabeça, mas passam a algo físico quando forem transcritas para o papel ou quando forem declamadas ou tocadas (as ondas sonoras pertencem, como é óbvio, ao mundo 1).

9 Conhecimento que, para Popper, é sempre conjetural.

10 De acordo com Popper, existem quatro tipos de linguagem: da mais básica para a mais complexa, 1) expressiva e 2) comunicativa, comuns aos outros animais e ao homem; 3) descritiva e 4) argumentativa, exclusivamente humanas.

11 Esta ideia de Popper baseia-se na “seleção orgânica”, assim denominada originalmente por Lloyd Morgan, Baldwin e outros, mas que teria sido apresentada muito antes, sem essa denominação, pelo geólogo escocês James Hutton. Isto quer dizer que os indivíduos (todos os seres vivos) fazem escolhas por iniciativa própria – por exemplo, a preferência por um novo alimento, por um novo método de caça ou por uma nova árvore onde fazer o ninho. Cada novo comportamento pode ser visto como a seleção de um novo nicho ecológico. Assim, o animal e a sua descendência ficam expostos a um novo ambiente, logo, a uma nova pressão seletiva que guia o desenvolvimento genético dos indivíduos para se adaptarem ao novo ambiente.

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Foto retirada de https://www.stuff.co.nz/national/christchurch-shooting/111390530/dont-tolerate-the-intolerant-wrote-philosopher-karl-popper-during-his-stay-in-nz.

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