“A culpa é do Ocidente!” – Um ano depois da Invasão

A Rússia é um país com recursos naturais imensos e uma dimensão que abarca não só o heartland terrestre, mas também 11 fusos horários — uma imensidão que torna praticamente inexpugnável o seu território. Os russos têm, portanto, todas as condições de partida para serem um povo pacífico, próspero e feliz mas, apesar destas vantagens, vivem há séculos na miséria.1

As causas da triste vida do povo russo (que suporta um desdém criminoso dos sucessivos governantes autocratas pelo valor da vida humana) resultam da opressão a que tem sido sujeito dentro da própria Rússia, desde os tempos dos czares até Putin, passando pelo horrífico regime soviético, com um ou outro vislumbre ilusório de democracia.

Quando a derrota da União Soviética na Guerra Fria aconteceu, isso não implicou — como alguns, replicando Putin, querem fazer crer — uma tentativa de assalto do Ocidente. Não há, nunca houve, nem nunca se equacionou, neste período, um avanço ocidental sobre o território russo. O “Ocidente”, pelo contrário, deslumbrou-se com a potencial transição soviética para a democracia, sonhou com a paz (e, sim, também com os negócios), e mesmo quando Putin deu os primeiros sinais de despotismo, não quis acreditar que a Rússia regressava a passos largos ao seu estado ancestral, de onde, de resto, nunca saíra totalmente.

Assim, se pode até ser compreensível que muitos russos atuais, intoxicados pela propaganda, aceitem as falsidades de Putin e culpem o Ocidente pelas supostas ameaças à Federação Russa e pela Guerra na Ucrânia, apenas por cegueira ideológica homens e mulheres de sociedades livres podem engolir tal patranha.

A causa profunda da agressão de Putin à Ucrânia não deriva do exterior: é a mesma que viabilizou a cultura de opressão russa, e a mesmíssima que permite a Putin roubar o povo a seu bel-prazer — referimo-nos, claro, ao poder absoluto, hoje nas mãos de um ditador déspota, corrupto e sanguinário, com o beneplácito de alguns extremistas ideológicos que, um ano após esta “Operação Militar Especial”, continuam a culpar o Ocidente.

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Nota:

1 Alguns dados que apoiam a nossa afirmação:

  • No início do século XIX, o PIB per capita do Império Russo era, em média, duas vezes menor que o da Europa Ocidental e a produção industrial cerca de 2,5 vezes menor. Apenas 2% a 6% das mulheres e 4% a 8% dos homens eram alfabetizados na Rússia (40% a 50% na Europa; 25% a 35% no Japão; 15% a 25% na China). O IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) estimado era 1,8 a 2,5 vezes menor do que os do Japão e do Ocidente.
  • No início do século XX, a esperança de vida à nascença no Ocidente era de 50 anos, ao passo que na Rússia era de 34 anos. A diferença absoluta entre os anos de escolaridade no Ocidente e na Rússia aumentara exponencialmente em um século: 1.9 em 1800 (2.2/0.3) e 5.8 em 1913 (7.3/1.5). 1% da população russa detinha 16% a 20% da totalidade da riqueza do país. Os níveis empresarial, administrativo e cultural da população russa, em geral, eram terrivelmente baixos.
  • Na época soviética os gastos com a defesa aumentaram terrivelmente chegando a uns incríveis 50/60% do PIB na década de 1980. Pelo contrário, as qualificações dos recursos humanos eram terrivelmente baixas em comparação, por exemplo, com os padrões dos EUA e Alemanha (70% a 80% de profissionais altamente qualificados nestes países, contra 15% na União Soviética). O PIB per capita ajustado mostra uma queda acentuada de 1913 (28/30% dos países desenvolvidos) para 1990 (16/18% dos países desenvolvidos e 10% do norte-americano), apesar da União Soviética ser, nos últimos anos antes do seu desmembramento, a maior produtora mundial de petróleo bruto e gás natural. Após este longo período de decadência, o sistema económico soviético colapsou.
  • Escusado será dizer que Putin — ao gastar uma percentagem enorme da riqueza nacional na indústria da guerra, em detrimento do desenvolvimento do país — repete os erros do período soviético e sujeita o povo ainda a mais miséria. Ele, porém, é provavelmente o homem mais rico do planeta.

Fonte:

Meliantsev, Vitali A, “Russia’s Comparative Economic Development in the Long Run”, Lomonossov University, Moscow, 2004.

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De Kherson ao Seixal

Os ucranianos libertaram este fim de semana a estratégica cidade de Kherson, que estava há meses sob jugo das forças russas. Apesar das desastrosas perdas humanas que esta guerra sem sentido já provocou, a chegada dos soldados ucranianos foi saudada com júbilo em Kherson e um pouco por todo o mundo, pelo menos entre os que amam a liberdade. Para estes é incompreensível que alguém possa tolerar ou apoiar uma potência invasora que pretende pura e simplesmente varrer do mapa um estado soberano, aniquilando, se para tal for necessário, todo um povo.

Porém, o que é incompreensível para uns é perfeitamente justificável para outros: ao mesmo tempo que os ucranianos libertavam Kherson, reuniam numa conferência no Seixal largas centenas de militantes comunistas que, ao invés de condenarem Putin pela ignóbil invasão russa, condenam os americanos, a NATO e a União Europeia.

Muitos perguntarão como tal é possível, mas a razão fundamental é simples. O comunismo, mais propriamente a ideologia em que se apoia — o marxismo-leninismo — é uma religião. Não uma religião que promete o paraíso num lugar distante, mas antes uma religião que promete o paraíso na Terra. O caráter religioso do marxismo foi já dissecado por vários autores e revela-se em múltiplos aspetos. Alguns deles patentes na conferência levada a cabo pelos comunistas, este fim de semana, no Seixal.

Desde logo, (1) a despersonalização: pouco importa o que cada indivíduo pensa, os comunistas orgulham-se de que o que conta, independentemente das pessoas, é o dogma ideológico, a doutrina do partido e a autoridade do coletivo; depois, (2) o maniqueísmo: de um lado, os bons — os trabalhadores — do outro os maus — o Grande Capital e seus esbirros; finalmente, (3) a ritualização: símbolos, cânticos, palavras de ordem, toda uma velha liturgia, seguida com convicção absoluta, quando não, com o mais puro fanatismo.

A total submissão à ideologia (a unanimidade de que tanto se orgulham) é, entre todos, o aspeto mais pernicioso da doutrina comunista. Dissidências não são admitidas. Discordância implica expulsão. E uma vez no poder, seja em que lugar do planeta for, a perseguição aos hereges será efetiva e implacável. Os comunistas condenam o Ocidente porque, mais do que o capitalismo, a burguesia ou a desigualdade, o que, acima de tudo, os comunistas odeiam nas democracias liberais é a primazia que nestas é conferida à liberdade.

Liberdade celebrada em Kherson, ausente no Seixal.

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O marxismo e a guerra

O marxismo é uma religião e, tal como outras religiões, tem várias correntes — leninista, estalinista, trotskista, etc.

Quem não é da nossa religião é nosso inimigo, e é por isso que, onde vigora a religião, a perseguição aos hereges é efetiva e implacável.

As diversas seitas marxistas divergem entre si em vários pontos, mas o que as une é a convergência na identificação do principal inimigo — o maldito Ocidente e o seu modo de vida liberal e capitalista.

Assim, qualquer luta contra o Grande Satã é também a nossa luta, não importa que monstro tenhamos de engolir.

Putin? É apenas mais um.

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