O macaco cozinheiro

richard-wrangham (1)
Richard Wrangham, ilustre primatologista britânico.

É possível encontrar muitas semelhanças dentro do mundo animal, incluindo emoções, linguagem e até, em escalas diferentes, algum tipo de pensamento. Mas há algo exclusivamente humano, algo que nenhum outro animal pode fazer como nós: cozinhar. Poderíamos pensar que foram as nossas capacidades excecionais que nos levaram a usar o fogo e com ele transformarmos a comida, através do cozimento. Mas não. Foi, pelo contrário, o cozimento que nos moldou como humanos.

Há várias teorias sobre a forma como o homem pré-histórico aprendeu a gerar e guardar o fogo, não sendo possível dizer, por enquanto, qual delas é a verdadeira. O que se sabe, ou se julga saber, é que há dois milhões de anos, os australopitecinos deram lugar aos habilinos1, graças, segundo se pensa, à mudança para uma dieta que passou a incluir cada vez mais carne. Porém, a grande mudança deu-se cerca de 200 mil anos depois, há cerca de um milhão e oitocentos mil anos — o domínio do fogo e o cozimento dos alimentos fizeram com que o cérebro dos habilinos crescesse significativamente, até alcançar os 950 cm3 do homo erectus. O desenvolvimento das técnicas de cozimento continuaram a melhorar a dieta até chegarmos ao homo heidelbergensis, há 800 mil anos, com os seus substanciais 1.200 cm3 de volume cerebral, e finalmente ao homo sapiens, há cerca de 200 mil anos, com um cérebro de 1.400 cm3, uma capacidade próxima da atual.

O cérebro é, na verdade, um grande consumidor de energia, ele nunca pára de trabalhar, nem quando dormimos, e usa 20% da nossa taxa metabólica basal (o orçamento energético para um corpo em repouso), embora o seu peso corresponda apenas a 2,5% da nossa massa corporal. A princípio os investigadores pensaram que isso se devia a uma maior taxa metabólica humana, devido à alimentação mais rica, mas acabaram por descobrir que essa taxa era sensivelmente igual à esperada para um qualquer primata com o mesmo peso. Esta descoberta foi muito importante porque se os nossos grandes cérebros, ávidos de glicose, não são alimentados por uma dose de energia suplementar, então os tais 20% devem ser usados por nossos cérebros à custa de outra parte do nosso corpo.

Que parte? Por comparação com os outros primatas, os cientistas descobriram que esse enorme fluxo de energia consumido pelo nosso cérebro só é possível porque os nossos tubos digestivos são mais curtos, e não precisamos de despender muita energia na digestão, ao contrário de todos os outros primatas; o custo energético é muito maior nos organismos dos nossos primos, enquanto que nos humanos essa energia poupada pode alimentar um cérebro maior.  O nosso sistema digestivo é muito mais rápido a transformar os alimentos em calorias e energia, e isso só é possível porque os alimentos que comemos são altamente digeríveis e calóricos, graças ao cozimento.

De facto, várias experiências2 demonstraram que os alimentos cozidos são mais facilmente digeridos que os alimentos crus. Isto porque o cozimento é responsável por dois processos peculiares: a gelatinização e a desnaturação. A primeira ocorre sobre os amidos que se encontram no interior das células vegetais: “quando aquecidos na presença de água, os grânulos de amido começam a inchar porque as ligações de hidrogénio nos polímeros de glicose se enfraquecem quando expostas ao calor, e isso faz com que a sua apertada estrutura se alargue”3. Já a desnaturação acontece quando as ligações internas das proteínas se enfraquecem, obrigando as moléculas a abrir-se, proporcionando uma ação mais perfeita das enzimas digestivas, particularmente a tripsina. Embora o calor não seja o único fator a provocar a desnaturação das proteínas — marinadas, picles e sucos ácidos contribuem para a desnaturação quando aplicados por tempo suficiente4 — não há dúvida de que o cozimento proporciona uma digestão muitíssimo menos custosa5.

A digestibilidade dos alimentos que nos fornecem energia (através dos hidratos de carbono, gorduras e proteínas) é muito importante e não há dúvida nenhuma de que esta se torna mais disponível pelo aquecimento dos alimentos. Essa melhor digestão6 proporcionada pelo cozimento é realmente importantíssima por duas razões: 1- há uma melhor absorção de calorias por parte do nosso sistema digestivo, transformando, assim, os alimentos cozidos em alimentos mais eficientes7, dado que os alimentos crus não são completamente digeridos pelo organismo e, em grande parte, são desperdiçados através das fezes8 e 2- o cozimento, ao proporcionar digestões mais fáceis e rápidas, permite que não necessitemos de consumir demasiada energia na digestão. O cozimento proporciona, pois, uma dieta mais rica, um menor custo da digestão e, consequentemente, um tubo digestivo mais curto, e tudo isto resulta em energia disponível, a qual, no nosso caso, é canalizada para o cérebro9. Esta é a chamada teoria do “tecido custoso”.

O cozimento permitiu ainda que os nossos antepassados tivessem mais tempo livre, o que permitiu uma maior socialização, indo ao encontro do que muitos autores defendem: as estratégias sociais contribuíram para o aumento do volume do cérebro e o incremento da inteligência, e vice-versa. Esta interação só foi possível graças ao cozimento dos alimentos.

Este é apenas um pequeno apontamento sobre um livro delicioso10, escrito magistralmente por Richard Wrangham e publicado em 2009, com o título original Catching Fire – How Cooking Made us Human —realmente, a não perder. Após os oito capítulos do livro, Richard Wrangham refere-se, num epílogo denominado O Cozinheiro Bem Informado, a uma questão muito interessante: quantas calorias os diversos alimentos fornecem aos nossos corpos? A convenção que ainda hoje, com ligeiras alterações, domina a estimativa de valores energéticos dos alimentos, e está na base do modelo da sua rotulação no mundo ocidental, é o sistema de Atwater11. Ora, Wrangham chama a nossa atenção para o facto da digestão não ser um processo puramente químico, mas igualmente físico. Como vimos, há um custo energético na digestão e, além disso, “os sistemas digestivos tratam diferentes substractos de maneiras diferentes”12, sendo que, acresce a tudo isto, os próprios sistemas digestivos humanos operam de forma muito diversificada13. Vale, portanto, conhecer o seu funcionamento, sobretudo o do intestino delgado, o nosso “segundo cérebro” (ver nota 13). O cozinheiro bem-informado será, em tese, um ser humano com melhor qualidade de vida.

————————————

Foto retirada de http://www.youtube.com

————————————

Notas:

1 Calcula-se que os habilinos pesassem entre 32 e 37 kg, e o homo erectus entre 56 e 66 kg.

2 Particularmente as de Leslie Aiello e Peter Wheeler, em 1995.

3 Richard Wrangham, Pegando Fogo – Por que cozinhar nos tornou humanos, Editora Zahar, 2010, p.52.

4 Lembremo-nos, por exemplo, do ceviche, um prato de origem peruana em que o peixe cru, marinado em suco de limão, fica delicioso.

5 Ob. cit., p. 56.

6 Na verdade há dois tipos de digestão. Uma realizada desde a boca até o intestino delgado, onde se faz a parte principal da digestão, e outra realizada no intestino grosso, que, na verdade, é uma fermentação, realizada por mais de 400 tipos de bactérias e protozoários. A primeira produz calorias inteiramente úteis, mas a segunda dá apenas cerca de metade da energia disponível nos hidratos de carbono e absolutamente nada no caso das proteínas (ob. cit., p. 51).

7 Pode parecer um contra-senso, mas não é. Por exemplo, pensava-se que os ovos crus eram alimento muito mais rico que ovos cozidos. Ora, isto não é verdade. Cientistas belgas, ainda nos anos 1990, verificaram que o cozimentos dos ovos aumentava o valor proteico dos ovos em cerca de 40% (ob. cit., p. 56).

8 Algures, durante o processo evolutivo, perdemos a capacidade de extrairmos a energia necessária dos alimentos crus. Todo o nosso aparelho digestivo está adaptado à comida cozida, a começar por nossos maxilares, bocas e dentes (ob. cit., p. 36).

9 Foi confirmado em variados espécimes (nomeadamente entre os grandes símios), que os seus  cérebros relativamente grandes deriva de uma dieta mais rica, quando comparada com outras dietas mais pobres em animais de cérebros menores. Essas dietas mais ricas permitem sempre intestinos menores. No entanto, há espécimes que não canalizam o ganho de energia, proporcionado por uma dieta rica, para o cérebro. Espécies como a nossa, que vivem em grupos sociais mais complexos, fazem-no. Mas outras espécies, como alguns tipos de aves, usam essa energia para fortalecer os músculos das asas e assim voarem mais tempo e mais longe, supostamente, porque isso é mais importante para elas que desenvolverem cérebros grandes. 

10 O título deste artigo foi também inspirado no livro. Diz-nos Richard Wrangham (ob. cit., p. 39): “Os zoólogos sempre procuraram exprimir a essência de nossa espécie com expressões como macaco nu, bípede ou de grande cérebro. Eles poderiam igualmente chamar-nos o macaco da boca pequena”.

11 Wilbur Olin Atwater (1844-1907) foi um químico americano, conhecido sobretudo pelos seus estudos sobre a nutrição humana e o metabolismo. Preocupado com a alimentação dos mais pobres buscou saber qual o número mínimo de calorias de que necessitavam para viver. Usando um calorímetro de bomba, registou quanto calor era libertado quando gorduras, hidratos de carbono e proteínas eram completamente queimados. Descobriu que não havia grande variação entre os diferentes tipos de cada idem. Por exemplo, todas as proteínas tendiam a produzir um pouco mais de 4 quilocalorias por grama. Depois disto, Atwater quis saber que quantidades dos principais macronutrientes referidos um alimento contém. A mais fácil de determinar foi a gordura, dado que esta, ao contrário dos outros dois, se dissolve no éter. O pesquisador picava finamente os alimentos, inseria-os no éter e pesava quanto material se dissolvia no líquido. Assim determinava a quantidade de lípidos (estes incluem tanto as gorduras sólidas, à temperatura ambiente, quer a gordura líquida contida em óleos). Este método é usado ainda hoje. A quantidade de proteína é mais díficil de detrminar, pois não há testes para identificá-la. Mas Atwater sabia que 16% do peso das proteínas médias são nitrogénio. Conseguiu um método de medir a quantidade de nitrogénio e assim a concentração de proteína. O mais difícil de medir foram os hidratos de carbono. Não havia nenhum método na época, tal como hoje ainda não há. Mas sabendo que toda a matéria orgânica dos alimentos era composta por estes três grandes grupos e conhecendo o peso dos outros dois, Atwater podia determinar o dos hidratos de carbono, por subtração. Para tal queimava o alimento completamente, deixando de lado a parte que não queimava, isto é, a parte inorgânica. Mas Atwater quis saber também quanto dos macronutrientes era digerido pelo corpo, ou seja, não era expelido pelo corpo sem ser usado. Dedicou-se então a analisar as fezes de pessoas que comiam alimentos rigorosamente medidos e pode determinar quanto de cada nutriente era efetivamente digerido. O químico conseguiu assim o que queria saber: quanta energia cada um dos três macronutrientes continha, que quantidade de cada um estava presente num alimento e quanto dela era usada no corpo.  Richard Wrangam defende, porém, que, apesar dos ajustamentos já feitos, o sistema de Atwater peca por não ter o rigor necessário, dado que o cozimento (ou não) dos alimentos altera as calorias que fornece, bem como o trabalho do sistema digestivo e o respetivo custo energético varia de indivíduo para indivíduo (ver ob. cit., pp. 151-159).

12 ob. cit., p. 152.

13 A forma como o aparelho digestivo trabalha é um tema fascinante que merece ser tratado num artigo específico. Os orientais já conhecem a importância da região abdominal do nosso corpo há muitos anos, mas, no Ocidente, só após Michael Gershon, professor da universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, ter publicado o excelente Second Brain (1998), onde defendeu a existência de uma interação entre distúrbios nervosos e mau funcionamento do sistema digestivo, se inaugurou um novo ramo da medicina denominado neurogastroenterologia. Os maiores especialistas desta disciplina, desde logo o próprio Gershon (que estudou o assunto durante mais de trinta anos), apontam para a existência de “neurónios” digestivos, dentro do sistema nervoso entérico (SNE), o nosso segundo cérebro. De acordo com Irina Matveikova, uma médica russa que vive em Espanha (autora de O Intestino Feliz, Esfera dos Livros, Lisboa, 2015, pp. 28/9), “o número de neurónios que se encontram na rede do intestino delgado chega aos cem milhões. Este número representa, por exemplo, um valor consideravelmente superior ao dos neurónios da espinal medula. O cérebro dos intestinos é a maior fábrica responsável pela produção e armazenamento das substâncias químicas conhecidas com neurotransmissores, a maioria dos quais são idênticos aos que se encontram no sistema nervoso central (SNC), tal como a acetilcolina, a dopamina e a sorotonina.  Estas substâncias regulam a nossa energia, bem estar emocional e psicológico, e constituem um grupo de substâncias essenciais para a correta comunicação entre os neurónios e o sistema de alerta. Representam as “palavras” no idioma neuronal. Gershon revelou que 90 por cento da serotonina (a famosa hormona da felicidade e do bem-estar físico) é produzida e armazenada no intestino. Aí regula os movimentos peristálticos e a transmissão sensorial. E apenas os 10 por cento restantes de serotonina do corpo são sintetizados pelos neurónios do sistema nervoso central, ou seja, no cérebro superior”.

*******************************

A nossa edição:

“Pegando Fogo – Por que Cozinhar nos Tornou Humanos”, Richard Wrangham, Editora Zahar, 1ª edição, Rio de Janeiro, 2010.

*******************************