Tejo

O Tejo visto do miradouro do Monte.

Gosto de tudo o que cresce.

Da primavera florida,

Das manhãs douradas,

Das margens entumecidas

Do teu sorriso meu.

Alfama é a minha aldeia

Amanhecer em Alfama.

No tempo da minha infância, nos anos sessenta do século XX, ainda circulavam machos e burros puxando carroças com legumes e outras mercadorias pelas ruas de Alfama. Havia poucos carros. Tudo se comprava em avulso, pesado e embalado no comércio local: 500 gramas de açúcar, 250 gramas de azeitonas, um litro de feijão (sim, era um litro e não um quilo), meio-quilo de café; sete e meio de branco ou tinto na taberna do Zé Gordo, onde hoje é a Mesa de Frades. Não se usava plástico nem Tetra Pak. Sou do tempo da Fonte das Ratas e lembro-me de ver — ainda! — os vendedores de água, conhecidos por aguadeiros, apregoando “aú”! Eu próprio vendia leite avulso de porta em porta, ajudando os meus pais, o que me custou a alcunha de Norma Leiteiro, que eu detestava. As pessoas colocavam colchões nos becos e nos pátios e dormiam ao ar livre, nas noites quentes. Muitos criavam galinhas, coelhos, patos e outros animais que andavam com seus filhotes pelo empedrado do bairro. Algumas crianças tomavam banho nos chafarizes e alguns adultos também. Muitas habitações não tinham casa de banho. Aos sábados à noite ia-se ao café ver o Bonanza na televisão a preto-e-branco, como hoje se vai ao cinema; e aos domingos, sempre às três da tarde, ouviam-se no rádio os relatos do futebol. Ninguém pensava em ganhar dinheiro com os Santos Populares: as pessoas ofereciam sardinhas, pão e vinho a quem passava; cantava-se, dançava-se e saltava-se a fogueira: cada beco fazia a sua festa — e era muito, muito mais bonito que agora! Naquele tempo havia mais gente, mais atividades, mais pregões, mais cheiros. E tudo era maior porque eu era mais pequeno. Havia também as Casas da Malta, onde se amontoavam imigrantes, em geral do Norte, que vinham trabalhar para Lisboa. Muitas das profissões — estivadores, conferentes, fiéis de armazém, pescadores, armadores, manobradores, timoneiros, mestres, arrais, marinheiros, entre muitas outras — estavam ligadas ao porto e ao rio, para além de várias atividades ilícitas, em geral, complementares àquelas. Era comum encontrar-se — sobretudo de manhã, bem cedo, para o “mata-bicho” e, ao fim do dia, para o “copo-de-três” — muitos destes trabalhadores, distribuídos pelas tabernas do bairro. Trabalhadores e tabernas em vias de extinção. A ancestral relação entre Tejo e Alfama perdeu força nas últimas três, quatro décadas, até se extinguir, e esta foi a maior transformação, não apenas dos últimos cinquenta anos, mas desde sempre: o fim de uma relação milenar! Terminou um ciclo, no qual Alfama descobriu o mundo, e inaugurou-se outro, em que o mundo descobre Alfama. O turismo cresceu bastante nos últimos anos, ao mesmo tempo que o cais e o rio se esvaziaram. A Doca da minha infância, repleta de fragatas e varinos, onde tantos, como eu, aprenderam a nadar, foi aterrada; o Tejo ficou mais distante, inacessível; Alfama, sem ele, divorciada, perdeu vivacidade e alegria: entrou num processo de transformação e aos poucos foi-se adaptando e regenerando. Agora, os hábitos e a maioria dos habitantes são outros: muita gente, de muitos lugares, veio morar para Alfama. Há mais diversidade profissional, social, cultural; multiplica-se o pequeno comércio de chineses, cingaleses, indianos; a vida noturna animou-se com a proliferação de casas de fado e bares diversos. Enfim, o bairro revitaliza-se, renova-se, mas não perde a identidade. Isto percebe-se melhor quando subimos a colina e alargamos a vista, primeiro em Santo Estevão e, depois, em Santa Luzia: lá está o Tejo, afinal, com sua corrente forte; o casario e o traçado árabe parecem eternos; e as andorinhas continuam a chegar no fim dos dias longos, em grande algazarra, anunciando o Verão. Alfama ainda é a minha aldeia.

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Alfama

Rua do Vigário, uma das maiores de Alfama.

Todos os sítios do mundo são únicos, mas, na maioria dos casos, há algumas semelhanças entre eles. Olinda, por exemplo, uma dos irmãos e irmãs de Alfama espalhados pelo mundo, no estado brasileiro do Pernambuco, está também situada numa colina, com ruas íngremes, igrejas, calçadas e edifícios típicos de Portugal. É linda, sem dúvida, mas é diferente. Não tem o emaranhado de Alfama, o traçado árabe, as pequeninas ruelas e escadinhas e becos e pátios, já para não falar dos sons e dos cheiros. Alfama tem, sim, essa característica da singularidade. Quando caminhamos pelo bairro, sentimos a presença do passado. Ali aconteceram, certamente, incontáveis histórias extraordinárias, que os prédios velhinhos (construídos com o próprio material da derrocada que o terramoto de 1755 provocou), as pedras gastas, os becos escondidos e o próprio sussurro do bairro nos convidam a imaginar.
Em Alfama ainda se sente a presença dos romanos, dos muçulmanos, dos judeus, dos cristãos. Por debaixo do chão encontram-se tesouros antigos. E por detrás de muralhas e portas encontram-se tesouros vivos – jardins, pássaros, arroios e também pessoas!
E depois temos o rio, inseparável de Alfama. Daqui, o número de ângulos possíveis sobre os Tejo e mar (da Palha) é infinito.
Em Alfama amanhece mais cedo. E a noite – e o mistério – chegam também primeiro.

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Alfama

Alfama.

Trouxe comigo, Alfama, o céu espelhado

Em tuas pedras gastas;

O rescendor dos peixes dourando

Sobre o carvão dos teus olhos;

E o balanço do Tejo, a teus pés,

Antes do abraço com o mar.