I still miss Frank Zappa (04-12-1993†)

Começámos por ouvir Zappa num gira-discos mono. O nosso amigo Nana tinha a chave do escritório em que trabalhava e nós (três ou quatro) íamos para lá, noites consecutivas, ouvir os LPs de Zappa. Quando terminava o lado A, virávamos o disco para o lado B — e ouvíamos em silêncio, com a luz desligada, sentados no chão de soalho.

Estávamos em pleno processo revolucionário, e se me dissessem, naquela altura, que meio século depois estaria a assistir a vídeos (nem sei se esta palavra existia então) dessas mesmas músicas num computador, provavelmente não acreditaria.

Zappa viveu apenas 52 anos (morreu a poucos dias de completar 53), mas produziu mais de 60 álbuns e deixou uma cave cheia de música e filmes, de onde se continua a extrair material para mais álbuns e vídeos.

Para nós, que apreciamos a música de Frank desde há mais de 50 anos, é reconfortante ver o número de músicos, bandas e orquestras que reinterpretam as suas obras, e a quantidade impressionante de biografias, documentários e material inédito saído da cave, que vão sendo publicados a cada ano que passa.

É o caso deste vídeo, lançado em 2025 por Ahmet Zappa, filho de Frank, atual administrador do Zappa Family Trust. Nele surge a melhor formação zappiana de sempre, com Ruth Underwood na percussão e George Duke nas teclas — dois músicos com formação clássica, que Zappa recrutou e que se mantiveram com ele durante o período de ouro (70-75) — para deleite dos fãs e de todos os que tenham conexão desimpedida entre ouvidos, cérebro e coração.

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Notas sobre Kant

Kant, um dos três desconstrutores de castelos, além de Sócrates (antes) e Popper (depois).
  • A Crítica da Razão Pura é, no fundo, uma autocrítica. Kant não precisa sair de si próprio para fazer a investigação que pretende. Ele constitui para si mesmo o terreno que procura e o laboratório de que precisa.
  • Não podemos conhecer os objetos como coisas-em-si, mas podemos pensá-los.
  • Os outros animais são diferentes de nós porque só têm intuição externa (espaço). Quando passarem a ter intuição interna (tempo) poderão dialogar com os humanos e será possível saber como uns e outros veem o mundo.
  • A matemática aplica os seus conceitos à intuição.
  • 3 fases da História da Filosofia, segundo Kant: a) dogmática; b) cética; c) crítica (dele próprio).
  • Objetivo de Kant na Crítica: elevar a Filosofia ao estatuto alcançado pelas Física e Matemática.
  • Não há intuição intelectual (importante!).
  • Que papel tem a razão pura relativamente ao Entendimento? Isto é muito importante para perceber o sistema kantiano. É necessário saber se a razão só se ocupa dos objetos transcendentes (se só olha para cima) ou não.
  • Para chegar à crítica da razão, Kant vai ter que construir todo o edifício do conhecimento, começando de baixo para cima, pela unidade mais próxima da natureza, a Sensibilidade, subindo para o Entendimento, a unidade que impondo à sensibilidade as suas categorias, se liga a esta e forma com ela uma unidade maior, que poderíamos chamar “Perceptiva”.
  • Todas as ciências teóricas da Razão têm como princípios juízos sintéticos a priori: a) matemáticos; b) da física; c) da metafísica.
  • Mas embora a matemática e a física tivessem trilhado autonomamente os seus caminhos, o mesmo não aconteceu com a metafísica. É a isso que se propõe Kant: conferir à metafísica o estatuto de ciência.
  • Porque Kant idealiza (coloca em nós) o espaço e o tempo? 1) Assim justifica a geometria: uma vez que as proposições geométricas (por ex, os ângulos de um triângulo medem 180º) não podem derivar da experiência, têm que preceder os próprios objetos, logo, só podem ter origem em nós, a priori, na nossa intuição externa; 2) Qualquer grandeza de tempo só é possível dentro de um tempo único e ilimitado que lhe serve de fundamento. Esse fundamento imediato não é mais do que a própria intuição; 3) Porque isso concorda com a sua separação do objeto em fenómeno e númeno. Assim Kant resolve também a questão de se saber porque os fenómenos são percecionados de forma diferente por cada um de nós. Porque o que cada um perceciona é precisamente o fenómeno. Se percecionássemos as coisas-em-si, estas seriam iguais para todos; 4) Porque se espaço e tempo fossem reais como os objetos não poderiam constituir, simultaneamente, as condições a priori, da apreensão imediata dos fenómenos pela nossa sensibilidade; 5) As propriedades das coisas-e-si não podem ser dadas pelos sentidos, logo, “o tempo nada é, se abstrairmos das condições subjetivas da intuição sensível… nem a título de substância nem de acidente”; 6) Existe uma realidade objetiva do espaço e do tempo, enquanto considerarmos os objetos como simples fenómenos. O idealismo kantiano, tantas vezes realçado, é aparente e não efetivo; 7) Porque é impossível conhecer o tempo e o espaço fora de nós. Kant provou-o na primeira antinomia. Não se pode dizer que o universo teve um início ou que é infinito porque ambas as proposições são falsas. Se considerarmos um tempo vazio antes do início do universo, temos de considerar um momento de passagem do nada para o existente, uma ligação que só pode ser concebida se existir um momento (temporal, logicamente) anterior ao início do universo, o que é impossível. Se, por outro lado, considerarmos que o tempo sempre existiu e que é, portanto, infinito, temos de concluir que o tempo que decorreu até o momento presente é igualmente infinito, o que é impossível, porque o conceito de infinito não pode ser limitado. Kant prova, desta maneira, que o tempo e o espaço não tem realidade fora de nós — são as condições essenciais para que os objetos sejam captados pela nossa sensibilidade, isto é, são intuições puras, prévias (a priori), da própria sensibilidade.
  • Kant insiste, inúmeras vezes, na negação dos conceitos da razão especulativa.
  • Quando Galileu fez rolar no plano inclinado as esferas (…), quando Torricelli fez suportar pelo ar um peso, que antecipadamente sabia idêntico ao peso conhecido de uma coluna de água (…), foi uma iluminação para todos os físicos. Compreenderam que a razão só entende aquilo que produz segundo os seus próprios planos; que ela tem que tomar a dianteira com princípios que determinam os seus juízos segundo leis constantes e deve forçar a natureza a responder às suas interrogações em vez de se deixar guiar por esta; de outro modo, as observações feitas ao acaso, realizadas sem plano prévio, não se ordenam segundo a lei necessária, que a razão procura e de que necessita.
  • História da Razão Pura: 1- Quanto ao objeto: a) sensualistas (Epicuro); b) intelectualistas (Platão); 2- Quanto à origem: a) empiristas (Aristóteles, Locke); b) neologistas (Platão, Leibniz); 3- Quanto ao método: a) naturalistas; b) científico: b.1) dogmático (Wolff); b.2) cético (Hume). Kant apresenta uma nova abordagem.
  • sensibilidade — intuição; entendimento — conceito.
  • Conceitos da Razão (ideias transcendentes): 1. Alma (unidade absoluta do ser pensante — teologia racional); 2. Mundo (unidade absoluta da experiência externa — cosmologia, antinomias); 3. Deus (condição de tudo; unidade absoluta de todos os objetos do pensamento — teologia racional — provas: ontológica, cosmológica, físico-teológica.
  • Plano de um novo artigo para o blogue (há já um que pode ser visto aqui):
  1. Introdução
  2. Os objetos dados (empíricos): a) fenómeno; b) númeno
  3. Os objetos pensados (juízos sintéticos a priori)
  4. O edifício do conhecimento kantiano: a) sensibilidade-intuição (espaço, tempo); b) entendimento-categorias; c) razão
  5. Conclusão
  • Crítica à idealidade do espaço e do tempo em Kant — De facto, nem a simultaneidade nem a sucessão derivam da experiência, mas isso não quer dizer que o tempo seja uma intuição apenas nossa. Outros seres que percecionem os fenómenos de outra forma não terão também outra intuição de tempo? Ou seja, há espaço e tempo desde que haja seres vivos que nascem, vivem e morrem. Tem de haver, portanto, um tempo real para lá do tempo ideal de cada ser vivo. Portanto, do nosso ponto de vista, enquanto seres humanos, pode fazer sentido um tempo e um espaço só nossos. Mas do ponto de vista cosmológico, tem de haver um espaço-tempo (como mostra Einstein) real.

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A maldição da ideologia

Dois livros recentes onde se realça a perigosidade das ideologias.

As ideologias e as religiões são duas faces da mesma moeda. Ambas torcem e distorcem a realidade para que esta caiba nas suas narrativas. E o pior é que o cérebro humano adora narrativas ideológicas e religiosas. Pode parecer estranho, mas as pessoas com espírito científico, que amam a verdade, constituem-se como uma minoria entre os indivíduos predispostos a acolher todo o tipo de profecias, muito mais apelativas para o nosso cérebro tribal habituado a mitos, realidades paralelas e rituais iniciáticos.

Temos uma razão etimológica, desenvolvida em alguns de nós, mas a razão social — aquela que faz com que desejemos ser aceites pelos outros e integrar-nos no grupo — prevalece na esmagadora maioria dos casos. É por isso que é preciso ser resiliente para se apegar à verdade, tantas vezes incómoda. É muito mais fácil acreditar em promessas de prosperidade, fecilidade e, até, imortalidade.

Mas as promessas são levadas pelo vento, e o que resta dos dogmas ideológicos são guerras, miséria e sofrimento. Será impossível acabar com as ideologias, pois o homem é (ainda?) um animal idelógico, mas há uma questão que se impõe: seremos capazes de as controlarmos?

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As nossas edições:

  • Leor Zmigrod, O Cérebro Ideológico, D. Quixote, Lisboa, 2025.
  • Samuel Fitoussi, Porque se Enganam os Intelectuais, Bertrand, Lisboa, 2025.
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Grandes espetáculos em casa.

Porque os espetáculos de música clássica, sobretudo os que incluem grandes orquestras — como sinfonias e óperas — são, dentro da música ao vivo, os mais belos? Porque a grande música é em si mesma bela, mas também porque as grandes orquestras mundiais são constituídas por músicos extraordinários e dirigidas por maestros fabulosos; e, finalmente, porque os espaços onde estes espetáculos geralmente ocorrem são igualmente muito belos — teatros que são verdadeiras obras de arte, como os icónicos Teatro Alla Scala, em Milão, a Ópera Nacional de Paris, a Ópera Estatal de Viena, a Royal Opera House, em Londres, a Opera House, em Sydney, e tantos, tantos outros, incluindo o Teatro de S. Carlos, em Lisboa, e o Teatro da Paz, em Belém do Pará.

Ao contrário da música eletrificada, que muitas vezes se ouve melhor em casa do que ao vivo, a música sinfónica e operática, dada a vastíssima amplitude instrumental e sonora, ouve-se muito melhor ao vivo, sendo difícil de reproduzir, na plenitude, mesmo no mais avançado equipamento de som viabilizado pela moderna tecnologia.

Já assistimos a muitos espetáculos de música sinfónica (mais) e óperas (menos) ao vivo. Mas os auditórios e teatros onde se realizam estes espetáculos são pequenos para albergarem tantos amantes deste tipo de música. Por isso, é normal ouvir-se música clássica em casa. E há também algumas vantagens nas gravações que podem ser reproduzidas nas nossas habitações, em disco ou em vídeo. Neste último caso, há a vantagem de observarmos pormenores que não seria possível vislumbrar in loco: grandes planos do maestro, de elementos da orquestra e certos detalhes das salas revelam-nos particularidades fascinantes que não conseguiríamos descortinar nas salas de espetáculo.

Há realizações verdadeiramente fabulosas sobre obras da grande música, algumas levadas a cabo por mestres do cinema que se especializaram neste género de realização, como é o caso paradigmático de Franco Zeffirelli, um conceituado cineasta italiano, que adaptou, para o grande ecrã, óperas, peças de teatro e romances literários.1

Lembrámo-nos disto porque assistimos hoje, no canal Mezzo, à Sinfonia nº 6 de Tchaikovsky, conhecida por Patética, interpretada pela Filarmónica della Scala, em Granada, há dois anos. O maestro é o carismático italiano Riccardo Chailly, que já tivemos a felicidade de ver ao vivo. Tal como dissemos atrás, as filmagens destes espetáculos permitem-nos observar pormenores deliciosos, impossíveis de detetar ao vivo. Chailly é um dos grandes maestros da história da música e a sua expressão corporal e, sobretudo, facial, as suas vitalidade, exuberância e envolvência com a música e a orquestra, são atributos irressistíveis para muitos melómanos, comparáveis na atualidade, apenas, talvez, aos patenteados por Gustavo Dudamel — atributos que só os grandes planos de câmeras estrategicamente colocadas podem sobrelevar.

Quanto a esta obra de Tchaikovsky, é consensual que se trata de uma das mais importantes sinfonias jamais escritas, estreada em 28 de outubro de 1893, poucos dias antes da morte do compositor, que ocorreria em 6 de novembro desse mesmo ano. O termo patétique, foi sugerido pelo irmão de Tchaikovsky, Modest, sendo que o vocábulo que este usou em russo se aproxima mais de paixão e não tanto de patética.

Há quem veja nesta obra uma mensagem de despedida, especialmente pelo seu Finale: Adagio lamentoso, que constitui o quarto e último andamento. Isso sente-se indubitavelmente ao escutar a composição que realmente não termina em apoteose, como costuma acontecer nas demais sinfonias, mas antes decai, definha, extingue-se, como acontece com a própria morte. A Patética — a cuja interpretação já assistimos uma vez ao vivo — é, sem dúvida, uma obra extraordinária, simultaneamente, triste e bela.

Deixamos um excerto desse concerto de Granada, realizado em junho de 2023, no Palácio Carlos V, com Riccardo Chailly dirigindo a Orquestra do Teatro alla Scala.

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Notas:

1 Alguns dos filmes mais conhecidos de Zeffirelli são Romeu e Julieta (1968), Jesus de Nazaré (1977), O Campeão (1979) e Chá com Mussolini (1999).

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O paradoxo da bondade

Nem sempre é necessário escrever muitos livros para se reunir uma grande obra, e isto é válido para todos os géneros, quer sejam ficção ou ensaio. Richard Wrangham, um primatologista britânico de 77 anos, escreveu até agora três livros, um primeiro (1997) em parceria com Dale Peterson (Demonic Males), e dois a solo, Catching Fire (2010) e Goodness Paradox (2019). Nós lemos os dois últimos e ambos são fabulosos. Catching Fire foi traduzido para português do Brasil por Pegando Fogo, e a nossa análise sobre essa obra pode ser vista aqui; Goodness Paradox, que lemos no original em inglês, passamos a analisar agora.

A grande questão deste livro é a de saber porque os seres humanos são uma espécie simultaneamente pacífica e violenta, dado que comprovadamente nós somos capazes do melhor e do pior: somos os únicos seres vivos que cometem atos de extremo altruísmo, mas também temos a frieza que nos permite matar por meros prazer ou diversão1. Este é o paradoxo do nosso comportamento, quando comparado com o dos outros primatas: somos relativamente pacíficos no tipo de agressão reativa e incrivelmente violentos no tipo de agressão proativa. É fácil perceber a diferença entre os dois tipos de agressão se considerarmos os conceitos, usados em direito penal, de crime não premeditado (reação espontânea, “a quente”, reativa) e de crime premeditado (ação cometida friamente, com tempo, proativa).

Comecemos pelo relativo pacifismo humano no que toca à agressão reativa. Apesar de todos nós termos conhecimento de crimes reativos, eles ocorrem numa percentagem muito pequena, e os chimpanzés, por exemplo, são muito mais violentos neste tipo de agressividade, caracterizada por respostas a um estímulo inesperado2. A baixa agressão reativa acontece em todos os animais domesticados, que são menos agressivos que os seus ancestrais selvagens. Os cães, por exemplo, são mais dóceis que os lobos, e o mesmo acontece com todos os animais domésticos conhecidos e outros domesticados através de experiências científicas.3

A evidência científica mostra que os animais domesticados apresentam determinadas características, para além da docilidade, relativamente aos seus primos selvagens: maior proximidade nas características físicas de machos e fêmeas, crânios mais pequenos, dentição mais fraca, rosto mais arredondado e, nalgumas espécies, orelhas caídas, caudas enroladas e até manchas brancas na pelagem por cima da cabeça. Além disso, os animais domesticados têm uma tendência maior para a homossexualidade — e esta tendência pode, na verdade, ser um subproduto da domesticação — dado que são expostos a uma dose menor de testosterona quando ainda se encontram no útero materno.

Desde há muito, que vários estudiosos repararam que os seres humanos apresentam algumas destas características físicas e comportamentais, pelo que a ideia de que os humanos são seres domesticados é já antiga, e Wrangham corrobora-a. Mas se existe evidência sobre quem domesticou cães, gatos, porcos e muitos outros animais, quem terá domesticado o próprio homem? A resposta é que os seres humanos são animais autodomesticados. E isso aconteceu porque o desenvolvimento da linguagem veio permitir, entre outras coisas, que elementos dos povos humanos primitivos se associassem para controlar os indivíduos mais agressivos, instituindo, para tal, um implacável instrumento: a pena capital4.

A pena de morte é, pois, a causa principal da nossa autodomesticação e estima-se que a liquidação dos membros mais agressivos das sociedades humanas se tenha iniciado há pelo menos 300 mil anos, dando origem a uma espécie (mais graciosa do que o ancestral homo erectus), da qual somos hoje os únicos descendentes, o homo sapiens. Tendo em conta que qualquer processo de domesticação se completa em cerca de 20 gerações,5 o nosso comportamento agressivo terá sido radicalmente desincentivado há já bastante tempo, até porque os comportamentos que poderiam custar a vida a uma pessoa eram vastos, muitos mais do que hoje, ou seja, os indivíduos tinham um forte incentivo para se comportarem dentro de estritos padrões sociais, respeitando as normas igualitárias dos povos primitivos, sob pena de serem eliminados.6 Esta foi a forma dos nossos antepassados controlarem os indivíduos mais violentos. E o homo sapiens tornou-se, assim, um ser autodomesticado.

Mas as coligações, facilitadas pelo aparecimento da linguagem, que primordialmente se formaram para controlar a violência, acabaram por se transformar — com a concentração humana proporcionada pela agricultura, o crescimento populacional, o desenvolvimento técnico e científico, e a constituição de hierarquias de poder — naquilo que Wrangham chama coligações de agressão proativa, ou seja, um conjunto de pessoas orientadas para atingirem algum tipo de objetivo através da ação violenta. Algumas destas coligações tornaram-se extremamente poderosas, acabando nos dias de hoje por se confundirem com Estados — referimo-nos obviamente aos exércitos cegamente doutrinados e controlados por ditadores modernos que concentram em si todo o poder. As coligações de agressão proativa são, assim, a outra face da moeda da autodomesticação humana provocada pela instauração da pena capital.7

O paradoxo fica assim clarificado: a linguagem humana permitiu que se formassem coligações que impuseram a pena de morte e, com isso, reduziu-se a agressividade reativa tornando os humanos seres autodomesticados, mas, simultaneamente, abriu caminho para que essas coligações se tornassem coligações de agressão proativa, a mais letal entre os seres vivos conhecidos.

O poder avassalador das coligações de agressão proativa expressa-se, na sua forma mais devastadora, nos dias de hoje, através de guerras levadas a cabo por forças armadas com grande poder destrutivo, correspondendo ao grande desenvolvimento científico e tecnológico do mundo contemporâneo. Assim, o paradoxo projeta-se no futuro. Seremos capazes de controlar as coligações de agressão proativa e os seus líderes, impedindo que causem demasiado dano? Não sabemos. Apenas sabemos que a única esperança reside nas instituições democráticas, aquelas que impedem a concentração do poder, permitindo ganhar tempo para a formação democrática — através da educação — das novas gerações.

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A nossa edição:

Richard Wrangham, Goodness Paradox – How Evolution Made Us Both More and Less Violent, Pantheon Books, Croydon, 2020.

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Notas:

1 Há poucos dias veio a lume uma investigação, conduzida pelo jornalista italiano Ezio Gavazzeni, que mostra bem o nível de crueldade que as ações humanas podem atingir. Indivíduos ricos — notários, advogados, empresários — provenientes de vários países (italianos, franceses, suíços, americanos, ingleses), pagaram quantias elevadas às milícias sérvias que cercavam Sarajevo para se posicionarem nas colinas em redor e alvejarem os cidadãos da cidade, participando numa matança a que alguns já chamam, adequadamente, de safari humano. Os preços pagos variavam: por alvejarem uma criança pagavam 100 mil euros, mas a morte de um idoso era gratuita. O cerco a Sarajevo — o mais longo da história moderna — durou de 5 de abril de 1992 a 29 de fevereiro de 1996.

2 Todo o tipo de agressões provocadas por discussões “a quente” podem caracterizar-se por agressividade reativa: um homem que numa discussão no trânsito agride outro, por exemplo, pode considerar-se um caso típico de agressividade reativa.

3 As experiências levadas a cabo pelo geneticista soviético Dmitri Belyaev são consideradas as mais relevantes neste campo. A mais importante delas relacionou-se com raposas. Desde há muitas gerações que agricultores soviéticos criavam raposas prateadas nas suas quintas para negociarem a sua pele. A equipa de Belyaev começou por recolher dessas quintas as raposas mais dóceis. Cerca de uma em dez não rosnava quando os membros da equipa chegavam, e era selecionada. Após apenas quatro gerações as pequenas raposas aproximavam-se dos humanos abanando as caudas como se fossem cães. Na sexta geração as pequenas raposas não só abanavam as caudas como choramingavam para chamar a atenção dos humanos, cheirando-os e lambendo-os. Algumas gerações mais tarde, várias raposas apresentavam uma mancha branca no alto da cabeça, tal como acontece em cavalos, vacas, cães e muitos outros animais domésticos. Com o passar do tempo, alguns exemplares apresentavam as orelhas caídas, caudas e pernas mais curtas, e um crânio mais leve e estreito. Tudo isto provou que a seleção para a docilidade conduziu aos traços típicos da síndrome da domesticação referidos acima. A agressividade reativa baixou incrivelmente (ob. cit., pp. 67-72).

4 Isso acontece ainda hoje entre povos afastados da civilização, onde a pena capital é um instrumento supremo de igualitarismo. A pena de morte deve ter acontecido tantas vezes no passado que a nossa espécie herdou o temperamento calmo e menos agressivo que essa punição extrema impunha.

5 O processo de autodomesticação humana terá começado há pelo menos 300.000 anos e isso corresponde a 12.000 gerações. Isso é bastante tempo, se consideramos que a evolução dos lobos para cães se iniciou há aproximadamente 15.000 anos (ob. cit., p. 161).

6 Wrangham dá exemplos de atos considerados banais nos dias que correm mas que há apenas 300 anos podiam levar um indivíduo à pena de morte. Na América do século XVII um indivíduo podia ser condenado à morte por idolatria, blasfémia, rapto, adultério, bestialidade, sodomia e até masturbação (ob. cit., p. 143). Em sociedades primitivas, alguns motivos pelos quais um indivíduo podia ser condenado à morte eram igualmente fúteis aos olhos de hoje. Por exemplo, era banal ser-se executado por feitiçaria. Bruce Knauft, um investigador que estudou os Gebusi, um grupo de horticultores da Nova Guiné, durante 42 anos, registou 394 casos de pessoas executadas, sendo que 1/4 dos homens e 15,4% das mulheres foram condenados por feitiçaria (ob. cit., p. 161).

7 A pena de morte, que serviu em tempos para a nossa autodomesticação, não parece ter hoje em dia grande utilidade, nem é moralmente defensável. Richard Wrangham considera que ela deveria ser abolida nos Estados Unidos, país onde vive atualmente (ob. cit., pp. 283-4).

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O Nobel da Paz

Medalha criada pelo escultor norueguês Gustav Vigeland. Patente no Centro Nobel da Paz, em Oslo.

O homem é um animal violento, tal como a maioria dos seus primos primatas, sendo que a agressividade humana ultrapassa largamente tudo o que qualquer outro animal é capaz de fazer. Graças às suas linguagem e inteligência, o homem é o único ser vivo que mata membros da sua própria espécie por puro sadismo e até por mera diversão.

A velha questão sobre a origem da violência humana — se é inata ou adquirida — está há bastante tempo resolvida. Somos, sim, naturalmente violentos — e os genes da agressividade estão inscritos no nosso ADN. Vários estudos convergem para este diagnóstico: a observação de outros primatas, a descoberta de ossadas e utensílios com milhares de anos, o acompanhamento de povos que vivem em regiões isoladas do globo, e a investigação levada a cabo por várias disciplinas científicas, com o uso de tecnologias de ponta, incluindo a que permite a observação da atividade cerebral, como sejam as imagens obtidas por ressonância magnética funcional (RMf).

Aceitar a realidade da nossa natureza não nos deve impedir de lutar contra ela, antes pelo contrário. A luta pelo controlo da Natureza faz parte da nossa história — é sobretudo para isso que serve a Ciência — e a luta contra a nossa própria natureza é talvez a mais difícil e a mais desafiadora.

No entanto, na esperança de que escapemos ao que os rousseauianos consideram um “determinismo biológico”, há quem negue o caráter evolutivo da nossa agressividade. Esta perspetiva tem-nos conduzido a tentativas radicais de mudança da sociedade, mesmo que para isso seja preciso uma revolução (e muita violência), uma vez que destruindo as instituições que tornam o homem mau, emergirá o homem naturalmente bom.

Uma perspetiva completamente diferente é a dos que reconhecem a violência humana, e por isso destacam o papel das intituições liberais e democráticas no seu controlo, em particular no que toca à violência mais letal — a guerra que vem ceifando a vida de milhões e milhões de seres humanos inocentes. Um homem que mate outro é justamente condenado, mas um ditador que mate milhões passa frequentemente impune. Isto é possível porque só o homem é capaz de se associar em coligações de agressão proativa, nas palavras de Richard Wrangham.

Só reconhecendo que estamos sempre sujeitos ao surgimento de líderes violentos e criminosos capazes de arregimentar e comandar essas coligações, poderemos prevenir-nos, zelando todos os dias pelas instituições capazes de controlá-los e afastá-los do poder.

Os rousseauianos, mas também os marxistas, que em geral são as mesmas pessoas, tendem a desvalorizar o papel das instituições democráticas no que diz respeito à prevenção da violência e da guerra, referindo, com razão, que muitas democracias liberais também são belicistas.

Esquecem-se, porém, de que o caminho para a paz é longo, árduo e tortuoso (faz parte da luta referida acima). Nesse processo há países mais avançados, com os estados do Norte da Europa à cabeça, mas também há, além disso, uma correlação direta e positiva entre democracia e paz: os países mais democráticos são igualmente os mais pacíficos.

Esta correlação está sempre presente no espírito dos membros do Comité Nobel Norueguês e corresponde a uma posição pragmática e tanto quanto possível objetiva que, obviamente, não agrada à maioria dos crentes das ideologias radicais.

Aqueles que admitiam ser possível a atribuição do Nobel da Paz a um pseudodemocrata como Donald Trump não conhecem os critérios de decisão, nem o espírito que norteia a ação, do Comité Nobel Norueguês.

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Escapadela a Marrocos

Nadando em Tiguemine Sarah.

Há relativamente pouco tempo descobrimos que há voos diretos entre Faro e Marraquexe, operados pela Ryanair. Quando analisámos os preços, com voos de ida e volta a €30, decidimos de imediato fazer uma escapadela — que acabou por ser de quatro dias e meio — a Marrocos. Além dos preços, os horários dos voos eram também excelentes, o que nos permitiria otimizar o tempo de estadia em terras berberes.

O nosso voo partiu às 12:05, e às 13:20 estávamos a aterrar em Marraquexe.

Estávamos um pouco apreensivos com o aluguer do carro — tanto que fizemos um seguro contra todos os riscos. Era a única coisa que nos preocupava e, por sinal, quando saímos pelo último portão do aeroporto não vimos ninguém à nossa espera com a placa da locadora erguida, tal como estava indicado na página de reserva do booking.com, onde contratáramos o aluguer da viatura. Procurámos, circulámos, esperámos e, uns vinte minutos depois, reparámos num homem com uma placa, mas, em vez de a ter erguida, segurava-a numa mão descaída abaixo da cintura. A nossa intuição levou-nos a espreitar, e verificámos que estava inscrito na placa o nome da locadora — Green Motion — e lá fomos transportados até ao escritório, a uns 4 kms de distância, para tratar das formalidades. Surreal.

No terraço de Tiguemine Sarah.

No escritório da empresa foi-me solicitado um pagamento de 400 dirham (MAD), cerca de €37, por ser um condutor com mais de 65 anos, algo que não tinha verificado aquando da reserva online. Não adiantou reclamar, tive mesmo de desembolsar esse valor e ainda deixar uma caução de 17.000 MAD, cativos no nosso cartão de crédito.

Eram umas duas da tarde, tínhamos muito dia pela frente, e não deixámos que aquilo o estragasse.

Depois de enchermos o depósito, rumámos ao alojamento que tínhamos escolhido e sobre o qual tínhamos as melhores referências. A expectativa era alta e não foi frustrada. Tiguemine Sarah é um empreendimento lindo, um oásis entre terrenos áridos, com as montanhas do Atlas ao fundo. Tudo ali é equilíbrio e harmonia: o verde da vegetação, o ocre do edificado, o azul do céu e da piscina.

Come-se maravilhosamente em Tiguemine Sarah, e as pessoas são igualmente maravilhosas. Além delas, há quatro cães simpáticos e tranquilos, e um majestoso felino, de seu nome Winston Churchill. Os cães bebem água da piscina e o mesmo fazem os pássaros, inúmeros, que pela propriedade circulam. As árvores altas que ladeiam o poente o e o nascente do recinto retangular, talvez do tamanho de um campo de futebol, proporcionam sombra, pelo menos nalgumas espreguiçadeiras, durante a maior parte do dia. Ler um livro, ou simplesmente dormitar numa delas, é um prazer divino.

Negociando nas montanhas do Atlas.

O ambiente todo — desde o ar à água, passando pelo silêncio entrecortado pelo chilrear dos passarinhos, até ao resfolhar suave que uma leve brisa levanta — convida ao langor. O nosso quarto (o nº 1) é espaçoso, bem decorado, limpo, e tem uma enorme varanda debruçada sobre a piscina. Ao fundo, azuladas, as montanhas do Atlas. Dormimos muito bem na nossa primeira noite.

No dia seguinte esperáva-nos um pequeno-almoço soberbo. Não podemos esquecer a sopa berbere (sim, eles tomam-na ao pequeno-almoço), o mel com manteiga e o sumo de frutas, com banana, pêssego e laranja. Os doces, feitos por uma das irmãs — Gigi — são simplesmente maravilhosos. Não apetecia sair, mas já tínhamos programa e tivemos de vencer a preguiça. Saímos, ao meio-dia, na direção das montanhas do Atlas.

Para começar, o google maps mandou-nos por um atalho em terra batida de cerca de 2 kms. Nenhuma viatura se cruzou connosco, felizmente, e lá atingimos a estrada nacional N9, que liga Marraquexe a Ouarzazate. Pouco tempo depois começámos a subir. A certa altura estávamos aflitos para irmos à casa de banho e parámos em Taddarte. Entrámos num café, aliviámo-nos e pedimos um chá de menta. Todos foram simpáticos e respeitosos connosco. Seguimos viagem montanha acima.

Aït-Ben-Haddou ao nascer do sol. Grandes filmes foram rodados aqui.

Passado algum tempo e muitas curvas apertadas, chegámos ao ponto mais alto do nosso percurso — Tizi Tichka. Daqui vê-se a estrada que acabámos de subir, uma cobra pequenina, lá bem no fundo. Este é um ponto de paragem quase obrigatória e vê-se sempre gente circulando, carros e autocarros parados, bancas de vendedores de pedras coloridas, extraídas das montanhas em torno. Estávamos a 2.260 metros de altitude e, claro, a temperatura tinha descido um (ou dois) punhado de graus.

Retomámos viagem e, logo três ou quatro quilómetros depois, em vez de continuarmos pela N9, infletimos à esquerda e entrámos na P1506. Esta estrada segue sempre ao longo de um rio, nesta altura do ano quase seco, mas ainda assim com água suficiente para alimentar uma escolta de vegetação, que segue ao longo de ambas as margens durante quilómetros e contrasta fortemente com a paisagem desértica que se sobrepõe naturalmente em toda esta região. Passámos por Télouet, uma cidade de dimensão significativa, mas também por inúmeras aldeias e vilas antigas, encaixadas nas encostas adjacentes ao leito do rio, aproveitando tudo o que o líquido precioso que ele transporta pode proporcionar.

Cruzando o rio.

Continuámos ao longo do Vale de Ounila até que, finalmente, por volta das 5 da tarde, chegámos a Aït-Ben-Haddou. Fomos diretamente para o alojamento que tínhamos reservado — Dar INNÂ. Aqui iríamos ficar na próxima noite e tomar o pequeno-almoço na manhã seguinte, pelo inacreditável preço de €22,96. Achraf recebeu-nos de braços abertos e deu-nos dicas preciosas relativamente a locais onde poderíamos jantar. Dar INNÂ dista uns 700 metros do centro de Aït-Ben-Haddou, pelo que fomos de carro até lá.

Aït-Ben-Haddou é uma aldeia muito antiga, na margem esquerda do rio, mas na margem direita foi construída uma nova aldeia, onde a maioria das pessoas mora e onde os turistas encontram os serviços de que necessitam. Na aldeia antiga, que é o que toda a gente quer ver, vivem apenas meia-dúzia de famílias.

Ksar (alcácer) muito antigo, fortificado desde o período almorávida e reconstruído várias vezes com os mesmos métodos ancestrais, Aït-Ben-Haddou, por onde passavam as caravanas antigas na sua rota entre o deserto do Saara e Marraquexe, é considerado um exemplo sublime da arquitetura tradicional marroquina e, como tal, foi eleito Património Mundial, pela Unesco, em 1987. Aït-Ben-Haddou acolheu, nos últimos anos, inúmeros realizadores, atores e equipas de rodagem, cujo trabalho contribuiu para um número impressionante de séries e filmes.

O cenário é, de facto, magnífico.

Museu do Cinema em Ouarzazade.

No entanto, a melhor hora para fotografá-lo não é ao pôr do sol, mas antes ao nascer do sol, algo que descobrimos passados alguns minutos de ali chegarmos. Claro que combinámos voltar bem cedo no dia seguinte, mas, depois de hora e meia circulando pelas ruelas estreitas, já anoitecera, a fome atacara e fomos procurar um dos restaurantes que Achraf nos indicara para jantarmos. Comemos um tajine vegetariano e no final bebemos o tradicional chá de hortelã. Voltámos ao alojamento porque estava previsto levantarmo-nos bem cedo no dia seguinte.

Acordámos às 6:30, ainda durante uma noite mal dormida. Estacionámos o carro no centro da vila e atravessámos o rio em direção ao ksar. (O rio tem pouca água e é fácil cruzá-lo pisando uns sacos de areia estrategicamente colocados do lado nascente, embora haja também uma ponte de cimento construída recentemente do lado poente). Em frente ao ksar há um enorme monte de areia, semelhante a uma duna gigante, e é relativamente fácil subir até ao topo e daí desfrutar de uma vista previlegiada sobre Ait-Ben-Haddou. É o que algumas pessoas fazem, sobretudo as mais jovens, e nós fizemo-lo também. Quando o sol nasceu, inundou de luz o ocre das fachadas do ksar, conferindo-lhes um tom de ouro que nós aproveitámos para registar nos nossos cartões de memória.

Um café excelente tomado na estrada.

De seguida regressámos ao alojamento, arrumámos as coisas e preparámo-nos para o pequeno-almoço. Achraf serviu-nos uma refeição simples, mas deliciosa, com pão, queijo, mel, sumo e chá de hortelã. Despedimo-nos e fizemo-nos à estrada. Continuámos no mesmo sentido do dia anterior até apanharmos de novo a N9. Chegámos a Ouarzazate, uma cidade de dimensão considerável, onde existem vários estúdios e um museu de cinema. Demos uma pequena volta por lá, sem grande profundidade, e voltámos pela mesma N9, agora em sentido contrário e sem qualquer desvio.

Já tínhamos reparado, através dos quilómetros percorridos, em vários carros ao longo da estrada onde se serve café. Decidimos experimentar. Pensáramos que fosse café de “saco”, mas qual foi a nossa surpresa quando verificámos que, no porta-bagagens, estava instalada uma enorme máquina de café expresso. Mas não um café qualquer — um café delicioso! Estávamos mesmo a precisar. Mais à frente comprámos fruta (uvas e bananas) num mercadinho. Já tínhamos passado por Tizi Tichka e continuávamos a descer, descer… Não tínhamos muita pressa, o nosso destino era um jardim peculiar que fica muito perto de Tiguemine Sarah, a uns 3 kms, e, quase sem dar por isso, estávamos quase a chegar.

O Anima alberga obras de arte surpreendentes.

Anima é um jardim mágico criado por André Heller, um artista, poeta, cantor, realizador e ator austríaco. Os trabalhos de criação do jardim começaram em 2008 e prolongaram-se por oito anos. O espaço alberga obras de Pablo Picasso, Keith Haring, IgorMitoraj, Monika GilSing e muitos outros. Há também uma exposição permanente, com obras de Hans Werner Geerdts (1925-2013), um artista alemão que viveu em Marrocos e era amigo de André Heller. Há quem considere Anima o mais belo jardim do mundo. A nós fez-nos lembrar, em parte, o Jardim Gulbenkian, mas também o House on Fire, em Eswatini, e o jardim de Claude Monet, em Giverny. Há ainda um bar/restaurante, onde petiscámos antes do regresso a Tiguemine Sarah.

Fomos recebidos com alegria, como se nos estivéssemos ausentado durante muito tempo. Estávamos em casa de novo e aproveitámos para descansar. Às sete da tarde descemos ao jardim para apreciarmos o belo couscous que encomendáramos no dia anterior. O jantar estava delicioso. Não apetece sair deste local tão especial, onde a comida, conjugada com o ambiente, faz baixar a pressão arterial, desacelera o ritmo cardíaco e deixa corpo e espírito em paz um com o outro. Ficámos por ali mais um tempo e pouco depois de subirmos ao quarto estávamos a dormir profundamente.

Uma surpresa em cada curva.

Além de tudo o mais, é ótimo o horário de check-out em Tiguemine Sarah — meio-dia — pois permite usufruir do espaço, nomeadamente da piscina, durante toda a manhã. Laila, a proprietária, perguntou-nos quando era o nosso voo e quando soube que era apenas às 10 da noite, disse que poderíamos ficar mais tempo, tinha o quarto disponível. Recusámos educadamente, pois não queríamos abusar da simpatia daquela família e, afinal, ainda não tínhamos visitado Marraquexe. Quando soube que queríamos ir a Marraquexe, Laila deu-nos duas boas dicas. A primeira foi que deixássemos o carro no parque de estacionamento de um centro comercial (Carre Eden) e a segunda foi que fôssemos ao Grand Café de la Poste, bem pertinho do centro comercial.

Entretanto, passámos uma boa parte da manhã no jardim e na piscina. Pouco depois das onze fomos pela última vez ao quarto, arrumar as nossas coisas, tomar banho e prepararmo-nos para sairmos. Descemos, pagámos a conta (4 jantares, taxas municipais, bebidas) e despedimo-nos. No total, pagámos €87, o que, para a qualidade dos serviços, pode ser considerado uma pechincha. A reserva do quarto por quatro noites, com pequeno-almoço, custara-nos, previamente, €151,20. As três irmãs (uma cozinheira, uma doceira e uma administradora que também dá uma mão na cozinha) vieram despedir-se. Também vieram François, co-proprietário, marido de Laila, e Houcine, mais um irmão das três irmãs (Laila, Jamila e Zahra).

Gostaríamos de voltar, um dia, com mais família. Veremos.

No Grand Café de La Poste.

Fizemos o que Laila recomendou. Estacionámos no centro comercial (5 horas por 20 MAD, cerca de €1,87), e fomos beber um chá tradicional marroquino ao Grand Café de la Poste. Por feliz coincidência, o GCLP comemora este ano um século. Laila dissera-nos que Churchill, Roosevelt e o rei de Marrocos se haviam ali encontrado, mas não conseguimos confirmar essa informação. Porém, parece que Churchill esteve mesmo lá — e também Charles de Gaulle, Antoine de Saint-Exupéry, Joseph Kessel, Jacques Majorelle, Paul Bowles, Jean Genet, Yves Saint Laurent, Pierre Bergé, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Cat Stevens1, entre outras personalidades, nós incluídos.

Não tínhamos grandes planos para Marraquexe. Fomos a pé até à Medina e voltámos. Não vimos grande coisa, portanto, além de um bonito parque, o que, face ao calor intenso, acabou por ser o mais agradável. Pouco depois das 5 da tarde saímos de Marraquexe. Numa pequena estação de serviço perto da agência do aeroporto da Green Motion, mandámos lavar o carro (em Marrocos tem de se entregar o carro lavado ou paga-se uma pesada indemnização) e fomos entregá-lo. O trânsito era muito intenso àquela hora, mas desenrascámo-nos bem. Às 22:10 o avião da Ryanair levantou voo. Antes da meia-noite estávamos ao volante do nosso carro, em Faro. Pouco depois, após quatro dias fora, estávamos de novo em casa. Desta vez, na nossa própria casa.

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1 https://www.lopinion.ma/Retro-Verso-L-Histoire-emblematique-du-Cafe-de-la-Poste-de-Marrakech_a57037.html

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Democracia e Poder

A democracia caracteriza-se, em termos práticos, pela dispersão e, através desta, pelo controlo do poder. Quanto mais efetiva for essa dispersão, mais efetivo será também o controlo, e melhor será a qualidade da democracia. O poder disperso por muitas mãos é, portanto, a mais importante característica da democracia e todos os itens que medem a qualidade democrática se relacionam, de uma maneira ou outra, com essa característica.

Por exemplo, um sistema onde os membros do Supremo Tribunal sejam nomeados pelo poder político e tenham um mandato vitalício (Estados Unidos) é menos democrático que outro onde os membros do Supremo Tribunal sejam nomeados por uma comissão independente do poder político e cujo mandato tenha prazo de validade (Dinamarca). Esta não é uma questão menor: a independência judicial está em causa nos Estados Unidos (Trump), mas é muito mais estável nos países escandinavos, os mais democráticos do mundo.

A qualidade das instituições democráticas, proporcionada pela dispersão do poder, corporiza, nos países escandinavos, três vantagens evidentes: dignidade de tratamento concedido aos mais desvaforecidos (presos, doentes mentais, idosos em fim de vida), corrupção limitada, e uma atitude pacífica nas relações internacionais. Além disso, há maior igualdade e coesão social: é normal os políticos escandinavos se deslocarem, nas cidades, em transportes públicos ou de bicicleta e não se considerarem acima dos cidadãos comuns. Por isso não se apegam ao poder.

Se isto acontecesse noutras paragens, indivíduos aparentemente afáveis e simpáticos — Hitler era vegetariano, adorava animais e tinha um feitio afável e paternal; Pol Pot era um simpático e cordial professor de História Francesa; Estaline era um indivíduo extremamente calmo e raramente gritava ou se irava — não se teriam transformado em ditadores sanguinários.

Todos eles teriam continuado a ser fofinhos, e milhões de seres humanos teriam sido poupados, se não tivessem tido a possibilidade de concentrar em si todo o poder.

O poder é um mal necessário. Só a sua dispersão pelo maior número de mãos possível pode impedir que cause demasiado dano. É para isso que se criou a democracia; é por isso que temos de zelar por ela.

Celebra-se amanhã o Dia Internacional da Democracia. Porém, num mundo onde 72% da população mundial vive sob regimes autocráticos1, o tempo é menos de celebração e mais de combate. Lutar pela democracia liberal é não só um dever cívico, mas também um ato de solidariedade e resistência.

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1 https://www.eiu.com/n/global-themes/democracy-index/

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O antiamericanismo

O antiamericanismo em esquema.

Os Estados Unidos vêm intervindo militarmente um pouco por todo o mundo pelo menos desde a Primeira Guerra Mundial, sem contar com o período expansionista anterior. Além disso, os Estados Unidos intervieram também em variadíssimos países através da espionagem, do apoio político e financeiro a governos ou oposições com eles alinhados, incluindo a eliminação de políticos considerados inconvenientes. O rol é extenso e a América é considerada por muitos o pior país do mundo, o maior financiador de guerras e o mais letal, sendo o único que até hoje utilizou sobre populações indefesas duas bombas atómicas.

A ação dos americanos na Guerra Fria, de facto, uma guerra escaldante e terrível, motivada pelo medo, foi também muito negativa. O medo do comunismo fez com que os Estados Unidos fomentassem golpes militares, financiassem grupos armados e permitissem que se instalasse internamente um período negro que ficou conhecido por macarthismo. Uma verdadeira paranóia. A ação americana na Guerra Fria constitui, por isso, uma das principais razões do antiamericanismo. E embora a luta dos Estados Unidos fosse compreensível e, para aqueles que acreditam na liberdade, inteiramente justa, os meios usados, como acontece na maioria das guerras, foram um verdadeiro desastre.

Esse desastre provocou uma justificada hostilidade à América e, tendo em conta que os Estados Unidos são uma democracia liberal, houve quem desenvolvesse uma injustificada hostilidade ao sistema democrático, à ordem liberal e, amiúde, a todo o Ocidente. Esta hostilidade mais radical levou alguns a considerarem que todas as guerras em que os Estados Unidos se involvem são injustas, logo, é sempre justo estar do lado de quem se opõe aos americanos. Para quem adota, por princípio, este tipo de postura pouco importa o monstro que tenha de engolir: Estaline, Mao, Fidel, Putin ou Khamenei. Quando confrontados com tais personagens, os antiamericanos usam invaravelmente os termos do relativismo: alguns desses ditadores até podem ser maus, mas os americanos são ainda piores.

Isto equivale a dizer que a América é o mal absoluto, a fonte de todos os problemas do mundo, enquanto todo o restante mal, que também o há, claro, é relativo: eis o antiamericanismo primário. Mas serão os Estados Unidos, de facto, o pior país do mundo?

Ao longo da História sempre houve povos mais poderosos que outros. Por diversas razões, esses povos sempre exerceram o poder da força: ou porque eram atacados, ou porque queriam conquistar território, ou porque queriam impor a sua cultura aos demais, ou porque eram ambiciosos ou, simplesmente, porque podiam. Também houve alguns líderes poderosos pacíficos, mas isso só aconteceu em períodos em que o mundo estava ainda segmentado, não havia outros povos igualmente poderosos por perto, e o governante podia dedicar-se em exclusivo ao seu próprio povo. Mas nunca houve, que se saiba, um período de paz que abrangesse o mundo inteiro, sendo que a situação se agravou com o desenvolvimento dos transportes, com a facilidade de movimentar a máquina de guerra de um ponto do globo para outro.

Desde pelo menos a época dos Assírios que sempre houve impérios poderosos. Romanos, Árabes, Mongóis, Otomanos, Espanhóis, Holandeses, Franceses, Britânicos — todos foram expansionistas e dominadores nas suas zonas de influência. A partir da Grande Guerra (1914-18), os países, os chamados estados-nação, substituíram-se aos impérios. As grandes potências militares que emergiram da Primeira Guerra Mundial iriam confrontar-se na Segunda: Estados Unidos e Japão — hoje aliados.

Nunca houve, portanto, um período histórico sem potências dominantes. No último século, o papel de potência dominante (excetuando, talvez, o período da Guerra Fria) tem cabido aos Estados Unidos. E dado que a História nos mostra que não há vazios de poder, qual a potência alternativa seria melhor para o mundo? A resposta tem de ser procurada entre os potenciais inimigos dos americanos: Rússia, China, Coreia do Norte, Irão?

Desde logo, há que ter em conta que nestes países — todos autocracias — é muito mais fácil mobilizar o povo para a guerra. Com a comunicação social e as redes sociais controladas, bem como os tribunais e o sistema educativo, é fácil doutrinar toda a população contra o inimigo: previsivelmente, o malévolo Ocidente e o seu representante máximo, os Estados Unidos. A guerra poderia ser feita sem contestação.

Nos regimes democráticos, pelo contrário, os líderes políticos necessitam de aprovação de diversos tipos para fazer a guerra — desde maiorias parlamentares até à adesão da opinião pública. Apesar de ser desvalorizado por muitos, o tipo de regime está intimamente ligado à política externa e não é teoricamente aceitável, nem está experimentalmente comprovado, que uma Autocracia seja mais pacífica, pelo menos no longo prazo, que uma Democracia. Quem oprime os seus em casa não pode libertar os vizinhos.

Os Estados Unidos vieram em socorro da Europa nas duas guerras mundiais e na última Administração Biden fizeram frente ao ditador Putin, ajudando os ucranianos. Não são uma democracia perfeita, mas, embora com oscilações (e que grande “oscilação” é Trump!), têm melhorado continuamente. Apesar dessas melhorias são serem suficientes, enquanto se mantiverem uma democracia continuam a ter condições para melhorarem. O que não acontece com as outras superpotências militares, enquanto se mantiverem ditaduras. É por isso que os Estados Unidos são, por ora, a potência menos nociva para o Mundo.

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Migrações

A imigração é um tema atual nas sociedades mais desenvolvidas, sobretudo nos Estados Unidos e na União Europeia. Líderes populistas, como Trump, Le Pen ou Ventura, insurgem-se contra os imigrantes, acusando-os de sobrecarregarem os serviços públicos, receberem subsídios indevidos e contribuirem para o aumento da criminalidade. Tudo falso, como mostra Hein de Haas, através dos dados estatísticos publicados no seu livro Como Funciona Realmente a Migração.

De Haas baseia-se em dados quantitativos para desmontar aquilo a que chama de mitos — que políticos e comunicação social propagam sobre as migrações. Já Douglas Murray analisa o problema de um ponto de vista muito mais qualitativo. A questão que se coloca é a da identidade europeia: manterá a Europa as suas matrizes religiosa, cultural, civilizacional? Ou a presença muçulmana — com as suas misoginia e homofobia, o seu aproveitamento do liberalismo europeu — acabará por prevalecer?

Alarmismo injustificado, dirão alguns. Mas muitos muçulmanos atuais encontram-se, de facto, num mundo semelhante ao dos cristãos de outrora, quando lutar contra os infiéis era a mais importante ocupação de um homem de honra. (Cliff, 2011). E tal como acontecia com o cristianismo medieval, no mundo islâmico da atualidade a independência e a capacidade de iniciativa da sociedade civil podem ser medidas de forma mais adequada, não pela sua relação com o estado, mas pela sua relação com a religião, da qual, na percepção dos muçulmanos, o próprio estado é manifestação e instrumento. (Lewis, 2002).

A análise qualitativa de Murray, mostra-nos que as migrações não são todas iguais. É este o grande contraste com o livro de De Haas. Não faz sentido falar em guerra santa, quando as sociedades liberais em que vivemos desistiram de evangelizar o mundo. Mas o que devemos fazer quando o outro lado não desistiu de lutar e insiste num proselitismo por meios violentos? A resposta a esta importante questão não é unívoca, pelo contrário, é marcadamente ideológica, e é por isso que o livro de Murray é tão polémico. No entanto, ele alerta-nos para um problema que, ao contrário de De Haas, não deveríamos ignorar.

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Referências:

  • Cliff, Nigel, Guerra SantaComo as Viagens de Vasco da Gama Transformaram o Mundo, Globo Livros, São Paulo, 2012 (ed. orig. 2011).
  • De Haas, Hein, Como Funciona Realmente a Migração, Temas e Debates, Lisboa, 2024 (ed. orig. 2023).
  • Lewis, Bernard, O Médio Oriente e o Ocidente — O que Correu Mal?, Gradiva, Lisboa, 2003 (ed. orig. 2002).
  • Murray, Douglas, A Estranha Morte da Europa, Desassossego, Porto Salvo, 2018 (ed. orig. 2017).

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