Vasco e Pacheco voltam ao ataque (ainda o Acordo Ortográfico)

pacheco & moura

Uma das características mais extraordinárias das mentes brilhantes é a sua incrível elasticidade. De tal forma, que, em alguns casos, distendem-se tanto que chegam a atingir o extremo oposto – a mais pura estupidez. Nestes casos mantêm-se fechadas, incapazes de ver o mundo à sua volta, empedernidas numa ideia fixa que lhes tolda o mais elementar raciocínio. Há vários exemplos históricos deste fenómeno. Porém, não citarei qualquer deles, porque nenhum se compara aos casos paradigmáticos de Pacheco Pereira e Vasco Graça Moura, ilustres intelectuais lusos, há anos em luta contra o Acordo Ortográfico de 1990.

Há poucos dias saíram mais duas pérolas destes vanguardistas do Desacordo – a primeira do Pacheco, no “Público”[1], depois a do Vasco, no “Diário de Notícias”[2].  É difícil comentar a crónica de Pacheco. A sua estratégia de dramatização atinge a histeria, com afirmações como: o acordo vai a par do crescimento facilitista da ignorância, da destruição da memória e da história (…) ninguém que saiba escrever em português o quer usar.

E eu pergunto: que argumento objetivo, claro, encerra a primeira frase, lançada para o ar com palavras sonantes, destinadas a impressionar os mais incautos? Estarei eu, neste momento, ao escrever este artigo, a destruir a memória e a história? E a segunda – é fruto da arrogância, do desespero, ou de ambos em simultâneo?

No seu desvario, Pacheco Pereira chega mesmo a incluir o AO na gaveta das asneiras de Estado, junto com as PPP e os contratos swaps, e a escrever que a escrita viva se  recusa a usar o acordo e que este português pidgin, infantil e rudimentar, mais próximo da linguagem dos sms, nem sequer serve para aquilo que as línguas de contacto servem, comunicar.

Esta, confesso, nem eu esperava do Pacheco. É bem provável, seguindo o seu “argumento”, que ninguém entenda o que estou aqui a escrever…

Além disto, o artigo replica o habitual chorrilho de mentiras ou deturpação dos factos que muitos inimigos (sim, a ferocidade é de inimigos e não de adversários) do Acordo Ortográfico usam, por exemplo, quando se diz que os portugueses são os aplicantes solitários da ortografia do acordo ou que este obriga a escrita dos outros países a uma norma definida por alguns linguistas e professores de Lisboa e Coimbra. Ora, como se sabe, o AO não é aplicado apenas em Portugal e o mesmo foi discutido por representantes dos outros países lusófonos. Só assim, aliás, poderia ser um acordo.

Finalmente, PP remata o seu brilhante artigo manifestando horror pela palavra “aspeto”, dizendo que tem dificuldade em conceber que quem a escreve possa incentivar a criatividade em português ou de portugueses e promover a língua pela qualidade dos seus falantes e das suas obras.

Como se vê, nada preconceituoso…

Talvez o Pacheco não saiba, mas “aspeto” está mais próximo de “aspeito”, usado por Camões, no tempo em que a língua não tinha sido alvo ainda do fervor etimológico, tal como “respeito” e “leitor”, que escaparam até hoje das referências latinas “rescpectu” e “lector”, do que o “aspecto” dele. Nada de errado, portanto, a não ser o incómodo e a estranheza da mudança, algo que a maioria dos “desacordistas” considera intolerável.

(Esses incómodo e estranheza eram já bem conhecidos de Wittgenstein, que escreveu nas suas “Investigações Filosóficas”: Pensa no mal-estar que se sente quando a ortografia de uma palavra é alterada (…) Pensa que a imagem visual da palavra nos é, num grau semelhante, tão familiar como a auditiva.)[3].

Já o artigo de Vasco Graça Moura – esse todo-poderoso capataz daquele rancho onde estão inscritas, à entrada, as iniciais CCB – é sobre O ensino do português e o Acordo Ortográfico. A primeira parte é para saudar o novo programa de português do ensino secundário, aproveitando o ensejo, como não poderia deixar de ser, para atacar, na segunda parte, o Acordo Ortográfico. Mas não diz grande coisa. Limita-se a elogiar o artigo de Pacheco Pereira e a declarar, do alto da sua sapiência, que a crítica definitiva do Acordo Ortográfico, nos planos científico, jurídico, político e sociocultural, está feita há muito, pelo que nem sequer vale a pena retomá-la. Como se vê, uma frase bonita, ampla, grandiloquente, que parece dizer tudo, mas que, na realidade, diz nada.

A isto se resumem os artigos desses ilustres colunistas, ambos extremosos patriotas. Pena é que eles não apliquem a si próprios a máxima de Weber, a que Pacheco Pereira alude no seu artigo, defendendo que a mesma deveria ser inscrita a fogo (Pacheco é assim, não faz a coisa por menos) nas cabeças de todos os políticos: a maioria das suas acções[4] tem o resultado exactamente oposto às intenções…

É que a suposta defesa da Língua Portuguesa que eles advogam, em nome de um patriotismo balofo, seria, a concretizar-se, o princípio do fim do Português internacional que nós partilhamos hoje, sim, com o Acordo Ortográfico. Nós, os que acreditamos que o nosso espaço linguístico é muito mais vasto do que aquele que Pacheco Pereira designa no seu artigo por casa-mãe. O Português saiu de casa, constituiu família e emancipou-se. Chega a ser patético que Vasco e Pacheco não queiram aceitar isto.

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[1] http://www.publico.pt/cultura/noticia/acordo-ortografico-acabar-ja-com-este-erro-antes-que-fique-muito-caro-1620079.

[2] http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=3644541.

[3] Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1987, p. 295.

[4] Respeitou-se a grafia usada pelo autor, como é óbvio. E com isto reparo que num texto com quase novecentas palavras, apenas uma se escreve de forma diferente, usando a nova ortografia: ações. Até por aqui se vê como é absurdo o alarido criado pelos “desacordistas”.

AO90

Algumas considerações sobre o tão badalado e tão atacado Acordo Ortográfico de 1990 (adiante “AO90”), que entrou em vigor, no Brasil e em Portugal, em 2009, no momento em que uma nova investida está patente em alguns artigos na blogosfera e nos jornais, desta vez à boleia da recente decisão da Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, de adiar para 2016 a aplicação plena do AO90.

1 – Jamais se produzirá um Acordo Ortográfico que seja do agrado de todos e jamais se produzirá um acordo perfeito ou completamente coerente, sem qualquer ponto polémico.  Daqui se deduz que, fosse qual fosse o AO90, haveria sempre quem o contestasse. Porém, a maioria dos erros apontados, inclusive muitos que pretendem caricaturar o AO90 – como é o caso, entre outros, de “o cagado anda de fato na praia” – são falsos. Não sendo eu especialista, remeto os interessados para um sítio onde poderão, provavelmente, esclarecer algumas dúvidas: http://emportuguezgrande.blogspot.com.br/%5B1%5D. Dado que os argumentos técnicos estão suportados até a exaustão nos conteúdos dos “links” que aqui apresento, remeter-me-ei a outros aspetos e dimensões do problema.

2 – A discussão sobre o AO90 não deve restringir-se às questões técnico-científicas, apesar da inquestionável importância destas, mas estender-se a outras mais abrangentes e relevantes: políticas, sobretudo, mas também sociais e culturais, entre outras. Embora no caso do AO90, como se sabe, não tenha havido um escrutínio popular sobre o assunto[2], o princípio geral deve ser o de que os especialistas servem para nos ajudar a decidir, não para decidirem por nós. Como afirmou Péricles, ” se só alguns estão aptos a gizar uma política, todos são capazes de a julgar”. Todos temos o direito – e o dever – de formar uma opinião, porque, afinal, a língua é de nós todos.

3 – Os especialistas[3] não são, portanto, os donos da língua, mesmo que através de algumas opiniões – como as evidenciadas por sumidades como Vasco da Graça Moura – tentem fazer-nos crer o contrário. E se é verdade que a Língua Portuguesa não é património dos especialistas, é igualmente verdade que não é também património exclusivo de Portugal ou de qualquer outro país. A Língua Portuguesa é património de todos os que a usam, seja qual for a sua nacionalidade.

4 – O conteúdo do ponto anterior será, sem dúvida, melhor entendido por aqueles que falam, ouvem, escrevem e leem não apenas em português de Portugal (ou de outro qualquer país lusófono), mas também no de outros países, mormente aqueles que, por razões diversas, viajam pelo mundo da lusofonia e, sobretudo, aqueles que aprenderam a amar as culturas desses mesmos países e não consideram a cultura do seu país superior às dos outros.

5 – O AO90 é mais vantajoso para Portugal do que para o Brasil. É óbvio que a relevância relativa da nossa Língua é maior se tiver 250 milhões de falantes (inclui-se neste número aproximado todos os lusófonos do mundo) do que 10 ou 11 milhões. É uma estupidez pensar que os brasileiros nos querem impor as suas regras. A polémica sobre o AO90 é muitíssimo menor no Brasil do que em Portugal. E, ao contrário do que o oportunismo de Vasco Graça Moura sugere, o adiamento da aplicação plena do AO90, no Brasil, para 1 de janeiro de 2016 (afinal, em consonância com Portugal) não representa uma “reviravolta” na posição dos brasileiros. No Brasil, toda a comunicação social, todos os orgãos do poder político, todos os concursos públicos, todas as editoras e todos os estabelecimentos de ensino já adotaram o AO90.

6 – É um erro transformar a discussão sobre o AO90 numa guerra entre Portugal e Brasil. Mas é isso que Vasco Graça Moura faz quando escreve, por exemplo, “haverá sempre umas baratas tontas disponíveis para se sujeitarem ao que quer que o Brasil venha a resolver” ou “o Acordo Ortográfico é tão mal feito que nem o Brasil o aceita” ou, ainda, “se Portugal nada fizer, o comando das operações ficará nas mãos do Brasil”[4]. Brasil que, claro, também tem os seus (poucos) guerreiros, como é o caso de um tal Felipe Lindoso[5]. Estes, ao contrário de VGM, acham que são os portugueses que querem impor as suas leis. E, como numa guerra vale tudo, o recurso às mentira, demagogia e ameaça é frequente de ambos os lados. Ora, um acordo, como toda a gente sabe, implica tolerância, compromisso e responsabilidade. E não se trata de uma originalidade dos países lusófonos, outras línguas passaram recentemente por reformas ortográficas: o alemão em 1996; o neerlandês em 1996 e 2006; o espanhol em 2010; o francês em 1990, aplicando-a, como nós, só agora.

7 – Os detratores portugueses do AO90 deveriam observar também que forma tão indesejada de escrever é já, em larga medida, paticada por escritores como Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles, Nelida Piñon, Dalton Trevisan, só para citar alguns grandes brasileiros, vivos. E, já agora, que Fernão Lopes, Camões, Fernando Pessoa e Mário Cesariny escreveram de formas diferentes na mesma língua – o português – só para citar alguns grandes escritores portugueses desaparecidos[6]. Isto para dizer o óbvio: a Língua não é uma coisa estática, evolui ou, para quem não queira ver as mudanças como evolução, simplesmente muda, se transforma, pelas mais variadas razões.

8 – Posto isto, talvez cheguemos à razão principal da oposição ao AO90: a resistência à mudança. Uma resistência já constatada por Wittgenstein quando escreveu: “Pensa no mal-estar que se sente quando a ortografia de uma palavra é alterada. (E nos sentimentos ainda mais profundos que foram suscitados por questões de caligrafia)”[7]. É esta resistência à mudança que está na base da atitude conservadora de alguns, atitude que, a generalizar-se, poderá conduzir mais rapidamente[8] à desintegração da Língua Portuguesa no mundo. As posições empedernidas mostram que quem é contra o AO90 será até morrer. Eu sou a favor. A mim, interessa-me manter e aprofundar a internacionalidade do português. Dentro de dez anos, todo o ruído agora provocado pelos opositores ao AO90 desaparecerá na poeira do tempo[9],[10].

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[1] Sobre as comparações entre os casos da língua inglesa e da portuguesa, ver:

http://ciberduvidas.pt/textos/controversias/11324

[2] Aos que reclamam não terem sido ouvidos sobre o AO90 convém recordar-lhes que este faz parte de uma política prosseguida por governos democraticamente eleitos e que desde a sua assinatura em 1990, todos os responsáveis políticos eleitos em Portugal o apoiaram e incluíram várias vezes nos programas eleitorais que levaram a sufrágio.

[3]  Os especialistas veem-se frequentemente como autoridades únicas e máximas, e esta perspetiva pode ser caracterizada como “especialismo” – uma doença, cada vez mais comum, que não se restringe à linguística, mas que alastra a todos os ramos do conhecimento. A tendência do especialismo é a de fechar-se sobre si próprio, rejeitando todo e qualquer argumento vindo do exterior. Felizmente, alguns especialistas não sofrem desta doença.

[4] Ver artigos no Diário de Notícias de 02/01/2013, e no mesmo jornal do dia 09/01/2013, ambos p. 54.

[5] http://www.publishnews.com.br/telas/colunas/detalhes.aspx?id=71969.

[6] Realço, também, já que se fala de Literatura, ou seja, de uma forma de expressão artística, que muitos artistas – incluindo muitos escritores – não são especialistas, no sentido académico do termo, e isso não impede que alguns deles sejam geniais. A história é até fértil em criadores que subverteram as regras do seu tempo, cometendo, do ponto de vista dos especialistas seus contemporâneos, autênticas heresias. Algumas delas, porém, estão hoje entre as maiores obras da humanidade.

[7] Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico/Investigações Filosóficas, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 295.

[8] A autonomia do português do Brasil, de Angola ou de qualquer outro é, a prazo, uma inevitabilidade.

[9] Gostava de deixar, por último, um texto excelente de Henrique Monteiro, sobre o AO90, publicado no Expresso de 22 de fevereiro de 2012 e dedicado, precisamente, a Vasco Graça Moura. Não poderia estar mais de acordo: http://expresso.sapo.pt/o-acordo-20-anos-depois=f706306.

[10] Dada a sua relevância, remeto ainda, a posteriori, para um texto, também publicado no Expresso, em 2 de março de 2013, por Margarita Correia: http://www.ciberduvidas.com/textos/acordo/13941.

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