Nova guerra ou mais uma batalha?

atentados paris

Uma série de atentados concertados voltaram a ocorrer há poucas horas em Paris, provocando, segundo as informações apuradas até agora, quase uma centena e meia de mortos. É difícil dizer seja o que for, após uma carnificina desta dimensão. O espanto e a impotência invadem-nos, e cruzam-se com uma raiva dificilmente contida. Há que fazer qualquer coisa, há que travar esta barbaridade.

Não são raros os autores que veem no radicalismo islâmico dos nossos dias o prolongamento de uma guerra santa entre islâmicos  e cristãos – uma guerra iniciada no século oitavo, após a invasão berbere da Península Ibérica (711) – como é o caso do historiador britânico, Nigel Cliff, na sua obra de 2011, intitulada, precisamente, Holy War (já em 2001, Peter Bergen havia publicado Holy War, Inc.).

Após a invasão muçulmana, a resistência cristã manteve-se no Norte da Península, nas Astúrias, e, logo em 722, a vitória de Pelágio e seus seguidores, em Covadonga, haveria de marcar o início da reconquista, continuada por Afonso II e Afonso III, do reino das Astúrias, que poucos anos depois haveria de ter a sua sede em Leão, e mais tarde, depois da morte de Afonso IX, em 1230, de se unir com Castela.

(Não se pense, porém, que os árabes se detiveram na Península Ibérica. Em 732, os Francos (povos germânicos ocidentais), liderados por Carlos Martel (o “Martelo”), derrotaram os muçulmanos às portas de Poitiers, em França. Foi para descrever os homens de Martel que um cronista usou pela primeira vez o termo “europenses” – europeus).

Na Península, a guerra com os mouros prolongou-se por centenas de anos, incluindo aqueles em que Portugal nasceu, primeiro como condado e depois como reino – o mais antigo da Europa com as fronteiras atuais. O primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, acabaria por conquistar, com a ajuda dos cruzados (alemães, ingleses e normandos, entre outros), a importante cidade de Lisboa, em 1147. A Alfama árabe de então, o bairro mais populoso, comercial e contrabandista de Lisboa, foi, certamente, palco de lutas ferozes.

Mas as conquistas e reconquistas continuaram, e a reação islâmica, através dos Almorávidas, tribos berberes fundamentalistas, e mais tarde dos Almóadas, ambos povos aguerridos que lutavam ardentemente pelo Islão, foi brutal. Só no final do século XV, em 1492, os últimos muçulmanos, do reino de Granada, foram definitivamente expulsos da Ibéria.

Entretanto, as Cruzadas, que se iniciaram em 1098, com uma primeira expedição de peregrinos desarmados – a “Cruzada do Povo” – e que haveria de ter um fim trágico às mãos dos Turcos (só no ano seguinte se realizaria a verdadeira Primeira Cruzada, que conquistaria Jerusalém), continuariam até 1291.

A guerra entre cristãos e muçulmanos não terminaria aqui. Em 1415, uma expedição comandada por D. João I e seus filhos conquistou a cidade de Ceuta aos mouros. A partir daí, os portugueses começaram, através dos Descobrimentos, a exportar o cristianismo para partes longínquas, quer do Oriente, quer do Novo Mundo. No Oriente, a guerra santa não parou, pois os portugueses continuaram, ali, a combater os “infiéis”. A ânsia religiosa culminaria, como se sabe, em 1570, com o desastre de D. Sebastião em Alcácer-Quibir.

Já antes entrara em cena a nefasta Inquisição. A perseguição aos não-cristãos, nessa época, marcou um dos períodos mais obscuros, tenebrosos e fundamentalistas da história ocidental. Depois disso, como é sabido, as diversas tendências cristãs – católica, ortodoxa, protestante, etc. – parecem ter ultrapassado o fundamentalismo e a violência, muito por influência do desenvolvimento político que atingiu o Ocidente, com os seus estados laicos e democráticos, primeiro no Norte e depois no Sul da Europa.

Curiosamente, houve períodos em que os muçulmanos conviveram pacificamente com membros de outras religiões, numa demonstração de grande tolerância e de avanço civilizacional, relativamente aos ocidentais. Hoje, porém, o radicalismo islâmico, como tragicamente se (re)confirmou há poucas horas, é uma triste realidade.

Nestas poucas linhas, tentámos elaborar um pequeno esboço histórico, que poderia continuar, por exemplo, com a luta contra o Império Otomano (curiosamente apoiado pelos franceses até o século XIX) o qual apenas foi derrotado na sequência da Grande Guerra, sobretudo com a intenção de mostrar que a História nem sempre segue em linha reta (e nem sequer falámos nos judeus, grandes intervenientes nesta “história”). O caos instalado no Médio Oriente iniciou-se com o desmantelamento do Império Otomano, e a instituição de protetorados ou possessões ocidentais – britânicos, franceses e italianos. Temos, como é evidente, grandes responsabilidades sobre o que está a acontecer.

Apesar de termos o dever de aprender com os nossos erros do passado (remoto ou recente), não podemos esquecer-nos que temos pela frente um enorme problema. A grande questão é: perante o aumento drástico do radicalismo islâmico, conseguiremos manter a nossa tolerância religiosa, tão laboriosamente conquistada, ou seremos forçados a retomar a “Guerra Santa”, a qual, para muitos, afinal, ainda não terminou? Este parece ser, cada vez mais, no presente contexto histórico, o nosso grande desafio.

Cremos que a primeira hipótese vencerá. Os líderes políticos e religiosos ocidentais parecem conscientes da importância de mantermos as nossas conquistas civilizacionais, face a um evidente fundamentalismo religioso protagonizado pelo ISIS e outros radicais islâmicos. Mas o medo, a raiva, o sentimento de vingança e outras forças negativas poderão abrir frestas nas nossas democracias, abrindo espaço para a entrada em cena de líderes radicais e de um novo espírito de cruzada. Não devemos esquecer nunca as nefastas consequências da ação desse “cruzado” recente, que dá pelo nome de George W. Bush.

“Santa”, “civilizacional” ou outra, o facto é que estamos numa guerra com treze séculos e, quem sabe, ainda longe do fim. Uma guerra que, em nome dos nossos valores – liberdade, democracia, tolerância e paz – urge vencer.

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Foto retirada de http://www.lefigaro.fr.

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