O caminho do comunismo para a auto-escravização, por Karl Popper

Cabeçalho da revista de onde foi retirado este artigo de Karl Popper. A tradução é nossa.

Nenhum teórico contribuiu tanto para a queda do comunismo — ou socialismo — como Friedrich August von Hayek. Em nenhum lugar ele fez isso tão vincadamente como no seu pequeno livro O Caminho da Servidão, publicado pela primeira vez em 1944, quando se vislumbrava já o fim da Segunda Guerra Mundial1. Seguiram-se-lhe excelentes livros e artigos. O mais importante deles foi A Constituição da Liberdade, publicado em 19602, e os três volumes de Lei, Legislação e Liberdade, publicados entre 1973 e 19793. Quando tinha 89 anos, Hayek publicou, com o apoio de W.W. Bartley, um livro de grande sucesso, O Conceito Fatal (1989)4 . Estes livros formam uma série extraordinária de trabalhos académicos que, ao mesmo tempo, são um golpe de martelo5 contra o totalitarismo. Contribuíram em muito para a queda do Muro de Berlim de Khrushchev e da Cortina de Ferro de Estaline.

Mas Hayek não se limitou a produzir estes escritos políticos tão poderosos. Embora grande académico e distinto cavalheiro, bastante reservado no seu modo de viver, pensando e ensinando, avesso à política profissional, ele fundou, logo após a Segunda Guerra Mundial, A Sociedade Monte Pèlerin. A função desta instituição era proporcionar algum equilíbrio, tendo em conta os inúmeros intelectuais que optavam pelo socialismo. Hayek sentiu que era preciso fazer mais do que escrever artigos e livros. E assim fundou uma sociedade de académicos e economistas práticos que se opunham à moda do socialismo, protagonizada pela maioria dos intelectuais que acreditava num futuro socialista. A sociedade foi fundada na Suíça em 1947 no Mont Pèlerin, nos terrenos a sul do Lago Genebra. Tive a honra de ser convidado por Hayek para ser um dos membros fundadores. Entre os fundadores que sobreviveram estão Milton Friedman e Aaron Director. Esta sociedade ainda existe; e por muitos anos exerceu uma considerável influência entre as fileiras de intelectuais, especialmente os economistas. A sua primeira e talvez maior conquista foi, parece-me, encorajar aqueles que lutavam contra a autoridade esmagadora de John Maynard Keynes e a sua escola. Não sendo economista, não serei provavelmente competente para avaliar a influência histórica da Sociedade Mont Pèlerin. Essa é uma tarefa — uma importante tarefa, penso — para futuros historiadores das doutrinas e políticas económicas. No entanto, tendo sido durante muitos anos membro da London School of Economics, pude observar o crescimento do ensino esquerdista, o qual, nos primeiros anos depois da guerra, foi imensamente poderoso.

É justo que eu diga que o movimento iniciado por Hayek com o seu livro O Caminho da Servidão teve um importante precursor. Refiro-me ao professor de Hayek, Ludwig Von Mises, que conheci no início de 1935, em Viena, devido ao seu interesse pelo meu primeiro livro5. Conheci Hayek cerca de seis meses depois, em Londres. Foi Mises quem apresentou a primeira e fundamental crítica moderna ao socialismo: que a indústria moderna se baseia num mercado livre e que o socialismo, e especialmente o “planeamento social” era incompatível com uma economia de mercado livre e, consequentemente, fadado ao fracasso. (“Planeamento socialista” era naquela época o slogan mais emocionante nos círculos intelectuais). Esta tese de Mises foi, como podemos ver hoje, de importância fundamental.

Hayek estava convencido — talvez até convertido; pois ele disse-me que, tal como eu, tinha estado na juventude inclinado para o socialismo e, se a memória não me engana, ele disse o mesmo em alguma das suas obras publicadas. É bom lembrar que Hayek foi um dos primeiros a assumir esta tese imensamente importante de Mises, desenvolvendo-a enormemente e acrescentando-lhe uma segunda tese muito importante — uma resposta ao problema: o que acontecerá se um governo poderoso tentar instituir uma economia socialista, isto é, um “planeamento socialista”? A resposta foi: isto só pode ser feito pela força, pelo terror, pela escravização política. Esta segunda tese, quase tão importante como a primeira, é, tanto quanto sei, devida a Hayek; e tal como a tese anterior de Ludwig Von Mises foi imediatamente aceite por Hayek, também a tese de Hayek foi quase de imediato aceite por Mises. Devo referir, de novo, que não sou economista nem historiador de doutrinas económicas: as observações históricas que acabamos de fazer talvez venham a revelar-se incorretas quando todos os documentos históricos, especialmente as cartas, forem examinados. Contudo, pode ser interessante que aparecessem desta forma a alguém que, embora não sendo economista, não era de todo um outsider.

Ludwig Von Mises foi, claro, depois de Hayek, o mais importante membro fundador da sociedade Mont Pèlerin. Sempre tive consciência da contribuição absolutamente fundamental de Mises, e admirei-o muito. Desejo enfatizar este ponto, uma vez que tanto ele como eu estávamos cientes da oposição entre os nossos ponto de vista no campo da teoria do conhecimento e da metodologia. Penso que Mises viu em mim um adversário perigoso — talvez aquele que roubara a total concordância do seu maior aluno, Hayek. A metodologia de Mises era, abordando-a brevemente, subjetivista, o que o levou a reivindicar uma verdade absolutamente certa para os princípios da ciência económica. A minha metodologia era objetivista e conduziu à visão de que a ciência é falível e cresce pelo método da autocrítica e da autocorreção; ou, para ser mais elaborado, pelo método da conjetura e da tentativa de refutação. Eu respeitava demasiadamente Mises, que era muito mais velho, para começar um confronto com ele. Ele falava comigo muitas vezes, mas nunca foi além de alusões às nossas divergências: nunca iniciava realmente uma discussão com críticas diretas. Tal como eu, ele percebeu que havia algum campo em comum e sabia que eu tinha aceitado os seus teoremas fundamentais e o admirava muito por isso. Mas ele deixou claro, por meio de insinuações, que eu era uma pessoa perigosa — embora eu nunca tenha criticado os seus pontos de vista, nem mesmo para Hayek; e, mesmo agora, eu não desejaria fazê-lo. No entanto já mencionei a várias pessoas o facto da minha discordância, sem entrar em argumentos críticos. Tanta coisa sobre esses dias distantes.

Um Império Governado por Mentiras

Quero agora ir além desses dias e formular a tese deste artigo. É isto. O desaparecimento da União Soviética talvez possa ser explicado, em última instância, pelo colapso económico devido à ausência de um mercado livre; isto é, pelo que chamei de primeiro teorema de Mises. Mas penso que o segundo teorema, o teorema da escravização, de Hayek, é ainda mais importante para compreender o que aconteceu — e ainda está a acontecer — no antigo império soviético. Pois este teorema tem um corolário ou apêndice muito importante. Pode ser formulado da seguinte forma: o caminho para a servidão leva ao desaparecimento da discussão livre e racional; ou, se se preferir, do livre mercado de ideias. Mas isto tem o mais devastador efeito sobre toda a gente, incluindo sobre os chamados líderes. Isso conduz a uma sociedade em que a verborreia vazia governa o dia-a-dia; palavreado que consiste largamente em mentiras emitidas pelos líderes, com nenhum outro propósito além das autoafirmação e autoglorificação. Mas isto marca o fim da sua capacidade de pensar. Eles próprios se tornam escravos das suas mentiras, tal como todos os outros. E é também o fim da sua capacidade de governar. Eles desaparecem, mesmo sendo déspotas. Claro que estas são também, em parte, questões sobre talentos individuais. Mas sustento que dependem da duração temporal da escravidão. A aceitação das mentiras como moeda intelectual universal elimina a verdade — tal como o dinheiro mau expulsa o dinheiro bom.

Gorbachev foi o primeiro secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética a fazer várias visitas pessoais ao Ocidente. Acho improvável que ele tenha entendido muita coisa na sua primeira ou segunda visitas. Mas ele gostou da receção e voltou sempre. E então percebeu algo. Não quero dizer que o Ocidente fosse rico e que o trabalhador norte-americano estivesse muito melhor que o trabalhador soviético. Quero dizer que ele percebeu que o Império Soviético “não era um país normal”: como de facto ele próprio disse quando afirmou que esperava fazer da Rússia Soviética “um país normal”. De alguma forma, ele percebeu, provavelmente inconscientemente, que seu próprio império sofria de uma espécie de doença mental reprimida; como de facto aconteceu, juntamente com todos os seus líderes. Era a regra das mentiras. A perda de liberdade devido ao medo constante do terror é, de facto uma coisa terrível, que priva aqueles que vivem sob tais circunstâncias de uma parte da sua humanidade: da sua responsabilidade intelectual e também de parte da sua responsabilidade moral. Primeiro, não podem protestar onde deveriam; então, eles não podem ajudar onde deveriam ajudar — nem mesmo os seus amigos. Sob Estaline, isto afetava toda a gente, mesmo nos níveis mais altos da hierarquia. Todo o pensamento genuíno e realista, todo o pensamento não mentiroso, pelo menos dentro da hierarquia, concentrava-se na sobrevivência pessoal. Um quadro destes, não muito aberto, foi pintado no gigantesco discurso de Khrushchev (divulgado pelo Departamento de Estado dos EUA em 4 de junho de 1956) que terminava com:”Viva a bandeira gloriosa do nosso partido leninista”. (Aplausos tumultuosos e prolongados, terminando em ovação. Todos se levantam).6 Mas, como todos sabemos, Khrushchev foi rapidamente — não demasiado — derrubado pela burocracia do partido; e a sua saída ajudou a acelerar o declínio intelectual da hierarquia do Partido Comunista, tanto dentro como fora do império. Apesar do ensino obrigatório de uma ideologia marxista-leninista altamente complexa, incluindo uma filosofia chamada “Materialismo Dialético”, tudo o que restou desta teoria foi o seguinte dogma histórico (estou citando as Memórias de Khrushchev): “A liquidação do sistema capitalista é a questão essencial no desenvolvimento da sociedade.”7

Destruindo o Capitalismo — e o Mundo

Os economistas descrevem frequentemente as nossas sociedades ocidentais como “sociedades capitalistas”, entendendo por “capitalista” uma sociedade onde as pessoas podem comprar e vender livremente casas, terrenos e ações; e, se quiserem, podem arriscar as suas poupanças nas bolsas de valores. Mas esquecem que o termo “capitalismo” se tornou popular através de Marx e do marxismo, e que na terminologia marxista significa outra coisa. Na linguagem e na teoria marxistas, o capitalismo é um sistema social que escraviza todos os seres humanos, mantendo-os nas suas garras — não apenas os trabalhadores, mas também os capitalistas: todos são forçados pelos seus mecanismos a não fazer o que querem, mas a fazerem o que têm de fazer, o que são obrigados a fazer. O capitalismo é interpretado como um mecanismo económico que tem as consequências mais terríveis e inevitáveis: aumento da miséria para os trabalhadores e proletarização para a maioria dos capitalistas. Na luta pela concorrência, “um capitalista mata muitos outros”, escreve Marx. O capital fica concentrado em muito poucas mãos — algumas pessoas muito ricas enfrentam uma vasta massa de proletários miseráveis e famintos. É assim que Marx visualiza o capitalismo.

Obviamente, este capitalismo nunca existiu. Foi uma ilusão — nem mais nem menos. No entanto, na verdade, tais ilusões influenciaram a humanidade ao longo da sua história. A grande tarefa do partido marxista, da política marxista, era matar, ou liquidar, este sistema social ilusório. Khrushchev teve a oportunidade de fazê-lo. A oportunidade surgiu com a Grande Bomba de Andrei Sakharov. Sakharov tinha então 39 anos e passou muitos deles, apesar de vários fracassos, na construção de uma bomba nuclear que seria muito mais poderosa que qualquer bomba americana. No ano de 1961, ele conseguiu: um teste da sua grande bomba foi positivo. A bomba era, como ele escreve, “vários milhares de vezes mais poderosa do que a bomba lançada sobre Hiroshima.”8 Consideremos o que isto significa: Hiroshima era antes do bombardeamento uma cidade com mais de 340.000 habitantes. Assim, “vários milhares de vezes mais poderosa” significa que um distrito densamente povoado de 340 milhões de habitantes, ou mais, poderia ser devastado por uma bomba? Muito mais do que o número de habitantes dos Estados Unidos? Provavelmente, não: não existem tais distritos em nenhum lugar do mundo. De qualquer modo, qualquer distrito densamente povoado do mundo pode ser completamente devastado por uma dessas bombas. Parece que Khrushchev estava na Bulgária quando ouviu falar do sucesso dos testes da Grande Bomba da Sakharov.

Ele escreve em “Memórias de Khrushchev” (1971): “Foi durante a minha visita à Bulgária que tive a ideia de colocar misseis com ogivas nucleares em Cuba sem deixar que os Estados Unidos descobrissem que eles estavam lá até que fosse tarde de mais para fazer algo a esse respeito.”9 Foi uma ideia louca. Na altura em que deviam ser transportados, foram entregues 38 misseis, cada um equivalente a “vários milhares” de bombas de Hiroshima. Suponhamos que “vários” signifique apenas três: isso significaria 114.000 bombas de Hiroshima. Felizmente, elas ainda não estavam prontas. Khrushchev diz, é claro: “Quando colocamos os nossos misseis balísticos em Cuba, não tínhamos desejo de começar uma guerra!”. Acredito nele, o seu desejo não era uma guerra, mas a entrega inesperada de 150.000 bombas de Hiroshima de uma só vez. Ele escreve: “Não creio que a América alguma vez tenha enfrentado uma ameaça de destruição tão real como naquele momento!”10 Concordo. Na verdade, foi a ameaça mais perigosa para a humanidade na sua história até agora. América com um só golpe. Mas, apesar dos ferimentos mortais recebidos, os foguetes dos EUA também teriam voado; a Rússia também teria sido destruída, e as consequências, especialmente da radiação, teriam destruído a humanidade. Mas Khrushchev perdeu; e os Estados Unidos justamente armaram-se. A corrida foi perdida pela União Soviética e Sheverdnadze mostrou a bandeira branca. Nesta situação, a Hungria permitiu o êxodo dos jovens alemães orientais. Obviamente, a situação impossibilitou a interferência de Gorbachev. Então veio o colapso da Alemanha Oriental e tudo o mais que se seguiu. Tudo isto porque era tarefa do marxismo liquidar um inferno capitalista inexistente. Pode muito bem dizer-se que o marxismo caiu num buraco negro intelectual — num zero absoluto de ficção. Deveríamos considerar isto um aviso sobre o que uma ideologia pode alcançar. Obviamente, o perigo ainda não acabou. Será necessária responsabilidade intelectual para nos ajudar.

O Estado de Direito

No que diz respeito às repúblicas da antiga União Soviética, nenhum planeamento económico por parte do Estado (na medida em que o Estado exista) pode ajudar. A ajuda de que necessitam não vem dos economistas, nem mesmo do economista Hayek. Só pode vir de Hayek, o filósofo político. Nenhum Estado pode ter o dever de construir um sistema económico funcional. Mas cada Estado tem o dever de construir um Estado de Direito. Isto podemos aprender com Hayek. Não existia Estado de Direito na União Soviética, e ainda não existe: nem existem leis que sejam aceitáveis e viáveis, nem juízes aceitáveis; há apenas vestígios de governo partidário e de juízes em dívida com o partido. Enquanto for esse o caso, não há diferença entra legalidade e criminalidade. Agora, o Estado de Direito deve ser construído a partir do zero. Pois, sem Estado de Direito, a liberdade é impossível; e, sem Estado de Direito, um mercado livre é igualmente impossível. É este lado do trabalho de Hayek que é mais urgentemente necessário na antiga União Soviética.

**************************************************

Notas:

1 The Road to Serfdom, George Routledge & Sons Ltd., London, 1944.

2 The Constitution of Liberty, University of Chicago Press, 1969, and Routledge & Kegan Paul, London, 1960.

3 Law, Legislation and Liberty, Vol. I, Rules and Order, Routledge, London, 1973; Vol. II, The Mirage of Social Justice, Routledge,London, 1976; Vol. III, The Political Order of a Free People, Routledge, London, 1979.

4 The Fatal Conceit: The Error of Socialism, edited by W. W. Bartley III; Vol. I of The Collected Works of F. A. Hayek, Routledge, London, 1988.

5 Logik der Forschung, 1934; English translation, The Logic of Scientific Discovery, 1959.

6 Khrushchev Remembers, translated and edited by Strobe Talbott, Appendix 4,
Khrushchev’s Secret Speech ( as released by the U.S. Department of State on June 4, 1956), Little, Brown & Company Inc., New York, 1971, pp. 559-618.

7 Khrushchev Remembers, p. 513.

8 Memoirs, translated by Richard Lourie, Alfred A. Knopf Inc., New York, 1990, and Hutchinson, London, 1990, p. Z18.

9 Khrushchev Remembers, p. 493.

10 Khrushchev Remembers, p. 496.

**************************************************

Conferência de Lisboa de 1987

Minhas Senhoras e meus Senhores,
Quero, em primeiro lugar, agradecer ao Presidente, Dr. Mário Soares, bem como ao coordenador desta conferência, Professor Fernando Gil e, logo a seguir, ao meu amigo João Carlos Espada, o terem tornado possível este encontro e o convite para nele participar. Em segundo lugar, quero esclarecer à partida que não pretendo convencer-vos com os meus argumentos. Embora procure apresentá-los da maneira mais simples e mais evidente, tenho plena consciência de que não são perfeitos. Errar é próprio dos homens — e reconheço que errei muito ao longo da minha vida de mais de 85 anos. Nasci em Viena e a grande experiência da minha vida foi a época da Primeira Guerra Mundial — que foi desencadeada pela Áustria, o meu próprio país — e o pós-guerra. Nascido numa família de pacifistas, durante algumas semanas de 1919 (ainda não tinha 17 anos), fui atraído pelo comunismo, pois os comunistas russos tinham assinado o Tratado de Paz de Brest-Litovsk (o primeiro tratado de paz) e feito muita
propaganda daquilo a que chamavam o seu pacifismo. Uma experiência convenceu-me, porém, de que o Partido Comunista não se opunha à violência e não hesitava em pôr em risco vidas humanas, mesmo as dos seus próprios apoiantes. Essa experiência levou-me a reconsiderar a Teoria Marxista, contra a qual me revoltei um pouco antes de completar 17 anos. Concluí que não apenas eu, mas ninguém mais, sabia o suficiente para basear nos seus conhecimentos uma decisão que pudesse conduzir ao derramamento de sangue de outras pessoas em prol de um mundo melhor. Plenamente consciente da minha ignorância acerca da sociedade e do seu futuro, acabei por verificar que a Teoria da História de Marx e a sua profecia sobre o advento do socialismo, embora engenhosas, tinham muitas falhas.

Afastei-me então da política, exceto, evidentemente, naquela medida em que todo o cidadão responsável tem o dever de se interessar por ela e de sobre ela refletir. No entanto, emocionalmente, continuei durante muito tempo a sentir-me socialista. Não querendo envolver-me na vida política ativa, procurei provar a mim próprio a seriedade do meu credo socialista tomando-me trabalhador manual. Experimentei trabalhos
muito pesados, trabalhando com uma picareta na construção de estradas. Mas como não consegui aguentar fisicamente o esforço, resolvi trabalhar como aprendiz de marceneiro. Passei o respectivo exame, mas descobri que também não era suficientemente bom nesse ofício. Por fim, tornei-me professor primário. Desempenhei esta função razoavelmente, e ainda mantenho contactos com alguns dos meus antigos alunos, que hoje têm 63 anos de idade. Conto-vos tudo isto para explicar que nunca tive ambições académicas, de facto, durante os meus estudos na Universidade de Viena nunca sonhei ser professor universitário. Foi só quando publiquei o meu primeiro livro,
A Lógica da Descoberta Científica, que comecei a pensar em tal hipótese. Frequentei a Universidade não para seguir uma carreira docente, ou mesmo uma carreira de investigador, mas simplesmente porque entendia que um operário socialista devia ter inteira liberdade para estudar o que quisesse. Estudei matemática, física e um pouco de química, apenas por gosto. E estudei o marxismo em profundidade e em termos críticos, acabando por reconhecer não apenas alguns dos seus erros mas também a sua atitude de arrogância intelectual. Descobri que, dois mil e quinhentos anos antes de mim, Sócrates tinha dito: “Sei que nada sei — e mal isso sei: só sei, portanto, que não sei. Mas quero saber e quero aprender.” Foi ao amor pelo conhecimento, juntamente com a consciência da nossa própria ignorância, que Sócrates chamou “Filosofia”, palavra que significa “ânsia de conhecer”. O mesmo Sócrates disse que todos nós ansiamos por aquilo que não temos — neste caso, a sabedoria. Infelizmente, a tradição socrática quase desapareceu, A maior parte dos filósofos pensam que sabem.
Quando tomei consciência que Hitler estava prestes a invadir a Áustria, emigrei com a minha mulher para a Nova Zelândia, onde me fora oferecido um lugar de professor na Universidade de Canterbury, e no dia em que Hitler ocupou a Áustria decidi escrever outro livro em defesa da democracia. Os meus interesses teóricos continuavam orientados para as ciências naturais. Mas senti que era meu dever defender a democracia. Isso tornou-se o meu esforço de guerra. Enquanto as bombas de Hitler caíam sobre Londres, o meu primeiro livro em inglês era aceite para publicação; e foi publicado em Londres em 1945 sob o título A Sociedade Aberta e os seus Inimigos. O livro foi muito bem recebido. No mesmo dia em que estava a escrever esta conferência recebi do meu editor inglês quatro exemplares da décima oitava edição inglesa. Assim, o livro ainda está vivo quarenta e dois anos depois. Devo, no entanto, confessar que a Teoria da Democracia que nele defendo não me parece ter sido entendida, nem assimilada.
Aparentemente a minha teoria é muito diferente daquilo que as pessoas geralmente acreditam e, ao mesmo tempo, muito semelhante ao que, na prática, fazem os democratas; e, de um modo geral, era demasiadamente simples para chamar a atenção. Eis a razão por que gostaria de a explicar aqui, mais uma vez. Não só admito como sublinho que posso estar enganado. Mas defenderei aqui que a minha Teoria da Democracia é muito simples, fácil de entender por todos, muito diferente da velhíssima Teoria da Democracia que a generalidade das pessoas têm por adquirida e, finalmente, que tem muitas consequências, sobretudo de ordem prática. Quero sublinhar este último aspeto e, ainda, o facto de a minha teoria evitar expressões grandiloquentes e abstratas como “liberdade” e “razão”.
Acredito na liberdade e na razão, mas não é sobre estes termos, demasiadamente abstratos e altamente susceptíveis de má utilização, que pode construir-se uma teoria simples, prática e fecunda. Além do mais, e como é sabido, nada se ganha com definições. O que disse até aqui deve ser tido como uma Introdução ao tema desta conferência, no qual vou agora entrar, dividindo-a em três partes principais. Na primeira, apresentarei muito resumidamente aquilo que pode chamar-se a Teoria Clássica da Democracia: a teoria do governo do povo. A segunda parte será um breve esboço da minha teoria mais realista, a qual, devo dizer, ainda é nova — embora tenha sido publicada há quarenta e dois anos. A terceira parte é essencialmente uma descrição das consequências práticas da minha teoria, em resposta à pergunta: “Que diferença prática introduz esta nova teoria?”


1. A Teoria Clássica da Democracia


Em duas palavras, a teoria clássica da democracia defende que o poder reside no povo e que este tem o direito de o exercer. Podem invocar-se
muitas e variadas razões para justificar que o povo tenha esse direito, mas não é necessário que aqui me ocupe delas. Vou antes fazer uma breve referência aos seus antecedentes históricos e terminológicos. Platão foi o primeiro teórico a sistematizar as várias formas que pode revestir a Cidade-Estado. De acordo com o número dos governantes, classificou-as em Monarquia — governo de um só homem bom — e Tirania forma distorcida da Monarquia; em Aristocracia — governo de vários homens bons — e Oligarquia — forma distorcida da Aristocracia; e, finalmente, em Democracia — governo de muitos homens, de todo o povo. A Democracia não tinha duas formas: uma vez que os muitos sempre formaram uma turba, a Democracia era distorcida em si própria. Se examinarmos mais nitidamente esta classificação, e se nos perguntarmos qual o problema que estava na base do pensamento de Platão, concluiremos que era exatamente o mesmo que se encontra na base de todas as outras teorias. De Platão a Karl Marx e de Karl Marx para cá, o problema foi sempre o de saber quem deve governar — quem deve governar o Estado. A resposta de Platão a esta pergunta era simples e ingénua: devem governar os melhores. Se possível, deve governar, sozinho, o melhor de todos; em segunda escolha, alguns dos melhores, os Aristocratas. Mas nunca os muitos, a Demos, a Turba. Mesmo antes do nascimento de Platão, a prática ateniense era precisamente oposta: era o povo, a Demos, que devia governar. A prática romana começou por revestir a forma de Aristocracia, mais tarde substituída pela de Monarquia Cesarista, que em dado momento adoptou o princípio de que o poder deve ser confiado ao General escolhido pelo Exército.
Na Idade Média dizia-se: Deus é quem manda e fá-lo através dos Seus legítimos representantes humanos. A Reforma veio pela primeira vez pôr em causa este princípio de legitimidade, seguindo-se-lhe a Revolução Inglesa de 1648-49 ao proclamar que, por direito divino, era ao povo que competia governar; mas nesta Revolução a soberania divina do povo foi imediatamente utilizada para a instauração da ditadura de Oliver Cromwell. Após a morte do ditador, voltou-se ao princípio da legitimidade; cuja violação pelo próprio monarca legítimo provocou a incruenta Segunda Revolução Inglesa de 1688 e o desenvolvimento da democracia britânica através do fortalecimento gradual do Parlamento. O carácter singular deste desenvolvimento deve-se precisamente à experiência de que as querelas ideológicas fundamentais sobre quem deve governar só tinham conduzido, afinal, a consequências catastróficas. A legitimidade real, bem como o governo do povo, haviam deixado de ser princípios em que se podia confiar. Na prática, havia uma monarquia de legitimidade assaz duvidosa, criada por vontade do Parlamento, cujo poder ia aumentando constantemente. Até aos nossos dias, o Problema de Platão não voltou a ser seriamente reposto.
Karl Marx, que não era um político britânico, estava ainda dominado pelo problema de Platão, que formulava da seguinte maneira: “Quem deve governar? Os Bons ou os Maus — os trabalhadores ou os capitalistas?” E mesmo aqueles que, em nome da liberdade, rejeitavam pura e simplesmente o Estado, não conseguiam libertar-se das malhas da velha e enganosa questão — eram os anarquistas, adversários de qualquer forma de governo. Tenho simpatia pelos esforços infrutíferos que fizeram para se libertarem do velho problema de saber quem deve governar.


2. A mais realista Teoria da Democracia


No meu livro A Sociedade Aberta e os seus Inimigos sugeri que uma questão inteiramente nova deveria ser reconhecida como o problema
fundamental de uma teoria política racional. Formulei-a nos seguintes termos: como deverá ser constituído um Estado de modo a que os maus governantes possam ser afastados do poder sem violência, sem derramamento de sangue? Ao contrário da velha questão, trata-se de um problema essencialmente prático, quase de carácter técnico. As chamadas democracias modernas dão todas elas bons exemplos de soluções práticas para o problema, mesmo que as não tenham conscientemente concebido para tal efeito. Todas consagram, com adaptações, o princípio fundamental de que os governos podem ser afastados do poder pelo voto da maioria. No entanto, em teoria, todas se baseiam ainda no velho problema, bem como na ideologia nada prática segundo a qual é ou deve ser o povo (ou seja, o conjunto da população adulta), por direito próprio, o verdadeiro e único governante. É óbvio, porém, que em parte alguma o povo realmente governa. Quem manda são os governos (e, infelizmente, as burocracias também: os funcionários públicos — our uncivil masters, como lhes chamou ChurchillI — aos quais é difícil, se não mesmo impossível, responsabilizar pelos atos que praticam). Apresso-me a explicar desde já as consequências desta minha formulação, que é muito simples, prática e tipicamente não filosófica. Em primeiro lugar, é evidente que ela não colide com a prática corrente das democracias ocidentais, tais como a da constituição britânica não escrita e as muitas constituições escritas que, em graus diferentes, tomaram como modelo o parlamento britânico. É essa prática que a minha teoria — o meu problema e a sua solução — procura descrever. Por essa razão, posso chamar-lhe uma Teoria da Democracia, embora não seja, de modo algum, a teoria do governo do povo, é antes, se assim quiserem, o Estado de Direito que postula a demissão não violenta dos governos através do voto da maioria.Em segundo lugar, a minha teoria evita facilmente os paradoxos e dificuldades da teoria velha. Dou-vos um exemplo. “O que deve ser feito, se o povo votar a instauração de uma ditadura?” Obviamente, se o voto for livre, não é provável que tal aconteça. Mas se acontece, que fazer? Muitas constituições exigem uma maioria qualificada de dois terços ou mesmo de três quartos (ou seja, mais do que uma maioria simples) para uma alteração das normas constitucionais, como seria, neste caso, um voto contra a democracia. Mas esta exigência mostra que se encara tal alteração como possível; e, ao mesmo tempo, se abandona o princípio segundo o qual a vontade da maioria “não qualificada” é a última fonte do poder — ou seja, que quem manda efetivamente é o povo, através do voto maioritário. Todas estas dificuldades teóricas desaparecem se se puser de lado a velha questão “quem deve governar?”, substituindo-a por um novo problema, de ordem prática: qual a melhor maneira de evitar situações em que um mau governante causa demasiados danos? Quando se diz que a melhor solução conhecida é a de uma norma constitucional que permita a demissão do governo através de um voto maioritário, isso não significa que o voto maioritário seja sempre o voto certo, nem sequer que o seja normalmente. Significa apenas que tal solução, embora imperfeita, é a melhor que até agora se inventou. Winston Churchill disse um dia, de brincadeira, que a democracia é a pior forma de governo — com excepção de todas as outras formas conhecidas. A questão é esta: quem tiver vivido sob outra forma de governo — ou seja, num regime ditatorial que não pode ser alterado sem derramamento de sangue — sabe que vale a pena lutar pela Democracia, por imperfeita que ela seja como forma de governo. E que, creio, vale a pena morrer por ela. Esta é, no entanto, uma opinião pessoal e penso que seria um erro tentar convencer os outros a aceitá-la. Creio que podemos basear toda a nossa teoria no facto de apenas existirem, em matéria de governo, duas alternativas: a ditadura ou qualquer forma de democracia. Não baseamos a nossa opção nas virtudes da democracia, que podem ser questionáveis, mas única e exclusivamente no carácter nefasto da solução ditatorial, que, esse, não oferece dúvidas. Não só porque o ditador tende a fazer mau uso dos seus poderes, mas também porque o ditador, mesmo que seja benevolente, retira a responsabilidade a todos os outros, privando-os assim dos seus direitos humanos. Creio ser esta uma base suficiente para preferir a opção democrática, ou, por outras palavras, uma norma legal que permita afastar os maus governos.


3. Uma aplicação desta teoria simples

Falei, até aqui, das diferenças teóricas entre a teoria velha e a teoria nova. Vou agora ocupar-me das diferenças práticas entre uma e outra, tendo escolhido para tal efeito o problema da representação proporcional. A teoria velha, segundo a qual o poder deve ser exercido, como que por direito natural ou divino, pelo povo e para o povo, considera que o princípio da representação, proporcional é uma componente essencial da democracia: todas as opiniões têm o direito de ser ouvidas e a justiça exige que estejam representadas no Parlamento, ou na Câmara dos Representantes, na proporção do número de pessoas que nelas votaram. Negar tal direito será, portanto, um ato de injustiça.
Em minha opinião, este argumento é ideológico, sendo, no mínimo, questionável. Em primeiro lugar, atribui — ainda que só indiretamente — um estatuto a partidos políticos que de outra forma o não obteriam. Isto porquanto que não são apenas as opiniões, mas também os partidos políticos, que é suposto estarem proporcionalmente representados. E se as opiniões dos homens merecem sempre o maior respeito, os partidos políticos, enquanto instrumentos típicos de promoção pessoal e de poder, com todas as possibilidades de intriga que isto implica, não podem de forma alguma ser identificados com opiniões.
Os partidos não necessitam ser mencionados, nem receber qualquer estatuto oficial numa constituição que não preveja a representação proporcional. Os eleitores de cada círculo mandam para a Câmara os seus representantes pessoais. O deputado assim eleito ou atua só ou, se assim o entender, faz combinações com outros — mas em qualquer dos casos tem de explicar ao seu eleitorado as razões por que as fez. É seu dever representar, da melhor maneira que puder, os interesses de todos quantos residem na circunscrição por que foi eleito. Na esmagadora maioria dos casos, tais interesses são idênticos aos de todos os cidadãos do país, da nação. São esses que tem que defender da melhor maneira que lhe for possível. É esse o único dever dos representantes que deve ser consagrado na Constituição. O representante eleito só deverá considerar a hipótese de se responsabilizar também perante um partido político quando estiver convencido de que, ligado a ele, cumprirá melhor o seu dever perante os que o elegeram. Consequentemente, é sua obrigação abandonar o partido sempre que verificar que pode desempenhar melhor o seu dever fundamental sem ele, ou ligado a outro partido político.

Se a Constituição previr a representação proporcional então a situação será diametralmente oposta. De acordo com o principio da representação proporcional, o candidato apresenta-se ao eleitorado exclusivamente como representante de um partido político. Se for eleito, ele deve-o, sobretudo, se não exclusivamente, ao facto de ser representante desse partido. Assim, a sua principal lealdade deve ser para com o partido, sendo seu dever nunca votar contra o partido que o fez eleger. Ao contrário, ele fica moralmente vinculado a esse partido. Se não puder conciliar a lealdade partidária com a sua consciência, tem a obrigação moral, em meu entender, de se demitir do partido e do parlamento, mesmo que a Constituição lho não imponha. De facto, o processo pelo qual foi eleito retira-lhe responsabilidade pessoal, transformando-o mais em máquina de votar do que em pessoa dotada de pensamento e sentimento próprios.
Na minha opinião, isto basta para condenar o princípio da representação proporcional. Em política, precisamos de indivíduos com ideias próprias e dispostos a assumir pessoalmente responsabilidades. Admito que tal seja difícil de atingir qualquer que seja o sistema de partidos, mesmo sem representação proporcional. E reconheço igualmente que ainda não se descobriu uma solução que dispense os partidos. Se temos que ter partidos políticos, então a Constituição não deve aumentar deliberadamente, pela adopção do sistema de representação proporcional, a sujeição dos nossos representantes às máquinas e às ideologias partidárias.

Até aqui, a minha argumentação contra a representação proporcional desenvolveu-se dentro dos limites da teoria velha, segundo a qual, é o povo quem manda. Mas como já vimos que a teoria não é válida, podemos agora considerar alguns problemas práticos muito simples. A consequência política principal da representação proporcional é a tendência para aumentar o número de partidos. À primeira vista, pode ser uma consequência desejável, na medida em que a existência de um maior número de partidos significa uma maior possibilidade de escolha, mais oportunidades e menos rigidez. Significa também uma maior distribuição do poder e das influências. Sustento, porém, que esta visão das coisas é totalmente errada. No fundo, a existência de muitos partidos traz grandes dificuldades à formação de governos e põe obstáculos à duração de governos coesos. Se a representação proporcional se baseia na ideia de que a influência de um partido deve ser proporcional ao seu poder eleitoral, é
inevitável a criação de um sistema pluripartidário cuja consequência prática, na maioria dos casos, é a formação de governos de coligação.
Muito frequentemente, tal situação atribui aos pequenos partidos políticos uma influência desproporcionada — quando não decisiva — na formação dos governos e no respetivo processo decisório. Acima de tudo, porém, a responsabilidade definha, pois num governo de coligação todos os parceiros têm uma responsabilidade reduzida. A representação proporcional, assim como o aumento do número de partidos que provoca, pode portanto ter efeitos nocivos na questão fundamental, que é, como disse, a maneira de derrubar um governo através do voto, nomeadamente através de uma eleição parlamentar. Os eleitores são levados a prever que nenhum dos partidos irá obter maioria absoluta e, deste modo, não votam contra qualquer deles. Em consequência, ninguém encara o dia das eleições como um
Dia do Juízo: como um dia em que um governo responsável se apresenta para ser julgado pelos seus atos e omissões, pelos seus êxitos e fracassos, e em que uma oposição responsável critica o que o Governo fez ou não fez, explicando quais as medidas que deviam ter sido por ele tomadas e porquê.
Em vez disso, o eleitorado é levado a encarar como uma mera flutuação temporária de popularidade — e não como um veredicto de “culpado”— a
perda de cinco ou dez por cento dos votos sofrida por um partido.
Com o decurso do tempo, o povo habitua-se à ideia de que nenhum partido político ou nenhum dos seus líderes pode ser responsabilizado pelas
suas decisões. Tal como o vejo, o dia das eleições deve ser realmente um
Dia do Juízo. Como Péricles disse em Atenas, 430 anos antes de Cristo, “embora apenas alguns possam dar origem a uma política, todos somos capazes de a julgar”. Podemos enganar-nos no nosso veredicto, evidentemente — e enganamo-nos muitas vezes. Mas se tivermos vivido sob o governo de um partido e sentido as suas repercussões, temos pelo menos algumas qualificações para o podermos julgar. Tudo isto pressupõe, no entanto, que o partido no poder e os seus líderes possam ser totalmente responsabilizados pelos seus atos. E isso pressupõe, por seu turno, que o governo seja maioritário. No caso, pouco frequente, do governo de um único partido detentor de uma maioria absoluta, mesmo se a maioria dos cidadãos desiludidos votarem contra ele, não podem facilmente ser afastados do poder. Na realidade, num sistema de representação proporcional, se esse partido no poder (podendo ser responsabilizado pelos seus atos) vier a perder a sua maioria, continuará a ser, muito provavelmente, o maior partido e, com a ajuda de um dos partidos mais pequenos, formará um governo de coligação. Assim, o líder censurado do partido maior continuará a deliberar o governo, contrariamente ao voto da maioria e com o auxilio de um dos pequenos partidos cuja política, em teoria, pode estar muito longe de “representar os anseios do povo”. É sabido que um partido pequeno pode derrubar um governo, mesmo sem necessidade de novas eleições e, sem um novo mandato dos eleitores, constituir um novo governo com partidos da oposição — numa violação grotesca do fundamento da representação proporcional: a ideia de que a influência de cada partido deve corresponder ao número de votos que conseguiu obter nas urnas. Para tornar viável um governo de maioria, necessitamos de algo parecido com o sistema bipartidário que existe na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, Mas a prática da representação proporcional torna-o difícil de conseguir. No interesse da responsabilização parlamentar, defendo o sistema bipartidário, ou pelo menos algo que se lhe aproxime. Um tal sistema garante a existência, nos dois partidos, de um processo contínuo de autocrítica.
Referir-me-ei agora a algumas das objecções mais correntes que se fazem ao sistema bipartidário. Primeira objecção: um tal sistema impede a formação de outros partidos. Eu admito isso. Mas nós vemos mudanças consideráveis no interior dos dois maiores partidos ingleses e americanos. O impedimento ao aparecimento de novos partidos não significa, portanto, uma negação da flexibilidade. O ponto é que, num sistema bipartidário, o partido vencido tem que levar muito a sério a sua derrota eleitoral; pode procurar uma reforma interna dos seus objetivos, ou seja uma reforma ideológica. Se o partido sofre duas ou mesmo três derrotas sucessivas, a busca de novas ideias pode tornar-se frenética, o que obviamente, é uma consequência.
E isto pode acontecer mesmo quando a perda de votos não tiver sido excessiva, mas apenas de uma pequena percentagem. Mas num sistema com muitos partidos e com coligações tal não acontece. Uma pequena perda de votos, nomeadamente, não provoca quaisquer preocupações, pois, não tendo os partidos responsabilidades bem claras, é tomada como fazendo parte das regras do jogo. As perdas diminutas não são encaradas a sério, nem pelos chefes partidários, nem pelo eleitorado: ninguém se alarma. Mas uma democracia precisa de partidos que sejam mais sensíveis e,
se possível, que vivam em clima de alerta permanente. Só dessa maneira podem ser levados a fazer a sua autocrítica. De resto, a tendência
para a autocrítica depois de uma derrota eleitoral é muito mais pronunciada em países com sistemas bipartidários do que em países onde existem diversos partidos. Assim, a minha resposta à primeira objecção é que, contrariamente ao que pode parecer à primeira vista, um sistema bipartidário tende a ser mais flexível do que um sistema multi partidário. A segunda objecção é a seguinte. A representação proporcional permite o aparecimento de novos partidos, possibilidade que, sem ela, fica muito diminuída. A simples existência de um terceiro partido pode melhorar grandemente a actuação dos dois grandes partidos. A minha resposta: reconheço que pode muito bem ser assim. Mas o que acontece se aparecerem cinco ou seis desses novos partidos? Outra resposta é que se corre o risco de um pequeno partido ser investido num poder desproporcionado, se puder ele próprio decidir a qual dos dois grandes partidos se juntará para formar um governo de coligação. A terceira que gostaria de discutir é a seguinte: o sistema bipartidário é incompatível com a ideia da sociedade aberta — com a abertura a novas ideias e com a ideia de pluralismo. A minha resposta é que tanto a Grã-Bretanha como os Estados Unidos são nações muito abertas, que uma abertura completa seria obviamente autodestrutiva, tal como o seria uma liberdade completa; que a abertura cultural e abertura política são coisas diferentes; e que a atitude certa perante o
Dia do Juízo político pode ter muito mais valor em política do que um debate sem fim — e certamente muito mais do que uma conferência sem fim!
Obrigado pela vossa atenção, e agora fico à espera dos vossos severos ataques à minha argumentação.

**************************************************

Karl Popper, Em Busca de um Mundo Melhor, Editorial Fragmentos, Lisboa. 1989, pp. 220-229.

**************************************************

O princípio do otimismo

As possibilidades que pairam no futuro são infinitas.

Quando digo “É nosso dever mantermo-nos otimistas”,

isto abrange não só a abertura ao futuro, mas também que todos contribuamos

para ela em tudo o que fazemos: somos responsáveis pelo que o futuro nos reserva.

Por isso é nosso dever não profetizar o mal, mas antes lutar por um mundo melhor.

Karl Popper,

O Mito do Contexto (1994)

**************************************************

A questão “Como podemos ter esperança de detectar e eliminar o erro?” ecoa na afirmação de Feynman de que “a ciência é tudo o que aprendemos sobre o modo de não nos iludirmos”. E a resposta é basicamente a mesma para o processo de tomada de decisão e para a ciência: é necessária uma tradição crítica, em que se busquem boas explicações — por exemplo, explicações sobre o que correu mal, o que poderia correr melhor, que efeitos tiveram diferentes políticas no passado e que efeitos teriam no futuro.

Mas que utilidade têm as explicações se não permitem fazer previsões, e por conseguinte não podem ser experimentalmente testadas, como acontece na ciência? É esta a verdadeira questão: como é possível o progresso na filosofia? Como digo no capítulo 5, este é obtido através da busca de boas explicações. A concepção errada de que as provas não podem desempenhar um papel legítimo na filosofia é uma relíquia do empirismo. O progresso objetivo é possível, de facto, na política, como é na moral em geral e na ciência.

Tradicionalmente, a filosofia política tem-se centrado num conjunto de assuntos a que Popper chamou a questão de “quem deveria governar”. Quem deveria exercer o poder? Um monarca, os aristocratas, padres, um ditador, um pequeno grupo, “o povo” ou os seus representantes? E isto leva-nos a outras questões relacionadas, por exemplo, “como deveria ser educado um rei”, “quem deveria ter direito ao voto numa democracia”, “como garantir um eleitorado informado e responsável”.

Popper realçou que esse tipo de questões tem raízes na mesma concepção errada da pergunta — “de que forma as teorias científicas derivam dos dados sensoriais?”, que define o empirismo. A resposta reside na busca de um sistema que “deriva” ou justifica a escolha certa de um líder ou governo partindo dos dados disponíveis — como direitos adquiridos, a opinião da maioria, a forma como alguém foi educado, entre outros. A mesma concepção errada subjaz igualmente ao optimismo e ao pessimismo cegos: ambos esperam que haja progresso aplicando uma simples regra ao conhecimento existente, a fim de determinar as possibilidades a ignorar, por um lado, e a ter em conta, por outro. A indução, o instrumentalismo e mesmo o lamarquismo cometem todos o mesmo erro: esperam o “progresso sem explicações”. Esperam que o conhecimento seja criado por decreto com apenas alguns erros e não por um processo de variação e selecção que produza uma torrente contínua de erros e simultaneamente os corrija.

Os defensores da monarquia duvidavam que qualquer método de escolha de um líder através do pensamento racional e do debate pudesse ser aperfeiçoado com um critério mecânico previamente estabelecido. Era o princípio da precaução posto em prática, e que deu origem às habituais ironias. Por exemplo, sempre que os pretendentes ao trono afirmavam possuir mais direitos hereditários que o titular, estavam com efeito a citar o princípio da precaução como justificação de uma mudança súbita, violenta e imprevisível — por outras palavras, do optimismo cego. O mesmo se aplicava quando os próprios monarcas favoreciam mudanças radicais. Consideremos ainda os utópicos revolucionários, que normalmente conseguem apenas destruição e estagnação. Embora se trate de optimistas cegos, o que os define como utópicos é o seu pessimismo quanto à definitiva impossibilidade de aperfeiçoamento da sua suposta utopia, ou das suas propostas violentas para a alcançar e consolidar. Adicionalmente, são à partida revolucionários porque, pessimistas, não acreditam que muitos outros sejam persuadidos da verdade final que pensam conhecer.

As ideias têm consequências e a abordagem do “quem deveria governar?” na filosofia política não é apenas um erro de análise académica: tem sido parte integrante de quase todas as más doutrinas políticas da história. Se o processo político é visto como um motor que põe os governantes certos no poder, então justifica a violência, pois enquanto o sistema adequado não estiver estabelecido nenhum governante é legítimo e, uma vez estabelecido com os governantes designados no poder, a oposição torna-se oposição ao que está certo. O problema passa então a ser como travar os opositores dos governantes e suas políticas. Pela mesma lógica, todos os que pensam que os actuais governantes ou políticas são maus devem inferir que a questão “quem deveria governar?” tem sido respondida erradamente, e portanto que o poder dos governantes não é legítimo, ao contrário da oposição, inclusivamente pela força. Assim, a própria questão “quem deveria governar?” implora por respostas violentas e autoritárias e tem-nas obtido, frequentemente. Conduz os que estão no poder à tirania e à consolidação de maus governantes e más políticas; conduz os seus opositores ao tumulto e à revolução.

Os apologistas da violência têm em geral consciência de que nada disso teria de acontecer se todos concordassem quanto aos líderes certos, mas isso significa concordar quanto ao que está certo e, existindo esse acordo, os governantes não teriam então nada que fazer. De qualquer modo, um tal acordo não é possível nem desejável: as pessoas são diferentes e têm ideias próprias, os problemas são inevitáveis e o progresso consiste em resolvê-los

Assim, Popper aplica o seu princípio básico “como podemos detectar e eliminar o erro?” à filosofia política sob a forma de “como podemos livrar-nos dos maus governos sem violência?”. Da mesma forma que a ciência busca explicações experimentalmente verificáveis, um sistema político racional facilita o mais possível a detecção de um mau líder ou política, e a persuasão de outros de que é esse o caso, e a sua remoção sem violência. Tal como as instituições científicas estão estruturadas de forma a evitar consolidar teorias, mas antes a expô-las à crítica e à verificação, também as instituições políticas não deveriam dificultar a oposição pacífica aos governantes e às medidas políticas, personificando antes uma tradição de discussão pacífica e crítica destes e das próprias instituições e de tudo o resto. Assim, os sistemas de governo devem ser julgados não pela sua capacidade profética de escolher e instalar bons líderes e políticas, mas pela sua capacidade de remover mais líderes já instalados.

Toda essa posição é o falibilismo em acção. “Supõe” que os governantes e as políticas serão sempre imperfeitas — que os problemas são inevitáveis. Mas supõe também que o seu aperfeiçoamento é possível: os problemas têm soluções. O ideal segundo o qual isto funciona não é que nada inesperado aconteça. mas sim que, quando acontecer, será uma oportunidade de mais progresso.

Por que motivo desejaria alguém tornar os líderes e políticas que eles próprios favorecem mais vulneráveis a uma saída? Na verdade, prefiro perguntar primeiro: “por que razão desejaria alguém sequer substituir maus líderes e más políticas?” Essa questão poderá parecer absurda, mas talvez o seja apenas na perspectiva de uma civilização que vê o progresso como dado adquirido.. Se não esperássemos o progresso, por que motivo esperaríamos que o novo líder ou as novas políticas, escolhidos por qualquer método, fossem de alguma forma melhores que os anteriores? Pelo contrário, deveríamos esperar então que quaisquer mudanças fossem, em média, tanto benéficas como nocivas, E então o princípio da precaução avisa: mais vale um mal conhecido que um bem por conhecer. Há aqui um nó apertado de ideias: se supusermos que o conhecimento não aumentará, então o princípio da precaução será verdadeiro, e, supondo que o princípio da precaução é verdadeiro, não podemos dar-nos ao luxo de deixar que o crescimento cresça. A menos que as expectativas de uma sociedade sejam que as suas futuras escolhas serão melhores que as actuais, lutará no sentido de manter as suas instituições e política imutáveis. Assim, o critério de Popper apenas pode ser obedecido por sociedades com expectativas de crescimento do conhecimento — e um crescimento imprevisível. Mais ainda, que esperam que “este crescimento ajude”.

Esta expectativa é aquilo a que chamo optimismo e posso descrevê-lo, na sua acepção mais geral, como se segue:

Princípio do optimismo

“Todos os males são causados por conhecimento insuficiente”

**************************************************

David Deutsch, O Início do Infinito, Gradiva, Lisboa, 2013, pp. 307- 12.

**************************************************

Em Busca de um Mundo Melhor

Todas as coisas vivas procuram um mundo melhor.

Homens, animais, plantas e até organismos unicelulares estão constantemente ativos. Todos tentam melhorar a sua situação, ou pelo menos evitar a deterioração. Mesmo quando dorme, o organismo mantém ativamente o sono: a profundidade (ou então a superficialidade) é uma condição criada pelo organismo, que mantém o sono (ou então mantém o organismo em estado de alerta). Qualquer organismo está constantemente ocupado com a tarefa de resolver problemas. Esses problemas surgem da avaliação que faz sobre a sua condição e o seu ambiente; condição essa que o organismo procura melhorar.

Uma tentativa de solução mostra-se por vezes equivocada, na medida em que piora as coisas. Seguem-se novas tentativas de solução — mais movimentos de tentativa e erro.

Podemos ver que a vida — mesmo no nível unicelular — traz algo completamente novo ao mundo, algo que não existia anteriormente: problemas e tentativas ativas de resolvê-los; avaliações, valores; tentativa e erro.

Podemos supor que, sob a influência da seleção natural de Darwin, são os solucionadores de problemas mais ativos, os que buscam e os que encontram, os descobridores de novos mundos e novas formas de vida, que evoluem mais rapidamente.

Cada organismo esforça-se também por estabilizar as suas condições internas de vida e por manter a sua individualidade — uma atividade cujos resultados os biólogos chamam de “homeostase”. No entanto, isso é também uma agitação interna, uma atividade interna: uma atividade que tenta confinar a agitação interna, um mecanismo de retroalimentação, uma correção de erros. A homeostase deve estar incompleta. Ela deve autolimitar-se. Se fosse ilimitada, significaria a morte do organismo ou, no mínimo, a cessação temporária de todas as suas funções vitais. A atividade, a agitação, a busca são essenciais para a vida, para a inquietação perpétua, para a imperfeição perpétua; para as perpétua busca, esperança, avaliação, descoberta, aperfeiçoamento, aprendizagem e criação de valores; mas também para o erro perpétuo, a criação de valores negativos.

O darwinismo ensina que os organismos se adaptam ao ambiente através da seleção natural. E ensina que eles são passivos durante esse processo. Mas parece-me muito mais importante enfatizar que os organismos encontram, inventam e reorganizam novos ambientes no decurso da sua busca por um mundo melhor. Eles constroem ninhos, represas, pequenas colinas e montanhas. Mas a sua criação mais importante foi, provavelmente, a transformação da atmosfera ao redor da Terra, enriquecendo-a com oxigénio; essa transformação foi, por sua vez, uma consequência da descoberta de que a luz do sol pode ser comida. A descoberta desse alimento inesgotável e das inúmeras formas de capturar a luz, criou o reino das plantas; e a descoberta de que as plantas também podem ser comidas criou o reino animal.

Nós mesmos fomos criados pela invenção de uma linguagem especificamente humana. Como diz Darwin (The Descent of Man, parte 1, capítulo III), os uso e desenvolvimento da linguagem humana “agiram sobre a própria mente”. As afirmações da nossa linguagem podem descrever um estado de coisas, podem ser objetivamente verdadeiras ou falsas. Assim, a busca pela verdade objetiva pode começar — a aquisição do conhecimento humano. A busca da verdade, particularmente nas ciências naturais, conta-se entre as maiores e melhores coisas que a vida criou na sua longa busca por um mundo melhor.

Mas não teremos nós destruído o meio ambiente com a nossa ciência natural? Não! Cometemos grandes erros — todas as criaturas vivas cometem erros. E é realmente impossível antever todas as consequências não intencionais das nossas ações. Mas aqui a ciência continua a ser a nossa maior esperança: o seu método é a correção do erro.

Não quero terminar este prefácio sem dizer alguma coisa sobre o sucesso da busca por um mundo melhor durante os oitenta e sete anos da minha vida, tempo de duas guerras mundiais sem sentido e de ditaduras criminosas. Apesar de tudo, e embora tenhamos tido tantos fracassos, nós, os cidadãos das democracias ocidentais, vivemos numa ordem social que é melhor (porque mais favorável a reformas) e mais justa do que qualquer outra na história. Mais melhorias são urgentes. (No entanto, melhorias que aumentem o poder do estado muitas vezes trazem o oposto do que almejamos).

Gostaria de mencionar brevemente duas coisas em que melhorámos.

A mais importante é que a terrível pobreza em massa, que ainda existia durante as minhas infância e juventude, agora desapareceu. (Infelizmente, isto não acontece em lugares como Calcutá). Alguns podem objetar que há pessoas na nossa sociedade demasiado ricas. Mas porque deveria isso incomodar-nos se há recursos suficientes — e boa vontade — para lutar contra a pobreza e outros sofrimentos evitáveis?

A segunda é a nossa reforma do direito penal. Ao princípio tivemos a esperança de que, se as punições decrescessem, então os crimes decresceriam também. Quando as coisas não funcionaram assim, decidimos que nós mesmos, individual e coletivamente, preferíamos sofrer os efeitos do crime, dos assassinatos, da corrupção, da espionagem e do terrorismo, em vez de darmos o passo muito questionável de tentar erradicá-los por meios violentos, e assim correr o risco de vitimizar pessoas inocentes. (Infelizmente, isto é difícil de evitar completamente).

Os críticos acusam a nossa sociedade de corrupção em altos cargos, embora possam admitir que a corrupção é às vezes punida (Watergate). Talvez eles não estejam cientes da alternativa. Nós preferimos uma ordem que garanta proteção legal completa até mesmo a criminosos perversos, por forma a que não sejam punidos em caso de dúvida. E preferimos esta ordem a outra ordem em que mesmo aqueles que são inocentes de qualquer crime não podem encontrar proteção legal e são punidos, mesmo quando a sua inocência é indiscutível (Solzhenitsyn).

Ao tomar esta decisão, talvez tenhamos escolhido ainda outros valores. Talvez tenhamos, inconscientemente, aplicado o maravilhoso ensinamento de Sócrates: “é melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la”.

**************************************************

Karl Popper, In Search of a Better World, Prefácio, Routledge, London. (Tradução nossa).

**************************************************

O Estado da Ciência

A ciência é algo maravilhoso e verdadeiramente importante: não apenas porque é a base da tecnologia moderna, e portanto de toda a economia moderna. Mas ainda por uma razão mais vital: ajuda-nos a purgar as nossas mentes de preconceitos, e assim permite-nos ver o mundo cada vez mais como ele é. Entre todas as grandes aventuras do homem na Terra, a ciência é a maior delas. É uma aventura maior do que escalar o Monte Everest ou circundar a Terra numa nave espacial; não tanto porque, sem a ciência moderna, a moderna tecnologia não seria possível (nem nenhuma das outras aventuras mencionadas), mas antes porque o desenvolvimento de novas ideias, de novas formas de pensar, é uma conquista revolucionária e histórica, a maior conquista humana.

Mas como podemos nós distinguir a ciência da não-ciência — por exemplo, das ideologias especulativas ou das especulações metafísicas ou da astrologia ou de certos sistemas religiosos?

Esta questão é de grande importância; de facto, é uma questão cuja solução afeta o destino da espécie humana. Porque os homens sempre estiveram prontos para lutar até à morte por aquilo que acreditam ser a verdade; e infelizmente estiveram frequentemente dispostos a perseguir, banir, torturar, e matar aqueles que consideraram os inimigos da verdade. E todos sabemos como frequentemente ambas as partes nestes conflitos religiosos ou ideológicos estavam enganadas.

Há muitas guerras religiosas e perseguições, desde as conquistas muçulmanas e as Cruzadas até aos nossos dias. Admite-se que tenham havido causas ou razões económicas por trás das razões religiosas: alguns cruzados tinham a intenção de regressar carregados com riquezas do Oriente. E possivelmente haverão outras razões económicas. Similarmente, alguns dos combatentes na Guerra Civil Americana para a libertação dos escravos negros devem ter tido motivos económicos. Mas ninguém pode negar que ideias como a ideia de liberdade e ideias religiosas tiveram também um papel importante na Guerra Civil. E isto quer dizer que os credos, ou convicções, religiosos ou ideológicos, foram importantes e também causas efetivas; esses acontecimentos foram influenciados pelo que esses homens julgavam saber, pelo que acreditavam ser a verdade.

A importância das ideias, credos ou convicções foi, claro, completamente reconhecida por Marx e pelos seus seguidores. De facto, todos os que escrevem um livro ou um artigo na esperança de poder influenciar algumas pessoas estão tacitamente, ou talvez inconscientemente, a reconhecer o poder das ideias e ideologias.

Assim, quaisquer que sejam as nossas visões sobre a relação entre ideias e condições económicas, não há qualquer razão para duvidarmos da força e da importância das ideias e ideologias — a força das crenças das pessoas ou, por outras palavras, daquilo que elas acreditam ser a verdade.

Mas o que as pessoas acreditam ser verdade é frequentemente falso: na maioria das disputas religiosas ou ideológicas ambas as partes estão erradas. Consequentemente, é importante para nós a distinção entre duas coisas: uma é aquilo que as pessoas acreditam ser verdade; e a outra é o que, de facto, é verdade. Esta distinção é obviamente muito importante, embora não seja fácil fazê-la. Se fosse fácil não haveria tanta gente que acredita conhecer a verdade, mas que está, de facto, errada.

É aqui que entra a ciência. Não porque a ciência seja sempre infalível — claro que não é — mas porque a ciência toma a busca da verdade como a sua principal tarefa, mesmo que a verdade choque com as nossas crenças, as nossas convicções pessoais, as nossas tradições, os nossos preconceitos.

Acabei de dizer que a ciência não é infalível. Se fosse infalível, não haveria revoluções científicas. No entanto, as revoluções científicas acontecem. Houve a revolução coperniciana — a revolução em que Copérnico substituiu o sistema geocêntrico do mundo pelo sistema heliocêntrico. Esta foi uma revolução científica, porque o antigo sistema geocêntrico de Ptolomeu estava consolidado cientificamente: era uma teoria complicada mas bem pensada do movimento das estrelas fixas e dos planetas em torno da Terra, e era capaz de produzir predições destes movimentos que eram tão boas quanto as de Copérnico.

Claro, o sistema de Ptolomeu estava errado: a Terra não é o centro do universo nem está em repouso. Mas depois, o sistema revolucionário de Copérnico estava também errado, embora não tanto quanto o de Ptolomeu. Porque apesar de Copérnico ter razão ao asseverar que a Terra tem um movimento de rotação, e que este planeta é um dos que roda em torno do sol, ele estava claramente errado ao dizer que o Sol estava em repouso e que o Sol era o centro do universo; sabemos hoje que o Sol também tem movimento de rotação, e acreditamos que o universo não tem nenhum centro. Além disso, Copérnico estava errado ao aderir à teoria enganosa de Ptolomeu que considerava que as órbitas dos planetas consistiam em círculos e epiciclos; porque sabemos, desde Kepler e Newton, que consistem, aproximadamente, em elipses e não em círculos.

Assim, não apenas Ptolomeu estava errado como também Copérnico. E Galileu, que foi um dos grandes cientistas,, estava também errado, dado que ele acreditava nos círculos e epiciclos de Copérnico. E o grande Kepler, que substitui os círculos e epiciclos por elipses, estava também errado; porque embora as órbitas dos planetas sejam aproximadamente elípticas, não são rigorosamente elípticas, como Newton mostrou; tal como a órbita de um satélite é aproximadamente, mas não precisamente, elíptica. Mais especificamente, um satélite que se mova para um lugar suficientemente longe da Terra e seja atraído por outro corpo, como a Lua ou, talvez, o Sol, ou Vénus, mover-se-á numa trajetória muito diferente da de uma elipse, de acordo com a teoria de Newton.

A teoria de Newton é maravilhosamente exata; no entanto, até esta teoria não é totalmente verdadeira. O planeta Mercúrio apresenta desvios da órbita newtoniana, que os astrónomos não foram capazes de explicar em termos da teoria de Newton. Foi preciso uma nova revolução científica para explicar isto; e a revolução einsteiniana foi simplesmente tão radical e excitante quanto foram as de Copérnico, Kepler e Newton.

Então a ciência não é certamente infalível. Comete frequentemente erros. Mas progride, e aproxima-se mais e mais da verdade: Copérnico e Galileu estavam certos em se oporem a Ptolomeu, porque o sistema de Copérnico estava mais próximo da verdade do que o sistema de Ptolomeu. Kepler estava certo em substituir os círculos de Copérnico por elipses, e Newton estava certo ao desenvolver uma teoria que foi mais longe que a de Kepler ao permitir a interação mútua entre planetas, e de facto, entre todos os corpos físicos. E Einstein estava certo na sua tentativa de melhorar o sistema newtoniano que tanto admirava, e em criticar o próprio Newton, que era, para Einstein, o maior de todos os cientistas.

Assim, todos os cientistas são falíveis, mesmo o maior de todos eles. Não há, portanto, uma autoridade real em ciência, embora, sem dúvida, haja grandes cientistas e outros menos grandes. O método principal que faz progredir a ciência é o método de criticar teorias científicas. E o progresso será tanto maior quanto mais importante e influente for a teoria criticada com sucesso — a teoria que precisa ser melhorada.

Consequentemente, os maiores cientistas — os responsáveis pelas mais importantes revoluções em ciência — são ao mesmo tempo os que criticaram com sucesso os seus grandes predecessores. Isto mostra que qualquer tipo de autoritarismo em ciência é não apenas absurdo, mas também altamente reacionário, pois impede o progresso científico.

A grande diferença entre as teorias científicas e as ideologias — por exemplo, ideologias religiosas — radica precisamente nisto: as teorias científicas estão sujeitas à crítica revolucionária, a qual conduz a um progresso igualmente revolucionário. As outras ideologias, por seu turno, são dogmáticas: consequentemente, qualquer tentativa de reformar uma religião ou uma ideologia conduz sempre a uma cisão — a um cisma entre fações opostas, e a uma luta pelo poder. E vice-versa: sempre que uma crítica revolucionária, ou uma ideia revolucionária, conduziu a cisões e a uma luta pelo poder, o espírito cientifico passou a estar ausente: o seu lugar foi ocupado por uma ideologia religiosa, dogmática ou metafísica.

Assim, podemos dizer que o espírito da ciência revela-se na atitude crítica e no anti-autoritarismo. Isto, e só isto, marca a diferença entre ciência e pseudociência, ou entre atitude científica e atitude pseudocientífica.

Mas não é o método da ciência principalmente um método de coletar observações e dados experimentais?

Não pode haver dúvidas sobre a importância das observações e das experiências para a ciência. Mas as observações e as experiências são sobretudo importantes porque podem ser usadas como argumentos críticos importantes e, por vezes, mesmo decisivos. A sua função é a de ajudar-nos na crítica e na eliminação das teorias erradas. Kepler, por exemplo, descreve com grande detalhe como rejeitava e inventava constantemente novas teorias, apenas para rejeitar de novo a mais recente, quando percebia que esta era incompatível com as observações de Tycho Brahe. Assim, podemos ver que ele usava estas observações apenas como testes: usava-as para confrontar, criticar, eliminar as suas teorias, mas nunca as usou como ponto de partida de uma teoria nova.

A situação nas ciências sociais é muito semelhante à das ciências naturais: inventam-se teorias, e tenta-se melhorá-las através de um criticismo severo. As observações voltam a desempenhar um papel importante, mas apenas como argumentos críticos: não podem ser usadas para descobrir novas teorias nem para estabelecê-las.

Quase não precisa ser dito que os grandes cientistas sociais são tão falíveis quanto os grandes cientistas naturais. E quase também não precisa ser dito que se nos abstivermos de uma atitude crítica nas ciências sociais e nos agarrarmos dogmaticamente às nossas teorias, então não apenas nos tornaremos reacionários no que diz respeito ao desenvolvimento da ciência, impedindo o progresso das ciências sociais, como as nossas teorias se tornarão não-científicas ou pseudocientíficas. Porque a principal diferença entre ciência e pseudociência radica na abordagem crítica — na prontidão com que abrimos mão de qualquer crença, por mais cara que nos seja, a partir do momento em que ela não resiste à crítica.

Um dos mais importantes e mais perigosos dogmas da ciência social é a ideia de que podemos prever o curso futuro da história. Claro que algum tipo de predições vagas são possíveis: podemos dizer que irão acontecer ciclos económicos em todos os países; que irão acontecer boas colheitas assim como más colheitas, tempos de progresso e tempos de estagnação. Mas isto são afirmações genéricas e, por isso, vazias: dificilmente precisamos de uma ciência social para nos dizer coisas deste tipo.

Mas há dogmas bem mais precisos e perigosos. Um dos mais perigosos é o dogma de que a guerra é inevitável entre países capitalistas e socialistas.

Este dogma é muito perigoso; porque se os líderes políticos de um país poderoso acreditarem que a guerra é inevitável, então esta sua crença pode facilmente ser um fator relevante que conduza à guerra.

Que uma crença, uma expectativa, uma predição, o simples medo podem trazer à luz do dia o que é acreditado, esperado, predito ou temido, é um fenómeno bem conhecido da vida social. Se um número suficiente de pessoas crer, expectar, predizer ou temer, que haverá uma escassez — digamos, de sapatos ou de batatas — então essas pessoas comprarão mais sapatos ou batatas do que fariam normalmente, fazendo assim com que a predita escassez aconteça, ou pelo menos contribuindo para isso. Da mesma forma, se um número suficiente de pessoas, ou de pessoas influentes, acreditar que uma guerra é inevitável, então essas pessoas não farão tudo o que é possível para evitá-la (dado que isto seria uma política fútil e irracional, de acordo com as suas crenças), antes vão preparar-se para ela, armar-se para ela. E ao não fazerem tudo o que é possível para evitá-la, e preparando-se para ela, podem realmente contribuir para que a guerra aconteça.

É portanto da maior importância para todos nós compreendermos que o dogma de que a guerra é inevitável não faz parte das descobertas de nenhuma ciência social crítica, embora possa fazer parte de uma ideologia metafísica com pretensões a ser ciência. Alguns cientistas sociais tentaram apresentar este dogma há anos; mas desde esses dias as condições sociais mudaram num sentido que nenhum cientista social poderia, possivelmente, prever. Nunca é de mais enfatizar que o mundo social muda constantemente como resultado de novas descobertas físicas e técnicas, e que algumas dessas descobertas não podem ser previstas: não podemos antever todas as grandes e revolucionárias descobertas da ciência física, e por isso não podemos antever o rumo que o crescimento do nosso conhecimento científico irá tomar.

Segue-se que nós não podemos antever o curso da história. É certo que podemos ver algumas das forças históricas em ação. No entanto, quem poderia antever, há cem anos, o desenvolvimento dos aviões supersónicos? Foi apenas em 1875 que um dos líderes científicos da Europa, Julius Robert Mayer, um dos descobridores do princípio da conservação de energia, declarou que o problema da construção de um dirigível era tão insolúvel como o da construção de uma máquina de movimento perpétuo. Ninguém pôde naquele tempo antever a rádio ou a televisão ou, mais importante, os grandes avanços na medicina; a conquista sobre a poliomielite, por exemplo, ou o desenvolvimento de novos métodos para o controlo da natalidade. E quem pode negar que estes desenvolvimentos técnicos e médicos imprevistos tiveram, e vão continuar a ter, grandes e inesperadas consequências sociais, políticas e históricas?

Mas se assim é, então é puro dogmatismo pseudocientífico afirmar que algo é inevitável — por exemplo, a guerra; ou a vitória política de um qualquer sistema social. E, claramente, é muito importante realçar o caráter pseudocientífico deste tipo de dogma, estabelecendo uma linha de demarcação entre a ciência crítica e a pseudociência dogmática; pois se as pessoas continuarem a acreditar que a previsão da guerra é científica, a sua crença pode levar-nos a uma catástrofe que poderia, de facto, ser evitada.

Torna-se então óbvio quão importante é reconhecer que a principal característica da ciência é, essencialmente, a atividade crítica, bem como reconhecer a falibilidade de toda a ciência e de todos os cientistas, incluindo os maiores.

**************************************************

A nossa edição: Karl Popper, “After the Open Society”, Routledge, London and New York, 2008, pp. 256-261.

(Tradução nossa).

**************************************************

Sobre a Liberdade. Um texto de Karl Popper.

Escola Karl Popper em Viena.

Sobre a Liberdade*

I

Pouco se sabe sobre o povoamento humano dos Alpes austríacos, suíços e franceses, que remonta a tempos pré-históricos. Mas devíamos realmente considerar como é que pessoas que cultivavam a terra e criavam gado, se mudaram para a zona intransitável e bravia dos Altos Alpes onde, de início na melhor das hipóteses podiam levar uma existência difícil, pobre, cheia de perigos. A explicação mais provável é que estes povos preferiam uma vida incerta em regiões ermas à subjugação a povos vizinhos mais poderosos. Apesar da incerteza e do perigo, escolheram a liberdade. Muitas vezes gosto de alimentar a ideia de que a tradição de liberdade suíça e tirolesa, em particular, remonta aos tempos do povoamento pré-histórico da Suíça.

Seja como for, é um facto interessante e notório que a Grã-Bretanha e a Suíça, as duas democracias mais antigas da Europa contemporânea, são hoje muito semelhantes no seu amor pela liberdade e na sua prontidão em defendê-la. Porque, em muitos outros aspectos, especialmente nas suas origens políticas, estas duas democracias são fundamentalmente diferentes. A democracia britânica deve o seu surgimento ao sentido de orgulho e independência entre a alta nobreza e o seu desenvolvimento posterior à mentalidade protestante, consciência pessoal e tolerância religiosa – consequências dos grandes conflitos religiosos e políticos associados à Revolução Puritana. A democracia suíça não resultou do orgulho, independência e individualismo de uma alta nobreza, mas do orgulho, independência e individualismo dos agricultores das montanhas.

Estes início e tradições totalmente diferentes levaram a instituições tradicionais bastante diferentes e a sistemas de valores tradicionais bastante diferentes. O que um suíço ou um tirolês espera da vida é, penso eu, geralmente diferente daquilo que um britânico espera da vida. Provavelmente, as diferenças dos sistemas de valores baseia-se em parte na diferença dos sistemas educativos; mas é extremamente interessante a diferença nos sistemas educativos encontrar-se ela própria profundamente enraizada nos contrastes históricos e sociais a que me referi. Na Inglaterra, ainda neste século, a instrução era um privilégio da nobreza e dos proprietários de terras – a fidalguia rural; não dos habitantes das cidades e dos burgueses, mas das famílias donas de grandes extensões de terra, que viviam no campo. Estas famílias eram as detentoras da cultura. É delas também que provêm os académicos e os cientistas (muitas vezes amadores influentes e originais) e os membros das profissões mais qualificadas – políticos, homens do clero, juízes, oficiais militares. Pelo contrário, os grandes titulares da cultura no continente eram os habitantes das cidades; provinham na sua maior parte da burguesia urbana. A educação e a cultura não eram coisas que se herdassem; eram coisas que se adquiriam. A educação e a cultura não eram um símbolo de uma posição social herdada, mas um meio e um símbolo de evolução social, de auto-emancipação através do conhecimento. Isto explica também porque é que a luta vitoriosa contra a miséria na Inglaterra foi uma espécie de continuação das lutas religiosas a um nível diferente – uma luta em que o apelo dos aristocratas e das gentes das cidades à consciência religiosa desempenhava um papel decisivo – ao passo que a luta contra a miséria na Suíça e na Áustria era inspirada pela ideia de auto-emancipação através do conhecimento, pela fantástica visão de Pestalozzi quanto à educação. Apesar de todas estas profundas diferenças, tanto a Inglaterra como a Suíça sabem que existem valores que têm de ser defendidos a qualquer preço e os primeiros entres estes valores são a independência pessoal, a liberdade pessoal. E ambos os países aprenderam que tem de se lutar pela liberdade, e que tem de se defendê-la, mesmo que a possibilidade de sucesso pareça diminuta. Em 1940, quando a Grã-Bretanha lutava isolada pela liberdade, Churchill não prometeu a vitória aos britânicos. “Não posso prometer-vos nada melhor do que sangue e lágrimas”, disse. Essas palavras deram à Grã-Bretanha coragem para continuara a lutar.

Também na Suíça foi apenas uma tradicional determinação para lutar – mesmo contra um inimigo claramente superior, como os Habsburgos e, mais tarde, o Terceiro Reich – que permitiu aos suíços manterem a sua liberdade durante a Segunda Guerra Mundial.

II

Receio bem que os magníficos arredores da nossa querida Alpbach, esta maravilhosa interacção da natureza e da mão do homem, tenham feito que as minhas palavras de abertura fossem um pouco sentimentais e românticas. Sinto-me pois na obrigação de contrabalançar de imediato estas palavras sentimentais e românticas com uma segunda introdução dirigida contra o romantismo – em especial o romantismo na filosofia. E gostaria de começar esta segunda introdução com uma confissão.

É especialmente importante para mim que aquilo que vou dizer não seja considerado verdadeiro na base da confiança. Na realidade, preferiria que isto fosse considerado com o maior ceticismo. Ao contrário de muitos dos meus colegas filósofos não sou um líder percorrendo novos caminhos, anunciando a chegada de novas direções na filosofia. Sou um filósofo perfeitamente antiquado que acredita numa filosofia completamente antiquada: ou seja, a filosofia de tempos antigos, os tempos do racionalismo e do Iluminismo. Como um dos últimos defensores solitários do racionalismo e do Iluminismo, creio na auto-emancipação do homem através do conhecimento – tal como outrora Kant, o maior filósofo do Iluminismo, acreditou, ou como Pestalozzi usou o conhecimento para lutar contra a miséria. Por isso, gostaria de dizer claramente que represento pontos de vista que foram já considerados ultrapassados e totalmente errados há uns 150 anos. Porque foi um pouco antes de 1800 que o Romantismo expôs o Iluminismo [die Aufklärung] como mera “busca sem direção precisa” [die Aufklärerei] ou como Aufkläricht – uma alusão a Kebricht ou “lixo”. Mas infelizmente eu estou tão atrasado que ainda me agarro a esta filosofia obsoleta, ultrapassada. Sendo tão retrógrado, não consigo ver a filosofia do romantismo – principalmente a dos três expoentes do Idealismo Alemão, Fischte, Schelling e Hegel – como algo mais do que uma catástrofe intelectual e moral, a maior catástrofe intelectual e moral que alguma vez atingiu os intelectuais alemães e europeus. Em minha opinião, esta catástrofe intelectual e moral teve um efeito devastador e de descrédito que continua a espalhar-se como uma nuvem atómica. Provocou aquilo a que Konrad Heiden, no seu livro sobre Hitler, chamou há alguns anos, “a época da desonestidade moral e intelectual”.

É Zeitgeist [espírito da sua época] e movimento inspirado num Zeitgeist que ninguém vai conseguir facilmente deter – muito menos um defensor solitário tardio do Iluminismo como eu, bem ciente do poder da moda ou do Zeitgeist, mas que não está disposto a fazer-lhe quaisquer concessões. Ao contrário dos grandes românticos e autoridades contemporâneas, não creio ser tarefa do filósofo exprimir o espírito da sua época. Creio (tal como Nietzsche) que um filósofo tem de estar continuamente a verificar se não terá começado a fazer concessões ao Zeitgeist que possam colocar em risco a sua independência intelectual. Concordo inteiramente com Hugo von Hofmannsthal quando afirma: “A Filosofia deve ser um juiz do seu tempo; as coisas não vão bem quando ela se torna a expressão do espírito do seu tempo.”

III

As minhas acusações contra mim próprio e a minha confissão de que sou um racionalista e um homem do Iluminismo de pouco serviriam se não explicasse em breves palavras o que entendo por racionalismo e por Iluminismo.

Quando falo de racionalismo, não estou a pensar numa teoria filosófica (como a de Descartes) e de forma alguma na crença muito pouco razoável de que o homem é uma criatura puramente racional. Quando falo de razão ou racionalismo apenas me refiro à convicção de que podemos aprender com a crítica dos nosso enganos e dos nosso erros, especialmente com a crítica feita por outros, e por fim também com a autocrítica. Um racionalista é simplesmente alguém para quem é mais importante aprender do que vir a provar-se que está certo; alguém que está disposto a aprender com os outros – não simplesmente apossando-se das opiniões dos outros, mas permitindo de bom grado que os outros critiquem as suas ideias e criticando de bom grado as ideias dos outros. O ênfase aqui reside na ideia de crítica, ou, mais exatamente, discussão crítica. O racionalista genuíno não pensa que ele, ou outra pessoa qualquer, está de posse da verdade; nem pensa que a simples crítica como tal ajuda a chegar a novas ideias. Pensa sim que na esfera das ideias só a discussão crítica pode ajudar-nos a separar o trigo do joio. Tem consciência que a aceitação ou rejeição de uma ideia nunca é uma questão puramente racional; mas acredita que só a discussão crítica pode conferir-nos a maturidade necessária para considerar uma ideia sob cada vez mais aspetos e para fazer um juízo correto dessa ideia.

Esta avaliação da discussão crítica tem também o seu lado humano. Porque o racionalista sabe muito bem que a discussão crítica não é a única relação entre pessoas: que, pelo contrário, a discussão crítica racional é um fenómeno raro nas nossas vidas. Todavia, ele acha que a atitude de “dar e receber”, fundamental para a discussão crítica, é da maior relevância puramente humana. Porque o racionalista sabe que deve a sua razão a outras pessoas. Sabe que a atitude crítica racional só pode ser o resultado da crítica de outros, e que só através da crítica de outros se pode chegar à autocrítica.

A abordagem do racionalista pode ser descrita da forma que se segue. Talvez eu esteja errado e tu certo; de qualquer forma, ambos podemos esperar que, depois da nossa discussão, ambos vejamos as coisas mais claramente do que antes, desde que nos lembremos que o facto de nos irmos aproximando da verdade é mais importante do que quem está certo. Só com este objetivo em mente é que nos defendemos o melhor possível na discussão.

É isto, em suma, o que quero dizer quando falo de racionalismo. Mas quando falo de Iluminismo quero também dizer uma outra coisa. Penso acima de tudo na ideia da auto-emancipação através do conhecimento, na ideia que Kant e Pestalozzi inspiraram. E penso no dever que todos os intelectuais têm de ajudar outros a libertarem as suas mentes e a perceberem a abordagem crítica – um dever que a maior parte dos intelectuais esqueceu desde o tempo de Fichte, Schelling e Hegel. Porque infelizmente é extremamente comum entre os intelectuais querer impressionar os outros e, como disse Schopenhauer, não ensinar mas cativar. Surgem como dirigentes ou profetas – em parte porque se espera deles que surjam como profetas, como proclamadores dos segredos obscuros da vida e do mundo, do homem, da história e da existência. Aqui, como tantas vezes acontece, uma incessante procura produz uma oferta. Procuram-se dirigentes e profetas, por isso não admira que se encontrem dirigentes e profetas. Mas “os homens adultos não precisam de dirigentes”, como uma vez disse H.G. Wells. E os homens adultos deviam saber que não precisam de dirigentes. Quanto aos profetas, acredito no dever de todos os intelectuais de os manter à distância.

IV

O que é que distingue exteriormente a abordagem do Iluminismo da dos autoproclamados profetas? É a linguagem. O pensador iluminista fala de forma tão simples quanto possível. Pretende ser compreendido. Neste aspeto Bertrand Russell é o nosso mestre sem igual entre os filósofos. Mesmo quando não concordamos com ele temos de admirá-lo. Fala sempre de uma forma extremamente clara, simples e direta.

Por que é a simplicidade da linguagem tão importante para os pensadores iluministas? Porque o verdadeiro pensador iluminista, o verdadeiro racionalista, nunca pretende convencer ninguém a fazer nada. Não, nem sequer deseja convencer ninguém: tem permanentemente consciência de que pode estar errado. Acima de tudo, valoriza demasiado a independência intelectual dos outros para querer convencê-los em questões importantes. Prefere provocar a contradição, preferivelmente sob a forma de crítica racional e disciplinada. Não procura convencer mas despertar – desafiar os outros a formarem opiniões livres. A formação de opiniões livres é para ele preciosa: não apenas porque isso nos aproxima a todos da verdade, mas também porque respeita a formação de opiniões livres como tal. Respeita-as mesmo que considere uma opinião assim formada fundamentalmente errada. Uma das razões por que o pensador iluminista não quer convencer ninguém de nada é a seguinte. Ele sabe que, fora do estreito campo da lógica, e talvez da matemática, nada pode ser provado. Podem obviamente apresentar-se argumentos e podem examinar-se criticamente pontos de vista. Mas fora da matemática elementar os nossos argumentos nunca são conclusivos e destituídos de lacunas. Temos sempre de pesar as razões, sempre de decidir que razões pesam mais: as razões a favor de um determinado ponto de vista, ou as razões contra ele. Afinal, então, a formação de opinião contém um elemento de livre arbítrio. E é esse livre arbítrio que torna uma opinião preciosa do ponto de vista humano.

Foi com John Locke que o Iluminismo adquiriu e desenvolveu esta elevada estima pela opinião pessoal livre. Esta foi sem dúvida o resultado das lutas religiosas inglesas e continentais, que acabaram por fazer surgir a ideia de tolerância religiosa. E esta ideia da tolerância religiosa não é de modo algum uma ideia meramente negativa como tantos (por exemplo, Arnold Toynbee) defenderam. Não é apenas uma expressão do desgaste da guerra e uma compreensão de que o terror não oferece a perspetiva da imposição de uma conformidade de credo religioso. Antes, a tolerância religiosa provém precisamente do contrário: de uma compreensão positiva de que uma unanimidade religiosa forçada não tem qualquer valor; que só um credo religioso livremente assumido pode ter algum valor. E esta compreensão leva-nos mais longe. Leva ao respeito por qualquer credo honesto e consequentemente ao respeito pelo indivíduo e pela sua opinião. Nas palavras de Immanuel Kant, o último grande filósofo do Iluminismo, leva ao reconhecimento do valor da pessoa humana.

Ao falar do valor da pessoa humana, Kant queria dizer que todo o ser humano e as suas convicções devem ser respeitados. Kant combinou este preceito com o princípio hilleliano a que se chama corretamente a regra de ouro, mas que em alemão soa bastante banal: “Não faças aos outros aquilo que não gostarias que os outros te fizessem!”. Kant associou intimamente este princípio à ideia de liberdade – a liberdade de pensamento exigida pelo Marquês de Posa, de Schiller, a Filipe II; a liberdade de pensamento que Spinoza procurou justificar, declarando ser esta uma liberdade inalienável que os tiranos, por mais que tentem, nunca podem tirar-nos.

Creio que já não podemos concordar com Spinoza a este respeito. Talvez seja verdade que a liberdade de pensamento não pode nunca ser inteiramente suprimida, mas pode ser suprimida até um ponto bastante considerável. Porque sem uma livre troca de ideias não pode haver verdadeira liberdade de pensamento. Para descobrir se as nossas ideias são sólidas, precisamos que outras pessoas as testem. A discussão crítica é a base do livre pensamento para cada indivíduo. Contudo, isto significa que a liberdade de pensamento é impossível sem liberdade política. E significa também que a liberdade política é condição prévia do livre uso da razão por cada indivíduo.

Tentei explicar em breves palavras o que entendo por racionalismo e Iluminismo. Ao mesmo tempo tentei resumidamente indicar porque é que o racionalismo, tal como eu o entendo, bem como Iluminismo, requer liberdade de pensamento, liberdade religiosa, respeito pelas opiniões honestas das outras pessoas e, finalmente, liberdade política. Mas estou muito longe de afirmar que só o racionalismo ama a liberdade ou é capaz de dar razões para a exigir. Pelo contrário, estou convencido de que existem atitudes inteiramente diferentes, especialmente atitudes religiosas, que exigem liberdade de consciência e que, levando mais longe essa exigência, chegam também ao respeito pelas opiniões alheias e a uma justificação da exigência de liberdade política. E se há pouco, talvez com um pouco de ironia, vos avisei do meu racionalismo ultrapassado, gostaria agora de repetir este aviso com toda a seriedade. Pelo facto de eu ser um racionalista não pretendo converter ninguém. Nem desejo abusar da palavra “liberdade” para tornar outros racionalistas. Mas gostaria de desafiar outros a contradizerem-me; gostaria, se possível, de incitar outras pessoas a verem as coisas a uma nova luz, para que cada um possa tomar a sua própria decisão, da maneira mais livre possível de formar opinião. Todo o racionalista deverá subscrever as palavras de Kant: não se pode ensinar filosofias – no máximo apenas filosofar, o que significa uma atitude crítica.

V

Claro que não sabemos ao certo de onde vem este filosofar, esta atitude crítica. Mas tudo indica que é muito rara e portanto pode reivindicar o valor da raridade (além de outros valores). Tanto quanto se sabe, teve origem na Grécia e foi inventado por Tales de Mileto, o fundador da escola jónica de filosofia natural.

Existem escolas até entre povos bastante primitivos. A tarefa de uma escola é sempre preservar e transmitir os ensinamentos do seu fundador. Se um membro da escola tentar mudar a doutrina, é expulso como herege e dá-se uma cisão. Deste modo, o número de escolas por norma aumenta através de cisões. Mas por vezes, evidentemente, a doutrina tradicional da escola tem de se adaptar a novas condições externas – por exemplo, a um conhecimento recentemente adquirido que se tenha tornado propriedade comum. Nesses casos, a alteração da doutrina oficial da escola é quase sempre introduzida subrepticiamente através da reinterpretação da velha doutrina, para que mais tarde afirmar-se que nada mudou realmente na doutrina. A doutrina recentemente alterada (que não se diz que foi alterada) é atribuída ao mestre que fundou inicialmente a escola. “Disse o próprio mestre”, é o que constantemente se ouve na escola pitagórica.

É pois normalmente impossível, ou invulgarmente difícil, reconstruir a história das ideias de uma escola deste tipo. Porque é parte essencial do seu método que todas as ideias sejam atribuídas ao fundador. Que eu tenha conhecimento, a única escola tradicional que se afasta deste esquema rígido é a tradição da escola jónica de Tales, que ao longo dos tempos se tornou a tradição da filosofia grega e por fim, após o reaparecimento desta filosofia no Renascimento, a tradição da ciência europeia.

Tentemos imaginar por um momento o que significa quebrar com a tradição dogmática de uma doutrina pura da escola e substituí-la por uma tradição de debate crítico, uma tradição de pluralismo, em que muitas doutrinas concorrentes tentam aproximar-se de uma verdade única.

Que foi Tales a dar este passo verdadeiramente histórico, pode ver-se no facto de na escola jónica, e só na escola jónica, os membros tentarem de uma forma bastante aberta aperfeiçoar a doutrina do mestre. Só podemos perceber isto imaginando Tales a dizer aos seus seguidores: “Estes são os meus ensinamentos. É esta a minha conceção das coisas. Tentem aperfeiçoá-la”.

Foi assim que Tales criou uma nova tradição – uma tradição a dois níveis. Primeiro a sua própria doutrina era transmitida pela tradição da escola, tal como o eram as diferentes doutrinas de cada nova geração de seguidores. Segundo, preserva-se uma tradição de criticar o próprio professor e tentar fazer melhor. Nesta escola, portanto, modificar ou ultrapassar uma doutrina era considerado algo de positivo. E essa mudança era registada com o nome da pessoa que a introduziria. Isto tornou pela primeira vez possível uma verdadeira história das ideias.

A tradição de dois níveis que descrevi é a tradição da nossa ciência moderna. É um dos elementos mais importantes do nosso mundo ocidental. Que eu saiba, foi inventada apenas uma vez. Perdeu-se passados dois ou três séculos, mas foi redescoberta pelo Renascimento – essencialmente por Galileu Galilei – passados mais mil e quinhentos anos. É portanto bastante possível que seja destruída e esquecida. E apenas poderá desenvolver-se totalmente onde houver liberdade política.

Embora o racionalismo, tal como o descrevi, continue a ser uma coisa rara, mesmo na Europa, e não possa ser considerado uma das religiões características da Europa e embora as ideias do racionalismo sejam hoje tratadas com soberano desprezo pela maior parte dos intelectuais, o racionalismo de Tales é apesar de tudo uma ideia e uma tradição sem a qual a nossa civilização europeia não existiria. Porque não há nada mais característico da nossa civilização europeia do que o seu zelo pela ciência. É a única civilização que produziu ciências naturais, e a única onde esse facto desempenha um papel bastante decisivo. Mas as ciências naturais não são produto direto do racionalismo; são produto do racionalismo da antiga filosofia grega.

VI

O que até agora fiz foi apresentar-me como racionalista e seguidor do Iluminismo, e tentar explicar o que quero dizer com racionalismo e Iluminismo. Referi também sucintamente que o racionalismo e o Iluminismo postulam liberdade política. Mas seria ridículo identificar o amor pela liberdade com o racionalismo ou com o Iluminismo, ou mesmo afirmar a existência de uma relação muito próxima entre eles.

O desejo de liberdade é claramente algo primitivo, que encontramos já em variadíssimos graus entre os animais – mesmo nos animais domésticos – e em crianças muito pequenas. Mas a liberdade torna-se um problema no campo da política. Porque a coexistência humana significa naturalmente que a liberdade ilimitada para cada indivíduo é uma impossibilidade. Se eu for livre de fazer tudo o que quiser, então também sou livre de privar os outros de liberdade.

A solução de Kant era exigir que o Estado limitasse a liberdade individual apenas na medida necessária para a coexistência humana, e que esta limitação necessária se aplicasse a todos os cidadãos da forma mais igual possível. Este princípio genuinamente kantiano demonstra que o problema da liberdade política é pelo menos conceptualmente solúvel. Mas não nos oferece um critério de liberdade política. Porque muitas vezes, em casos individuais, não conseguimos determinar se uma certa limitação da liberdade é realmente necessária, nem se é um fardo imposto a todos os cidadãos por igual. Necessitamos pois de outro critério que possa ser mais facilmente aplicado. A minha proposta de critério é a seguinte. Um estado é politicamente livre se na prática as suas instituições políticas derem aos cidadãos a possibilidade de mudar de governo sem derramamento de sangue caso haja uma maioria que o deseje. Ou, mais sucintamente: somos livres se pudermos ver-nos livres dos nossos governantes sem derramamento de sangue.

Aqui temos um critério que nos permite distinguir a liberdade política da falta dela ou, se preferirem, uma democracia de uma tirania.

Claro que nada depende das palavras “democracia” e “tirania”. Se, por exemplo, alguém chamasse a alguns estados não livres “democracias” e à Constituição do Reino Unido ou da Suíça uma “tirania” eu não me envolveria numa disputa sobre se esses termos estão certos ou errados. Apenas diria: “Se eu tivesse de usar a vossa terminologia teria de me descrever como inimigo da democracia e amigo da tirania”. Isto evita que uma pessoa se perca em disputas terminológicas; o que é importante não são as palavras mas os verdadeiros valores.

O critério de liberdade política que acabei de propor é um instrumento simples, mas evidentemente algo rudimentar. Particularmente, não nos diz nada acerca da importantíssima questão da proteção das minorias – por exemplo, minorias religiosas, linguísticas ou étnicas.

VII

Estive, com tudo o que disse até ao momento, a tentar criar uma espécie de contexto em que tenham cabimento mais algumas questões relativas à presente situação de liberdade e ao mundo ocidental livre. Formularia então a questão central do seguinte modo:

O que é que a liberdade nos trouxe? O bem ou o mal? Qual deles existe em maior quantidade? O que é que revelam as escalas de medida do bem e do mal?

Considero esta pergunta altamente estimulante e vou tentar responder-lhe tão clara e concisamente quanto possível num conjunto de teses.

A minha primeira tese é que o nosso mundo, o mundo das democracias ocidentais, pode não ser o melhor de todos os mundos políticos concebíveis ou logicamente possíveis, mas é sem dúvida o melhor de todos os mundos políticos de cuja existência temos algum conhecimento histórico. Logo, sou um otimista declarado a este respeito.

Para explicar e justificar esta minha primeira tese otimista permitam-me primeiro que diga que quando elogio os nossos tempos não estou a pensar principalmente no milagre da explosão económica, embora não seja despiciendo que na nossa sociedade cada vez menos pessoas passem fome. O que tenho em mente é uma coisa totalmente diferente. Talvez consiga explicar-me melhor apresentando um contraste. Em 1942, o antigo bispo de Bradford condenou o nosso mundo ocidental como um mundo de Satanás e apelou a todos os ministros da religião cristã para que tomassem parte na destruição desta obra do diabo e para que ajudassem o comunismo de Estaline a vencer. Desde essa altura o caráter satânico de Estaline foi reconhecido pelos próprios comunistas, e durante um breve mas altamente refrescante período o seu caráter satânico foi uma importante componente da linha geral do partido, se não mesmo do programa do partido. Todavia ainda há crentes – e na Inglaterra, mesmo cristãos genuinamente devotos – que continuam a pensar como pensava o antigo bispo de Bradford.

Para expressar claramente a minha otimista primeira tese, gostaria de dizer que, partindo precisamente do mesmo ponto de vista a partir do qual o bispo condenou o nosso mundo ocidental como obra do diabo, eu descrevo-o como o melhor de todos os mundos do qual temos conhecimento histórico.

Para o bispo tratava-se principalmente de uma questão de valores puramente humanos – aquilo a que Kant chamava dignidade humana e disponibilidade humana para prestar auxílio. Considerava que estes valores estavam em risco no Ocidente e assegurados na Rússia. Mas parece-me que, no seu idealismo, não analisou corretamente os factos. Nunca antes houve uma sociedade com tão pouca repressão, em que tão pouca gente seja humilhada e insultada, como a nossa sociedade. Nunca antes tanta gente esteve preparada para fazer sacrifícios para aliviar a fome e miséria dos outros.

Penso portanto que nós, no Ocidente, não temos razão para nos envergonharmos em relação ao Leste. Mas não afirmo que nós no Ocidente não devamos criticar as nossas instituições – pelo contrário. Embora o nosso mundo seja o melhor que houve até ao momento muitas coisas nele estão bastante erradas. E aquilo que conseguimos pode perder-se em qualquer altura. Esse é, e sempre será, um grande perigo. Passo agora à minha segunda tese.

Embora considere o nosso mundo político o melhor dos quais temos conhecimento histórico, devemos ser cautelosos em atribuir esse facto à democracia ou à liberdade. A liberdade não é um fornecedor que entrega as mercadorias da vida à nossa porta. A democracia não garante que se consiga realizar coisa alguma – e não por certo um milagre económico. É errado e extremamente perigoso enaltecer a liberdade dizendo às pessoas que vão certamente ficar todas bem quando forem livres. A forma como alguém singra na vida é em grande medida uma questão de sorte e num grau comparativamente pequeno talvez também de competência, diligência e outras virtudes. O mais que se pode dizer da democracia ou da liberdade é que conferem às nossas aptidões pessoais um pouco mais de influência no nosso bem-estar. Isto conduz-me à minha terceira tese.

Devíamos escolher a liberdade política não por esperarmos uma vida mais fácil, mas porque a liberdade é ela própria um valor fundamental que não pode ser reduzido a valores materiais. Devemos escolhê-la à maneira de Demócrito que disse um dia: “Prefiro uma vida de pobreza numa democracia à riqueza sob uma tirania”, e “A miséria de uma democracia é melhor do que qualquer riqueza sob uma aristocracia ou autocracia, porque a liberdade é melhor do que a escravatura”.

Na minha quarta tese gostaria de ir um pouco mais longe. A liberdade, a democracia, e a nossa crença nelas podem tornar-se desastrosas para nós. É errado pensar que acreditar na liberdade conduz sempre à vitória; devemos estar sempre preparados para poder conduzir-nos à derrota. Se escolhermos a liberdade, então devemos estar preparados para perecer com ela. A Polónia lutou pela liberdade como nenhum outro país. A nação checa estava preparada para lutar pela sua liberdade em 1938: não foi falta de coragem que ditou o seu destino. A Revolução Húngara de 1956 – empreendida por gente jovem que não tinha nada a perder a não ser as suas correntes – triunfou e depois acabou em fracasso.

A luta pela liberdade pode também falhar de outras formas. Pode degenerar em terrorismo, como nas Revoluções Francesa e Russa. Pode levar a uma sujeição extrema. A democracia e a liberdade não garantem uma futura idade de ouro. Não, não escolhemos a liberdade política porque ela nos promete isto ou aquilo. Escolhemo-la porque ela torna possível a única forma digna de coexistência humana, a única forma em que podemos ser totalmente responsáveis por nós próprios. Se concretizamos ou não as possibilidades que ela encerra depende de todo o tipo de fatores – e acima de tudo de nós próprios.

***************************************************

*Texto de um seminário dado em Alpach, a 25 de agosto de 1958, e extraído do livro A Vida é Aprendizagem, pp. 113-126.

***************************************************

Democracia e sistemas eleitorais

Esta foto rara de Karl Popper foi-nos gentilmente cedida pelo neozelandês Daniel Barnes.

A recente aprovação do orçamento para 2021, com mais de 300 alterações para garantir a viabilização do PCP, gerou uma justificada avalanche de críticas e voltou a colocar no debate político a velha questão da lei eleitoral e a necessidade urgente de alterá-la. Miguel Sousa Tavares escreveu no último “Expresso”: “Não existindo um partido ou uma coligação com maioria absoluta saída das urnas, entramos na tal zona pantanosa onde nada é certo e tudo é possível. Podemos votar no partido vencedor mas não ser ele a governar; ou pode ser ele a governar mas com um Orçamento que não é o seu mas sim o resultado de múltiplas alterações que alianças circunstanciais de sentidos políticos opostos lhe impuseram ou de que ele próprio teve de aceitar contra vontade”.

Este é um tema político muito importante, mas parece que ninguém, dentro do espetro partidário português está interessado em abordá-lo. O que lamentavelmente se constata é que os interesses partidários se sobrepõem ao supremo interesse nacional. Por ser este, como se vê, um tema muito atual, deixamos aqui a visão de Karl Popper sobre o assunto: uma abordagem racional a um problema complexo. O texto de Popper que vamos transcrever de seguida é, por sua vez, a transcrição de um artigo escrito, em 3 de agosto de 1987, na revista alemã Der Spiegel e posteriormente publicado no livro de Popper A Vida é Aprendizagem, uma coletânea de ensaios e palestras que, nas palavras do próprio Popper, “pode ser considerada uma continuação do livro In Search of a Better World” e cuja primeira edição, em Portugal, saiu no ano 2001 pelas Edições 70.

Sobre a Teoria da democracia

O que mais me desperta interesse é o que diz respeito à natureza – e à ciência natural ou cosmologia. Depois de ter abando nado o marxismo em julho de 1919 apenas me interessava pela política e pela teoria política enquanto cidadão – e democrata. Mas os movimentos totalitários da Esquerda e da Direita que surgiram nos anos vinte e no início da década de trinta e, por fim, a tomada do poder por Hitler na Alemanha, forçaram-me a pensar seriamente na questão da democracia.

Embora o meu livro The Open Society anda Its Enemies nem uma só vez mencionasse Hitler e os nazis, foi escrito com a intenção de constituir o meu contributo para a guerra contra eles. É uma defesa teórica da democracia contra os ataques antigos e novos dos seus inimigos; foi publicado pela primeira vez em 1945 e desde então teve muitas reedições. Mas o que considero ser a sua ideia mais importante parece não ser muitas vezes bem entendido.

Como toda a gente sabe, etimologicamente “democracia” significa “governo do povo” ou “soberania popular”, contrapondo-se a “aristocracia” (governo pelos melhores ou mais notáveis) e “monarquia” (governo por um indivíduo). Mas o significado da palavra não nos ajuda muito. Pois o povo não governa em parte alguma; são sempre os governos que exercem o poder (e infelizmente também os burocratas e funcionários, que só com muita dificuldade podem ser responsabilizados, e mesmo assim nem sempre). Além disso, a Grã-Bretanha, a Dinamarca, a Noruega e a Suécia são monarquias mas também excelentes exemplos de democracia (talvez à exceção da Suécia, onde uma burocracia fiscal inimputável exerce poderes ditatoriais) – ao contrário da República Democrática Alemã, que infelizmente de democrática não tem nada.

Qual é a verdadeira questão?

Na realidade apenas existem duas formas de Estado: aqueles em que é possível livrarmo-nos de um governo sem derramamento de sangue e aqueles em que tal não é possível. É isto que importa – não o nome que se dá ao tipo de estado. Normalmente a primeira destas formas é denominada “democracia” e a segunda “ditadura” ou “tirania”. Mas não vale a pena discutirmos palavras (como a República “Democrática” Alemã). O que importa é se o governo pode ou não ser mudado sem um banho de sangue.

Existem inúmeras maneiras de substituir um governo. O melhor método é a ida às urnas: novas eleições ou um voto num parlamento já eleito podem deitar abaixo um governo. Isso é certamente importante. É portanto um erro colocar a ênfase (como tantos fizeram de Platão a Marx e mesmo posteriormente) na seguinte questão: “Quem deve governar? O povo (o proletariado) ou os mais capazes? Os (bons) trabalhadores ou os (pérfidos) capitalistas? A maioria ou a minoria? O partido da Esquerda, o partido da Direita ou o partido do Centro?” Todas estas são falsas questões. Pois não interessa quem manda desde que seja possível derrubar um governo sem derramamento de sangue. Qualquer governo passível de ser derrubado tem um forte incentivo para agir de um modo que agrade ao povo. E este incentivo perde-se se o governo souber que não pode ser expulso com essa facilidade.

Para demonstrar quão importante é na prática esta simples teoria da democracia, gostaria de aplicá-la à questão da representação proporcional. O facto de criticar aqui um sistema eleitoral enraizado na constituição da república testada e comprovada deve ser encarado como uma mera tentativa da minha parte de debater algo que raramente é debatido. As constituições não devem ser alteradas de ânimo leve, mas é bom discuti-las com espírito crítico, quanto mais não seja para nos conscencializarmos da sua importância.

As democracias da Europa Ocidental continental diferem substancialmente dos sistemas eleitorais do Reino Unido e dos Estados Unidos, que se baseiam no princípio da representação local. Na Grã-Bretanha cada círculo eleitoral envia como seu representante ao parlamento a pessoa que obteve maior número de votos. Oficialmente não é tido em consideração a que partido essa pessoa pertence, nem sequer se pertence a algum partido. O seu dever é representar os eleitores locais da melhor maneira que for capaz e de acordo com a sua consciência, quer essas pessoas pertençam ou não a qualquer partido. é evidente que existem partidos e estes desempenham um papel da maior importância na formação dos governos. Mas se um representante crê que é do interesse do seu círculo eleitoral (ou talvez da nação) votar contra o seu partido, ou mesmo sair dele, tem obrigação de proceder desse modo. Winston Churchill, o maior estadista do nosso século, nunca se limitou a cumprir ordens e de facto mudou duas vezes de partido. No continente a situação é bastante diversa. A proporcionalidade significa que cada partido obtém o número de lugares no parlamento – por exemplo no Bundestag – que representam mais fielmente os votos por ele obtidos em todo o país.

Assim, os partidos encontram-se enraizados nas leis fundamentais e os deputados individuais são escolhidos oficialmente para representar o seu partido. Deste modo, um deputado não pode em determinadas circunstâncias ter o dever de votar contra o seu partido. Na realidade tem uma obrigação moral para com o seu partido, pois foi escolhido para representá-lo e a mais ninguém. (Caso não consiga continuar a conciliar este facto com a sua consciência tem o dever moral de se demitir – mesmo que o seu círculo eleitoral o não deseje).

Obviamente que estou ciente de que é necessária a existência de partidos: ainda ninguém inventou um sistema democrático capaz de viver sem eles. Mas os partidos políticos não são totalmente satisfatórios. Por outro lado, as coisas não funcionam sem eles. As nossas democracias não são governos pelo povo, mas sim governos pelos partidos – ou seja, governos dos dirigentes partidários. Pois quanto maior é um partido menos unido e menos democrático é, e menor é também a influência dos que nele votaram na direção e no programa do partido. É um erro pensar-se que um parlamento eleito por representação proporcional reflete melhor o povo e os seus desejos. Não representa o povo e as opiniões deste, mas tão somente a influência que vários partidos (e propaganda partidária) tiveram no eleitorado no dia das eleições. E isso torna mais difícil que o ato eleitoral seja o que podia e deveria ser: um dia em que o povo julga a atividade do governo.

Logo, não existe uma teoria válida da soberania popular que requeira uma representação proporcional. Devemos portanto interrogar-nos de que modo a representação proporcional funciona na prática: primeiro na formação dos governos e em segundo lugar na questão de importância crucial que é o derrube destes.

  1. Quantos mais partidos existirem mais difícil se torna a formação de um governo. Sabemo-lo através da experiência, mas também é óbvio. Quando apenas existem dois partidos é fácil formar governo. Mas a representação proporcional faz que seja possível mesmo para os pequenos partidos obter uma enorme (muitas vezes decisiva) influência na formação de um governo e deste modo inclusive nas decisões do governo. Toda a gente concordará que tal é verdade e toda a gente sabe que a representação proporcional aumenta o número de partidos. Mas se considerarmos que a “essência” da democracia é a soberania popular, enquanto democratas temos de engolir estes problemas pois a proporcionalidade parece ser “essencial”.
  2. A representação proporcional, e portanto a multiplicidade de partidos, pode ter consequências ainda piores na importante questão do derrube do governo através do veredito popular, em novas eleições parlamentares. Em primeiro lugar, o povo sabe que existem muitos partidos e portanto dificilmente esperará que um deles alcance a maioria absoluta. Portanto, quando as coisas correm segundo o previsto, o veredito popular não foi de facto expresso contra nenhum dos partidos. Nenhum deles foi expulso, nenhum sofreu qualquer tipo de julgamento.

Em segundo lugar, não se espera que o dia das eleições seja um dia em que o povo julgue o governo. Por vezes pode ter sido um governo minoritário, forçado a fazer concessões e incapaz de realizar o que considerava ser o mais correto; ou pode ainda ter sido um governo de coligação, no qual nenhum dos partidos podia ser considerado completamente responsável.

Aos poucos, o povo habitua-se a não considerar nenhum dos partidos políticos, nem nenhum dos seus dirigentes, responsável pelas decisões tomadas pelo governo. O facto de um partido perder cinco ou dez por cento dos votos não é considerado por ninguém um veredito de culpa – ou pelo menos não o é pelos eleitores, não pelos que são governados. Apenas indica uma flutuação de popularidade momentãnea.

Em terceiro lugar, se a maioria dos eleitores quiser derrubar um governo maioritário poderá não ter a possibilidade de fazê-lo. Porque mesmo que um partido que tenha tido maioria absoluta até ao momento (e possa portanto ser responsabilizado) perca essa maioria, muito provavelmente continuará a ser o partido mais votado no sistema proporcional e portanto poderá formar um governo de coligação com um dos pequenos partidos. Neste caso, o dirigente do partido maior, que foi derrubado, continuará a governar contra a decisão da maioria, apoiando-se num pequeno partido que poderá estar bem longe de representar “a vontade do povo”. Além disso, esse pequeno partido poderá ainda derrubar o governo sem novas eleições, sem um novo mandato do eleitorado, e formar um novo governo de coligação com os outrora partidos da oposição – numa contradição grotesca com a ideia básica da representação proporcional, segundo a qual a influência de um partido deve corresponder ao número de votos obtidos.

Estes desfechos são frequentes e devemos esperá-los nos casos em que um grande número de partidos significa que os governos de coligação são a regra.

É verdade que podem passar-se casos semelhantes em países onde não existe a representação proporcional – no Reino Unido ou nos Estados Unidos, por exemplo. Mas nesses países desenvolveu-se uma tendência para a competição entre os dois maiores partidos.

Um sistema eleitoral que torne possível o sistema bipartidário é, a meu ver, a melhor forma de democracia. Porque conduz invariavelmente à autocrítica por parte dos partidos. Se um dos dois maiores partidos sofre uma derrota desastrosa nas urnas, por norma é levado a efetuar mudanças radicais no interior do partido. É o resultado da competição e da condenação inequívoca por parte do eleitorado, que não pode ser ignorada. Num sistema deste teor, portanto, de tempos a tempos os partidos são forçados a aprender com os seus próprios erros, ou então afundam-se. As minhas observações a respeito da representação proporcional não significam que eu aconselhe todas as democracias a abandoná-la. apenas pretendo dar um novo ímpeto ao debate. Pensar que a superioridade moral da representação proporcional pode ser uma conclusão lógica da ideia da democracia e que, por esta razão, o sistema continental é melhor, mais justo ou mais democrático do que o anglo-saxónico é um ponto de vista ingénuo que não resiste a uma análise aprofundada.

Resumindo: o argumento que a representação proporcional é mais democrática do que os sistemas britânico ou americano não é defensável, pois tem de reportar-se a uma teoria fora de moda sobre a democracia enquanto governo pelo povo (que se baseia na dita teoria da soberania do Estado). Esta teoria tem falhas morais e é inclusive insustentável. Foi ultrapassada pela teoria do poder de destituição por parte da maioria.

Este argumento moral adquire ainda maior importância do que o argumento prático de não serem necessários mais do que dois partidos em competição, totalmente responsáveis, para possibilitar aos eleitores o julgamento de um governo. A representação proporcional cria o perigo de o veredito da maioria expresso nas urnas, e consequentemente o efeito da derrota nos partidos, benéfico para a democracia, ser considerado um pormenor trivial. Para que exista um veredito claro por parte da maioria é importante que o partido da oposição seja o melhor e o mais forte possível. De outro modo, os eleitores são muitas vezes forçados a permitir que um governo mau continue a governar, pois têm razões para crer que “não há nada melhor”.

Será que a minha defesa do sistema bipartidário entra em conflito com a ideia de uma sociedade aberta? Não é a tolerância pluralista de muitos pontos de vista característica da sociedade aberta e da sua busca pela verdade? Não deveria este pluralismo ser expresso por uma multiplicidade de partidos? Como resposta, devo dizer que compete a um partido político ou formar um governo ou, na oposição, manter uma vigilância crítica sobre o trabalho do governo. Uma das coisas que deve ser criticamente observada é a tolerância do governo em relação às várias opiniões, ideologias e religiões (desde que estas sejam elas próprias tolerantes, pois as ideologias que pregam a intolerância perdem o direito a exigir serem toleradas). Muitas ideologias tentarão, com ou sem êxito, dominar um partido ou fundar outro. Portanto haverá, por um lado, um intercâmbio de opiniões, ideologias e religiões e, por outro, os principais partidos em competição.

Mas a ideia que a variedade de ideologias ou visões do mundo deveria ser refletida numa multiplicidade de partidos parece-me politicamente errada – e não só politicamente como também enquanto visão do mundo. Porque uma associação demasiado próxima com a política partidária dificilmente é compatível com a pureza de uma visão mundial.

**************************************************

A nossa edição:

A Vida é Aprendizagem, Karl R. Popper, Edições 70, Lisboa, 2001.

**************************************************

A última entrevista

Popper, o filósofo que detestava modas.

No dia 29 de julho de 1994, um dia depois de completar 92 anos, Karl Popper concedeu a entrevista que se segue ao filósofo polaco Adam Chmielewski, na sua casa (de Popper), em Inglaterra1. Tanto quanto se sabe, esta foi a sua última entrevista. Karl Popper viria a falecer seis semanas depois, em 17 de setembro. Aqui fica o registo, traduzido por nós com base no documento, publicado em inglês, de Chmielewski.(https://www.academia.edu/12847061/The_Future_is_Open._A_Conversation_with_Sir_Karl_Popper).

******************************

O Futuro é Aberto

Uma Conversa com Sir Karl Popper

Adam Chmielewski (AC): Sir Karl, por favor aceite os meus melhores votos na passagem do seu nonagésimo segundo aniversário.

Sir Karl Popper(KP): Muito obrigado.

AC: Sir Karl, apesar da sua impressiva idade, o senhor é um filósofo muito ativo. Poderia dizer-me em que é que trabalha atualmente? Está ainda a desenvolver o seu sistema?

KP: Oh, sim. Veja bem, eu sempre trabalho em várias coisas ao mesmo tempo. A minha última publicação foi mais uma contribuição para a nova edição alemã do meu livro “Lógica da Descoberta Científica”. O meu editor alemão sempre quer que eu acrescente qualquer coisa antes que uma nova edição seja publicada, e eu normalmente uso a oportunidade para acrescentar um apêndice. Por isso, recentemente, há uns quinze dias, publiquei o meu vigésimo apêndice à décima edição alemã do livro, que de outra forma apareceria sem nenhuma revisão. O apêndice contém uma nova definição de independência probabilística. Assim, eu trabalho nessas coisas o tempo todo. Estou a trabalhar sobre os pré-socráticos, Parménides, geometria de Aristóteles, e em muitas outras coisas.

AC: Então parece continuar com os interesses expressos no seu famoso artigo “Voltar aos Pré-Socráticos” e nos dois volumes de “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”. Está também a voltar ao seu trabalho sobre Platão, a quem devotou o primeiro e controverso volume da “Sociedade Aberta”?

KP: Oh, sim! Continuo interessado em Platão. Por acaso fiquei recentemente interessado na geometria pré-euclidiana, ou seja, em geometria sem a ideia de um sistema fechado axiomático, e na geometria de Aristóteles. Estou interessado, antes de tudo, no famoso diálogo de Platão, “Ménon”, que, obviamente, não é de todo geometria axiomática. E há algo em Aristóteles que, conceptualmente, é semelhante às ideias de Platão no “Ménon”. A ideia euclidiana tem sido, claro, imensamente importante, por exemplo para os “Principia Mathematica” de Bertrand Russell e Alfred North Whitehead, e por aí fora. Tudo depois de Euclides é axiomático, mas penso que a prova de Platão no “Ménon” é, por assim dizer, uma prova absoluta, não relativa a suposições… Não há suposições ali. Penso que esses tipos de provas matemáticas absolutas, sem suposições, foram fatalmente negligenciadas. Foi uma área negligenciada que é muito importante para mim.

AC: Eu recordo que na sua “Sociedade Aberta”, em notas muito ricas do livro, se referia às ideias matemáticas de Platão, particularmente em “Timeu”…

KP: Em conjunto, a filosofia grega é maravilhosa. Não gosto da ética de Platão, a sua filosofia social é, em parte, extremamente inteligente, mas a sua atitude é autoritária e ditatorial, e não humanitária. Por isso, não gosto da sua atitude moral mas admiro a sua inteligência.

AC: Alguma vez voltou a estudar Hegel, outro “inimigo da sociedade aberta”?

KP: Não! Não! Eu ainda detesto Hegel! Prefiro ler Kant. Tenho algumas primeiras edições dos trabalhos de Kant que consulto frequentemente.

AC: Sobre que aspeto da filosofia de Parménides é que trabalha atualmente?

KP: Acredito que Parménides era um materialista que acreditava que as coisas inamovíveis são reais. Agora, qual era realmente a sua atitude? A minha teoria é que ele acreditava que a vida e a luz não eram reais; mas a morte era real, bem como os objetos imóveis; o corpo morto era, para ele, parte da realidade. Mas a vida é uma ilusão, a luz é uma ilusão, o amor é uma ilusão. Ele fala destas coisas na segunda parte do seu poema, que é dedicado à vida, ao amor e à luz; é, portanto, sobre ilusões, não sobre o que é real. Quando algo é inamovível é real, quando se move não é real. É isto que eu penso ser a sua teoria. Ele aprecia a beleza, a vida, mas todas essas coisas estão indo embora ou desaparecendo. São, por isso, ilusão. É isto que eu penso ser a sua verdadeira filosofia. E penso que ninguém tenha dito isto. Penso que ele era um pensador muito original e interessante, e que era, de facto, um cientista e um astrónomo, um importante investigador em astronomia.

AC: O interesse dele pela astronomia poderia ter sido estimulado pela influência pitagórica…?

KP: Sim, provavelmente. E estava-o guiando, como aconteceu com Einstein.

AC: Pode dizer algo mais sobre isso?

KP: Sim. Einstein acreditava que o universo era determinístico. Ou seja, já existia num espaço quadrimensional, com o futuro e tudo dentro dele. Eu tentei mostrar-lhe que ele estava errado. De qualquer forma, trata-se de um universo-bloco em quatro dimensões, como em Parménides. Foi por isso que apelidei essa visão de “Parménides-Einstein”. É muito fácil a um cientista adotar esse ponto de vista porque se trata realmente de uma forma de materialismo – um universo-bloco como uma unidade tridimensional ou quadrimensional.

AC: Mas você argumentou contra este ponto de vista. Você defendeu que o universo é aberto. Que tipo de argumentos usou para convencer Einstein a abandonar essa visão?

KP: Antes de tudo, nada no mundo inteiro sugere isso. Se você vivesse na Antártida, uma tal visão talvez fosse defensável. Mas a diferença entre o nosso mundo e a Antártida mostra que essa visão é errada. A vida é incrivelmente variada e incrivelmente produtiva, está sempre a produzir coisas novas. É como a música, as artes, que são incrivelmente produtivas e criativas. Mozart, Beethoven ou, se preferir, Chopin – embora, devo confessar, eu não seja particularmente apaixonado por Chopin, também ele era criativo e trouxe algo de novo ao mundo, um novo estilo, uma nova forma de tocar. E o mundo está, da mesma forma, cheio de coisas criativas; mas a atitude determinística do universo-bloco fecha a nossa mente e não nos deixa ver um dos aspetos mais encorajadores e interessantes do mundo.

AC: Há alguns anos, em junho de 1989, assisti à sua palestra, ministrada perante os ex-alunos da London School of Economics, sobre conhecimento objetivo e epistemologia evolucionária. Fiquei com a impressão de que os seus pontos de vista sobre essas questões não mudaram desde a publicação de “Conhecimento Objetivo”.

KP: Desenvolvi-os, mas não os mudei. Nos últimos catorze anos trabalhei muito de perto com um bioquímico, Günther Wächtershäuser, sobre os problemas do gene da vida. Ele é professor de bioquímica evolucionária em Regensburg, na Alemanha.

AC: Quais são os seus novos pensamentos sobre a epistemologia evolucionária?

KP: Antes de tudo, acredito que o princípio da epistemologia não deve ser as observações que fazemos, mas a nossa aprendizagem intelectual; o tópico da epistemologia é este: mudar as nossas teorias, melhorando-as.

AC: Este ponto de vista é um elemento da sua crítica à tradição empirista. A rejeição dessa tradição tem constituído um ponto de partida da sua epistemologia e filosofia da ciência.

KP: Sim, claro. Os nossos sentidos têm uma função biológica a desempenhar e essa função biológica não serve apenas para nos fornecer sensações, mas também para nos dar um conhecimento importante para a vida. Não podíamos fazer nada apenas com sensações. O ponto decisivo não é a observação, mas as expectativas. Estas são biologicamente importantes.

AC: Algo que está dentro de nós, não fora…

KP: Se assim preferir, mas não há uma grande diferença. A expectativa é acerca do que nós cremos encontrar do lado de fora. O nosso conhecimento é para nos ajudar nas nossas ações e no nosso futuro. O nosso conhecimento é feito de expectativas e a nossa vida é baseada nelas. Você não espera que eu tire uma arma do meu bolso e dispare sobre você. A expectativa de que eu o trate pacificamente é fundamental para a nossa conversa e não se baseia na observação, já que você não olhou nos meus bolsos. Temos de nos orientar constantemente em tudo que estamos a fazer ou a não fazer e tudo isso é baseado em expectativas. Temos sempre expectativas sobre o que vai acontecer.

AC: … Que são posteriormente confirmadas ou não…

KP: Estas expectativas são também a base das nossas hipóteses e teorias. Obviamente, o nosso conhecimento é todo acerca disso. Não acerca se isto é ou não é uma laranja, por exemplo. Eu refiro-me a todas estas experiências, se o ovo está aberto por trás ou não. É perfeitamente verdade que, se eu lhe mostrar um ovo, você não vai esperar que ele esteja aberto atrás, claro, mas é o que você espera, não o que você vê. Da mesma forma, você espera que a minha cabeça não esteja aberta atrás, e por aí fora. Então, nós temos de olhar para o nosso conhecimento tendo em mente a sua função, e esta é fundamentalmente a mesma dos animais. Até as plantas esperam que coisas aconteçam, e também elas se ajustam aos eventos futuros.

AC: Neste ponto é natural que eu pergunte: quais são as fontes dessas expectativas?

KP: A fonte das nossas expectativas é em parte o nosso conhecimento inato, por assim dizer, o conhecimento que remonta ao nosso ajustamento darwiniano ao mundo. Uma criança, por exemplo, ajusta-se ao ambiente circundante através do seu conhecimento inato. Aliás, esta é a razão porque a televisão é tão perigosa, porque a televisão faz parte do ambiente da criança e ajusta-se a ela.

AC: De facto, a criança espera que o mundo seja muito parecido com a imagem que a televisão passa – e geralmente fica fortemente dececionada…

KP: Exatamente! Isso é muito perigoso. Tudo o que fazemos está relacionado com a tarefa de um organismo para se ajustar ao meio ambiente. Animais e plantas. Antecipação e expectativa são particularmente importantes para animais que se podem mover. No seu movimento eles têm de antever o que vai acontecer, como um motorista num carro. Se você conduz um carro ou uma bicicleta, você antecipa o que irá acontecer a seguir. É isso que faz a nossa consciência.

AC: Então pode dizer-se que somos apenas um conjunto de expectativas, impulsos e desejos, e que no processo de cumprimento de nossas expectativas e impulsos, nós somos transformados juntamente com essas expectativas e desejos, que são os nossos principais impulsionadores…

KP: Sim, é isso mesmo.

AC: Sir Karl, o senhor é um dos defensores mais ativos do liberalismo, um crítico severo do marxismo e de todos os tipos de historicismo, um porta-voz inflexível da democracia. O senhor dedicou grande parte da sua atividade filosófica ao combate ao comunismo e ao totalitarismo, pregando a defesa da sociedade aberta. Qual foi a sua reação à revolução democrática na Polónia e em outros países da Europa Central, que marcaram a queda do sistema comunista e abriram esses países ao mundo ocidental?

KP: Claro que gostei dessas mudanças. Mas devo dizer que não penso que o marxismo tenha sido definitivamente derrotado. Estou certo de que ele regressará uma e outras vezes. Talvez nem tanto na Polónia, mas seguramente na Rússia. Mas até talvez na Polónia, e mesmo no Ocidente. Penso que as pessoas têm tendência para serem historicistas. Veja, se você olhar para um jornal qualquer, seja em que língua for, verificará que quando alguém escreve sobre política, implicitamente acredita que o político bom, justo e sábio é aquele que antecipadamente sabe o que acontecerá a seguir, aquele que tem o dom da profecia no campo da política. Mas em minha opinião isto representa um fantástico preconceito, um tipo de loucura. Você não pode prever o futuro. O futuro não está fixado, é aberto. Tudo o que pode fazer é tentar adivinhar muito vagamente como será. Você não pode prever quando morrerei: posso morrer hoje, ou posso viver mais cinco anos – você pura e simplesmente não pode prever isso. Nenhum médico que seja realmente consciencioso pode prever o que realmente acontecerá a um paciente, exceto, talvez, em casos extremos. Se você não pode prever quando morrerei, como é possível prever seja o que for acerca de toda a sociedade? Assim, a crença de que o futuro pode ser determinado é, simultaneamente, equivocada e errada. Mesmo se o futuro fosse determinado, poderíamos não ser capazes de o prever; mas não é determinado e não podemos prevê-lo! Acreditar no contrário é ser vítima de uma superstição, uma superstição idiota que é bastante poderosa, um pouco por todo o lado. É por isso que o marxismo não desaparecerá, pois o marxismo não é apenas uma superstição deste tipo – é uma superstição “científica”. Então aparecerá de novo, uma e outra vez.

AC: Em geral, estamos testemunhando agora, apesar dos seus esforços, um forte reaparecimento do historicismo na filosofia contemporânea. Um dos muitos proeminentes pensadores dessa nova onda é Alasdair MacIntyre…

KP: Oh, sim. Eu conheci-o quando ele era muito novo e era um marxista. Fui convidado para um encontro do qual ele também participou. Parece que ele agora é um tomista…

AC: Além disso, em muitas disciplinas filosóficas pode sentir-se uma forte influência das famosas “Investigações Filosóficas” de Ludwig Wittgenstein, sobre quem você sempre foi muito crítico.

KP: Lamentavelmente, é verdade. É terrível. Eu penso que realmente a filosofia contemporânea britânica é muito má… desinteressante… maçadora… O segundo livro de Wittgenstein é extremamente maçador. O seu primeiro livro, “Tratado Lógico-Filosófico” tinha características bem diferentes. Em geral, a filosofia é dominada por diversas modas: historicismo, estruturalismo, novo historicismo, pós-estruturalismo, pós-modernismo e outras – tudo modas filosóficas. Mas a moda em ciência ou filosofia é algo terrível. Está lá, não há nada a fazer. Mas é algo que deveria ser desprezado, não seguido.

AC: Algum dos filósofos britânicos seguiu a filosofia do racionalismo crítico que o senhor iniciou aqui?

KP: Sim, o meu ex-aluno e assistente, David Miller. Ele acabou de publicar um livro sobre o assunto. Chama-se “A Defesa do Racionalismo Crítico”. Ele trouxe-me o livro ontem, como presente de aniversário.

AC: Quando prevê que a tradução alemã do seu livro “Conjeturas e Refutações” seja publicada?

KP: As minhas “Conjecturas”, apenas a primeira metade do livro, estão agora a ser lançadas em alemão. As “Refutações” sê-lo-ão mais tarde. Muitas pessoas tentaram traduzir o livro, mas eu achei todas as traduções péssimas. A tradução tem de ser feita com muita consciência. E eles não o fizeram. Agora foi o próprio editor quem traduziu e remeteu para nós. A senhora Mew fez uma primeira correção, eu fiz uma segunda, e daí resultou um livro muito bom.

AC: É nas suas “Conjeturas e Refutações” que você introduz muitos conceitos filosóficos que foram posteriormente severamente criticados por muitos filósofos da ciência, por exemplo, “verosimilhança”, “corroboração”…

KP: Oh, sim! Tudo na minha teoria da ciência foi criticado, mas todas essas críticas não eram boas. David Miller respondeu a algumas críticas no seu livro, embora eu tenha apenas olhado de relance, porque ele mo deu apenas ontem; e eu também tentei responder-lhes no meu livro “Em Busca de um Mundo Melhor”.

AC: No prefácio que escreveu especialmente para a edição polaca de “Conhecimento Objetivo”, você fez uma menção calorosa a Alfred Tarski. Muitos leitores polacos estão interessados na sua relação pessoal com Tarski, a quem este seu livro é dedicado, bem como com muitos outros representantes da escola de lógica e filosofia de Lvov-Warsaw.

KP: Encontrei-me com Tarski pela primeira vez em Praga há sessenta anos, em agosto de 1934. Foi aí que conheci também Janina [Hossiason-Lindenbaum]. Participei então, pela primeira vez, no Congresso Internacional de Filosofia. O congresso não foi muito interessante, mas foi precedido por uma conferência preliminar, organizada por Otto Neurath, em nome do Círculo de Viena. Depois disso Tarski transferiu-se de Praga para Viena, onde ficou um ano e onde ficámos amigos. Do ponto de vista filosófico, a minha amizade com Tarski foi muito importante para mim. Graças a Tarski compreendi o poder da noção de verdade absoluta e objetiva, e como ela pode ser defendida. Não sei como é hoje, mas naquele tempo as pessoas da Polónia eram mais sérias que as outras. Não quero dizer que não tivessem sentido de humor, não é isso, mas que elas estavam mais seriamente empenhadas em pensar do que pessoas da Áustria, da Alemanha, da Inglaterra, ou de qualquer outro lado. Eram pessoas muito, muito boas e sérias.

AC: Conheceu outro eminente lógico da escola de Lvov-Warsaw, Jan Lukasiewicz?

KP: Sim, era um homem simpático. Gostei muito dele. Conhecemo-nos nos exames de doutoramento de outro lógico polaco, Czeslaw Lejewski. Eu era o supervisor da tese e Lukasiewicz foi convidado para examinador externo.

AC: Como você provavelmente sabe, ele foi ajudado por Heinrich Scholz a fugir da Polónia ocupada pelos nazis e foi-lhe dado, por recomendação do primeiro-ministro da Irlanda, De Valera, ele próprio um matemático, o cargo de professor em Dublin.

KP: Eu conheci Heinrich Scholz. Encontrei-me com ele no Congresso de Paris em 1935, que foi organizado por Otto Neurath. Estou feliz por ele ter ajudado Lukasiewicz, ele não me mencionou isso. Schödinger também esteve na Irlanda e também foi levado por De Valera. O meu professor de física teórica, Hans Türing, quando soube que eu ia a Inglaterra, disse-me para eu visitar Schödinger em Oxford. Isto foi em 1935. Recentemente, fiquei abalado com a morte do meu amigo Jerzy Giedymin, eminente filósofo da ciência polaco, que passou muitos anos em Inglaterra. Não há muito tempo que ele foi visitar a Polónia e aí morreu.

AC: Muitos estudiosos da Polónia e de outros países da Europa Oriental – eu incluído – devem muito a George Soros que fundou uma série de instituições que permitem a troca de ideias, e o contacto entre elas e pessoas no Ocidente. Uma das fundações de Soros tem o nome de “Open Society Foundation,” que é uma alusão ao seu livro “A Sociedade Aberta”. Como vocês se encontraram?

KP: Ele era um aluno meu, há muitos anos. Mas mantivemos sempre contacto. Encontrei-o recentemente durante a minha visita a Praga. Ele também me visitou duas ou três vezes aqui. É sempre um pouco difícil para nós; quer dizer, eu não quero continuar com a relação professor-aluno. Estou muito contente por você ter sido ajudado por ele. Soros ajuda muita gente. Por exemplo, ele forneceu água a Sarajevo quando a cidade estava sitiada…

AC: Um dos seus amigos mais chegados era o laureado com o Prémio Nobel, Friedrich Hayek, que escreveu bastante sobre a teoria do liberalismo e a metodologia das ciências sociais.

KP: Sim, conheci-o por muitos anos. Em 1944, quando eu ainda estava na Nova Zelândia, ele remeteu-me um telegrama oferecendo-me uma cadeira de leitor na London School of Economics. Aceitei o convite e vim para Londres. Deixei a Nova Zelândia mesmo antes de terminar a guerra com o Japão, mas depois da guerra na Europa. O convite chegou enquanto a guerra na Europa ainda decorria. Ocupei o cargo em 1945, e em 1949 fui nomeado Professor de Lógica e Método Científico, também na LSE. Friedrich Hayek era três ou quatro anos mais velho que eu. Fomos muito próximos.

AC: Ambos eram fortes críticos dos regimes totalitários. Friedrich von Hayek era conhecido nos antigos países comunistas como o autor de “O Caminho para a Servidão”. Você é mais conhecido pela “A Sociedade Aberta e seus Inimigos”. Ambos defendiam o liberalismo que, a meu ver, apresentava traços conservadores evidentes. Por exemplo, você, no livro que já mencionei, “Conjeturas e Refutações”, disse que o mundo das democracias liberais do Ocidente, mesmo que não seja o melhor dos mundos possíveis, é certamente o melhor de todos os mundos que existem. Esteve alguma vez tentado a mudar essa visão?

KP: Sim. Sim, mas apenas tentado.

AC: Não mudou então de ponto de vista sobre este assunto?

KP: Não. Quando alguém pretende ser crítico tenta mudar de ideias, pensa nas matérias vezes sem conta. Mas não mudei de opinião.

AC: Mas como você bem sabe, as nações dos países da Europa Central, que passam por um processo de transformação muito doloroso, expressaram repetidamente o seu desapontamento com a política de liberalização económica ali imposta, e nas eleições realizadas recentemente nos países da Europa Central, questionaram inequivocamente essa política. Temos de enfatizar que eles tinham todas as razões para o seu ceticismo; os liberais recém-nascidos na Europa Central deram o seu melhor para merecerem esta resposta. O princípio do mercado livre tornou-se uma receita universal e acrítica para todos os problemas em todas as esferas da vida social, uma panaceia. Atualmente, muitos resultados indesejáveis das tentativas iniciais de reforma são agravados pela surpreendente incompetência dos políticos liberais. A sua corrupção já se tornou lendária. Embora graves limitações do princípio do livre mercado se tenham tornado evidentes, os seus defensores liberais recusam-se a enfrentar os factos – tal como, não há muito tempo, os comunistas fizeram.

KP: Bem, eu ainda acredito que de certa forma é preciso termos um mercado livre, mas também acredito que endeusar o que está fora do princípio do livre mercado é um disparate. Se nós não tivermos um mercado livre, então é bastante óbvio que as coisas que são produzidas não são realmente produzidas para o consumidor. O consumidor pode pegar ou largar. As suas necessidades não são tidas em conta no processo de produção. Mas tudo isso não tem uma importância fundamental. Humanitarismo, sim, tem importância fundamental. Tradicionalmente, uma das principais tarefas da economia era pensar o problema do pleno emprego. Desde aproximadamente 1965, os economistas desistiram disso; acho isso muito errado. Tal não pode ser um problema insolúvel! A nossa primeira tarefa é a paz, a segunda é conseguir que ninguém tenha fome, e a terceira é tentar o pleno emprego. A quarta tarefa é, claro, a educação.

AC: Eu pensei que você diria isso. Acontece porém que no mundo contemporâneo – mesmo na melhor parte dele – nenhuma dessas tarefas é fácil de realizar. Que tipos de problemas vê como obstáculos à concretização da tarefa da educação?

KP: Presentemente, o que mais faz perigar os esforços na educação é a televisão. A educação simplesmente não consegue prosseguir se deixarmos a televisão fazer o que quiser. É impossível que a educação funcione em confronto com a televisão, a menos que esta reconheça que tem também uma tarefa educacional que ultrapassa o mero entretenimento. Caso contrário, não podemos ter educação. Do ponto de vista democrático, a televisão deve ser controlada, pela simples razão de que o seu potencial poder político é quase ilimitado. Se você for dono da televisão, pode fazer aquilo que quiser. E um tal poder tem de ser controlado. A minha proposta é olhar para o problema do controlo televisivo à semelhança do controlo exercido sobre o pessoal médico. Os médicos também precisam de ser controlados, e eles fazem isso, em grande parte, por si mesmos. Por exemplo, têm de ter uma certa educação. O mesmo se aplica ao sistema de controlo dos advogados, que têm a sua própria organização que os controla. Graças a este sistema de controlo, os advogados não roubam o dinheiro dos seus clientes e os médicos não matam os seus pacientes. É preciso integrar toda a gente que trabalha para a televisão num qualquer tipo de organização semelhante. Essas pessoas teriam de se tornar membros de tal organização com base em alguma educação, depois de submetidos a exames apropriados para avaliar a sua consciência das tarefas educacionais e do seu grau de responsabilidade. Teriam de aprender que a sua influência é muito grande e a sua responsabilidade é igualmente grande. É responsabilidade pela nossa civilização. O seu primeiro objetivo seria a luta contra a violência. E, de acordo com estes princípios, se alguém fosse considerado irresponsável, a sua licença poderia ser-lhe retirada. Sem este sistema de regulação estamos a entrar no caos, violência e crime. A crescente onda de crimes é largamente induzida pela televisão.

AC: Como entende o papel das igrejas nas sociedades contemporâneas?

KP: Essa é uma pergunta muito importante. As igrejas fizeram demasiada política e muito pouco no apoio a pessoas que necessitam de ajuda espiritual. A Polónia, claro, é quase completamente católica. Eu penso que a Igreja Católica cometeu muitos erros… muitos erros sérios… O primeiro grande erro foi cometido em 1890 quando o papa se tornou infalível. Foi um desenvolvimento muito tardio – desnecessário, contra a tradição, a história e o senso comum. Então, claro, temos a sua atitude em relação ao controlo familiar, ao planeamento familiar, e por aí fora. A posição da Igreja Católica sobre estes assuntos é muito perigosa e irresponsável. Tomemos como exemplo a Igreja de Inglaterra. Está quase completamente envolvida na política, uma política muito imatura. Tradicionalmente, a igreja, incluindo a Igreja de Inglaterra, tem sido um veículo de educação, de literatura, de história, de boas tradições; mas agora, é incrível como as pessoas da Igreja não têm educação; essas pessoas são terríveis, não sabem nada acerca da sua própria história, da sua própria tradição. As melhores tradições religiosas estão na América, embora até na América algumas igrejas e instituições religiosas possam ser assustadoras…

AC: Recordemos aqui acontecimentos muito recentes em Waco, Texas, onde muitas pessoas, seguidoras de David Koresh, morreram numa terrível explosão…

KP: Sim. E na Alemanha a Igreja, durante as primeira e segunda grandes guerras, foi absolutamente terrível. O líder da igreja protestante alemã disse coisas como ” a guerra é a guerra de Deus”, e todos afirmaram que tinham conhecimento íntimo dos planos políticos de Deus. Foi terrível… E tudo isto teve as suas consequências. As igrejas realmente falharam. É muito triste…

AC: Como primeira prioridade, você mencionou a paz. Mas agora, justamente quando uma parte do mundo se libertou pacificamente da opressão totalitária, testemunhamos terríveis conflitos no Sul da Europa…

KP: … e em África, e em breve teremos noutros lugares. Os nossos políticos não levam suficientemente a sério a sua tarefa. Parecem não ver quão importante ela é. Os políticos falharam. Eu penso que politicamente perdemos uma grande oportunidade. Os países ocidentais deveriam ter feito uma oferta aos russos. Deveríamos ter-lhes dito: “Olhem para a nossa parte do mundo. Vivemos todos em paz, estamos em paz com o Japão, com a China, com todos. Vocês não querem juntar-se-nos?” Realmente deveríamos ter feito tal oferta no tempo certo, por volta de 1988. Mas isso não foi feito. E desde o colapso da União Soviética que somos nós quem está preocupado… Mas os filósofos também falharam, também mostraram a sua irresponsabilidade. Em geral, as coisas não parecem muito boas nos nossos dias.

AC: Você não parece realmente muito otimista. Isto quer dizer que abandonou a sua atitude ativista e otimista? É ainda um otimista, como afirmou tantas vezes nos seus livros?

KP: Sim, apesar de tudo isto mantenho-me um otimista em relação ao mundo. É nosso dever sermos otimistas. Apenas deste ponto de vista podemos ser ativos e fazer o que pudermos. Se formos pessimistas, já desistimos. Precisamos manter-nos otimistas, temos de ver como é maravilhoso o mundo, e tentarmos fazer o que pudermos para melhorá-lo.

**************************************************

Notas:

1 Ao que parece, Karl Popper gostava de receber os amigos na sua casa em Kenley, no sul de Londres, a sua última morada em Inglaterra. João Carlos Espada foi um dos que o visitaram por diversas vezes, entre muitos outros. Os relatos sobre esses encontros, para quem admira Popper, são documentos preciosos. Um registo de um desses encontros, desta feita por ocasião do nonagésimo aniversário de Popper, foi publicado em 1992 no magazine “Intellectus”, do Instituto de Ciência Económica de Hong Kong. Esse artigo é escrito por Eugene Yue-Ching Ho, tal como nós, um confesso admirador de Karl Popper. Esse registo pode ser lido em: http://www.tkpw.net/hk-ies/n23a/?fbclid=IwAR2Lc6lnOK-nNDzR5Gk2SOfyR3BCAoJRnvk_9-974LngVeEqHCbU9DrlH2M.

**************************************************

Foto retirada de: http://www.justificando.com/2017/08/18/paradoxos-da-democracia-popper-e-critica-liberal-ao-liberalismo-ingenuo/.

**************************************************


O Atiçador de Wittgenstein

Wittgenstein e Popper. Vienenses de origem judaica, foram contemporâneos e viveram em Inglaterra. Mas as suas visões do mundo eram radicalmente diferentes.

Quase todos os que se interessam por Filosofia já terão tido conhecimento do episódio ocorrido na sala H3 do King’s College, em Cambridge, na noite de 26 de Outubro de 1946, entre Karl Popper e Ludwig Wittgenstein. Há versões para todos os gostos sobre o que aconteceu e até a um livro já foi dado o título que também usámos neste artigo: “O Atiçador de Wittgenstein”[1]. Mas, mais do que o fait divers que se instalou em torno desse episódio, estamos interessados no que, do ponto de vista filosófico, separava os dois autores. Popper sempre foi muito crítico em relação à filosofia da linguagem e, logo, de Wittgenstein, o seu mais eminente representante. Também nós, sem escondermos que, em larga medida, somos influenciados por Popper, já nos debruçámos, em outro artigo deste blogue, sobre as principais obras de Wittgenstein, a saber, o Tratado Lógico Filosófico e as Investigações Filosóficas[2]. É indisfarçável, pois, a nossa simpatia pela posição de Popper, que não pretendemos esconder. Na autobiografia intelectual[3], Popper refere-se várias vezes ao seu compatriota e, numa secção desse livro, conta o que se passou dentro da sala H3, apinhada de estudantes, professores e curiosos. Claro que se trata da versão de Popper, uma entre várias, sobre o que aconteceu, e é possível que contenha falhas, pois não é crível que alguém recorde exatamente todos os detalhes do que se passou. Porém, acreditamos que as falhas que possam ocorrer sejam devido a isso mesmo – alguma imprecisão de memória – pois não passa pela cabeça de quem tenha estudado a obra de Karl Popper, duvidar da sua honestidade intelectual. Eis, pois, o que Popper transcreve na sua autobiografia[4].

No princípio do ano escolar de 1946-47 recebi um convite do Secretário do Clube de Ciências Morais, de Cambridge, para ler um artigo sobre um “quebra-cabeças filosófico”. Era perfeitamente claro que se tratava de uma formulação de Wittgenstein, e que por detrás dela estava a tese filosófica de Wittgenstein de que não existem problemas genuínos em filosofia, mas apenas quebra-cabeças linguísticos. Dado que esta tese se encontrava entre as minhas aversões de estimação, decidi falar sobe “Existem Problemas Filosóficos?”. Comecei o meu artigo (lido em 26 de Outubro de 1946, no gabinete de R.B. Braithwaite no King’s College) exprimindo a minha surpresa por ser convidado pelo Secretário para ler um artigo “abordando um quebra-cabeças filosófico qualquer”; e salientei que, ao negar implicitamente que existem problemas filosóficos, quem quer que tivesse escrito o convite tinha tomado partido, talvez sem se dar conta, numa questão criada por um genuíno problema filosófico.

Não preciso de dizer que a intenção desta afirmação era apenas uma introdução desafiadora e, de certo modo, bem disposta, ao meu tópico. Mas precisamente nesse momento, Wittgenstein deu um salto e disse alto e, ao que me pareceu, zangado: “O Secretário fez exactamente o que lhe disseram. Agiu sob as minhas instruções.” Não dei importância a isto e prossegui; mas resultou daqui que pelo menos alguns dos admiradores de Wittgenstein lhe deram importância e, como consequência, tomaram a minha observação, que tinha a intenção de ser uma piada, como uma queixa séria contra o Secretário. E o mesmo fez o pobre Secretário, como se pode ver pelas actas em que relata o incidente, acrescentando uma nota de rodapé: “Esta é a forma de convite do Clube.”

Contudo, prossegui dizendo que se pensasse que não existem problemas filosóficos genuínos, certamente que não seria filósofo; e que o facto de muita gente, ou talvez toda a gente, adoptar impensadamente posições indefensáveis para muitos, ou talvez todos, os problemas filosóficos, fornecia a única justificação possível para ser filósofo. Wittgenstein voltou a dar um salto, interrompendo-me, e dissertou longamente sobre quebra-cabeças e sobre a inexistência de problemas filosóficos. Num momento que me pareceu apropriado, interrompi-o, apresentando uma lista que tinha preparado de problemas filosóficos como estes: Conhecemos coisas por meio dos nossos sentidos? Obtemos os nossos conhecimento por indução? Estes problemas foram afastados por Wittgenstein como sendo mais lógicos do que filosóficos. Referi então o problema de saber se existem infinitos potenciais, ou mesmo reais, um problema que afastou como sendo matemático. (Esta rejeição consta das actas.) Mencionei então os problemas morais e o problema da validade das regras morais. Nesse ponto, Wittgenstein, que estava sentado perto da lareira e tinha estado a brincar nervosamente com o atiçador, que por vezes usava como a batuta de um maestro para sublinhar as suas asserções, desafiou-me: “Dê um exemplo de uma regra moral!” Retorqui: “Não ameaçar os conferencistas visitantes com atiçadores.” Ao que Wittgenstein, num acesso de raiva, largou o atiçador e saiu da sala, batendo com a porta.

Fiquei realmente muito penalizado. Admito que fui a Cambridge esperando provocar Wittgenstein a defender o ponto de vista de que não existem problemas filosóficos genuínos e com a intenção de o combater nesse ponto. Mas nunca tive a intenção de o irritar; e foi uma surpresa para mim descobri-lo incapaz de compreender um dito de espírito. Só mais tarde compreendi que era provável que ele achasse, de facto, que eu estava a brincar e que isso o tenha ofendido. Mas embora quisesse tratar o meu problema com boa disposição, eu falava a sério – talvez mais do que o próprio Wittgenstein, dado que, afinal, ele não acreditava em genuínos problemas filosóficos.


******************************

Notas:

[1] David Edmonds & John Eidinow, “Wittgenstein’s Poker: The Story of a Ten-Minute Argument Between Two Great Philosophers”, Harper Collins Publishers, 2002.

[2] https://ilovealfama.com/tag/wittgenstein/

[3] Karl Popper, “Busca Inacabada: Autobiografia Intelectual”, Esfera do Caos, Lisboa, 2008, 1ª ed.

[4] Ob. cit., pp. 172-4.

*******************************

Fotos retiradas de:

  • goodreads.com
  • canterbury.ac.nz

*******************************

In Search of a Better World

A Summary by Way of a Preface

All things living are in search of a better world.

Men, animals, plants, even unicellullar organisms are constantly active. They are trying to improve their situation, or at least to avoid its deterioration. Even when asleep, the organism is actively maintaining the state of sleep: the depth (or else the shallowness) of sleep is a condition actively created by the organism, which sustains sleep (or else keeps the organism on the alert). Every organism is constantly preoccupied with the task of solving problems. These problems arise from its own assessments of its condition and of its environment; conditions which the organism seeks to improve.

An attempted solution often proves to be misguided, in that it makes things worse. Then follow further attempts at solutions – further trial and error movements.

We can see that life – even at the level of the unicellular organism – brings something completely new into the world, something that did not previously exist: problems and active attempts to solve them; assessments, values; trial and error.

It may be supposed that, under the influence of Darwin’s natural selection, it is the most active problem solvers, the seekers and the finders, the discoverers of new worlds and new forms of life, that undergo the fastest evolution.

Each organism also strives to stabilize its internal conditions of life and to maintain its individuality – an activity whose results biologists call “homoeostasis”. Yet this too is an internal agitation, an internal activity: an activity that attempts to restrict the internal agitation, a feedback mechanism, a correction of errors. The homoeostasis mus be incomplete. It must restrict itself. Were it completely successful, it would mean the death of the organism, or, at the very least, the temporary cessation of all its vital functions. Activity, agitation, search are essential for life, for perpetual restlessness, perpetual imperfection; for perpetual seeking, hoping, evaluating, finding, discovering, improving, for learning and for the creation of values; but also for perpetual error, the creation of negative values.

Darwinism teaches that organisms become adapted to the environment through natural selection. And it teaches that they are passive throughout this process. But it seems to me far more important to stress that the organisms find, invent and reorganize new environments in the course of their search for a better world. They build nests, dams, little hills and mountains. But their most momentous creation has probably been the transformation of the atmosphere surrounding the earth by enriching it with oxygen; this transformation was, in turn, a consequence of the discovery that sunlight can be eaten. The discovery of this inexhaustible food supply and of the countless ways of trapping the light created the kingdom of plants; and the discovery that plants can be eaten created the animal kingdom.

We ourselves have been created by the invention of a specifically human language. As Darwin says (The Descent of Man, part 1, chapter III), the use and development of the human language “reacted on the mind itself”. The statements of our language can describe a state of affairs, they can be objectively true or false. So the search for objective truth can begin – the acquisition of human knowledge. The search for truth, particularly in the natural sciences, no doubt counts among the best and greatest things that life has created in the course of its long search for a better world.

But have we not destroyed the environment with our natural science? No! We have made great mistakes – all living creatures make mistakes. It is indeed impossible to foresee all the unintended consequences of our actions. Here science is our greatest hope: its method is the correction of error.

I do not want to end this preface without saying something about the success of the search for a better world during the eighty-seven years of my life, a time of two senseless world wars and of criminal dictatorships. In spite of everything, and although we have had so many failures, we, the citizens of the western democracies, live in a social order which is better (because more favourably disposed to reform) and more just than any other in recorded history. Further improvements are of the greatest urgency. (Yet improvements that increase the power of the state often bring about the opposite of what we are seeking.)

I would like to mention briefly two things that we have improved.

The most important one is that the terrible mass poverty which still existed in my childhood and in my youth has now disappeared. (Unfortunately, this is not the case in places like Calcutta.) Some may object that there are people in our society who are too rich. But why should that bother us, if there are sufficient resources – and the good will – to struggle against poverty and other avoidable suffering?

The second is our reform of the criminal law. At first we may have hoped that if punishments were lessened, then crime would also lessen. When things did not work out like this, we nonetheless decided that we ourselves, individually and collectively, would rather suffer the effects of crime, corruption, murder, espionage and terrorism, than take the very questionable step of trying to eradicate these things by means of violence, and so run the risk of turning innocent people into victims. (Unfortunately, it is difficult to avoid this completely.)

Critics accuse our society of corruption in high places, although they may admit that corruption is sometimes punished (Watergate). Perhaps they are not aware of the alternative. We prefer an order that guarentees full legal protection even to evil criminals so that they are not punished in cases where there is doubt. And we prefer this order to another order in which even those who are innocent of any crime cannot find legal protection and are punished even when their innocence is undisputed (Solzhenitsyn).

Yet perhaps in making this decision we may have chosen still other values. Perhaps we have, quite unconsciously, applied Socrates’ wonderful teaching that “It is better to suffer from an act of injustice than to commit an act of injustice”.

Karl Raimund Popper

Kenley, Spring 1989.

**************************************************

In Search of a Better World, Routledge, Chapman & Hall, Inc., London, 1994.

**************************************************