
Todas as coisas vivas procuram um mundo melhor.
Homens, animais, plantas e até organismos unicelulares estão constantemente ativos. Todos tentam melhorar a sua situação, ou pelo menos evitar a deterioração. Mesmo quando dorme, o organismo mantém ativamente o sono: a profundidade (ou então a superficialidade) é uma condição criada pelo organismo, que mantém o sono (ou então mantém o organismo em estado de alerta). Qualquer organismo está constantemente ocupado com a tarefa de resolver problemas. Esses problemas surgem da avaliação que faz sobre a sua condição e o seu ambiente; condição essa que o organismo procura melhorar.
Uma tentativa de solução mostra-se por vezes equivocada, na medida em que piora as coisas. Seguem-se novas tentativas de solução — mais movimentos de tentativa e erro.
Podemos ver que a vida — mesmo no nível unicelular — traz algo completamente novo ao mundo, algo que não existia anteriormente: problemas e tentativas ativas de resolvê-los; avaliações, valores; tentativa e erro.
Podemos supor que, sob a influência da seleção natural de Darwin, são os solucionadores de problemas mais ativos, os que buscam e os que encontram, os descobridores de novos mundos e novas formas de vida, que evoluem mais rapidamente.
Cada organismo esforça-se também por estabilizar as suas condições internas de vida e por manter a sua individualidade — uma atividade cujos resultados os biólogos chamam de “homeostase”. No entanto, isso é também uma agitação interna, uma atividade interna: uma atividade que tenta confinar a agitação interna, um mecanismo de retroalimentação, uma correção de erros. A homeostase deve estar incompleta. Ela deve autolimitar-se. Se fosse ilimitada, significaria a morte do organismo ou, no mínimo, a cessação temporária de todas as suas funções vitais. A atividade, a agitação, a busca são essenciais para a vida, para a inquietação perpétua, para a imperfeição perpétua; para as perpétua busca, esperança, avaliação, descoberta, aperfeiçoamento, aprendizagem e criação de valores; mas também para o erro perpétuo, a criação de valores negativos.
O darwinismo ensina que os organismos se adaptam ao ambiente através da seleção natural. E ensina que eles são passivos durante esse processo. Mas parece-me muito mais importante enfatizar que os organismos encontram, inventam e reorganizam novos ambientes no decurso da sua busca por um mundo melhor. Eles constroem ninhos, represas, pequenas colinas e montanhas. Mas a sua criação mais importante foi, provavelmente, a transformação da atmosfera ao redor da Terra, enriquecendo-a com oxigénio; essa transformação foi, por sua vez, uma consequência da descoberta de que a luz do sol pode ser comida. A descoberta desse alimento inesgotável e das inúmeras formas de capturar a luz, criou o reino das plantas; e a descoberta de que as plantas também podem ser comidas criou o reino animal.
Nós mesmos fomos criados pela invenção de uma linguagem especificamente humana. Como diz Darwin (The Descent of Man, parte 1, capítulo III), os uso e desenvolvimento da linguagem humana “agiram sobre a própria mente”. As afirmações da nossa linguagem podem descrever um estado de coisas, podem ser objetivamente verdadeiras ou falsas. Assim, a busca pela verdade objetiva pode começar — a aquisição do conhecimento humano. A busca da verdade, particularmente nas ciências naturais, conta-se entre as maiores e melhores coisas que a vida criou na sua longa busca por um mundo melhor.
Mas não teremos nós destruído o meio ambiente com a nossa ciência natural? Não! Cometemos grandes erros — todas as criaturas vivas cometem erros. E é realmente impossível antever todas as consequências não intencionais das nossas ações. Mas aqui a ciência continua a ser a nossa maior esperança: o seu método é a correção do erro.
Não quero terminar este prefácio sem dizer alguma coisa sobre o sucesso da busca por um mundo melhor durante os oitenta e sete anos da minha vida, tempo de duas guerras mundiais sem sentido e de ditaduras criminosas. Apesar de tudo, e embora tenhamos tido tantos fracassos, nós, os cidadãos das democracias ocidentais, vivemos numa ordem social que é melhor (porque mais favorável a reformas) e mais justa do que qualquer outra na história. Mais melhorias são urgentes. (No entanto, melhorias que aumentem o poder do estado muitas vezes trazem o oposto do que almejamos).
Gostaria de mencionar brevemente duas coisas em que melhorámos.
A mais importante é que a terrível pobreza em massa, que ainda existia durante as minhas infância e juventude, agora desapareceu. (Infelizmente, isto não acontece em lugares como Calcutá). Alguns podem objetar que há pessoas na nossa sociedade demasiado ricas. Mas porque deveria isso incomodar-nos se há recursos suficientes — e boa vontade — para lutar contra a pobreza e outros sofrimentos evitáveis?
A segunda é a nossa reforma do direito penal. Ao princípio tivemos a esperança de que, se as punições decrescessem, então os crimes decresceriam também. Quando as coisas não funcionaram assim, decidimos que nós mesmos, individual e coletivamente, preferíamos sofrer os efeitos do crime, dos assassinatos, da corrupção, da espionagem e do terrorismo, em vez de darmos o passo muito questionável de tentar erradicá-los por meios violentos, e assim correr o risco de vitimizar pessoas inocentes. (Infelizmente, isto é difícil de evitar completamente).
Os críticos acusam a nossa sociedade de corrupção em altos cargos, embora possam admitir que a corrupção é às vezes punida (Watergate). Talvez eles não estejam cientes da alternativa. Nós preferimos uma ordem que garanta proteção legal completa até mesmo a criminosos perversos, por forma a que não sejam punidos em caso de dúvida. E preferimos esta ordem a outra ordem em que mesmo aqueles que são inocentes de qualquer crime não podem encontrar proteção legal e são punidos, mesmo quando a sua inocência é indiscutível (Solzhenitsyn).
Ao tomar esta decisão, talvez tenhamos escolhido ainda outros valores. Talvez tenhamos, inconscientemente, aplicado o maravilhoso ensinamento de Sócrates: “é melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la”.
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Karl Popper, In Search of a Better World, Prefácio, Routledge, London. (Tradução nossa).
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