A Teoria da Mais-Valia, de Marx, descrita por Popper.

A teoria do valor de Marx, normalmente considerada por marxistas e antimarxistas como uma pedra angular do credo marxista, é, em minha opinião, uma das suas partes bastante irrelevantes; na verdade, a única razão porque a vou abordar, em vez de passar imediatamente à secção seguinte, reside no facto de ser geralmente considerada importante e de eu não poder defender as razões da minha divergência em relação a essa opinião sem discutir a teoria. Desejo, porém, tornar desde já claro que, ao sustentar que a teoria do valor constitui uma parte redundante do marxismo, mais do que atacar Marx, estou a defendê-lo. Não restam dúvidas de que as inúmeras críticas que mostraram ser a teoria do valor muito deficiente em si mesma estão perfeitamente certas, no essencial. Mas, mesmo que estivessem erradas, a posição do marxismo só seria reforçada se se pudesse demonstrar que as suas decisivas doutrinas histórico-políticas podem ser desenvolvidas com inteira independência dessa teoria tão controversa.

A ideia da chamada teoria do valor-trabalho, adaptada por Marx para os seus fins, a partir de sugestões que encontrou nos seus predecessores (remete especialmente para Adam Smith e David Ricardo), é bastante simples. Se precisarmos de um carpinteiro, temos de lhe pagar à hora. Se lhe perguntarmos porque é que determinada obra é mais cara do que outra, ele indicará que implica mais trabalho. Para além do trabalho, teremos naturalmente de pagar a madeira. Mas se examinarmos a questão mais a fundo, veremos que estamos a pagar, indiretamente, o trabalho incluído no florestamento, derrubamento, transporte, serração, etc. Esta observação sugere a teoria geral de que temos de pagar uma obra, ou qualquer produto que possamos comprar, numa proporção aproximada do montante de trabalho nele contido, isto é, do número de horas de trabalho necessárias à sua produção.

Digo “aproximada” porque os preços reais flutuam. Mas há, ou pelo menos parece haver, sempre algo de mais estável por trás desses preços, uma espécie de preço médio em torno do qual os preços efetivos oscilam, chamado “valor de troca” ou, em suma, o valor da coisa. Utilizando esta ideia geral, Marx definiu o valor de um artigo como o número médio de horas de trabalho necessárias à sua produção (ou à sua reprodução).

A ideia imediata, a da teoria da mais-valia é, por assim dizer, igualmente simples. Também foi adotada por Marx dos seus predecessores. (Assevera Engels – talvez erradamente, mas irei seguir a sua exposição do assunto – que a principal fonte de Marx foi Ricardo). A teoria da mais-valia é uma tentativa, dentro dos limites da teoria do valor-trabalho, de resposta à pergunta: “Como obtém o capitalista o seu lucro?” Se admitirmos que os artigos produzidos na sua fábrica são vendidos no mercado pelo seu valor verdadeiro, isto é, de acordo com o número de horas de trabalho necessárias à sua produção, então o único modo pelo qual o capitalista poderá obter lucro será pagando aos operários menos do que o valor integral do produto destes. Assim, os salários auferidos pelo trabalhador representam um valor que não é igual ao número de horas que ele trabalhou. E, assim, podemos dividir o seu dia de trabalho em duas partes, as horas que ele gastou, na produção do valor equivalente ao seu salário, e as horas que ele gastou para produzir um valor para o capitalista. E, de forma correspondente, podemos dividir o valor total produzido pelo trabalhador em duas partes, o valor equivalente ao seu salário e o remanescente, que é chamado mais-valia. É desta mais-valia que se apropria o capitalista, constituindo a única base do seu lucro.

Até aqui, a história é bastante simples. Mas surge então uma dificuldade teórica. Toda a teoria do valor foi introduzida para explicar os preços reais pelos quais todos os artigos são trocados; admite-se ainda que o capitalista é capaz de obter no mercado o valor integral do seu produto, isto é, um preço correspondente ao número total de horas despendidas nele. Mas afigura-se que o operário não obtém o preço integral do artigo que vende ao capitalista no mercado de trabalho. Como se ele fosse defraudado, ou roubado; em todo o caso, como se não fosse pago de acordo com a lei geral aceite pela teoria do valor, designadamente a de que todos os preços efetivamente pagos são, pelo menos numa primeira aproximação, determinados pelo valor do artigo. (Diz Engels que o problema foi compreendido pelos economistas pertencentes ao que Marx chama a “escola de Ricardo” e assevera que a sua incapacidade de o resolver determinou o fracasso dessa escola). Surgiu então o que parecia ser uma solução bastante evidente dessa dificuldade. O capitalista possui um monopólio dos meios de produção, e este poder económico superior pode ser usado para induzir o trabalhador a um acordo que viola a lei do valor. Mas esta solução (que considero uma descrição bastante plausível da situação) destrói por completo a teoria do valor-trabalho na medida em que se verifica que certos preços, nomeadamente os salários, não correspondem aos respetivos valores, nem sequer numa primeira aproximação. E isto abre a possibilidade de ser igualmente válido em relação a outros preços, por motivos semelhantes.

Tal era a situação quando Marx entrou em cena para salvar da destruição a teoria do valor-trabalho. Através de outra ideia simples, mas brilhante, conseguiu mostrar que a teoria da mais-valia não só era compatível com a teoria do valor-trabalho como também podia ser rigorosamente deduzida desta. Para chegarmos a essa dedução, bastará apenas perguntarmo-nos: qual é, precisamente, a mercadoria que o trabalhador vende ao capitalista? A resposta de Marx é: não são as suas horas de trabalho, mas toda a sua força de trabalho. O que o capitalista compra ou aluga no mercado de trabalho é a força de trabalho do operário. Admitamos, como hipótese, que essa mercadoria é vendida pelo seu verdadeiro valor. Qual é o seu valor? De acordo com a definição de valor, o valor da força de trabalho é o número médio de horas de trabalho necessárias à sua produção ou reprodução. Ora isto, claramente, não é mais do que o número de horas necessárias para produzir os meios de subsistência do trabalhador (e da sua família).

Marx chegou, desse modo, ao seguinte resultado: o verdadeiro valor da força total de trabalho do operário é igual às horas de trabalho necessárias à produção dos seus meios de subsistência. A força de trabalho é vendida ao capitalista por esse preço. Se o trabalhador conseguir trabalhar mais do que isso, então o seu trabalho excedente pertence ao comprador ou alugador da sua força. Quanto maior for a produtividade do trabalho, isto é, quanto mais um operário for capaz de produzir por hora, tanto menos horas serão necessárias para a produção da sua subsistência e tanto mais horas sobram para a sua exploração. Isto mostra que a base da exploração capitalista é uma alta produtividade de trabalho. Se o trabalhador não pudesse produzir por dia mais do que o correspondente às suas necessidades diárias, então a exploração seria impossível sem violar a lei do valor.; só seria possível através da vigarice, do roubo ou do assassínio. Mas, uma vez que a produtividade do trabalho, em virtude da introdução das máquinas, aumentou tanto que um homem pode produzir muito mais que o correspondente às suas necessidades, a exploração capitalista torna-se possível. E é possível, mesmo numa sociedade capitalista “ideal”, no sentido em que todas as mercadorias, incluindo a força de trabalho, são compradas e vendidas pelo seu valor real. Numa tal sociedade, a injustiça da exploração não reside no facto de o trabalhador não receber um “preço justo” pela sua força de trabalho e sim no facto de ser tão pobre que é forçado a vender a sua força de trabalho, enquanto o capitalista é suficientemente rico para comprar força de trabalho em grandes quantidades e daí retirar lucro.

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in: A Sociedade Aberta e seus Inimigos, Karl Popper, Editora Fragmentos, 1993, Lisboa, vol. II. pp. 167-69.

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Foto retirada de http://www.telegraph.co.uk.

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