Tito

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Diogo Mainardi e o filho, Tito.

Diogo Mainardi é um escritor e jornalista brasileiro de 50 anos que vive em Veneza. Em 30 de setembro de 2000, ele e sua mulher, Anna, dirigiram-se ao hospital do Campo Santi Giovanni e Paolo, onde, nesse mesmo dia, nasceria Tito. Devido a um erro médico grosseiro – uma amniotomia inadequada – Tito nasceu com paralisia cerebral. Isso modificou para sempre a vida de Mainardi e levou-o a escrever “A Queda”, uma das mais belas e verídicas histórias de amor alguma vez contadas. “Até aquele momento, eu sempre pensara que, se meu filho permanecesse em estado vegetativo, eu esperaria que ele morresse. Depois do primeiro contacto com Tito no corredor do claustro do hospital de Veneza, tudo se transformou. Eu só queria que ele sobrevivesse, porque eu o amaria e acudiria de qualquer maneira”. Diogo Mainardi passou a viver em função de Tito. Vasculhou tudo o que estava publicado sobre paralisia cerebral, consultou especialistas, médicos, terapeutas, experimentou, inovou, viajou com o filho pelos quatro cantos do mundo. E escreveu um livro contando a sua história. Através de “A Queda” viajamos no tempo, somos confrontados com lugares, obras de arte, pessoas, episódios, conflitos que de alguma forma se relacionam com Tito, porque a “história de Tito é assim: circular”.

Um desses círculos começa no primeiro dia da II Guerra Mundial, quando Adolf Hitler assinou o seu programa secreto de eutanásia involuntária, denominado T4. Na primeira fase foram mortos, com altas doses de Luminal, cinco mil recém-nascidos, considerados inválidos, muitos com paralisia cerebral. Na segunda fase, o programa alargou-se aos adultos inválidos, aos doentes mentais, aos epilépticos e aos alcoólatras. Seis hospitais foram convertidos em centros de extermínio, onde os pacientes eram eliminados com uma mistura de morfina, escopolamina, curare e cianeto. Em menos de dois anos foram assassinadas mais de cem mil pessoas. Hitler encerrou o programa em agosto de 1941. Nos meses seguintes seriam inaugurados os conhecidos campos de extermínio onde foram gaseados e cremados, industrialmente, judeus, inválidos, ciganos, polacos, russos, etc. Entretanto, Karel Bobath, ortopedista, e Berta Busse, professora de ginástica, ambos nascidos em Berlim, tiveram de fugir da Alemanha porque eram judeus. Casaram em Londres e desenvolveram juntos um programa de fisioterapia para o tratamento da paralisia cerebral, conhecido como Conceito Bobath. Eles se suicidariam, juntos, em 1991, quando ele tinha 85 e ela 83 anos de idade. Mas o seu programa ficou, e dele viria a beneficiar-se Tito, na sua luta contra a paralisia. A História tem algumas curiosidades fantásticas: “Enquanto Hitler, na Alemanha, exterminava judeus e meninos com paralisia cerebral, um casal de judeus escapava da Alemanha de Hitler e desenvolvia um método para o tratamento de meninos com paralisia cerebral”.

Desde que Tito nasceu, Diogo Mainardi dedicou-lhe a vida e interrompeu o quinto romance da sua promissora carreira de escritor. Os progressos do filho eram e são as suas vitórias. Através de veículos adaptados às suas necessidades, Tito aprendeu a explorar o mundo. Mainardi contava sempre os passos de Tito durante as inúmeras vezes que saía com ele. “A Queda” está dividida em 424 pequenos capítulos, que correspondem ao número máximo de passos que Tito conseguiu dar sozinho até à data em que o livro foi escrito. Outra consequência da paralisia cerebral foi uma dispraxia, que impedia Tito de falar, mas ele  ultrapassou isso, aprendendo a comunicar-se através de um aparelho digital Tech/Speak. Em junho de 2005 Tito ganhou um irmão – Nico. A partir daí, começou a falar sem parar: primeiro de forma desconexa mas, pouco depois, articuladamente. No fim de 2005 abandonou o comunicador. Em agosto de 2009 o tribunal civil de Veneza condenou o hospital de Santi Giovanni e Paolo ao pagamento de 3.162.761 euros, uma indemnização pouco usual, como ressarcimento do que acontecera em setembro de 2000. Hoje, acompanhado apenas por uma pessoa contratada para o ajudar a subir e descer as pontes, Tito caminha livremente durante horas pelas ruas de Veneza com o seu andador.

A vida de alguém com deficiência e a de seus familiares não é fácil. Neil Young, em vez de um, teve dois filhos com paralisia cerebral. O primeiro, com paralisia cerebral leve, nasceu em 1972 e chama-se Zeke. O segundo, com paralisia cerebral severa, nasceu em 1978 e chama-se Ben. O desespero por não conseguir comunicar com Ben levou Neil Young a compor, em 1982, as músicas que constituem o álbum Trans, no qual utiliza – particularmente no tema Transformer Man – um vocoder para distorcer a voz. Foi um dos maiores insucessos da sua longa carreira. A revolta de Neil Young ficou bem patente numa entrevista que concedeu a respeito deste álbum: “Quero que as pessoas se fodam. Ninguém entende as letras em Trans porque eu mesmo era incapaz de entender o que o meu filho dizia”. Em “A Queda”, porém, não há em algum momento lugar para a revolta, a impotência ou o desespero. Da primeira à última páginas, o que transparece é uma incontida alegria: alegria verdadeira, genuína, baseada naquele sentimento cuja falta, essa sim, é causa da mais profunda e perniciosa deficiência humana – o incondicional amor. Devorei as 150 páginas de “A Queda” em cerca de duas horas. Depois, senti uma vontade irresistível de ver minha pequena filha Rafaela. Ela estava dormindo em sua cama. Meu coração sorriu: podia ser Tito, talvez fosse Tito… “Sempre vou te amar”. Afaguei e beijei-lhe suavemente o cabelo. E fui dormir também.

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Foto retirada de: emgeral.com

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A nossa edição:

” A Queda”, Diogo Mainardi, Editora Record, 5ª edição, Rio de Janeiro, 2012.

Como sobreviver aos nossos pais

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Mony Elkaïm

É incrível como transportamos pela vida fora, quantas vezes sem nos apercebermos, a visão do mundo que nos foi incutida na infância por nossos pais. O pequeno livro de Mony Elkaïm, “Como Sobreviver à Própria Família” (Comment survivre à sa propre famille, Seuil, Paris, 2006) mostra, claramente, como isso se manifesta nas relações familiares e, particularmente, nas relações conjugais. A visão que carregamos choca com a visão que o nosso parceiro (ou parceira) transporta também e isso provoca, em situações de conflito, respostas repetidas, segundo o padrão de cada indivíduo. Cada um(a), aprisionado(a) na sua visão, espera que o(a) outro(a) mude e fecha-se mais ainda em seu mundo. E vice-versa. Entra-se num círculo vicioso.

A única solução possível passa por conseguirmos mudar nós próprios. Só assim o outro (ou outra) mudará também. Nas palavras de Elkaïm, “cada um de nós desempenha um papel no palco familiar: se conseguirmos mudar esse papel, talvez possamos transformar a peça inteira”.

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A nossa edição:

“Como Sobreviver à Própria Família”, Mony Elkaïm, Editora Sinais de Fogo, 1ª edição, Lisboa, 2007.

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Formação Económica do Brasil

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Celso Furtado (1920-2004).

Trata-se de um clássico. Este livro é muito interessante para nós, portugueses, pois explica, bem melhor do que todos os livros de história que lemos até hoje, como e por que razão Portugal nunca foi o principal beneficiado com as riquezas da sua colónia americana. É muito comum ouvir alguém dizer, em Portugal, “nunca soubemos aproveitar as riquezas, sempre esbanjámos tudo, desde o ouro do Brasil”. Ora, Celso Furtado demonstra-nos, através deste magnífico livro, que essa história do esbanjamento tem muito pouco de verdadeira. O ouro apenas passava por Lisboa – o seu destino final era Londres, na Inglaterra.

É isso que iremos ver em seguida, pois optámos por nos debruçar, neste apontamento, exclusivamente sobre as duas principais riquezas brasileiras da época colonial: primeiro o açúcar e depois o ouro.

A – Quanto ao açúcar

1 – Foi devido à exploração da cana de açúcar que os portugueses puderam implantar-se no Brasil. Não fora essa exploração e jamais os portugueses conseguiriam ocupar o território e cobrir os enormes gastos com a defesa do mesmo – muito cobiçado, sobretudo pelos franceses. Foi um grande êxito essa empresa agrícola do século XVI – única na época.

2 –  O conhecimento técnico por parte dos portugueses – que já tinham experiência de produção de açúcar nas ilhas atlânticas – permitiu-lhes ocupar boa parte do território do nordeste brasileiro, que rapidamente foi aumentando, dado que a exploração da cana é extensiva. O negócio do açúcar expandiu-se enormemente, sobretudo a partir da segunda metade do século XVI, graças à colaboração dos flamengos, sobretudo, holandeses. Estes recolhiam o produto em Lisboa, refinavam-no e faziam a distribuição por toda a Europa, particularmente o Báltico, a França e a Inglaterra. Os holandeses eram grandes comerciantes e tinham o tipo de organização ideal para distribuir um produto novo, como o açúcar, pela Europa.  A contribuição dos holandeses não se limitou, porém, à refinação e comercialização do açúcar. Eles financiaram a instalação de engenhos produtivos no Brasil e também a importação de mão de obra escrava. Além disso, parte do transporte do produto para Lisboa era também realizado por eles. Logicamente, obtinham em todo este processo bons lucros, e o negócio acabava por ser mais deles do que dos portugueses.

3 – Este negócio foi praticamente um monopólio, durante muitos anos, porque a outra potência colonizadora, a Espanha, estava concentrada na extração de metais preciosos. Isso provocou um enorme poder económico no estado espanhol, que cresceu desmesuradamente, o que provocou um enorme aumento dos gastos públicos e privados subsidiados pelo governo. Consequência: inflação, que chegou a propagar-se por toda a Europa, traduzida em persistente déficit da balança comercial, via aumento das importações. Assim, os metais preciosos recebidos da América provocavam um fluxo de importação de efeitos negativos sobre a produção interna, altamente estimulante para as demais economias europeias. A decadência económica de Espanha prejudicou enormemente suas colónias americanas e nenhuma exploração de envergadura, fora da mineira, chegou a ser encetada. As exportações agrícolas de toda a imensa região não alcançaram importância significativa durante os três séculos do império espanhol. Um factor importante do êxito da colonização agrícola portuguesa foi, assim, a decadência da economia espanhola, que se deveu principalmente à descoberta precoce dos metais preciosos.

4 – O sistema, montado pelos colonos portugueses e pelos comerciantes e investidores holandeses, desarticular-se-ia quando Portugal perdeu sua independência sendo integrado na Espanha. Os holandeses que controlavam todo o comércio europeu por mar, incluindo o do açúcar, logo se envolvem em guerra com a Espanha, vindo a ocupar (por um quarto de século) a região produtora de açúcar, no Brasil. Aqui os holandeses adquiririam  os conhecimentos técnicos e organizacionais da indústria, que mais tarde constituiriam a base para a implantação e desenvolvimento de uma indústria concorrente na região do Caribe. Estava perdido o monopólio de que beneficiaram o portugueses e holandeses nos três quartos de século anteriores. Na segunda metade do século XVII os preços do açúcar reduzir-se-iam a metade e permaneceriam baixos durante todo o século seguinte. Perdeu-se o monopólio, mas a produção de cana manteve-se no Brasil até hoje.

B – Quanto ao ouro

1 – A corrida ao ouro brasileiro começou no início do século XVIII e proporcionou o primeiro grande fluxo de imigração de origem europeia, nomeadamente portuguesa, para o Brasil. Era possível pessoas de recursos limitados se aventurarem na mineração, pois aqui não se exploravam grandes minas – como ocorria com a prata no Perú e no México – mas o ouro de aluvião, que se encontrava depositado no fundo dos rios. Calcula-se que a população de origem europeia (e das ilhas atlânticas) tenha decuplicado no decorrer do século da mineração, no Brasil. A exportação de ouro cresceu em toda a primeira metade do século XVIII e alcançou seu ponto máximo em torno de 1760, quando atingiu o valor de 2,5 milhões de libras. A partir daí decresceu e, por volta de 1780, já não alcançava 1 milhão de libras.

2 – Depois da restauração da independência, Portugal encontrava-se numa situação muito difícil. Havia perdido os melhores entrepostos orientais e a melhor parte da colónia americana havia sido ocupada pelos holandeses. A situação interna era muito complicada também, com os espanhóis, durante mais de um quarto de século, não reconhecendo a independência. Portugal compreendeu que para sobreviver como metrópole colonial tinha de se aliar a uma grande potência, o que significaria necessariamente alienar parte da sua soberania. Tentou em primeiro lugar aliar-se aos holandeses, inclusive propondo a divisão do Brasil, mas a Holanda rejeitou a proposta, talvez demasiado confiante no seu poder marítimo. A solução acabaria de vir pelo lado dos ingleses, através de sucessivos acordos (1642-54-61) que estruturaram uma aliança que marcaria profundamente a vida política e económica de Portugal e do Brasil durante os dois séculos seguintes.

3 – Assim, tal como não se poderia explicar o grande êxito da empresa açucareira sem ter em conta a cooperação comercial-financeira com os holandeses, também só pode explicar-se a persistência do pequeno e empobrecido reino português como grande potência colonial na segunda metade do século XVII, bem como sua recuperação no século XVIII – durante o qual manteve sem disputas a colónia mais lucrativa da época –  se tivermos em conta a situação especial de semi-dependência que aceitou como forma de soberania. Portugal fazia concessões económicas e a Inglaterra pagava com promessas ou garantias políticas. Os ingleses conseguiam o privilégio de manter comerciantes residentes em praticamente todas as praças portuguesas e Portugal conseguia, através de uma cláusula secreta do acordo de 1661, que os ingleses se comprometessem a defender as colónias portuguesas contra quaisquer inimigos.

4 – Mas o acordo que haveria de ser determinante sobre o percurso do ouro foi o acordo comercial de 1703 (Tratado de Methuen). Portugal abria o seu mercado às lãs inglesas e a Inglaterra dava preferência aos vinhos portugueses. O acordo foi ruinoso para Portugal, que se viu obrigado a transferir para Inglaterra o impulso dinâmico criado pela produção aurífera no Brasil para pagar o deficit comercial. Em contrapartida, porém, conseguia manter uma sólida posição política, consolidando definitivamente seu território americano.O mesmo agente inglês que negociou o acordo comercial de 1703 (John Methuen) também tratou das condições que garantiriam a Portugal uma sólida posição na conferência de Utrecht. Aí conseguiu o governo lusitano que a França renunciasse a quaisquer reclamações sobre a foz do Amazonas e a quaisquer direitos de navegação nesse rio. Igualmente nessa conferência Portugal conseguiu da Espanha o reconhecimento de seus direitos sobre Colónia do Sacramento. Ambos os acordos tiveram a garantia direta da Inglaterra.

5 – Assim, enquanto a economia do ouro brasileiro proporcionou a Portugal apenas uma aparência de riqueza, trouxe à Inglaterra um forte estímulo ao desenvolvimento manufactureiro (e o oposto a Portugal), uma grande flexibilidade à capacidade de importar, permitindo uma concentração de reservas que fizeram do sistema bancário inglês o principal centro  financeiro da Europa, que se transferiu de Amsterdam para Londres. Recebendo a maior parte do ouro que então se produzia no mundo, os bancos ingleses reforçaram a sua posição. Segundo fontes inglesas, as entradas de ouro brasileiro em Londres chegaram a atingir as 50 mil libras por semana, permitindo uma acumulação substancial de reservas metálicas, sem as quais a Grã-Bretanha dificilmente poderia ter atravessado as guerras napoleónicas.

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Foto retirada de jornalggn.com.br

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A nossa edição:

“Formação Económica do Brasil”, Celso Furtado, Editora das Letras, 24ª edição, São Paulo, 2011.

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