A Festa do “Avante”

O marxismo é uma religião.

Apesar de algumas críticas, o Partido Comunista pretende levar a cabo, nestes tempos de pandemia, a sua festa do “Avante”. A festa irá realizar-se e, face à reconhecida boa organização do partido, provavelmente irá correr bem. Para nós, a verdadeira questão não é essa. O que queremos salientar é o caráter religioso desta manifestação: o fervor comunista que faz com que as pessoas se dirijam ao Seixal como os católicos se dirigem a Fátima; e a fé, a esperança numa vida no paraíso, seja, no caso dos comunistas, na Terra ou, no caso dos católicos, no Céu. Para tal temos de enquadrar a festa do “Avante” e a atuação do PCP nos contextos políticos nacional e internacional.

1- Não existe nenhum partido comunista (ou marxista), com o peso que o PCP tem em Portugal, no mundo socialmente desenvolvido. A representação que os partidos marxistas têm em países como a Noruega, a Suécia, a Finlândia, o Canadá, a Nova Zelândia, a Austrália, a Suíça, a Holanda, entre outros com os maiores índices de desenvolvimento humano, é meramente residual, entre 0% e 1%. Mesmo em Itália, onde tinha força considerável, o Partido Comunista (entretanto reformado, o que nunca aconteceu em Portugal) praticamente desapareceu. Nesses países, o marxismo é uma ideologia anacrónica, estudada por alguns académicos e apoiada por alguns excêntricos. Em Portugal, o PC e o BE (partidos ideologicamente próximos e ambos de inspiração marxista) atingem em conjunto uns 15% de representatividade no parlamento português.

2- A causa principal desta representatividade remonta ao período fascista. A militância comunista é ainda, em larga medida, uma reação à ditadura salazarista. Os extremos auto-alimentam-se e tendem a anular o espaço entre eles. É por isso que ainda é comum os comunistas considerarem aqueles que são do centro-direita, do centro, ou mesmo do centro-esquerda, de “fascistas”. Toda a gente sabe que um dos principais inimigos do PC, talvez o principal, é o PS, que segue invariavelmente, segundo os comunistas, uma “política de direita contrária aos interesses dos trabalhadores”. Muitos jovens de hoje, cujos pais ou outros familiares lutaram contra o fascismo, têm uma ligação emocional ao Partido Comunista, uma atitude em parte compreensível mas mais próxima da religião do que da racionalidade. A componente religiosa do marxismo é, aliás, algo bastante estudado e largamente documentado. Tal como há fações no interior das religiões que reclamam para o si o purismo da doutrina, também há inúmeros marxismos, cada um pretendendo ser o melhor intérprete da doutrina verdadeira.

3- O PCP não proferirá uma palavra para condenar os revoltantes atentados à liberdade perpetrados pelo ditador Lukashenko, que oprime o povo bielorusso, enquanto decorre a festa do “Avante”. Para o PCP, todo o sofrimento causado pelos estados autoritários seus amigos é apenas um efeito secundário do medicamento – o marxismo – que promete curar a grande doença social: a desigualdade.

4- O valor social máximo de um marxista é, portanto, a igualdade. Para atingi-la, como a teoria antevê (“ditadura do proletariado”) e a história confirma, abdica da liberdade. Porém, acontece que as sociedades não-livres, incluindo as comunistas ou supostamente comunistas, são as mais desiguais da história, e as sociedades liberais são as menos desiguais (embora tenhamos muito a fazer para as tornar mais igualitárias). Isto é um facto. Perdida a liberdade, jamais alcançaremos a igualdade. Finalmente, privados de liberdade, sem sequer igualdade e muito menos prosperidade, perdemos tudo, tornamo-nos escravos dos ditadores: se nos revoltarmos, somos presos e, muito provavelmente, torturados ou mortos; se nos submetermos, transformamo-nos em autómatos, seres sem responsabilidade pelos seus atos.

5- As modernas sociedades comunistas são, pois, as mais desiguais da história. Os ditadores comunistas, chamem-se Estaline, Ceausescu, Castro, Santos, Jong-un ou Jinping estão, ou estavam, durante os respetivos períodos de governação, entre os indivíduos mais ricos e com vidas mais sumptuosas do planeta. As suas riquezas, porém, ao contrário do que acontece com os empresários capitalistas, não resultam de uma atividade económica produtiva, antes do roubo que esses ditadores praticam sobre os seus próprios países e povos, onde impera a miséria.

6- A festa do “Avante!” será assim, segundo a perspetiva comunista, mais um momento de “afirmação da grande capacidade do Partido”, um grande e inadiável evento cultural e político, uma oportunidade para mostrar, mais uma vez, os benefícios desse maravilhoso medicamento de largo espectro chamado marxismo. Um “covidezinho” aqui outro ali, a acontecerem, mais não serão que manifestações de um efeito secundário irrelevante face à eficácia do tratamento que, embora alguns ainda não o saibam, nos irá salvar a todos.

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Foto retirada de: rtp.pt

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25 de Abril (eu estive lá)

Naquele dia saí cedo de casa e corri para a Baixa. Pelo caminho, vi soldados estendidos no asfalto em posição de combate. Vi tanques de guerra. Vi gente chegando. Vi, em pouco tempo, uma multidão encher o Rossio, o Chiado, o Bairro Alto e todo o centro de Lisboa. Vi senhoras que traziam flores vermelhas, em cestos de verga, e as ofereciam aos soldados – os nossos heróis. Vi o Largo do Carmo apinhado, com jovens, como eu, empoleirados das árvores e em cima dos tanques do exército. Vi as pessoas saudarem-se, sorrirem-se, abraçarem-se – vi a felicidade estampada em seus rostos.

E também eu – que estive lá! – participei de pequenas manifestações espontâneas, que se juntavam a outras manifestações espontâneas. Vagas de júbilo que cirandavam no coração de Lisboa, na maior e mais bonita festa que já vivi. Hoje, 39 anos passados, o 25 de abril não é mais a bela festa que foi em 1974.
Muitos reclamam que não se cumpriu o “espírito de abril”. Arrogam-se seus legítimos defensores ou representantes. Acham que o país não segue o rumo que abril preconizou.
25 abril
Pois, nada disto é verdade. Abril não se fez para nos dar (ou apontar) um rumo. Abril fez-se, coisa muito diferente, para nos dar a possibilidade de nós próprios escolhermos um rumo. O 25 de abril, através dos militares e desse herói que foi o Capitão Salgueiro Maia, restituiu-nos “apenas” o valor mais elevado da vida social, o único pelo qual, alguém disse um dia, vale a pena morrer e aquele que uniu o povo no 25 de abril de 1974. Eu estive lá e posso testemunhá-lo. A palavra gritada pelo povo era: “LIBERDADE”!

Porque deixei de ser marxista

Marx contou sempre com o apoio de Engels para o seu projeto.

Não me recordo exatamente em qual dia, mas foi numa data importante, numa noite em que o Partido Comunista encheu o Campo Pequeno. Eu deveria ter 17 ou 18 anos, no máximo, foi em 1975 ou 1976. Um amigo, bastante mais velho, com quem conversava, regular e apaixonadamente, sobre a política efervescente da época, militante do PCP, levou-me com ele. Lembro-me de estar no meio de uma multidão enorme, com uma braçadeira vermelha colocada; lembro-me da força daquela multidão, do som ensurdecedor que se produzia quando gritávamos as palavras de ordem em uníssono. Eu já havia experimentado aquela sensação de força, por exemplo no 25 de abril, mas ali, além desse sensação agradável, senti também uma outra que me assustou. Na verdade, para ser sincero, aterrorizou-me. Senti-me anulado por aquela força coletiva – um átomo apenas, que se anima na mesma direção de todos os outros; uma gota diluída numa corrente, sem qualquer possibilidade de escape. Alguém que se opusesse de alguma forma ao que ali se passava seria pura e simplesmente esmagado. Isso foi óbvio para mim. Naquela altura eu ainda não lera Marx, mas o que senti foi suficiente para que me interrogasse sobre as minhas ideias.
Em primeiro lugar, interroguei-me se queria ser um “coletivista”. E por mais voltas que desse, a resposta interior era sempre “não”. Era sobretudo uma intuição. Eu não sabia muito bem explicar porquê. Mas o coletivismo assustava-me. Só mais tarde percebi que o que se opõe ao coletivismo é o individualismo. Eu era, de facto, e por natureza, um individualista. Infelizmente, esta palavra tem ainda hoje uma conotação negativa, de tal forma que muito boa gente, sendo politicamente individualista, tem quase (ou tem mesmo) vergonha de o dizer. Tal facto deriva de um equívoco: o de se confundir “individualismo” com “egoísmo”. Porém, o que se opõe ao egoísmo não é o coletivismo, é o altruísmo. Assim, uma pessoa pode perfeitamente ser coletivista e egoísta ou ser individualista e altruísta. Esta distinção, que me parece de uma lógica irrefutável, não poderia sair, obviamente, de uma cabeça pobre como a minha, fê-la um senhor chamado Karl Raimund Popper. Mas foi muito importante para me sentir melhor com a minha irritante intuição. Depois, com o tempo, acabei por perceber que as sociedades coletivistas são também sociedades totalitárias. Não poderia ser de outra maneira, uma vez que as ideologias coletivistas sobrevalorizam o todo (chamemos-lhe sociedade, coletividade, organismo, nação, estado, as terminologias são pouco importantes) em detrimento do indivíduo – e é nisso que reside a sua “superioridade” – uma entidade infinitamente mais poderosa e perfeita que o mero indivíduo, sendo que este apenas deve servir essa organização social superior. Essa aspiração totalitária e coletivista uniu, como se sabe, ideologias tão diversas como o marxismo e o nazismo. Não nego que a doutrina marxista tenha aspetos positivos. Marx foi um pensador ilustríssimo, extremamente útil no contexto histórico da sua época, mesmo que a sua teoria seja, desde há muito, anacrónica. De facto, nem mesmo as teorias das ciências exatas resistem ao tempo. Poderá uma teoria social, lidando com variáveis imprevisíveis como “homem” e “poder”, fazê-lo? É evidente que não. A presunção de conhecimento sobre a natureza humana é, aliás, o elemento mais perigoso da teoria de Marx. Uma presunção que conduziu os povos, onde os comunistas conquistaram o poder, às purgas, aos trabalhos forçados, às torturas, aos assassinatos de muitos milhões de indivíduos. Uma história trágica que só um crente pode justificar. É por isso que o comunismo é uma religião que desde o fim da minha adolescência até hoje, e suponho que para sempre, deixou de me convencer.

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Bibliografia (alguns autores, e livros, que considero fundamentais para se entender o marxismo e o comunismo):

Aleksiévitch, Svetlana, O Fim do Homem Soviético, Companhia das Letras, São Paulo.

Arendt, Hannah, Origens do Totalitarismo, Companhia de Bolso, São Paulo.

Berlin, Isaiah, Karl Marx, Edições 70, Lisboa.

Engels, Frederich, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Lafonte, São Paulo.

Gorbatchov, Mikhail, Ante-Memórias, Edições Asa, Lisboa.

Grossman, Vassili, Tudo Passa, Dom Quixote, Lisboa.

Marx, Karl, O Capital-Livro I, O Processo de Produção do Capital, Boitempo Editorial, São Paulo.

Marx, Karl, O Capital-Livro II, O Processo de Circulação do Capital, Boitempo Editorial, São Paulo.

Padura, Leonardo, O Homem que Gostava de Cães, Porto Editora, Lisboa.

Popper, Karl, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Vol. I – Platão, Editorial Fragmentos, Lisboa.

Popper, Karl, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Vol. II – Marx, Editorial Fragmentos, Lisboa.

Rousseau, Jean-Jacques, A Origem da Desigualdade entre os Homens, Lafonte, São Paulo.

Volpe, Galvano Della, Rousseau e Marx, a Liberdade Igualitária, Edições 70, Lisboa.

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Foto retirada de: gsetaoeducacional.com.br.

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