Porque deixei de ser marxista

Marx contou sempre com o apoio de Engels para o seu projeto.

Não me recordo exatamente em qual dia, mas foi numa data importante, numa noite em que o Partido Comunista encheu o Campo Pequeno. Eu deveria ter 17 ou 18 anos, no máximo, foi em 1975 ou 1976. Um amigo, bastante mais velho, com quem conversava, regular e apaixonadamente, sobre a política efervescente da época, militante do PCP, levou-me com ele. Lembro-me de estar no meio de uma multidão enorme, com uma braçadeira vermelha colocada; lembro-me da força daquela multidão, do som ensurdecedor que se produzia quando gritávamos as palavras de ordem em uníssono. Eu já havia experimentado aquela sensação de força, por exemplo no 25 de abril, mas ali, além desse sensação agradável, senti também uma outra que me assustou. Na verdade, para ser sincero, aterrorizou-me. Senti-me anulado por aquela força coletiva – um átomo apenas, que se anima na mesma direção de todos os outros; uma gota diluída numa corrente, sem qualquer possibilidade de escape. Alguém que se opusesse de alguma forma ao que ali se passava seria pura e simplesmente esmagado. Isso foi óbvio para mim. Naquela altura eu ainda não lera Marx, mas o que senti foi suficiente para que me interrogasse sobre as minhas ideias.
Em primeiro lugar, interroguei-me se queria ser um “coletivista”. E por mais voltas que desse, a resposta interior era sempre “não”. Era sobretudo uma intuição. Eu não sabia muito bem explicar porquê. Mas o coletivismo assustava-me. Só mais tarde percebi que o que se opõe ao coletivismo é o individualismo. Eu era, de facto, e por natureza, um individualista. Infelizmente, esta palavra tem ainda hoje uma conotação negativa, de tal forma que muito boa gente, sendo politicamente individualista, tem quase (ou tem mesmo) vergonha de o dizer. Tal facto deriva de um equívoco: o de se confundir “individualismo” com “egoísmo”. Porém, o que se opõe ao egoísmo não é o coletivismo, é o altruísmo. Assim, uma pessoa pode perfeitamente ser coletivista e egoísta ou ser individualista e altruísta. Esta distinção, que me parece de uma lógica irrefutável, não poderia sair, obviamente, de uma cabeça pobre como a minha, fê-la um senhor chamado Karl Raimund Popper. Mas foi muito importante para me sentir melhor com a minha irritante intuição. Depois, com o tempo, acabei por perceber que as sociedades coletivistas são também sociedades totalitárias. Não poderia ser de outra maneira, uma vez que as ideologias coletivistas sobrevalorizam o todo (chamemos-lhe sociedade, coletividade, organismo, nação, estado, as terminologias são pouco importantes) em detrimento do indivíduo – e é nisso que reside a sua “superioridade” – uma entidade infinitamente mais poderosa e perfeita que o mero indivíduo, sendo que este apenas deve servir essa organização social superior. Essa aspiração totalitária e coletivista uniu, como se sabe, ideologias tão diversas como o marxismo e o nazismo. Não nego que a doutrina marxista tenha aspetos positivos. Marx foi um pensador ilustríssimo, extremamente útil no contexto histórico da sua época, mesmo que a sua teoria seja, desde há muito, anacrónica. De facto, nem mesmo as teorias das ciências exatas resistem ao tempo. Poderá uma teoria social, lidando com variáveis imprevisíveis como “homem” e “poder”, fazê-lo? É evidente que não. A presunção de conhecimento sobre a natureza humana é, aliás, o elemento mais perigoso da teoria de Marx. Uma presunção que conduziu os povos, onde os comunistas conquistaram o poder, às purgas, aos trabalhos forçados, às torturas, aos assassinatos de muitos milhões de indivíduos. Uma história trágica que só um crente pode justificar. É por isso que o comunismo é uma religião que desde o fim da minha adolescência até hoje, e suponho que para sempre, deixou de me convencer.

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Bibliografia (alguns autores, e livros, que considero fundamentais para se entender o marxismo e o comunismo):

Aleksiévitch, Svetlana, O Fim do Homem Soviético, Companhia das Letras, São Paulo.

Arendt, Hannah, Origens do Totalitarismo, Companhia de Bolso, São Paulo.

Berlin, Isaiah, Karl Marx, Edições 70, Lisboa.

Engels, Frederich, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Lafonte, São Paulo.

Gorbatchov, Mikhail, Ante-Memórias, Edições Asa, Lisboa.

Grossman, Vassili, Tudo Passa, Dom Quixote, Lisboa.

Marx, Karl, O Capital-Livro I, O Processo de Produção do Capital, Boitempo Editorial, São Paulo.

Marx, Karl, O Capital-Livro II, O Processo de Circulação do Capital, Boitempo Editorial, São Paulo.

Padura, Leonardo, O Homem que Gostava de Cães, Porto Editora, Lisboa.

Popper, Karl, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Vol. I – Platão, Editorial Fragmentos, Lisboa.

Popper, Karl, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Vol. II – Marx, Editorial Fragmentos, Lisboa.

Rousseau, Jean-Jacques, A Origem da Desigualdade entre os Homens, Lafonte, São Paulo.

Volpe, Galvano Della, Rousseau e Marx, a Liberdade Igualitária, Edições 70, Lisboa.

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Foto retirada de: gsetaoeducacional.com.br.

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