Quinhentos dias de uma Guerra Infame

Pormenor de uma rua em Cabanas de Tavira (foto de 2022).

Trata-se apenas de um número simbólico porque amanhã passará a 501 e assim sucessivamente, ninguém sabe até quando durará a Guerra da Ucrânia. E trata-se sobretudo de muitos milhares de mortos e um sofrimento imenso provocados pela eterna estupidez humana.

(Sim, toda a gente sabe como somos capazes do melhor e do pior).

Aqueles que apoiam, toleram ou compreendem — descarada ou envergonhadamente — o criminoso que iniciou esta guerra são coniventes.

Dizem-nos que Putin é um ser racional e que há alguns bem piores do que ele. É verdade. Hitler também era racional e também tinha comparsas ainda piores do que ele.

Mas isso não quer dizer que ambos não sejam dois dos piores assassinos em série da história da humanidade. E também não quer dizer que estes verdadeiros assassinos algum dia parariam de matar se não fossem travados.

Querer isentar de responsabilidade o dono da Rússia por estes 500 dias de sofrimento, transferindo-a para quem quer que seja — incluindo essa entidade (que tantos desconhecem nas suas origem, diversidade e profundidade) apelidada “Ocidente” — é uma ignomínia sem nome.

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Tito

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Diogo Mainardi e o filho, Tito.

Diogo Mainardi é um escritor e jornalista brasileiro de 50 anos que vive em Veneza. Em 30 de setembro de 2000, ele e sua mulher, Anna, dirigiram-se ao hospital do Campo Santi Giovanni e Paolo, onde, nesse mesmo dia, nasceria Tito. Devido a um erro médico grosseiro – uma amniotomia inadequada – Tito nasceu com paralisia cerebral. Isso modificou para sempre a vida de Mainardi e levou-o a escrever “A Queda”, uma das mais belas e verídicas histórias de amor alguma vez contadas. “Até aquele momento, eu sempre pensara que, se meu filho permanecesse em estado vegetativo, eu esperaria que ele morresse. Depois do primeiro contacto com Tito no corredor do claustro do hospital de Veneza, tudo se transformou. Eu só queria que ele sobrevivesse, porque eu o amaria e acudiria de qualquer maneira”. Diogo Mainardi passou a viver em função de Tito. Vasculhou tudo o que estava publicado sobre paralisia cerebral, consultou especialistas, médicos, terapeutas, experimentou, inovou, viajou com o filho pelos quatro cantos do mundo. E escreveu um livro contando a sua história. Através de “A Queda” viajamos no tempo, somos confrontados com lugares, obras de arte, pessoas, episódios, conflitos que de alguma forma se relacionam com Tito, porque a “história de Tito é assim: circular”.

Um desses círculos começa no primeiro dia da II Guerra Mundial, quando Adolf Hitler assinou o seu programa secreto de eutanásia involuntária, denominado T4. Na primeira fase foram mortos, com altas doses de Luminal, cinco mil recém-nascidos, considerados inválidos, muitos com paralisia cerebral. Na segunda fase, o programa alargou-se aos adultos inválidos, aos doentes mentais, aos epilépticos e aos alcoólatras. Seis hospitais foram convertidos em centros de extermínio, onde os pacientes eram eliminados com uma mistura de morfina, escopolamina, curare e cianeto. Em menos de dois anos foram assassinadas mais de cem mil pessoas. Hitler encerrou o programa em agosto de 1941. Nos meses seguintes seriam inaugurados os conhecidos campos de extermínio onde foram gaseados e cremados, industrialmente, judeus, inválidos, ciganos, polacos, russos, etc. Entretanto, Karel Bobath, ortopedista, e Berta Busse, professora de ginástica, ambos nascidos em Berlim, tiveram de fugir da Alemanha porque eram judeus. Casaram em Londres e desenvolveram juntos um programa de fisioterapia para o tratamento da paralisia cerebral, conhecido como Conceito Bobath. Eles se suicidariam, juntos, em 1991, quando ele tinha 85 e ela 83 anos de idade. Mas o seu programa ficou, e dele viria a beneficiar-se Tito, na sua luta contra a paralisia. A História tem algumas curiosidades fantásticas: “Enquanto Hitler, na Alemanha, exterminava judeus e meninos com paralisia cerebral, um casal de judeus escapava da Alemanha de Hitler e desenvolvia um método para o tratamento de meninos com paralisia cerebral”.

Desde que Tito nasceu, Diogo Mainardi dedicou-lhe a vida e interrompeu o quinto romance da sua promissora carreira de escritor. Os progressos do filho eram e são as suas vitórias. Através de veículos adaptados às suas necessidades, Tito aprendeu a explorar o mundo. Mainardi contava sempre os passos de Tito durante as inúmeras vezes que saía com ele. “A Queda” está dividida em 424 pequenos capítulos, que correspondem ao número máximo de passos que Tito conseguiu dar sozinho até à data em que o livro foi escrito. Outra consequência da paralisia cerebral foi uma dispraxia, que impedia Tito de falar, mas ele  ultrapassou isso, aprendendo a comunicar-se através de um aparelho digital Tech/Speak. Em junho de 2005 Tito ganhou um irmão – Nico. A partir daí, começou a falar sem parar: primeiro de forma desconexa mas, pouco depois, articuladamente. No fim de 2005 abandonou o comunicador. Em agosto de 2009 o tribunal civil de Veneza condenou o hospital de Santi Giovanni e Paolo ao pagamento de 3.162.761 euros, uma indemnização pouco usual, como ressarcimento do que acontecera em setembro de 2000. Hoje, acompanhado apenas por uma pessoa contratada para o ajudar a subir e descer as pontes, Tito caminha livremente durante horas pelas ruas de Veneza com o seu andador.

A vida de alguém com deficiência e a de seus familiares não é fácil. Neil Young, em vez de um, teve dois filhos com paralisia cerebral. O primeiro, com paralisia cerebral leve, nasceu em 1972 e chama-se Zeke. O segundo, com paralisia cerebral severa, nasceu em 1978 e chama-se Ben. O desespero por não conseguir comunicar com Ben levou Neil Young a compor, em 1982, as músicas que constituem o álbum Trans, no qual utiliza – particularmente no tema Transformer Man – um vocoder para distorcer a voz. Foi um dos maiores insucessos da sua longa carreira. A revolta de Neil Young ficou bem patente numa entrevista que concedeu a respeito deste álbum: “Quero que as pessoas se fodam. Ninguém entende as letras em Trans porque eu mesmo era incapaz de entender o que o meu filho dizia”. Em “A Queda”, porém, não há em algum momento lugar para a revolta, a impotência ou o desespero. Da primeira à última páginas, o que transparece é uma incontida alegria: alegria verdadeira, genuína, baseada naquele sentimento cuja falta, essa sim, é causa da mais profunda e perniciosa deficiência humana – o incondicional amor. Devorei as 150 páginas de “A Queda” em cerca de duas horas. Depois, senti uma vontade irresistível de ver minha pequena filha Rafaela. Ela estava dormindo em sua cama. Meu coração sorriu: podia ser Tito, talvez fosse Tito… “Sempre vou te amar”. Afaguei e beijei-lhe suavemente o cabelo. E fui dormir também.

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Foto retirada de: emgeral.com

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A nossa edição:

” A Queda”, Diogo Mainardi, Editora Record, 5ª edição, Rio de Janeiro, 2012.

2012 – Uma Espécie de Balanço

Depois da descoberta das partículas sub-atómicas, vivemos num mundo onde imperam a probabilidade e a estatística. O mundo natural é (naturalmente) indeterminista. E, curiosamente ou não, o mundo social também. Só uma ditadura pode ser determinista e, mesmo assim, até certo ponto. A democracia é, sem dúvida, indeterminista.

Em termos simples, pode dizer-se que, num mundo indeterminista, nada pode prever-se com precisão – prevalecem as probabilidades, as médias, os arredondamentos. Na política, ao determinismo dos extremos, sejam de direita ou de esquerda, opõe-se o indeterminismo do centro, uma espécie de tendência estatística para a média, como na lei dos grandes números [1]. Claro que há uma pequena probabilidade de haver uma ocorrência fora da curva [2]. Isso dependerá, essencialmente, das “condições objectivas” [3] de um dado momento. A votação em Hitler foi um desse momentos: um raro – e trágico – evento.

Em geral, porém, seja no nosso ou em qualquer outro país, a tendência, propensão ou probabilidade é que a maioria das pessoas vote no chamado “centrão”. Os anglo-saxónicos, com seu sentido prático, sabendo disto, poupam tempo, dinheiro e paciência com seu bipartidarismo de há centenas de anos. De uma penada, evitam distorções, coligações e mais tachos.

Esta evidência do indeterminismo na vida social foi algo que cresceu rapidamente com a globalização. O debate, a circulação de ideias, a simples opinião aumentaram notoriamente com o advento da internet e, sobretudo, com as chamadas redes sociais, fazendo com que as decisões políticas sejam hoje escrutinadas praticamente em tempo real.

Mas, agora mais que nunca, num mundo ameaçado por uma crise grave, cujas causas e consequências as teorias de esquerda denunciam tão claramente, o que levará, ainda assim, as pessoas a optar pelo centrão? Mais: o que leva um país, onde vigora há décadas um dos melhores sistemas sociais do mundo, como é o caso da Suécia, a querer mudar para uma sociedade mais liberal, teoricamente bem mais incerta? Haverá mesmo uma tendência social – acompanhando o que acontece nas outras ciências [4] – para o indeterminismo?

Eu acredito que sim. E acredito também que isso acontece, não porque as pessoas sejam estúpidas [5]. Quanto a mim, a razão principal não reside numa influência exterior, mas dentro delas. Talvez mais do que na Ciência Política, encontremos pistas na Psicologia e na Filosofia [6]. Trata-se de aceitar (aquilo que é) e de interpretar (aquilo que gostaríamos que fosse) a realidade. Aqui reside, nos subtis mecanismos internos das aceitação e interpretação, a tendência humana para o voto ao centro. Talvez, quem sabe, uma tendência secreta das massas para o realismo [7], para uma queda dentro da curva…

Posto isto, eu que nunca votei no PSD (outrora PPD) nem no CDS, tenho de reconhecer uma coisa. O atual primeiro-ministro, apesar do coro de protestos, insultos e insinuações, está a percorrer o seu caminho, afinal, o caminho traçado pela Troika, depois do célebre resgate, já que é esta quem define a política económica do nosso país. A única alternativa de Passos Coelho seria convencer espanhóis, italianos, irlandeses e, eventualmente, franceses de que as condições impostas pela Troika têm de ser alteradas, suavizadas e que, para isso, alemães (sobretudo) e outros países do norte da Europa têm de se mostrar mais solidários. Isso é possível de realizar, simplesmente porque seria melhor do que um desmembramento de consequências imprevisíveis, onde certamente todos perderiam, e muito. Até agora, porém, nenhum líder mostrou ter coragem suficiente para enveredar por este caminho, nem mesmo aqueles de países de maior dimensão e peso, e de famílias políticas bem mais distantes de Merkel do que Passos Coelho [8].

Claro que, tal como todos os que o antecederam, Passos não cumpriu uma série de promessas. Nisso, realmente, ele não se distingue dos demais. Mas destaca-se pelas postura, determinação e caráter – mesmo se levarmos em conta (e temos de levar) as más companhias, como é o caso clamoroso de Miguel Relvas.

Além disso, a missão de Passos é patriótica, pois, neste momento, ninguém está verdadeiramente interessado em pegar no país. Não concordo com a sua política, mas ela enquadra-se numa ideologia liberal que ele sempre defendeu, não constitui novidade. E é por isso que não é expectável (nem está minimamente ao seu alcance) uma contribuição sua para aquilo que seria a verdadeira solução do problema europeu: uma inversão da política alemã e do seu braço financeiro, o BCE. Para isso teriam de abandonar este caminho de austeridade sem saída, que só leva a mais e mais recessão.

É bem possível que o diagnóstico sobre Portugal piore em 2013, pelo menos em parte. Mas eu ainda não ouvi, ou li, qualquer proposta alternativa (e realista) que me fizesse crer na existência de um caminho substancialmente melhor, a não ser o que apontei acima. Era por ele que se deveria bater, sem desvios, uma oposição credível. Pior que o desgoverno de Coelho, só a total ausência de uma verdadeira alternativa.

Aquilo que eu gostaria que fosse não resiste à evidência daquilo que é.

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Notas:

[1] A lei dos grandes números diz-nos que quanto maior for uma série de eventos aleatórios, mais certa se torna a média esperada. O exemplo clássico é o do lançamento de uma moeda: num número suficientemente grande de lançamentos a tendência será para que se registe 50% para cada uma das possibilidades (cara ou coroa).

[2] Os eventos aleatórios são muitas vezes representados graficamente numa curva de sino. Os eventos esperados caem dentro da curva. Mas há sempre uma probabilidade, ainda que ínfima, de uma ocorrência inesperada. Por exemplo, em mil lançamentos saírem 900 coroas e apenas 100 caras ou, mais raro ainda, 990 coroas e 10 caras (ou vice-versa).

[3] “condições objectivas” é uma expressão cara aos marxistas e demonstrativa de seu espírito determinista.

[4] Toda a ciência contemporânea (e a consequente parafernália técnica, incluindo os poderosos computadores atuais) se baseia nos princípios indeterministas.

[5] Acontece que muitas vezes se chamam as pessoas de estúpidas, indiretamente. É como eu vejo, por exemplo, quando se diz que as pessoas votaram em determinado partido porque foram enganadas pela “propaganda” e/ou pelas “mentiras” desse mesmo partido.

[6] Não tem a filosofia como objeto, em última análise, o homem? A resposta, afirmativa, é dada por Kant.

[7] Não será por acaso que muitos intelectuais, sobretudo de esquerda, reivindicam o direito ao sonho e à utopia. Por outro lado, realismo e indeterminismo não são de forma alguma incompatíveis.

[8] François Hollande representa a maior desilusão quando pensamos numa real oposição à política europeia de Merkel.