Ao que parece, Raquel Varela é uma figura em voga neste triste Portugal de hoje (e de quase sempre). Num brilhante artigo publicado anteontem no seu blogue, ela fala-nos do povo português. O bom e o mau. Já ontem, no programa “Barca do Inferno”, que não costumo perder, Varela brindou-nos com mais uma de suas afirmações bombásticas. Disse ela, que o voto para as legislativas não é democrático; o que é democrático é o voto de braço no ar para as Comissões de Trabalhadores.
Nada disto é novo, e não me surpreende que alguma rapaziada na casa dos vinte anos simpatize com Raquel Varela. Mas espanta-me que gente da minha geração, com experiência de vida, possa suportar afirmações deste calibre. Afirmações que incluem adjetivos como cobarde para classificar o povo do 24 de Abril de 1974[1]. Afirmações que revelam um espírito arrogante e profundamente reacionário e que, sinceramente, são tão ofensivas (e estúpidas), que chega a ser surpreendente que não provoquem maior riso ou indignação. Varela despreza com asco quem não pensa como ela (rima e é verdade). Varela, que não era nascida ainda em 25 de Abril de 74, estudou, leu e pesquisou umas coisas: e convenceu-se de que descobriu a verdade. Isso confere-lhe a legitimidade de produzir os juízos morais, simplistas, tão típicos dos extremistas fanáticos, e que culminam, sempre, numa divisão entre bons e maus. Trata-se, é claro, do mais puro e velho maniqueísmo – tão velho quanto o povo animalesco e deformado que Varela detesta e que, se pudesse, não hesitaria em extirpar.
Como extirparia, sem dúvida, o que é piroso, suburbano, fabricado por alfaiates de segunda e o que é esculpido com falos desmesurados… deformando o povo e os seus (dela, evidentemente) heróis. Não é, de facto, difícil imaginar esta educadora da classe operária como líder de um Movimento da Mão Erguida. (Desde, é claro, que a mão se mantivesse longe dela). É, aliás, estarrecedor o papel de Varela enquanto garante dos íntegros valores socialistas e operários, como se pode observar no artigo Urge “Guilhotinar” os Traidores[2], onde apresenta uma listagem dos ditos cujos – traidores (fura-greves). Como futura (e, felizmente, apenas hipotética) líder do proletariado no poder, Varela seria precisa e coerente na sua divisão do mundo entre maus e bons – como demonstrou no programa “Prós & Contras”, em 20 de maio de 2013, investindo contra um jovem de 16 anos, Martim Neves, que acabara de lançar a sua própria marca de roupa, um crime, e mais uma expressão do mundo mau.
É esta ilustre representante da “esquerda caviar”, Varela, a própria, que gosta de jantar em restaurantes caros e mostrar as fotos (que retirou depois da polémica gerada) no Facebook, aonde não vão certamente os seus queridos operários do braço no ar, quem vem dando algum brilho a este Portugal acinzentado; é ela, ainda, com sua verve, quem nos dá a receita adequada para sairmos da crise em que nos encontramos – não negociando com os credores, não pagando o que devemos, e mantendo o total controlo público sobre o setor bancário e financeiro para evitar a fuga de capitais – uma receita mais que infalível para sairmos diretamente de uma situação difícil para a completa miséria, num contraste absoluto e cómico com a caracterização de Varela para “socialismo”: liberdade e abundância; e é ela, finalmente, quem acha que o Estado tem obrigação de cuidar do povo e garantir que este tenha acesso ao Estado Social que sustenta, aliás, em impostos (saúde, educação, segurança social), alimentação e roupas, e todo o kit de sobrevivência acima do mínimo, porque a produtividade hoje permite isso, permite o decente; e cuidar, claro, que as pessoas vivem em lugares dignos e confortáveis. Confuso? Sim e não, apenas um tanto mal escrito, mas ainda assim bastante claro: se o dinheiro não chegar para tudo, a gente pede emprestado de novo e depois não paga. Ou talvez nem precisemos, e consigamos o milagre de sermos auto-sustentáveis, e vivermos todos dignos e confortáveis, mesmo aqueles que não queiram…
Outros (alguns menos fanáticos e lunáticos que Raquel Varela, pelo menos aparentemente) fizeram promessas deste tipo, as quais resultaram, quando colocadas em prática pelo Poder, em segregação, fome e miséria, quando não em perseguição, tortura e morte. Mas é claro que essas tentativas de criar o paraíso falharam porque nenhuma delas era a verdadeira. Porque, como sempre justificam os extremistas, houve falhas humanas ou não estavam criadas as condições objetivas. Em Portugal, particularmente, não tivemos ainda a oportunidade de ver a classe operária no poder. Bem vistas as coisas, isso é perfeitamente compreensível, até porque, ao contrário do que acontece hoje, o povo bom (e mau) doutro tempo não teve a felicidade de ser contemporâneo de Varela.
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[1] http://raquelcardeiravarela.wordpress.com/2015/01/04/o-bom-e-o-mau-povo-portugues/
[2] (http://5dias.net/2012/01/19/urge-guilhotinar-os-traidores/
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foto: i online.
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