Se fosse vivo, completaria hoje 92 anos o aclamado escritor português, vencedor do Nobel da Literatura de 1998, José Saramago. Muito apreciado, não apenas pelos livros que escreveu, mas também pelos ideais políticos, o pensamento de Saramago tem sido dissecado, em posts, nas redes sociais: as críticas ao sistema capitalista e à globalização; a defesa dos mais desfavorecidos; a denúncia das prepotências das grandes potências, sobretudo da grande potência EUA; a indignação perante as injustiças; a “guerra” contra a Igreja; a militância comunista; etc. Para além disto, que penso ser o mais conhecido, em larga medida devido à grande divulgação das ideias de Saramago pela comunicação social, existem também os livros que escreveu1. Sobre estes, a minha opinião não é certamente a mais credenciada, embora não reconheça em José Saramago o brilhantismo que, para mim, alcançaram escritores como Eça de Queirós, Aquilino Ribeiro, Machado de Assis ou Guimarães Rosa, só para referir nomes de prosadores de língua portuguesa. (Deixemos os poetas fora disto).
Saramago teve, porém, o mérito de criar temas e estilo, e soube desenvolvê-los. Trabalhou incansavelmente para isso. O seu virtuosismo resulta da disciplina e do trabalho árduo, minucioso, inventariado, obsessivo, não tanto do talento inato. Saramago viveu para construir um mito. A prova disto é a sua obra tardia, após o 55 anos, fruto de toda uma maturação. Não sou eu quem vai contestar o seu mérito, o seu valor artístico, o seu estatuto de eminente e consagrado escritor.
Porém, se a apreciação da obra é subjetiva, a par dela Saramago construiu uma imagem pessoal – a do homem político – essa sim, bem mais objetiva. E tenho para mim que não foi tanto o político que serviu a obra, mas muito mais a obra que serviu o político. Notoriamente, este usou o prestígio angariado com aquela em prol da construção do mito do lutador social. Do ponto de vista teórico, a luta de Saramago não foi contra uma qualquer visão da sociedade, contra uma ideologia específica. A luta de Saramago foi contra toda uma civilização – afinal, aquela na qual ele próprio nasceu, viveu e morreu.
Mas, afinal, em que baseava Saramago a sua luta? Supostamente numa moralidade superior: a sua. José foi um moralista, sem dúvida, um dos maiores do início deste século. Como a maior parte dos moralistas, porém, a sua moral era bastante duvidosa. Numa entrevista, justificou o saneamento de vinte e dois jornalistas, quando era diretor-adjunto do “Diário de Notícias”, como uma decisão coletiva, colegial, na qual não teve qualquer responsabilidade particular2. Não seria preciso procurarmos muito até encontrarmos alguém que assumisse toda a responsabilidade num caso semelhante – a responsabilidade que José Saramago enjeitou. Na verdade, muitos cidadãos comuns seriam capazes de o fazer. A posição rígida de Saramago e a sua incapacidade de reconhecer um erro, constituem uma prova de que a moralidade, de facto, não se apregoa, pratica-se. E quanto mais se apregoa, menos se pratica e vice-versa.
Pouco antes de escrever este artigo, assisti ao filme “José & Pilar”, de Miguel Gonçalves Mendes. Um filme interessante mas tristíssimo, na verdade, tétrico, que retrata a vida de um homem em seu estádio final – sem esperança, sem alegria, nas suas próprias palavras, “sem tempo” – um homem totalmente dependente de uma mulher. Isto sobrepõe-se, surpreendentemente, ao que seria expectável, até pelo título da película, e de que não se pode duvidar – o amor entre Pilar e José. Aquela foi – e continua a ser através da sua qualidade de Presidente3 da Fundação Saramago – a eterna secretária deste. Numa passagem do filme, antes ainda de ficar doente, Saramago conta que a mulher uma vez lhe perguntou o que deveria fazer no futuro, ao que ele respondeu, sem hesitar: “continuar-me”. Noutra, ainda, vê-se Pilar abrindo cartas, anunciando remetentes e assuntos a Saramago. Uma delas era do Dalai-Lama, que convidava o escritor para uma comissão de honra. Este comentou que não gostava do líder budista – e passou-se à carta seguinte.
Antes de Pilar, Saramago viveu com outras mulheres, como se sabe. Uma delas, Isabel da Nóbrega (ainda viva), era já escritora4 quando Saramago nem sequer se aventurara na ficção. Foi ela quem sugeriu o nome de Blimunda para a protagonista de Memorial do Convento5 e foi nela que o escritor se inspirou para a referida personagem. De tal forma que lhe dedicou a obra, escrevendo: “À Isabel, porque nada pede ou repete, porque tudo cria e renova”. Em edição posterior, porém, já separado da escritora, haveria de apagar a dedicatória, numa atitude estalinista, típica da sua personalidade.
Nada disto parece surpreendente, sobretudo se falamos de alguém que, além de não gostar do Dalai-Lama, era também um crítico severo da humanidade. Humanidade exemplarmente retratada, em suas contradições, na frase que o próprio Saramago produziu numa entrevista, em 2003, ao programa de televisão brasileiro, Roda Viva: “Sou capaz de perdoar, mas também sou capaz de um eterno rancor!”
Ao contrário da maioria dos meus concidadãos, não gosto do discurso político (e moral) de Saramago. Gostaria de citar alguns nomes de diversificadas personalidades contemporâneas de Saramago – Karl Popper, Nelson Mandela, Tenzin Gyatso, José Mujica, Jorge Mario Bergoglio, e (o portuguesíssimo e brasileiríssimo) Agostinho da Silva – cujos pensamento e ação estão nos antípodas do pessimismo de José Saramago. Admiro-as por uma razão bem simples: suas vidas inspiram os mais novos. E a transmissão de esperança e otimismo constitui, essa sim, uma obrigação moral – talvez a maior – que temos, todos, relativamente às gerações vindouras.
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Notas:
1 Eis a pequena lista dos (cinco) livros completos que li de Saramago. Memorial do Convento, História do Cerco de Lisboa, Viagem a Portugal, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Ensaio sobre a Cegueira.
2 Um discurso inflamado de Saramago, num plenário que antecedeu a votação sobre a expulsão dos vinte e dois trabalhadores, influenciou claramente o sentido de voto, dado o prestígio que o diretor-adjunto gozava; e, no dia da votação, o próprio Saramago votou pela expulsão.
3 Pilar del Rio rejeita o termo “presidente” e, tal como Dilma Rousseff, afirma-se “presidenta”.
4 Escritora cuja obra vale a pena revisitar. Publicou romances, contos, peças de teatro e crónicas diversas. O seu romance mais conhecido é Viver com os Outros, de 1964.
5 Saramago escolhera Mariana Amália.
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Foto retirada de http://blogs.ne10.uol.com.br/social1/2014/08/15/romance-incabado-de-saramago-sera-publicado-ainda-em-outubro/
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Por vezes deslumbramo-nos com alguns pesos-pesados da cultura universal e obliteramos o nosso espírito crítico, o que jamais deveria acontecer. Parabéns pelo excelente artigo.
Certo, Telma. É assim que deve ser. O gosto é subjetivo, como se sabe. Saramago é um bom escritor, sim. É do homem e do político, sobretudo, que eu não gosto.