As Festas do Povo decorrem em Campo Maior, uma vila do Alto Alentejo, perto de Elvas e de Badajoz, sempre que o povo quer, ou melhor, sempre que o povo quer… e pode.
Decorar mais de trezentas ruas com imagens de papel não é tarefa fácil. Assim, nem todos os anos as festas ocorrem (longe disso), e não há um caráter regular na realização das mesmas.
Em 2015, felizmente, o povo decidiu realizá-las para gáudio de muitos milhares de visitantes, que esgotaram os hotéis da região num raio de mais de 50 quilómetros, em Portugal e Espanha.
Por essa razão tivemos de dormir no carro, mas valeu a pena. Visitámos as ruas e praças de Campo Maior bem tarde durante a noite e bem cedo durante o dia, quando a vila estava (quase) deserta.
E das duas ou três horas mal dormidas fomos, assim, amplamente recompensados.
A luz de Portugal é famosa. Lisboa, a “Cidade Branca”[1], é elogiada por artistas plásticos, fotógrafos e cineastas – para quem a luz é parte importante do seu trabalho – por sua luminosidade particular. Além da luz diretamente recebida, há também a luz filtrada e a luz refletida. É na combinação destes tipos de luz que se manifesta a particularidade de Portugal. Neste contexto, têm uma importância acrescida o vento (normalmente, de Norte), o céu limpo (Portugal é um dos países do mundo com mais dias de sol) e as edificações de matizes claros (nomeadamente as construídas em pedra, que é quase sempre o calcário branco) ou pintadas de branco, que ampliam a transparência da luz. Este tipo de construções encontram-se sobretudo nas regiões do Sul de Portugal continental, nomeadamente no Alentejo e no Algarve.
2- A PAISAGEM
Pôr do sol na Caparica, arredores de Lisboa.
Portugal é um país pequeno mas extremamente diversificado. Isto reflete-se em tudo (como veremos, muito, na gastronomia), mas também, claro, na paisagem. Temos vários tipos de clima, alguns dos quais separados por poucos quilómetros de distância – o Norte de Portugal, por exemplo, vai desde o verde viçoso do Minho (onde podemos encontrar o exuberante Gerês) ao árido (mas belo) Trás-os-Montes. As praias são magníficas: as do Norte com água bem fria, e as do Sul (nomeadamente no Algarve) com águas mornas (no Verão) e calmas, excelentes para banhos. As principais cidades portuguesas situam-se junto a belos rios – O Mondego, o Douro e o Tejo. Seguir o seu percurso equivale a conhecer por dentro algumas das mais belas paisagens naturais do mundo. Os arquipélagos dos Açores e da Madeira – onze ilhas de encantos muito diversos – são igualmente famosos pelas suas belezas paisagísticas.
3- O MAR
Praia do Barril, Tavira, Algarve.
Não existe outro país continental onde as pessoas tenham uma relação tão estreita com o mar. Esta relação está já inscrita no código genético dos portugueses. Isso é visível na distribuição da população pelo território. Esta apetência para o mar – manifestada pelas mais diversas atividades profissionais, culturais e de lazer – deriva da presença em Portugal dos Fenícios, povo que, tal como nós, embora muito antes, se dedicou, durante largo período, ao comércio marítimo. Os portugueses quase sempre aceitaram os desafios do mar. Nele, muitos ganharam a vida e muitos outros a perderam. Dificilmente um português conseguirá viver longe da água salgada. Esta relação completa-se com o fiel cão de água português, o canino mais adaptável, em todo o mundo, ao ambiente marítimo[2]. Como se sabe, esta vocação marítima conduziu os portugueses aos quatro cantos do mundo. Portugal foi o primeiro império marítimo mundial[3]. Data desses tempos o início do processo conhecido por “globalização”. As campanhas do bacalhau na Terra Nova e na Gronelândia que os portugueses levaram a cabo durante décadas, sob condições terríveis, constituem outro marco indelével da ligação histórica do nosso povo ao mar.
4- A CORTIÇA
Colares e brincos em cortiça.
Trata-se de uma especificidade portuguesa. Portugal é o maior produtor mundial de cortiça. Este produto tem características muito próprias – sobretudo a sua combinação de impermeabilidade e leveza – que o tornam excelente em várias utilizações, sobretudo, claro, como rolha, em garrafas de vinho[4]. Porém, nem toda a cortiça dá para fazer rolhas. A primeira extração de cortiça só se realiza quando o sobreiro tem 25 anos. E a cortiça adequada para produzir rolhas só é extraída quando o sobreiro tem 43 anos (terceira extração). O sobreiro (Quercus Suber L.), única árvore em que a casca se regenera, dura em média 200 anos, isto é, suporta cerca de 17 extrações. A cortiça tem mais aplicações para além de rolha. Os produtos derivados são utilizados em áreas tão diversas quanto a moda, a construção, o design, a saúde, a produção de energia ou a indústria aeroespacial.
5- A GASTRONOMIA
O peixe grelhado, sobretudo a sardinha, é uma iguaria muito apreciada pelos portugueses.
A gastronomia em Portugal é excelente. As duas vertentes de uma gastronomia de elevada qualidade são as boas matérias-primas e os bons cozinheiros (que fazem – ou reproduzem – as boas receitas). O peixe é a melhor matéria-prima de Portugal, em termos gastronómicos. Aqui existe, reconhecidamente, os melhores peixes do mundo. A sardinha é rainha e o bacalhau é rei. Ninguém sabe tratá-los melhor que os portugueses. Depois, fabricamos o melhor pão, aliás, os melhores pães (e broas), pois a variedade é enorme. Excelentes vinhos (brancos, tintos, espumantes, rosés e generosos) são produzidos em Portugal. O vinho do Porto é famoso no mundo inteiro. Os nossos queijos são variados e de qualidade insuperável. O queijo “Serra da Estrela” já foi várias vezes considerado o melhor do mundo. O nosso azeite é de altíssima qualidade e ganha regularmente, tal como o vinho e o queijo, prémios internacionais. Finalmente, a doçaria. É de chorar. Os nossos melhores doces vêm de uma tradição “conventual”. Enfim, perante coisas ancestrais, é quase pecado falar em “nouvelle cuisine” (que também aqui há). A nossa cozinha não é uma moda, não é uma nova forma de arte. A nossa cozinha é cultura (viva), é sabedoria – e é amor[5].
6- O MANUELINO
A Torre de Belém, desenhada por Francisco de Arruda, é um magnífico exemplar do estilo manuelino.
Mais fácil e melhor que descrevê-lo é observá-lo nas mais variadas obras de arte, quer em edificações, quer em ourivesaria. Tradicionalmente, considera-se o manuelino como uma evolução do estágio ulterior do estilo gótico, e por isso é também denominado como gótico português tardio ou flamejante. O estilo manuelino desenvolveu-se sobretudo no reinado de D. Manuel, embora já existisse no do seu antecessor, D. João II, e desenvolveu-se também a partir da arte mudéjar, tendo ainda, mais tarde, incorporado elementos do Renascimento italiano. Os motivos principais do manuelino (designação cunhada em 1842 por Francisco Adolfo Varnhagen) são a esfera armilar, a cruz da Ordem de Cristo e elementos naturalistas ou fantásticos. As três obras mais emblemáticas do manuelino são, provavelmente, o Mosteiro dos Jerónimos, a Torre de Belém e a janela do Capítulo, no Convento de Tomar, todas construções do século XVI.
7- A CALÇADA PORTUGUESA
Calçada portuguesa no Largo do Chiado, em Lisboa.
Foi considerada recentemente por um colunista do Financial Times uma das principais atrações entre aquelas que figuram nas mais belas cidades do mundo. Os efeitos visuais são sempre interessantes e, em imagens vistas de cima, muitas vezes, de rara beleza. Exportámos esta arte para outros países, da China (Macau) ao Brasil, como se pode verificar, por exemplo, no Rio de Janeiro. Mas é em Portugal Continental e nas Ilhas que se encontram os exemplos mais cativantes. No Continente, a pedra usada é sempre o calcário, sobretudo preto e branco (mas também castanho, vermelho, azul, cinzento e amarelo) mais fácil de trabalhar que o (mais duro) basalto negro, usado nas Ilhas, sendo ali os desenhos formados em calcário branco. Os trabalhadores especializados na colocação deste tipo de calçada são denominados mestres calceteiros. Esta arte iniciou-se (nos moldes em que hoje a conhecemos) em meados do século XIX e, desde 1986, existe a Escola de Calceteiros da Câmara Municipal, situada na Quinta do Conde dos Arcos, em Lisboa.
8- A AZULEJARIA
Casa do Alentejo, em Lisboa.
O que dizer do azulejo português? Essa expressão artística manifesta-se em todo o país e cobre todas as camadas da população, desde os artesãos dos lugares mais recônditos, aos mais consagrados artistas. Com cerca de 500 anos de produção, a sua origem é árabe. No início, os azulejos predominavam em igrejas e palácios, mas com o tempo popularizaram-se, sobretudo a partir do século XIX, e chegaram às fachadas e aos interiores dos edifícios residenciais. Embora a azulejaria se tenha desenvolvido noutros países (como a Espanha, a Itália e os Países Baixos), em Portugal a sua originalidade deriva sobretudo da relação estabelecida com outras artes, nomeadamente a pintura, a gravura e a arquitetura, e do diálogo que mantém com o espaço envolvente, iluminando-o e transformando-o globalmente. No Museu Nacional do Azulejo, situado no Convento da Madre de Deus, em Lisboa, é possível observar magníficos exemplares. Quem goste desta expressão artística deve também fazer uma visita à Quinta da Bacalhôa, em Azeitão, na Península de Setúbal.
9- O FADO
Fado na Mesa de Frades.
Apesar do recente reconhecimento como Património Mundial pela UNESCO, o fado ainda é visto por muitos como uma expressão artística menor. Mas há fados e fados. E há o Fado. Este foi imortalizado por Amália Rodrigues e desde aí não foi mais possível ignorá-lo. Amália, sobretudo no período em que cantou poemas de grandes poetas portugueses dentro das composições de Alain Oulman, guindou o fado a uma das expressões artísticas mais genuínas, belas e nobres. As suas atuações eram absolutamente arrebatadoras e Amália guiava-as apenas com a sua espantosa intuição. Uma das características únicas do fado é a utilização da guitarra portuguesa (há a de Lisboa e a de Coimbra, com afinações diferentes), com sua sonoridade única e inequívoca. Neste instrumento se destacaria um intérprete e criador extraordinário chamado Carlos Paredes. E é ainda uma voz feminina que se destaca nos dias de hoje no fado: Mariza é a digna sucessora de Amália.
10- A POESIA
Estátua de Fernando Pessoa, junto à “Brasileira”, em Lisboa.
No campo da escrita, Portugal não é apenas um país de poetas. Desde Fernão Mendes Pinto que existem ilustres contadores de histórias, narradores exímios, domadores lestos, que cavalgam as palavras. Eça de Queirós é um deles. Mas foram dois poetas que marcaram para sempre as letras portuguesas: Luís de Camões e Fernando Pessoa. Radicalmente diferentes, na vida e na obra, igualam-se e complementam-se no génio. Ambas as obras, separadas por um quarto de milénio, estão no topo do que alguma vez foi produzido, no género, por homens e mulheres. Ambos viveram durante algum tempo em Lisboa (e passaram por Alfama), e ambos são símbolos importantíssimos da cidade, e de toda a nação. Mas outros nomes de poetas poderíamos acrescentar – Camilo Pessanha, Cesário Verde, Florbela Espanca, Sophia de Melo Breyner, Ruy Belo, Herberto Helder, entre muitos, muitos outros.
11- OS PORTUGUESES
Veraneantes em Cabanas, Algarve.
As generalizações são sempre abusivas, ainda mais quando se trata de povos e, neste campo, não há melhores ou piores. Existem vários tipos de portugueses, como existem vários tipos de subsolos: o transmontano é duro e rude como o granito; o alentejano maleável como a argila e macio como o xisto. A diversidade reina. Mas talvez seja possível encontrar alguma tipicidade num país com 850 anos. O português tem, como já vimos, uma costela fenícia, à qual devemos acrescentar as árabe, judaica e berbere. Ou seja, o arcaboiço é semita[6]. Por outro lado, uma característica básica do português é a miscigenação. Basta ver os negros no Brasil e os negros dos Estados Unidos para perceber como as colonizações portuguesa e inglesa foram diferentes. A expressão “Deus criou o branco e o preto, e o português criou o mulato” tem pleno cabimento. Talvez por isso o português se adapte rapidamente à vida longe de casa. E, nesta, ninguém sabe receber tão bem quanto ele, o típico hospitaleiro. Pena é que, a nível social, dependa tanto do Estado. O português raramente tem iniciativa e precisa de ser liderado. Este é um problema cultural, que justifica, em parte, o atraso do país.
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Notas:
[1] A capital portuguesa ficou conhecida como “Cidade Branca”, sobretudo, após o filme, com título homónimo, do realizador suiço Alain Tanner, rodado em Lisboa e estreado em 1983.
[2] Existe também um cão de água espanhol, mais pequeno que o português e, ao que parece, menos sociável com as crianças.Sobre o cão de água português ver artigo deste blogue: https://ilovealfama.com/tag/cao-dagua-portugues/.
[4] 60% das rolhas de cortiça de todo o mundo são produzidas em Portugal. Seguem-se Espanha e Itália. Há ainda pequenas parcelas que são produzidas em Marrocos, Argélia e Tunísia. Por outro lado, nem todas as rolhas de cortiça têm suficiente qualidade. Isto é muito importante, dado que a oferta de rolhas de qualidade não é suficiente para a procura. Os preços, naturalmente, sobem (uma boa rolha de cortiça pode custar mais de um euro), até porque todo o processo de extração só pode ser feito por processos manuais.
Para se ter ideia da importância das rolhas de vinho em cortiça, recordemos um curiosíssimo episódio ocorrido em 2010. Nesse ano foram descobertas no Mar Báltico, em área finlandesa, mais de 160 garrafas de champanhe provenientes de um naufrágio. O vinho tinha cerca de 200 anos e estava em perfeito estado de conservação, pois a enorme pressão no fundo do mar fez com que as rolhas se mantivessem estanques. Foi decidido provar o vinho que se verificou estar em perfeitas condições (a quase total escuridão e a temperatura média de 4 graus também contribuíram para isso). E, sem surpresa, foi solicitado o apoio técnico à melhor corticeira do mundo – a portuguesa Amorim – que estudou o assunto e substituiu algumas das rolhas originais por rolhas naturais de alta qualidade.
[5] Para lá da excelência da nossa gastronomia, e a condizer com ela, há que referir também o gosto dos portugueses pela comida. Somos dos poucos povos que fazem questão de almoçar e jantar com refeições completas. E somos dos que mais gostam de ir ao restaurante. De acordo com Barry Hatton, um jornalista britânico radicado em Portugal (in “Os Portugueses”, Editora Clube do Autor, 9ª edição, nov. de 2013, p. 261), “um estudo de 2008 revelou que as famílias portuguesas gastam 9,5% do seu orçamento familiar a comer e a beber fora – mais do dobro da média da UE. Essa estatística ajuda a explicar a razão pela qual Portugal tem três vezes mais restaurantes per capita do que o resto da UE (um por 131 pessoas; a média da UE é de um por 374)”. Podemos – e devemos – ainda acrescentar à lista de produtos fabulosos “made in Portugal”, algo tão básico e importante como o sal. O sal português é de altíssima qualidade, sobretudo o da região do Algarve, nomeadamente de Tavira. A flor de sal é um produto que resulta das pequenas placas que flutuam na água do mar apresada nos talhos das salinas. Logo após a recolha é depositada em caixas perfuradas para escorrer e secar ao sol, até ser armazenada. É muito apreciada pelos melhores cozinheiros mundiais. Tanto o sal tradicional quanto a flor de sal de Tavira são recolhidos entre julho e setembro, e a Comissão Europeia atribuiu-lhes, em novembro de 2013, a Denominação de Origem Protegida – DOC.
[6] Aqui discordamos abertamente de Teixeira de Pascoaes. Escreve ele no seu ensaio “Arte de “Ser Português” (Assírio & Alvim, 1ª edição, 1991, p. 58): “Portugal resiste, há oito séculos, ao poder absorvente de Castela. Demonstra este facto que, de todas as velhas Nacionalidades peninsulares, foi Portugal a dotada com mais força de carácter ou de raça. E este seu carácter, trabalhado depois pela Paisagem, resultou ou nasceu da mais perfeita e harmoniosa fusão que, neste canto da Ibéria, se fez do sangue ariano e semita. Estes dois sangues, equivalendo-se em energia transmissora de heranças, deram à Raça lusitana as suas próprias qualidades superiores, que, em vez de se contradizerem – pelo contrário – se combinaram amorosamente, unificando-se na bela criação da alma pátria”.
Ora bem, este é um retrato bastante romântico do português. Basta olhar à nossa volta para perceber isso – basta olhar para nós próprios. Embora haja, evidentemente, algum sangue ariano entre nós, somos, sem dúvida, semitas e, mais, (estudos genéticos comprovam-no), goste-se ou não, somos em larga medida africanos, com sangue ancestralmente negro. Claro que nos referimos a cruzamentos antigos. Somos dos povos mais miscigenados do mundo e estamos também presentes noutros povos, como, por exemplo, no Brasil. Atualmente, em Portugal, de acordo com um artigo publicado no Journal of Human Genetics, por Mark A. Jobling, Susan Adams, João Lavinha e outros (The Genetic Legacy of Religious Diversity and Intolerance: Paternal Lineages of Christians, Jews, and Muslims in the Iberia Peninsula), vol. 83, nº 6, 2008, pp 725-736, existem, no Norte do país, 64,7% de população de ascendência ibérica, 23,6% de ascendência judaica sefardita e 11,8% de ascendência berbere. Já no Sul de Portugal as proporções são 47,6% (ibéricos), 36,3% (sefarditas) e 16,1% (berberes).
Através desta mapa é possível deduzir a extrema importância do Báltico – e da sua ligação ao Mar do Norte, ao Atlântico e ao mundo – para todos os países da região.
Ao que parece, antes de ser mar, o Báltico foi um enorme lago. O derretimento das grandes caleiras de gelo que o circundavam fez subir o nível das águas e abriu, durante a última glaciação, canais navegáveis para outros mares. A nossa viagem pelo Báltico foi feita de navio. Procurámos o melhor cruzeiro e temos a presunção de tê-lo encontrado, através do Costa Pacífica [1]. Foram doze dias intensos, em que visitámos nove cidades (e oito países)[2] desse mar quase mítico, onde se desenrolaram tantos capítulos cruciais da história europeia e, logo, da história mundial.
As disputas no Báltico são muito antigas[3], e alguns dos seus povos confrontaram-se com invasões sucessivas de vizinhos mais poderosos, sobretudo dinamarqueses, suecos e, nos últimos séculos, russos e alemães. Os russos foram os últimos a abandonar alguns países bálticos que integravam a então União Soviética, como são os casos de Estónia, Letónia, Polónia e Lituânia. Dos que foram atacados pelos soviéticos, o único país a resistir com sucesso foi a Finlândia.
Como sempre acontece em ocupações mais ou menos prolongadas, largas minorias da potência ocupante permanecem nos Estados que reconquistam a independência. É o que acontece, por exemplo, na atual Ucrânia[4], com as graves consequências políticas, que todos vamos conhecendo através da comunicação social. A Rússia procura, nitidamente, alargar a sua zona de influência, através das minorias (e partidos representativos das mesmas), espalhadas por esses países.
Estamos, portanto, a falar de uma zona instável, de países que reconquistaram recentemente a independência, de uma zona tampão, estratégica, alvo de disputas políticas entre a Rússia e a Europa Ocidental. Mas estamos também a falar de povos muito antigos, povos com uma vontade inquebrantável de autonomia. Todos eles – excetuando obviamente a própria Rússia – parece terem achado que a melhor forma de garantir essa autonomia era no seio da União Europeia. São, portanto, nossos parceiros de jornada e, só por isso, já estaria justificada esta viagem. Na realidade, porém, são muito mais. São países fascinantes com histórias e culturas riquíssimas – a maioria das cidades que visitámos estão classificadas como Património Mundial – que justificam amplamente a decisão de visitá-los.
KIEL
Mar Báltico.
Foi em Kiel que se iniciou a nossa viagem pelo Báltico. Esta cidade é a capital da Schleswig-Holstein Busdesland, fundada, em 1223, pelo conde Adolfo IV de Schauenburg, e está situada no extremo norte da Alemanha, junto à fronteira com a Dinamarca. Para aqui chegarmos tivemos de apanhar o avião (de Lisboa) para Hamburgo, onde dormimos uma noite, e, na manhã seguinte, tomar o comboio para Kiel. Quer numa, quer noutra cidade encontrámos alemães simpáticos e prestáveis, em contraste notório com o tempo sombrio e chuvoso, embora estejamos em pleno Verão. No regresso do cruzeiro voltámos a passar por Kiel, onde ficámos mais um dia e uma noite. Na manhã do dia seguinte apanhámos o comboio até o aeroporto de Hamburgo, tendo sido necessário mudar uma vez de composição. O transporte ferroviário é barato por estas bandas, com bilhetes coletivos, o que facilita muito a vida quando se viaja acompanhado, como foi o nosso caso. Às oito horas da tarde, embora seja pleno dia, as pessoas recolhem-se em casa e as ruas ficam praticamente desertas. O clima é mesmo agreste por aqui, como, de uma forma geral, em toda a Alemanha.
ESTOCOLMO
A célebre Praça Stortorget, em Estocolmo.
A parte mais interessante de Estocolmo é o burgo antigo (Gamla Stan), erguido sobre uma das catorze ilhas em que a cidade repousa. Ali pudemos observar belos edifícios, ruas e praças – como aquela onde se situa a Academia Sueca e o Museu do Nobel. Estocolmo é bastante antiga e a sua localização estratégica fez com que fosse capital da Suécia desde o século XIII. Atualmente, é uma das cidades mais limpas, organizadas e seguras do mundo. Nos arrabaldes de Gamla Stan, numa ilha vizinha, visitámos o edifício do City Hall[5], construído em 1923, uma das edificações mais visitadas da cidade. Um senhor muito simpático perguntou-nos se sabíamos quantos tijolos tinham sido usados na construção daquele edifício. “Oito milhões”, disse-nos, sorrindo, acrescentando que sempre faz essa pergunta aos netos quando por ali passam…
Entrar e sair de Estocolmo por navio é um espetáculo à parte: são quatro horas a navegar entre milhares e milhares de pequenas ilhas (cerca de vinte e quatro mil!), muitas delas habitadas, arborizadas, graníticas, com suas casas e seus ancoradouros, junto aos quais flutuam embarcações de todos os tipos – veleiros, barcos a motor, motas de água e, até, pequenos barcos a remos. O nosso grande navio serpenteou por entre essas ilhas (muitas delas apenas ilhéus e ilhotas), por canais que só os pilotos locais podem conhecer. Ao percorrê-los, ficamos com uma noção mais perfeita da localização estratégica desta magnífica cidade.
Como se sabe, a Suécia é um dos países mais desenvolvidos do mundo, e é o terceiro maior país da União Europeia. No entanto, a densidade populacional é muito pequena (21 habitantes por quilómetro quadrado) e a Suécia tem menos habitantes que Portugal, cerca de 9,3 milhões.
HELSÍNQUIA
Monumento a Sibelius, Helsinquia.
Se Estocolmo surpreendeu, Helsínquia não ficou atrás. Historicamente, a vida dos finlandeses não tem sido fácil, entalados entre as potências Suécia e Rússia, ambas ocupantes da Finlândia por períodos bastante longos: foi parte da Suécia até 1809 e, posteriormente, Grão-Ducado autónomo pertencente ao Império russo. Muitas das construções de Helsínquia são ainda desse tempo, algumas delas bastante interessantes. Mas os finlandeses nunca se conformaram com as ocupações e sempre deram mostras de serem um povo valoroso e empreendedor. Em 1917 foi declarada a independência. Seguiu-se uma guerra civil e guerras contra russos e alemães. Em 1939 resistiram a Estaline, com um terço das tropas do adversário e com um arsenal bélico igualmente muito inferior. Não é de admirar, portanto, que aqui existam vários militares heróis nacionais, com estátuas espalhadas pela cidade. Os finlandeses são, além de determinados, naturalmente tímidos, mas muito afáveis e educados. O seu sistema educativo é de primeiríssimo nível, o melhor que se conhece no mundo. Tudo isto se reflete nas ruas. Helsínquia é uma cidade calma, musical, ordeira, alegre e civilizada; e, talvez a brindar-nos pela nossa visita, inesperadamente soalheira. Esta belíssima cidade sempre foi relativamente pequena, contando hoje em dia com cerca de 600.000 habitantes. Toda a Finlândia terá pouco mais de cinco milhões, cerca de metade de Portugal. A língua finlandesa é parecida com o estoniano e, curiosamente, não tem origem indo-europeia[6].
SÃO PETERSBURGO
Foi sobre o delta do Neiva que construíram São Petersburgo.
São Petersburgo tem algumas semelhanças com as cidades que visitámos antes – Estocolmo e Helsínquia – sobretudo no que se refere à geografia[7] e ao clima, mas também quanto às numerosas catedrais e igrejas ortodoxas. No resto, é bastante diferente. São Petersburgo tem as características de uma cidade imperial, com seus palácios, guarnições militares e monumentos eminentes; e é igualmente uma cidade de grande atividade cultural, com um número considerável de museus, teatros, bibliotecas, salas de espetáculos e livrarias.
É também diferente por ser uma cidade relativamente nova. Fundada há 312 anos por Pedro, o Grande, primeiro imperador da dinastia Romanov, foi capital da Rússia por cerca de 200 anos, e mudou de nome várias vezes (foi Petrogrado e Leninegrado) até voltar a ser São Petersburgo. A cidade repousa sobre mais de quarenta ilhas, no delta do rio Neiva, e conta, atualmente, com mais de cinco milhões de habitantes. A estes acrescem os inúmeros turistas que visitam, sobretudo no Verão, a cidade mais ocidentalizada da Rússia[8], apesar da política reacionária de Putin e seus comparsas, apoiados pela maioria do povo russo. Neste aspeto a Rússia difere muito quer da Suécia, quer da Finlândia, países com os quais manteve conflitos ao longo de vários anos. Isto mesmo podemos confirmar através de um guia local que acompanhava um grupo de italianos. Ouvimo-lo dizer, à porta da catedral de S. Pedro e S. Paulo, que os russos apoiam Putin; que detestam Gorbatchov; que a maioria deles acha positiva e patriótica aquilo que foi a política de Estaline.
Como ficou dito, São Petersburgo é uma cidade monumental. É fácil descobrir pela internet quais os seus lugares de interesse, que são mesmo muitos. Evidentemente, no pouco tempo que estivemos na cidade, visitámos apenas uma pequena parte deles. São Petersburgo é daquelas cidades que merecem uma visita demorada, pelo menos de uma semana.
TALIN
Placa evocativa do terror comunista, no centro histórico de Talin.
Talin é uma cidade completamente diferente das três anteriores. Mais pequena; mais modesta; mais sombria (pelo menos no dia em que a conhecemos) – o que não quer dizer, forçosamente, menos bela. No seu casco velho, dividido em duas zonas, encontramos os mais interessantes edifícios, alguns dos quais medievais, que nos contam muito da sua história. Uma história de repressão imposta, desde cedo, por povos mais poderosos, como os dinamarqueses, os alemães, os suecos e os russos. O próprio nome da cidade quer dizer “Fortaleza dos Dinamarqueses”, “Taani Linnus”, que deu origem a Tallin.
Fustigados pelos soviéticos durante grande parte do século XX (com breve intervalo durante a II Guerra Mundial, quando os alemães tomaram a Estónia), este povo sempre teve um fortíssimo desejo de independência. Esta seria alcançada apenas no fim dos anos oitenta e, enquanto não conseguiam a liberdade, os estonianos reuniam-se para cantar em grandes manifestações que, embora culturais, eram também, e sobretudo, de protesto. Em celebração desses tempos, ainda hoje, de cinco em cinco anos, se realiza em Talin o Festival da Canção, que reúne, durante dois dias, todo o povo da Estónia[9]. A tradição destes festivais remonta a 1869. De Talin trouxemos um CD (Tabula Rasa) de um dos seus músicos mais emblemáticos, Arvo Pärt.
RIGA
A Praça da Câmara Municipal, em Riga, onde se situa o célebre edifício dos Cabeças Negras.
Riga é uma cidade belíssima. Esta afirmação é reforçada pelo espanto que nos provoca o conhecimento dos terríveis bombardeamentos a que foi submetida durante a II Guerra Mundial, bem como a determinação de seus habitantes em recuperá-la, após o longo período de ocupação – e abandono – soviético, que apenas terminou em 1991. Riga deve o seu nome ao pequeno rio sobre o qual, depois de aterrado, a construíram. Os primeiros a desenvolverem a cidade foram os alemães, que aqui chegaram em 1202 e permaneceram, com suas língua e cultura, por cerca de 700 anos, embora escavações realizadas em 1938 tenham provado que tribos locais se haviam estabelecido em Riga muito antes da chegada dos alemães.
Riga é, pois, um burgo muito antigo. Isso se comprova por toda a parte central da cidade (Vecrïga), através de edifícios medievais, quase saídos de contos de fadas. Destes, destaca-se, pelas suas incríveis beleza e singularidade, a “Casa dos Cabeças Negras”. Inicialmente construído em 1334, este magnífico edifício foi alvo de reformas ao longo dos anos e, em 1721, tornou-se propriedade dos Blackheads. Destruído por um incêndio logo nos primeiros dias da II Guerra Mundial, tal como Fénix, renasceu, literalmente, das cinzas.
Mas Riga não é inesquecível apenas pelos seus belos edifícios medievais. Os amplos espaços verdes, os cafés, com belíssimas esplanadas, e as praças, onde convivem harmoniosamente, monumentos, esculturas, plantas e flores, artesãos e meros transeuntes – tudo lhe confere um colorido inigualável. Nota-se também um enorme dinamismo em Riga, sobretudo entre a população mais jovem (quase todos falam bem inglês), que augura um futuro risonho a esta notável cidade báltica.
KLAIPEDA
Vista sobre Klaipeda e o rio que cruza a cidade.
Apesar de ser também muito antiga – fundada em 1252 – Klaipeda não tem o fulgor das restantes cidades que visitámos, sobretudo do ponto de vista histórico-cultural (e, logicamente, turístico). Não deixa, porém, de ser uma cidade importante (a terceira maior da Lituânia), sobretudo porque é a única que tem um porto marítimo, de vital importância económica. Trata-se, aliás, de um porto extenso e completo, com terminais para todo o tipo de cargas e também para passageiros. Se do ponto de vista arquitetónico Klaipeda não é uma relíquia, ela é harmoniosa e singela do ponto de vista natural. O rio Dane, que a corta ao meio, confere-lhe alegria, frescura e paz. Tal como a Estónia e a Letónia – suas parceiras na União Europeia e no Euro – a Lituânia tem tudo para sonhar com um futuro melhor.
GDANSK
Edifícios de uma das ruas centrais de Gdansk, cidade natal de Arthur Schopenhauer.
É um pouco estranho que se fale tão pouco de Gdansk – ou, então, temos andado demasiado distraídos. Isto é o mais provável, dado que a cidade estava repleta de turistas quando a visitámos: Gdansk é um grande museu ao ar livre. Esta realidade impõe-se com tanta evidência que chegamos a esquecer-nos do seu relevante papel económico, sobretudo na vertente portuária, vital para o comércio com o exterior, o qual já era importante no século XIII.
Gdansk é, pois, uma cidade muito antiga. Foi no período entre 1580 e 1650 – considerado “época dourada” – que a faceta artístico-cultural da cidade se desenvolveu enormemente. Uma das causas deste desenvolvimento foi a Reforma. Ao Gótico seguiu-se o Renascimento e a este, sob influência holandesa, o Maneirismo. Naqueles tempos prevalecia a tolerância religiosa e esta proporcionou o ambiente propício para que ali se estabelecessem milhares de artesãos e artistas, oriundos de todas as partes da Europa. Assim surgiram obras de arte que tornaram esta cidade uma das mais belas do mundo.
A invasão prussiana, a partir da segunda metade do século XVIII, vem estancar este processo criativo e, mais tarde, o próprio desenvolvimento económico de Gdansk. Em 1793, a cidade passou a fazer parte da Prússia e foi submetida a um longo processo de germanização, interrompido apenas no curto período de soberania francesa, de 1807 a 1814. Após a Grande Guerra, e com a influência inglesa, foi declarada, em 1920, a cidade livre de Gdansk, sob protetorado da Liga das Nações. No final da II Guerra Mundial, em 1945, as tropas soviéticas destruíram quase 90% do centro histórico da cidade. Depois da guerra, os polacos reconstruíram-no e, nas décadas de setenta e oitenta, foram em Gdansk que se deram as revoltas e greves operárias contra o regime pró-soviético, sobretudo através do sindicato independente Solidariedade e do seu carismático dirigente, Prémio Nobel da Paz em 1983 e, mais tarde, presidente da Polónia (1990-95), Lech Walesa.
GDYNIA
Perspetiva dos elevadores centrais do Costa Pacifica, na última noite a bordo, após saída de Gdynia.
Gdynia é uma cidade muito mais recente que Gdansk, situada a poucos quilómetros desta[10], igualmente nas margens do Báltico e igualmente portuária, ainda na baía que deve o nome à sua magnífica vizinha. Enquanto esta está muito vocacionada para o turismo externo, Gdynia é uma cidade onde se podem ver muitos veraneantes locais. Podemos observar uma praia repleta de gente, com boas infraestruturas, muitas crianças brincando num parque infantil em plena praia e, em local contíguo, uma marina repleta de embarcações de recreio. Na envolvente, muitos bares e restaurantes (almoçámos num deles), parque de diversões, jardins, numa área generosa, plana e de fácil acessibilidade, praticamente no centro da cidade. Neste país é mais difícil encontrar pessoas que dominem línguas estrangeiras, nomeadamente o inglês; nota-se que a população não tem os níveis de educação que encontrámos em outros países bálticos. Mas parece que a Polónia apresenta um dinamismo económico que lhe garante um bom futuro. Não podemos esquecer que também ela é um país recentemente independente. Com a dimensão que tem e o rumo que leva, a Polónia será em breve uma potência económica e – espera-se – social.
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Notas:
[1] O itinerário que o Costa Pacifica cumpriu é excelente. Porém, o serviço a bordo – para quem conhece outras companhias de cruzeiro, nomeadamente a MSC – deixa muito a desejar. E, a propósito, vamos deixar uma dica preciosa a quem quiser viajar em navios de cruzeiro (e se preocupe com os preços). Existe um sítio na internet onde os preços dos cruzeiros ficam muito mais baratos, em muitos casos, a menos de metade do preço: http://www.cruisedirect.com.
[2] São nove os países bálticos. Destes, apenas não visitámos a Dinamarca. Estivemos em Alemanha, Suécia, Finlândia, Rússia, Estónia, Letónia, Lituânia e Polónia.
[3] A Grande Guerra do Norte foi uma das maiores da região báltica. Nela se defrontou o Império da Suécia contra uma tríplice aliança formada por Dinamarca-Noruega, Saxónia-Lituânia-Polónia e Rússia. Comandada pelo jovem Carlos XII, a Suécia subjugou todos os adversários até ser derrotada pela Rússia na batalha de Poltava, em 1709, obrigando Carlos XII a exilar-se em território do Império Otomano. A guerra porém ainda se arrastaria por mais 12 anos (durou de 1700 a 1721) e terminou com o Tratado de Nystad, entre russos e suecos, que se confrontariam de novo em 1741-1743 e em 1788-1790. E não se pense que foram apenas estes os confrontos entre a Suécia e a Rússia, que se degladiaram ao longo dos séculos XV, XVI e XVII (e ainda antes, na Idade Média, embora a Rússia ainda não tivesse o seu nome atual), por várias vezes, assumindo-se como as duas grandes potências da região. Uma história do Báltico, ainda que muito resumida, não caberia apenas em um artigo deste blogue.
[4] A Ucrânia, evidentemente, não faz parte dos países bálticos. A Rússia, sendo o maior país do mundo, tem fronteiras longuíssimas, que vão muito para lá do Báltico e que, no quadrante ocidental, cortam praticamente a Europa de Norte a Sul; uma extensa zona, historicamente conflituosa, face a interesses geopolíticos divergentes.
[5] Câmara Municipal.
[6] Tal como o húngaro e o estoniano, o finlandês é considerado, pela maioria dos linguistas, uma língua fino-úgrica, uma sub-família das línguas uralianas. Pensa-se que as origens das línguas fino-úgricas remontem ao terceiro milénio antes de Cristo, algures no norte e centro da atual Rússia, a oeste dos Montes Urais.
[7] Por toda a região báltica existe um número infindável de ilhas. Estocolmo, Helsínquia e São Petersburgo estão localizadas sobre ilhas. Isto sugere que a profundidade média desse mar deve ser baixa. Notámos ainda que no Báltico a navegação é intensa, devendo este mar ser o principal meio para o comércio entre os países da região.
[8] Cidade mais ocidentalizada, mas não a mais ocidental. Existe um enclave russo chamado Kaliningrado, que também fica no Báltico, mas mais para ocidente, entalado entre a Lituânia e a Polónia, que é a ponta da lança que a Rússia tem na Europa. Este pequeno estado (oblast) russo é simultaneamente o nome da sua principal capital. Uma cidade conquistada na sequência da II Guerra Mundial, uma cidade hoje completamente degradada, que deve o seu nome a um amigo de Estaline, Mikhail Kalinin, mas que foi durante centenas de anos uma cidade próspera e magnífica – a cidade onde nasceu o grande filósofo Immanuel Kant – a bela cidade medieval de Konigsberg, capital da Prússia Oriental.
[9] A Estónia e a Letónia faziam parte da região histórica da Livónia, muito disputada entre as potências do Báltico (sobretudo russos e suecos)ao longo dos anos.
[10] Cerca de vinte cinco quilómetros. Gdynia, Gdansk e a cidade termal de Sopot formam a região metropolitana de Tricity, a qual tem uma população de mais de um milhão de habitantes.
A aldeia de Zibreira, hoje, terra natal de Cristóvão Ferreira.
1- A primeira vida: Cristóvão Ferreira.
Cristóvão Ferreira nasceu por volta de 1580, em Zibreira, concelho de Torres Vedras. Ingressou na Companhia de Jesus com 16 anos de idade, em Coimbra, onde tomou os primeiros votos em 27 de dezembro de 1598, ingressando no Curso de Artes, a primeira etapa da sua longa carreira jesuítica.
Cristóvão Ferreira tinha uma forte vontade de embarcar para a Ásia, motivado pelas notícias de conversão de muitos asiáticos à fé cristã, com especial destaque para os japoneses. Assim, em 1600, Cristovão interrompe os estudos e parte para o Oriente, acompanhado de vinte companheiros jesuítas. Sabe-se que passou por Goa e que chegou a Macau em fins de 1600 ou inícios de 1601. Macau era na época o centro de irradiação e de acolhimento de missionários e o mais importante foco das missões no Extremo Oriente[1]. Ali, no Colégio da Madre de Deus, ele prosseguiu os seus estudos em Filosofia e em Teologia, tendo sido ordenado padre no final de 1608. Completava assim o cursus honorum destinado a padres professos que faziam os quatro votos: de pobreza, castidade, obediência à Ordem e obediência ao Papa.
Ainda em Macau, Cristóvão Ferreira adquire os conhecimentos básicos de língua japonesa e familiariza-se com os costumes e cultura da sociedade onde iria missionar: havia muitos japoneses a residir em Macau ou de passagem pelo território, além dos estudantes nipónicos que frequentavam o colégio. Em 1609 embarca para o Japão, tendo ali chegado em 29 de junho do mesmo ano. Nesta altura, Cristóvão Ferreira teria cerca de 29 anos e iniciava a etapa da vida para a qual se preparara – o trabalho de missionário no terreno. No entanto, sem saber, ele fazia a sua viagem definitiva, pois não sairia do Japão até morrer, 41 anos depois.
O seu trabalho de missionação deu-se em condições cada vez mais difíceis. As boas perspetivas que os primeiros missionários encontraram – com destaque para Francisco Xavier – não se verificaram mais, e a situação vinha-se deteriorando à medida que a reunificação do Japão se tornava efetiva, graças à ação de três grandes chefes políticos e militares: Oda Nobunaga, Toyotomi Hideyoshi e Tokugawa Yeyasu. Este último foi o fundador do xogunato Tokugawa ou de Edo (atual Tóquio), que dominou o arquipélago até 1868. O cristianismo foi considerado uma ameaça para este processo de unificação política, religiosa e ideológica. Os padres cristãos foram considerados suspeitos de estarem ao serviço de um rei estrangeiro (fosse de Portugal ou de Espanha) que teria como intenção última a conquista do território nipónico.
Assim, ainda em 1587, Toyotomi Hideyoshi promulgou o primeiro decreto anticristão, mas este não teve grande efeito face aos interesses comerciais em jogo, uma vez que os governantes japoneses não queriam perder um negócio extremamente lucrativo, cujos principais protagonistas eram os portugueses, e os jesuítas os intérpretes e intermediários que facilitavam os contactos entre as partes. Mas a ameaça continuava latente e, dez anos depois, deu-se a primeira execução coletiva. Foram condenados à morte por crucificação e executados, em Nagasáqui, vinte e seis cristãos. Além da ameaça que representava o processo de unificação japonesa, começaram a surgir também divisões entre os missionários das várias ordens religiosas no terreno, como era o caso de dominicanos, franciscanos, agostinhos e mendicantes. A isto juntou-se a cobiça de espanhóis e, sobretudo, de holandeses, tendo estes sido os únicos autorizados a instalar uma feitoria em Hirado, em 1609. Os ingleses também apareceriam em 1613, mas retiraram-se em 1623.
Em 1610, Cristóvão Ferreira encontra-se no seminário de Arima, lecionando Latim e aprofundando os seus conhecimentos da língua japonesa. Dois anos depois, o dáimio da cidade ordena o fecho do seminário. A maior parte dos missionários residentes refugia-se em Nagasáqui. Cristóvão, porém, segue para Quioto, provavelmente para substituir o padre Carlo Spinola, destacado para Nagasáqui.
Entretanto as medidas dos governantes japoneses vão completando o cerco aos missionários, o qual se fecha com a publicação de um édito, em 27 de janeiro de 1614. Através dele se ordenava a concentração de todos os missionários no porto de Nagasáqui, para que abandonassem o Japão, e a destruição de igrejas, capelas e casas de missionários; era também proibida a prática do cristianismo, bem como se obrigava cada japonês a inscrever-se num templo budista. Ao contrário das medidas anteriores, apenas implementadas em parte, este édito é rapidamente cumprido, dado que estavam reunidas as condições políticas e económicas para que tal acontecesse: por um lado, Tokugawa Ieyasu derrotara os opositores internos na batalha de Sekigahara, em 1600, e conquistara o título de xogum, reforçando sua autoridade pessoal, centralizando o poder em Edo (Tóquio); por outro lado, os portugueses já não eram necessários, nem os jesuítas, dado que holandeses e ingleses poderiam fazer o comércio com o exterior, sem os inconvenientes do proselitismo religioso dos lusitanos.
Os missionários, a maioria jesuítas e um punhado de franciscanos e dominicanos, são então reunidos no porto de Nagasáqui e deportados: uma parte para Macau e outra parte para Manila. Apesar disso, cerca de cinquenta mantiveram-se clandestinamente no território, e um deles foi Cristóvão Ferreira. A sua vida corria graves perigos dado que a perseguição aos cristãos se intensificou com uma lei de 1616, que determinava a condenação à morte dos que protegessem ou ocultassem os missionários cristãos. Davam-se prémios pecuniários para quem os denunciasse. Muitos foram mortos.
Cristóvão Ferreira viveu os dezanove anos seguintes na clandestinidade, usando disfarces, vivendo entre Quioto, Nagasáqui e Osaka. O seu trabalho e a dedicação reconhecida à causa cristã, guindaram-no à posição de vice-provincial do Japão, o que ocorreu em 23 de dezembro de 1632. Tinha a seu cargo a elaboração de relatórios anuais sobre a atividade da missão e também muitos relatórios sobre martírios. O texto mais conhecido e inflamado de um martírio foi o que escreveu (em 22 de março de 1632) sobre o jesuíta japonês Antonio Ishida, que resistiu a diversas torturas, entre 1629 e 1632, até ser morto na fogueira em setembro deste ano.
2- A fossa
Como vimos, a repressão aos cristãos intensificou-se, sobretudo a partir dos finais da década de 1620, coincidindo com o início do mandato do terceiro xogum, Tokugawa Iemitsu (1623-1651), tendo sido tomada a decisão de extirpar de vez o cristianismo. As autoridades nipónicas passaram a considerar os martírios um motivo para o aparecimento de novos cristãos, dado que punham a nu a enorme convicção e força dos missionários, e então decidiram apostar na apostasia. Refinaram as técnicas de tortura. A mais temida era a suspensão na fossa (ana-tsurushi), que foi aplicada pela primeira vez em julho de 1633. A vítima era pendurada de cabeça para baixo e esta quase tocava nos excrementos depositados numa fossa. O corpo era atado para que o sangue não descesse ao cérebro, e era feita uma ligeira incisão na têmpora como precaução, para que o sangue escoasse lentamente. Os gases da fossa funcionavam como uma parcial anestesia, tornando o sofrimento mais prolongado. A vítima só tinha possibilidade de salvar-se fazendo um sinal com uma das mãos, deixada livre para o efeito, mostrando assim que cedia às exigências dos torturadores.
Cristóvão Ferreira foi preso em setembro de 1633 e submetido à tortura da fossa, juntamente com mais sete padres e noviços, em 18 de outubro do mesmo ano. Entre eles encontravam-se figuras proeminentes das missões, como António de Souza, superior dos dominicanos, e o padre jesuíta japonês Julião Nakaura, um dos integrantes da embaixada que foi de Kyushu a Roma (1582-1590), a primeira a sair do Japão rumo à Europa. Todos os companheiros de suplício de Cristóvão pereceram. Julião Nakaura resistiu três dias; outro aguentou nove dias; mas Cristóvão Ferreira, ao fim de cinco horas de tortura, apostatou.
Tendo em conta o percurso de Cristóvão Ferreira – uma carreira jesuítica com mais de 37 anos, cerca de 19 dos quais na dura clandestinidade -, sabendo-se que o martírio era algo aceite quando não desejado pelos missionários e sendo certo que o próprio Cristóvão sabia que, mais cedo ou mais tarde, seria capturado e torturado, a sua rendição aparece aos olhos de todos, e talvez sobretudo dos próprios torturadores, como algo surpreendente. Mais surpreendente ainda depois dos relatórios sobre martírios que escreveu, onde exaltava o comportamento de muitos de seus confrades, que pereceram sem nunca renunciarem à sua fé. Além de que, um mês antes da sua apostasia, já no cárcere, referindo-se aos companheiros que estavam com ele, escrevera: “pela graça de Deus todos estão com muito ânimo e desejo, esperando por aquela hora ditosa”.
Após a rendição, provavelmente, seguiu-se o efumie, cerimónia pela qual os apóstatas tinham que pisar imagens da Virgem Maria ou de Jesus Cristo. O leque de interpretações possíveis sobre a apostasia de Cristóvão é tão vasto que não é lícito nem prudente apostar em qualquer uma delas. Certo, certo é que a notícia teve enorme impacto quer dentro quer fora do Japão.
3- Reações
Assim, para as autoridades japonesas, empenhadas na campanha anticristã, a apostasia de Cristóvão Ferreira representou uma importante vitória, pois ficava provado ser possível vergar os cristãos. Já para estes, a notícia representou um enorme abalo. A estupefação foi tal que chegaram notícias contraditórias a Macau.
Dali se escreveram cartas secretas a Cristóvão Ferreira, incitando-o a reparar a apostasia com o martírio; e dali partiram consecutivamente alguns jesuítas, com a intenção de encontrá-lo e movê-lo ao arrependimento. Foram praticamente missões suicidas, pois era sabido que dificilmente os seus membros poderiam escapar à captura e à morte. A primeira tentativa foi levada a cabo pelo padre Marcello Mastrilli, que desembarcou no Japão em 1637, sendo imediatamente aprisionado e, depois de três dias na fossa, degolado, sem ter conseguido encontrar Cristóvão Ferreira. Dois anos depois deu-se a segunda tentativa, desta feita através do padre Pedro Kibe, que morreria na fossa em julho de 1639. No interrogatório a que foi submetido em Edo esteve presente Cristóvão Ferreira, já na pele de Sawano Chuan.
A terceira e última tentativa, que se desenrolou em duas fases, foi liderada pelo padre Giovanni Antonio Rubino. O primeiro grupo concentrou-se em Manila e chegou ao Japão em agosto de 1642. Era constituído pelo próprio Rubino (daí ter sido designado por Primeiro Grupo Rubino) mais quatro padres jesuítas e quatro dógicos. Todos foram capturados rapidamente e condenados à fossa em 17 de março de 1643. Não se sabe ao certo se nos interrogatórios a que foram submetidos esteve presente Cristóvão Ferreira. O Segundo Grupo Rubino era constituído por dez membros, entre os quais os padres Pedro Marques, Alfonso Arroyo, Francesco Cassola e Giuseppe Chiara, e chegaram ao Japão em 27 de junho de 1643. Foram imediatamente presos e submetidos a longos interrogatórios na cidade de Edo. Cristóvão Ferreira (na verdade, já Sawano Chuan) esteve presente, admoestando os prisioneiros a renegarem a sua fé, o que todos fizeram, sendo que mais tarde Alfonso Arroyo revogou a apostasia. Por seu turno, Giuseppe Chiara tornou-se o segundo renegado mais famoso, após Cristóvão Ferreira, sob o nome japonês de Okamoto San’emon.
O fervor religioso e a incredulidade fizeram com que muitas notícias da reconversão de Cristóvão Ferreira, a maioria por vias indiretas e sinuosas, chegassem a circular entre os jesuítas. Uma delas, dois anos após a sua morte, em 1650, dava conta de que ele se havia reconvertido e morrido mártir, após três dias na fossa. Essas notícias chegaram a colher alguma aceitação e foram inclusivamente partilhadas por historiógrafos da Companhia de Jesus, como António Franco e Daniello Bartolli. Inclusive, já no século XX, o historiador jesuíta Josef Franz Shütte, após analisar a documentação disponível, chegou à conclusão de que Cristóvão Ferreira “morreu corajosamente pela fé de Cristo”.
4- A segunda vida: Sawano Chuan
As fontes mais fidedignas sobre a vida de Cristóvão Ferreira após a apostasia são de origem holandesa, sobretudo através dos diários dos responsáveis das feitorias holandesas de Hirado (até 1641) e de Deshima (a partir de 1641). Por volta de 1640, o xogum Tokugawa Iemitsu proibiu grande parte da atividade marítima e conduziu o Japão a um progressivo isolamento, vulgarmente designado por sakoku (país encadeado). As exceções a este corte com o exterior foram os mercadores holandeses (confinados desde 1641 à ilha artificial de Deshima), tendo-se mantido também o tráfico com os chineses; foram mantidas ainda relações, via Kagoshima e Tsushima, com os reinos de Ryuku e da Coreia.
É neste contexto de mudança que deve ser entendido o édito promulgado em 1639, o qual proibia os mercadores portugueses de traficarem com o Japão, significando na prática o seu banimento do território. Esta decisão seria tragicamente confirmada pelo destino da embaixada enviada de Macau, em 1640, apelando à revogação do édito e ao restabelecimento da viagem Macau-Nagasáqui. Dos 74 elementos desta expedição apenas 13 foram poupados para que relatassem o sucedido. Os restantes foram decapitados. É a partir deste período que existem bases mais sólidas sobre a vida de Chuan, que se ia aculturando, ao mesmo tempo que assistia a estes sucessos trágicos e tumultuosos.
Chuan permaneceu a maior parte da sua vida em Nagasáqui, sob as ordens de Inoue Chikugo no Kami Masashige (1585-1662), inspetor-geral da campanha anticristã, um inquisidor temível, que chegou a ser comparado a Adolf Eichmann[2], e que usou Chuan como intérprete, tendo-o enviado várias vezes à feitoria holandesa de Deshima. Convém dizer, nesta altura, que o português era a língua franca comercial do Extremo Oriente, utilizada por muitos japoneses, holandeses e ingleses nos seus contactos com os nativos. A partir da década de 1640, com a campanha anticristã apaziguada, Chuan tem tempo para se dedicar a atividades mais de acordo com os seus interesses.
Faz traduções, compilações e aperfeiçoa os conhecimentos de japonês, a ponto de ler o Taiheiki (épico escrito no final do século XIV) e outros clássicos japoneses. Escreve, em 1636, o pequeno tratado Kengiroku, no âmbito da propaganda anticristã do período Tokugawa, associando na obra o imperialismo europeu à atividade missionária. Refuta de forma virulenta o cristianismo, que considera pura invenção para enganar o povo. Considera a vida após a morte como um absurdo, bem como o inferno e o paraíso; nega a existência de um criador, dado que o universo sempre existiu; o juízo final é considerado um embuste, ridículo e escandaloso. O radicalismo de Chuan levou o filósofo Michel Onfray, já no século XXI, a considerar Cristóvão Ferreira/Sawano Chuan como “o quase primeiro ateu” da história da ateologia[3].
Sawano Chuan teve também um papel importante no processo de composição em japonês do tratado Kenkon Bensetsu (Exposição sobre os Céus e a Terra), na linha dos tradicionais Tratados da Esfera, e que conta com comentários críticos de Mukay Gensho (1609-1677)[4], um erudito neo-confucionista japonês. Ao que parece este tratado foi levado para o Japão por alguém do Grupo Rubino, talvez fosse até (segundo aventa José Miguel Pinto dos Santos) uma espécie de caderno de notas elaborado pelo próprio Giovanni Antonio Rubino, algo que se inseriria na linha dos comentários existentes na época, na sua maioria tendo como referência o Tratado da Esfera (De Sphaera Mundi, c. 1230), de Johannes de Sacrobosco. O papel de Sawano Chuan na composição parece ter sido apenas o de tradutor, o que não invalida que não tenha acrescentado interpretações próprias. Seja como for, o Kenkon Bensetsu foi dos livros mais lidos sobre cosmologia ocidental no Japão até finais do século XVIII, sendo esta afirmação confirmada pelo elevado número de cópias manuscritas conhecidas.
Chuan esteve ainda envolvido na elaboração de um tratado médico, Nanbanryu-geka hidensho (Tradição Secreta da Cirurgia dos Bárbaros de Sul). O único manuscrito conhecido refere o nome de Chuan, dando a entender ser ele o autor. Trata-se de uma obra que contém uma exposição sobre teoria humoral, seguida de prescrições para os vários tratamentos, uma farmacopeia e um glossário técnico[5]. No caso da autoria ser mesmo, como tudo indica, de Swano Chuan, os conhecimentos manifestados terão sido adquiridos após a apostasia, em contacto com a feitoria dos holandeses, pois aos jesuítas estava interdita a prática médica e a posse de livros da especialidade.
Em 3 ou 4 de novembro de 1650 Sawano Chuan morreu em Nagasáqui, com cerca de 70 anos de idade. Recebeu, de acordo com a tradição budista, o nome póstumo de Chum-joko Sensei. De acordo com os registos dos templos Zen de Nagasáqui, os seus restos mortais foram depositados no cemitério de Kodaiji na mesma cidade. O estatuto que alcançou é atestado pelos monumentos aos antepassados erguidos, posteriormente, pela família Sugimoto (apelido do seu genro), primeiro em Edo e, já em 1941, em Tóquio. Em ambos, o nome de Chum-joko Sensei é o primeiro dos antepassados listados.
5- Os ecos
Em 1966, saiu no Japão, ligado à história de Cristóvão Ferreira, o romance Chinmoku (Silêncio) de Shusako Endo (1923-1996), um japonês católico, que no mesmo ano receberia o prestigiado prémio literário Tanizaki, romance que seria publicado em várias línguas, incluindo o português[6]. O Silêncio centra-se na personagem de Sebastião Rodrigues, baseada na figura histórica de Giuseppe Chiara, um dos elementos do Segundo Grupo Rubino, um jesuíta que entra no Japão em busca de Cristóvão Ferreira, procurando descobrir as razões que o levaram a renegar a sua fé.
O sucesso alcançado por este livro levou outros autores a fazerem adaptações: filme com o mesmo título saído em 1971, realizado por Masahiro Shinoda; ópera do compositor e poeta Teizo Matsunura; e sinfonia, composta em 2002, pelo músico escocês James MacMillan. É esperada já há alguns anos uma nova adaptação de Silêncio ao cinema, pelo realizador americano Martin Scorsese[7]. No entanto, em 1996, o cineasta português João Mário Grilo dirigiu Os Olhos da Ásia, filme baseado na apostasia de Cristóvão Ferreira e na história dos quatro jovens que integram a chamada embaixada do Japão à Europa. O filme termina com um paralelismo entre Julião Nakaura, que morre pela fé na fossa, e Ferreira, que a abjura.
Mais recentemente, em 2003, o romancista francês Jacques Keriguy publicou L’Agonie[8], cuja ação abrange exclusivamente os cinco dias em que Cristóvão Ferreira foi submetido à tortura da fossa. Trata-se de uma narrativa extremamente bem fundamentada sob o ponto de vista histórico. Através de uma segunda pessoa que se dirige interiormente a Cristóvão Ferreira, são revisitadas as etapas fundamentais da sua vida de missionário, que o levam a consciencializar-se dos excessos e erros cometidos, da hipocrisia de certas práticas, das dúvidas e interrogações que o atormentaram[9].
A partir do último quartel do século XVII os japoneses fecharam-se completamente ao mundo até quase 250 anos depois, quando, forçados pelas potencias ocidentais, nomeadamente a Inglaterra, tiveram de abrir o país ao comércio internacional. Quando, em 1863, chegaram a Nagasáqui os primeiros cristãos desta nova era, foram recebidos por um grupo de japoneses que recitavam uma oração. Apesar do longo período que decorrera e de todas as perseguições, mesmo escondido, o cristianismo tinha sobrevivido. Estima-se que hoje existam uns 500 mil católicos no Japão, um país com quase 130 milhões de habitantes. De acordo com algumas vozes, não fora a perseguição do século XVII, o Japão seria hoje mais católico do que as Filipinas.
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Notas:
[1] Em Macau viveu também Camões, tendo sido aí que teve o único emprego que se lhe conhece: Provedor dos Defuntos.
[2] George Elison, “Deus Destroyed. The Image of Christianity in Early Modern Japan”, Harvard University Center Asia, 1998, p. 208.
[4] Após cada capítulo, Mukay Gensho faz um comentário crítico, melhor dizendo, reage às teorias expostas de uma forma que se resume “a uma recusa dos pressupostos filosóficos ocidentais e a uma concordância, algo contrafeita, com os estritos resultados científicos”. In “O Kenkon Bensetsu e a receção da cosmologia ocidental no Japão do séc. XVII”, Revista Portuguesa de Filosofia, t. 54, fasc. 2 (abril-junho), Humberto Leitão e José Miguel Pinto dos Santos.
[5] George Elison, ob. cit., p. 209 e 448 (notas 67-68).
[6] Shusako Endo, “O Silêncio”, 1990, Edições D. Quixote. Há outra edição de 1995, com tradução de José David Antunes e Teolinda Gersão. (Esta é a informação que retiramos do artigo, mencionado na nota 8, de Maria Augusta Lima Cruz. No entanto, a edição que temos é a 2ª edição da D. Quixote, de 2010, com tradução de José David Antunes, a partir da versão inglesa de William Johnston).
[9] Como nota final, é muito importante salientar que este artigo se baseia completamente num outro, publicado pela Editora Húmus, da Universidade do Minho, em 2013, e integrado no livro “Fernão Mendes Pinto e a Projeção de Portugal no Mundo”. O título do artigo em causa é “Os Caminhos Malditos da Projeção de Portugal no Mundo: o Caso de Cristóvão Ferreira” e a autora é Maria Augusta Lima Cruz. A qualidade desse artigo é insuperável, quer pela forma, quer pelo conteúdo. Fica aqui registado o meu pedido de desculpas à autora por ter usado muitas vezes, mesmo sem querer, palavras suas, que, por serem tão apropriadas, não consegui substituir. O mérito que este artigo possa ter é, pois, todo dela. Uma última palavra para dizer que, de acordo com Maria Augusta Lima Cruz, este seu artigo se baseia no “estudo mais fundamentado e exaustivo sobre a vida de Cristóvão Ferreira”: “The Case of Christovao Ferreira”, Monumenta Niponnica (Sophia University), vol. 29, nº 1, pp. 1-54, de Hubert Cieslik, S.J.
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A nossa edição:
Virgínia Soares Pereira (coordenadora), Fernão Mendes Pinto e a Projeção de Portugal no Mundo, Editora Húmus, 1ª edição, V.N. Famalicão, 2013.
Saramago, como todos os radicais, era um pessimista militante que queria salvar o mundo.
Se fosse vivo, completaria hoje 92 anos o aclamado escritor português, vencedor do Nobel da Literatura de 1998, José Saramago. Muito apreciado, não apenas pelos livros que escreveu, mas também pelos ideais políticos, o pensamento de Saramago tem sido dissecado, em posts, nas redes sociais: as críticas ao sistema capitalista e à globalização; a defesa dos mais desfavorecidos; a denúncia das prepotências das grandes potências, sobretudo da grande potência EUA; a indignação perante as injustiças; a “guerra” contra a Igreja; a militância comunista; etc. Para além disto, que penso ser o mais conhecido, em larga medida devido à grande divulgação das ideias de Saramago pela comunicação social, existem também os livros que escreveu1. Sobre estes, a minha opinião não é certamente a mais credenciada, embora não reconheça em José Saramago o brilhantismo que, para mim, alcançaram escritores como Eça de Queirós, Aquilino Ribeiro, Machado de Assis ou Guimarães Rosa, só para referir nomes de prosadores de língua portuguesa. (Deixemos os poetas fora disto).
Saramago teve, porém, o mérito de criar temas e estilo, e soube desenvolvê-los. Trabalhou incansavelmente para isso. O seu virtuosismo resulta da disciplina e do trabalho árduo, minucioso, inventariado, obsessivo, não tanto do talento inato. Saramago viveu para construir um mito. A prova disto é a sua obra tardia, após o 55 anos, fruto de toda uma maturação. Não sou eu quem vai contestar o seu mérito, o seu valor artístico, o seu estatuto de eminente e consagrado escritor.
Porém, se a apreciação da obra é subjetiva, a par dela Saramago construiu uma imagem pessoal – a do homem político – essa sim, bem mais objetiva. E tenho para mim que não foi tanto o político que serviu a obra, mas muito mais a obra que serviu o político. Notoriamente, este usou o prestígio angariado com aquela em prol da construção do mito do lutador social. Do ponto de vista teórico, a luta de Saramago não foi contra uma qualquer visão da sociedade, contra uma ideologia específica. A luta de Saramago foi contra toda uma civilização – afinal, aquela na qual ele próprio nasceu, viveu e morreu.
Mas, afinal, em que baseava Saramago a sua luta? Supostamente numa moralidade superior: a sua. José foi um moralista, sem dúvida, um dos maiores do início deste século. Como a maior parte dos moralistas, porém, a sua moral era bastante duvidosa. Numa entrevista, justificou o saneamento de vinte e dois jornalistas, quando era diretor-adjunto do “Diário de Notícias”, como uma decisão coletiva, colegial, na qual não teve qualquer responsabilidade particular2. Não seria preciso procurarmos muito até encontrarmos alguém que assumisse toda a responsabilidade num caso semelhante – a responsabilidade que José Saramago enjeitou. Na verdade, muitos cidadãos comuns seriam capazes de o fazer. A posição rígida de Saramago e a sua incapacidade de reconhecer um erro, constituem uma prova de que a moralidade, de facto, não se apregoa, pratica-se. E quanto mais se apregoa, menos se pratica e vice-versa.
Pouco antes de escrever este artigo, assisti ao filme “José & Pilar”, de Miguel Gonçalves Mendes. Um filme interessante mas tristíssimo, na verdade, tétrico, que retrata a vida de um homem em seu estádio final – sem esperança, sem alegria, nas suas próprias palavras, “sem tempo” – um homem totalmente dependente de uma mulher. Isto sobrepõe-se, surpreendentemente, ao que seria expectável, até pelo título da película, e de que não se pode duvidar – o amor entre Pilar e José. Aquela foi – e continua a ser através da sua qualidade de Presidente3 da Fundação Saramago – a eterna secretária deste. Numa passagem do filme, antes ainda de ficar doente, Saramago conta que a mulher uma vez lhe perguntou o que deveria fazer no futuro, ao que ele respondeu, sem hesitar: “continuar-me”. Noutra, ainda, vê-se Pilar abrindo cartas, anunciando remetentes e assuntos a Saramago. Uma delas era do Dalai-Lama, que convidava o escritor para uma comissão de honra. Este comentou que não gostava do líder budista – e passou-se à carta seguinte.
Antes de Pilar, Saramago viveu com outras mulheres, como se sabe. Uma delas, Isabel da Nóbrega (ainda viva), era já escritora4 quando Saramago nem sequer se aventurara na ficção. Foi ela quem sugeriu o nome de Blimunda para a protagonista de Memorial do Convento5 e foi nela que o escritor se inspirou para a referida personagem. De tal forma que lhe dedicou a obra, escrevendo: “À Isabel, porque nada pede ou repete, porque tudo cria e renova”. Em edição posterior, porém, já separado da escritora, haveria de apagar a dedicatória, numa atitude estalinista, típica da sua personalidade.
Nada disto parece surpreendente, sobretudo se falamos de alguém que, além de não gostar do Dalai-Lama, era também um crítico severo da humanidade. Humanidade exemplarmente retratada, em suas contradições, na frase que o próprio Saramago produziu numa entrevista, em 2003, ao programa de televisão brasileiro, Roda Viva: “Sou capaz de perdoar, mas também sou capaz de um eterno rancor!”
Ao contrário da maioria dos meus concidadãos, não gosto do discurso político (e moral) de Saramago. Gostaria de citar alguns nomes de diversificadas personalidades contemporâneas de Saramago – Karl Popper, Nelson Mandela, Tenzin Gyatso, José Mujica, Jorge Mario Bergoglio, e (o portuguesíssimo e brasileiríssimo) Agostinho da Silva – cujos pensamento e ação estão nos antípodas do pessimismo de José Saramago. Admiro-as por uma razão bem simples: suas vidas inspiram os mais novos. E a transmissão de esperança e otimismo constitui, essa sim, uma obrigação moral – talvez a maior – que temos, todos, relativamente às gerações vindouras.
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Notas:
1Eis a pequena lista dos (cinco) livros completos que li de Saramago. Memorial do Convento, História do Cerco de Lisboa, Viagem a Portugal, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Ensaio sobre a Cegueira.
2Um discurso inflamado de Saramago, num plenário que antecedeu a votação sobre a expulsão dos vinte e dois trabalhadores, influenciou claramente o sentido de voto, dado o prestígio que o diretor-adjunto gozava; e, no dia da votação, o próprio Saramago votou pela expulsão.
3Pilar del Rio rejeita o termo “presidente” e, tal como Dilma Rousseff, afirma-se “presidenta”.
4Escritora cuja obra vale a pena revisitar. Publicou romances, contos, peças de teatro e crónicas diversas. O seu romance mais conhecido é Viver com os Outros, de 1964.
Do sul de Portugal é facílimo dar um salta à Andaluzia, ali mesmo ao lado, e conhecer belas cidades como Huelva, Sevilha, Cádiz, Málaga, etc. Nesta pequena viagem de três dias optamos por duas cidades espanholas, Córdoba e Granada, e uma do Reino Unido – um verdadeiro espinho cravado no corpo de Espanha – Gibraltar.
Algo ressalta, desde logo, quando se termina uma viagem por estes três lugares, geograficamente bem próximos: o seu passado árabe. De facto, Córdoba foi no século X sede do esplendoroso califado Omíada, Granada foi o último reduto árabe na Península Ibérica, e Gibraltar foi o lugar onde, em 711, o berbere Tariq ben Ziad desembarcou com sua tropas e abriu caminho para os árabes conquistarem a Ibéria. São, por isso, cidades não apenas históricas, mas também carregadas de simbolismo.
Pormenor de uma porta, em Córdoba.
Em Córdoba visitámos a Judiaria, a Mesquita-Catedral, a Alcazar dos reis cristãos, a ponte romana, a rua das Flores e a estátua de Maimónides. Este é o nome grego do rabino, professor, mestre, filósofo e médico judaico, Moshe Ben Maimon. A sua vasta obra, ainda hoje estudada e comentada, teve e continua a ter um impacto tão importante na religião judaica que ficou célebre o epitáfio medieval que dizia: “Desde Moisés (da Bíblia) até Moisés (Maimónides) não houve ninguém como Moisés”1
Por seu turno, Granada é uma cidade maravilhosa. O bairro antigo e árabe, chamado Albaicín, é encantador. Subindo-o, desde o centro da cidade, pode observar-se, na colina oposta, tendo por trás a Serra Nevada, a célebre Alhambra, que inclui um castelo cristão, um complexo palaciano e fortaleza de origem árabe, da dinastia Nasrida, e ainda jardins e hortas circundantes, a que chamam Generalife.
Azulejo do palácio árabe de Alhambra, em Granada.
Em Albaicín, a comparação com Alfama é quase inevitável. E, lamentavelmente para nós, Alfama fica a perder. Albaicín é muito mais limpo e preservado. As suas casas com pátios, interiores ou exteriores, sempre floridos, são muitas vezes autênticos miradouros de onde os olhos pousam e repousam sobre a cidade. Claro que o pequeno rio Darro que corre entre as colinas de Alhambra e Albaicín não tem a grandiosidade do Tejo. Mas só talvez se um dia Alfama se tornar património mundial, a gente possa aqui viver com o orgulho que se sente em Granada.
Por fim, Gibraltar: um daqueles lugares que fascinam geólogos, físicos e outros cientistas: uma montanha de rocha calcária elevada do fundo do mar pelas forças descomunais da Natureza. Gibraltar pertence ao Reino Unido desde 1713, ano em que os espanhóis cederam o território à Inglaterra, a título perpétuo, após a Guerra da Sucessão.
Pormenor de coluna no palácio árabe de Alhambra, em Granada.
Subir o rochedo de Gibraltar não deixa de ser uma aventura, mesmo que o façamos de carro, como foi o nosso caso. A estrada é estreita e íngreme, e o esforço a que obrigam os troços que têm de ser feitos a pé é compensado com vistas deslumbrantes em todas as direções, destacando-se as montanhas do norte de África (o Atlas) que se impõem a Sul. Pelo caminho vêem-se famílias inteiras de macacos da berberia, tão habituados aos turistas, que chegam a posar para as fotografias. Como o nome indica, foram aqui introduzidos pelos berberes e são hoje protegidos pelo governo local.2
Neste percurso ascendente – que é a principal atração turística do rochedo – podem visitar-se grutas, castelos e monumentos, mas o mais impressionante são sem dúvida os túneis cavados na rocha pelos britânicos, aquando do grande cerco feito pela Espanha (1779-1883) e também durante a II Guerra Mundial. Um dos túneis corta o rochedo de sul para norte, tendo pelo meio aberturas que deixam passar apenas o olhar humano (por vezes ajudado por binóculos) e os canos dos canhões. Dali é possível controlar o território espanhol, a baía de Algeciras e o próprio Mediterrâneo.
Gibraltar. Ao fundo, África.
Gibraltar e o monte Musa, em África, constituíam na Antiguidade as chamadas Colunas de Hércules. Entre elas ficava uma porta para o desconhecido3, – uma passagem que liga o Mediterrâneo ao Atlântico e onde passa hoje um navio a cada seis minutos. Não é difícil calcular a importância estratégica de Gibraltar. Nem surpreende que tanto o Reino Unido quanto os gibraltinos não queiram abrir mão deste simbólico território.
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Notas:
1“Raízes dos Judeus em Portugal”, Inácio Steinhardt.
2De acordo com a lenda, o Reino Unido perderá Gibraltar quando o último macaco desaparecer. Não admira, por isso, que os macacos sejam protegidos.
3De facto, como o próprio nome indica, o Mediterrâneo era o centro do mundo. Para além, ficava o desconhecido.
Visitar Casapueblo, em Punta Ballena, no Uruguai, é uma extraordinária surpresa, comparável ao que sentimos na oficina de Francisco Brennand, em Recife, ou no espaço onde se situa a Sagrada Família, de Gaudí, em Barcelona. Casapueblo é um conjunto habitacional, construído numa encosta, fronteira ao Rio da Prata, sob orientação de Carlos Páez Vilaró. Hoje o conjunto abriga um hotel, um museu com obras daquele artista plástico, escritor, compositor e cineasta, e a casa onde ele vivia. Vilaró faleceu em fevereiro deste ano, com 90 anos, mas antes conheceu o mundo. Era um viajante assumido e consagrado.
Nascido em Montevideo, no bairro de Los Pocitos, passou parte da infância brincando nas areias do rio da Prata, sendo aí que pensou pela primeira vez cruzá-lo e chegar a Buenos Aires. E foi ainda nesse bairro, embora numa casa mais no interior, na rua Santiago Vásquez (para onde a família se havia mudado, devido às atividades políticas do pai) que terá nascido a obsessão de Carlos pelo Sol, ao vê-lo representado na primeira bandeira do Partido Agrário, bordada por sua mãe, Rosita Vilaró, numa máquina Singer. Partido Agrário fundado por seu pai, que se demitiu do Partido Nacional, para lutar pela gente do campo. O sol seria para sempre elemento essencial na arte de Carlos Vilaró.
Os telheiros são construídos com canas de pesca.
Outro episódio interessante ocorreu já na adolescência, quando mais uma vez devido à atividade política do pai, a família se mudara para o bairro El Cordón. Carlos Páez deparou-se com uma empregada negra em casa de um amigo, onde costumavam brincar. O fascínio foi imediato e, desde aí, ele se interessaria para sempre pelas coisas de África, pelos negros e sua cultura. Mais tarde, nos anos sessenta do século XX, Vilaró se embrenharia pela África – Libéria, Camarões, Gabão, Congo, Quénia – e foi no Gabão, em Lambaréné, que conheceu e ficou amigo do doutor Albert Schweitzer[1]. Já no Quénia, pintou um mural no palácio do presidente Fulbert Youlú. Pintar em África enriqueceu-lhe a experiência e excitou-lhe a imaginação.
Antes de se mudarem definitivamente para a casa que estavam construindo em Nuevo Malvín, ainda em Montevideo, os Páez Vilaró (pai, mãe e três filhos) habitaram em outros locais, e haveria de ser na praia del Buceo que Carlos faria os seus primeiros rabiscos, desenhando, em forma de caricatura, os pescadores. Os seus desenhos tinham sucesso pois os pescadores pagavam-lhe os desenhos com peixe e marisco. Com tudo isto, Carlos ia se desinteressando da escola… Em algumas visitas periódicas, nas férias, a uma estância (El Ombú) de seu tio Alfredo Puig, começou a desenhar também cenas campestres que o impressionavam.
Há quem encontre semelhanças com Santorini, na Grécia.
Até que chegou a hora de cruzar o Prata, chegar à Argentina e cumprir aquele sonho de criança. Um dia Carlos acercou-se da margem do Prata e tomando com a mão um pouco de espuma da água do rio, fez o sinal da cruz e pediu a Deus que o ajudasse a fazer a travessia. E assim tomou a decisão de se emancipar e trabalhar em Buenos Aires. Nessa época, ele não podia imaginar que aquele salto se prolongaria em outros mil, numa viagem permanente que seria toda a sua vida. Depois de se despedir de amigos, familiares e de uma menina muito especial que morava num bairro de lata e se chamava Valentina, acompanhado pela mãe, apanhou um táxi para o porto e, com o coração apertado e as lágrimas da mãe na lapela, embarcou. Estávamos em 1941 e Carlos tinha dezanove anos de idade.
Em Buenos Aires, seu primeiro trabalho foi numa fábrica de fósforos. Paralelamente, começou a desenvolver os primeiros esboços, que retratavam a atmosfera das gentes trabalhadoras. Não se interessou por estudar, agradava-lhe o desafio de avançar tateando, sem a ajuda de um mestre. Pouco tempo depois de iniciar o trabalho na fábrica de fósforos, conseguiu um novo emprego, melhor remunerado, numa empresa de artes gráficas, La Fabril, onde se imprimiam as melhores revistas argentinas. Isso foi muito útil, pois permitiu-lhe conhecer o trabalho dos melhores cartonistas daquela época, alguns dos quais se tornaram seus amigos. Começou a frequentar a animada vida noturna portenha. Comprou uma máquina de escrever e continuou desenhando.
O Sol é omnipresente na obra de Vilaró.
Os anos passaram até que uma doença aftosa, provocada pela ingestão de leite deteriorado, o obrigou a regressar a Montevideo. Na cidade natal fundou duas empresas de publicidade em cinema com seu irmão Miguel, até que um incêndio destruiu o armazém onde guardavam o material cinematográfico, mais de trezentos mil metros de fita. Continuou buscando temas para pintar, mas Montevideo não tinha a chama de Buenos Aires, a inspiração tardava, até que uma noite, por volta do Natal, um grupo de negros, cantando e dançando pelas ruas, o impressionou de tal forma que o seguiu até o local humilde onde habitava – o Mediomundo – e aí sentiu de forma redobrada a vontade de pintar, encontrando finalmente dentro de si motivo para o fazer. Seu entusiasmo foi tal, que invariavelmente levava os amigos que chegavam ao país a conhecerem Mediomundo[2]. Jorge Luis Borges, Joséphine Baker e Ernesto Sábato[3] estão entre eles. E foi ali que expôs suas obras de homenagem às delegações da UNESCO quando estas se reuniram, naquela época, em Montevideo.
Além disso, passou a integrar as atividades culturais daquela comunidade, sendo percussionista e chegando a compor várias músicas. Entrou assim a fundo no universo do candombe, um tipo de música que nasceu no seio das populações de escravos negros que foram transportadas para o Uruguai a partir do fim do século XVIII e que é, hoje, Património Cultural da Humanidade, reconhecido pela UNESCO.
Cúpulas que escrevem no céu.
Os candombes que compôs chegaram a ser interpretados e gravados por artistas de renome uruguaios. Foram figuras de comparsas[4] negras, percussionistas e bailarinas, que representou nos quadros de sua primeira exposição, em Punta del Este. Continuou a pintar em Mediomundo até que em meados dos anos cinquenta um empresário o procurou e convidou para expor em Buenos Aires, na maior galeria da Argentina. A exposição foi um sucesso e consagrou-o definitivamente como artista de craveira mundial.
A partir daí desenhou, pintou e expôs um pouco por todo o mundo. O branco fascinava-o e sempre queria preencher seus espaços com formas e cores que lhe povoavam a imaginação. Gostava de pintar pratos brancos quando visitava pela primeira vez um restaurante. Mas seu maior fascínio eram os muros brancos. Pintou murais em inúmeros países, no total, cerca de trezentos, em hotéis, hospitais, prisões, asilos, aeroportos, palácios presidenciais, casas particulares, muitos deles deteriorados ou destruídos por vandalismo ou por incúria das autoridades locais. Para além do Uruguay, pintou murais em países tão díspares como os EUA[5], Panamá, Japão, Ceilão, Quénia, Congo, Camarões, Tahití, Austrália, Argentina e Brasil[6], entre outros.
A foto foi tirada por Douglas Duncan, herói da Guerra da Coreia.
Conheceu e foi amigo de gente famosa, sobretudo ligada às artes, quer nos muitos países que visitou, quer em Casapueblo, Punta Ballena[7]. Um episódio interessante ocorreu quando visitou Picasso (1957), em Villefranche-sur-Mer, na França. Vilaró tomara contacto com vinte sete peças de Picasso (vasos e pratos), em cerâmica, numa exposição em Montevideo. Quando se encontraram falou a Picasso sobre a excelente impressão que essas peças lhe tinham causado, mas que não pôde comprar nem uma, dado o valor elevadíssimo das mesmas. Picasso quis saber de qual peça ele tinha gostado mais.
– Todas, don Pablo!
– Tens preferência por alguma em especial?
– Na verdade, comprá-las-ia todas, se pudesse – respondeu Vilaró.
Picasso pegou no telefone, ligou para alguém e disse: “Estou aqui com Páez Vilaró, um pintor do Uruguai… Deve estar louco, pois gosta de todas as minhas cerâmicas. Por favor, embale-as bem e remeta-as ao consulado uruguaio em Cannes”. Ainda atordoado pela surpresa, Vilaró percebeu que do outro lado da linha perguntavam qual o preço, ao que Picasso respondeu, de imediato: “Esqueça isso. É uma oferta minha”.
As cerâmicas estão hoje em Casapueblo e são (foram, para Páez Vilaró) o tesouro mais precioso de todas as peças ali expostas.
Monumento de homenagem aos pescadores.
Um dos traços mais marcantes da multifacetada personalidade de Vilaró era a abrangência de seus interesses e amizades. Longe de se dar apenas com pessoas famosas, ele era amigo de gente bem humilde, como já vimos pelo que se passou em Mediomundo. Outro grupo de onde extraiu vários amigos foram os pescadores. Quando chegou a Punta Ballena e se propôs ali construir a sua casa, o local não tinha qualquer edifício, apenas lá viviam alguns pescadores, bem perto do mar, em grutas que lhes serviam de habitação, sem água canalizada ou luz elétrica. Vilaró foi à gruta de um deles, o que ali se radicara há mais anos, chamado Abdón Ramos, para lhe pedir permissão para construir a casa. O pescador pensou que fosse alguma piada, não compreendia a intenção de Vilaró, pois era apenas um humilde habitante do lugar. Este respondeu-lhe que o fazia porque ele era “o verdadeiro dono da paisagem”. Ficaram amigos. Abdón Ramos e outros dois pescadores, Agustín e el Dios Verde, estavam presentes sempre que se inaugurava uma exposição em Casapueblo, em representação do povo do mar. Um pequeno monumento pode ser visto hoje, no local, em homenagem aos pescadores.
Ali sentimo-nos um pouco Vilaró.
A construção de Casapueblo realizou-se por fases. Primeiro havia que adquirir o terreno. Dado que não haviam lotes pequenos para compra e Vilaró não dispunha de dinheiro para comprar um terreno de quarenta hectares, o seu irmão Miguel teve a ideia de conseguir uma sociedade, a qual acabou por ser constituída por quinze argentinos e quinze uruguaios. A terra custava quatro pesos uruguaios por metro quadrado, o preço de um maço de cigarros. Primeiro foi construída uma casa de lata, com chapas de zinco presas a toros de madeira. Mais tarde, Carlos Vilaró ergueu uma casa de madeira (La Pionera) e ofereceu a casa de lata aos pescadores, que ficaram felizes. Porém, com o advento da ditadura militar, a casa de lata foi considerada refúgio de terroristas e as autoridades locais ordenaram a sua demolição em quarenta e oito horas.
A construção de La Pionera foi realizada à revelia das autoridades. O local era tão inacessível que nenhum inspetor se atrevia a visitá-lo. Cedo, porém, a casa se revelou pequena para armazenar todo o material de Vilaró e para acolher os amigos que frequentemente o visitavam. Era necessário algo maior, e assim, com a ajuda dos pescadores, começou a nascer Casapueblo, em torno de La Pionera, até que esta desapareceu por completo, engolida por aquela. Vilaró não era arquiteto e a construção não obedeceu a qualquer plano prévio. Ele e seus amigos pescadores ergueram Casapueblo respeitando os contornos que a natureza desenhou, utilizando materiais antigos, como portas e janelas, construindo de dentro para fora e do centro para a periferia, criando à medida que avançavam. Casapueblo tem um pouco de cada operário, sendo Vilaró um deles.
Aspeto do museu.
Face aos rigores climáticos próprios de um local aberto sobre o mar, as janelas e portas revelaram-se uma necessidade, sendo que Casapueblo deve possuir mais de quinhentos espaços que se abrem e fecham. A construção acompanha a encosta desde o topo até o mar e foi por isso necessário esculpir uma longa escadaria. Esse trabalho foi efetuado por um crioulo, especializado na construção de fornos de pão. A iluminação está incrustada na pele do cimento, evitando-se assim o uso de apliques. Durante o dia passa despercebida, integrada no corpo da casa, mas à noite transforma Casapueblo numa nave incandescente, dormitando na borda do oceano. Foram construídos cem respiradouros e vinte chaminés, e a água corre por intermináveis canalizações, alimentando oito bebedouros, cinco piscinas e as mais de trezentas saídas de bronze que permitem a rega dos jardins.
Cada terraço, varanda ou ruela tem uma identidade própria, e a alguns deles foram atribuídos nomes, como John Lennon, Mario Benedetti ou Pelé, entre muitos mais, mas, no seu conjunto, Casapueblo é, nas palavras do próprio Páez Vilaró, uma “homenagem ao sol e uma oferenda à mulher”. As cúpulas representam a sua maneira de “escrever contra o céu”. Todo o espaço é branco, puro, imaculado, como não podia deixar de ser e como o autor quis que fosse, desde o início. Belo e impactante, sobretudo em jornadas límpidas, luminosas, como foi o caso do dia da nossa visita, quando aquela harmoniosa massa branca reforça ainda mais o azul profundo do céu, e vice-versa. Existem mais de cinquenta quartos em todo aquele imenso espaço curvo, como o próprio universo, que inclui a residência de Vilaró, o museu e um hotel.
O hotel.
A vida de Carlos Páez Vilaró foi, pois, aventurosa, mas não apenas plena de venturas[8]. Os filhos de seu primeiro casamento, durante toda a infância, raramente viam um pai em constantes viagens e empreendimentos; o primeiro filho de seu terceiro casamento, foi alvo de uma disputa sobre a paternidade, provocada pelo ex-marido da então sua futura mulher, um jovem e poderoso empresário de Buenos Aires, que ficou com a custódia da criança durante mais de quinze anos, até a paternidade ser finalmente concedida por meios legais a Vilaró[9]; e, finalmente, o seu filho Carlos Miguel foi um dos passageiros (e um dos dezasseis sobreviventes) do avião uruguaio que se despenhou na cordilheira dos Andes, num acidente que ficou conhecido como a “Tragédia dos Andes”, em 1972[10]. Partiu de imediato para o Chile, mas teve de passar por tempos muito difíceis, pois os últimos sobreviventes, entre os quais estava seu filho, só foram resgatados setenta e dois dias depois.
Podemos encontrar muito do que foram as vida e obra de Páez Vilaró espelhado em Casapueblo. A sua arte tem alguma coisa de pop art, mas é mais do que isso, até porque lhe é anterior. Vilaró apelidou-a de Plac-art, “uma criação que escapa às linhas tradicionais para entrar num mundo libertado, explodindo em luzes, sons, cor e objetos em movimento”. É por isso que é imprescindível conhecê-la, em Casapueblo, nem que seja por uma vez.
Carlos Páez Vilaró.
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A nossa edição:
Carlos Páez Vilaró, Posdata, Autobiografia, Prisa Ediciones, 2012, Montevideo,Uruguay.
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Notas:
[1] Teólogo, filósofo e músico alsaciano (na época de seu nascimento a Alsácia fazia parte do Império Alemão, mas hoje faz parte da França), iniciou já depois dos trinta anos o curso de medicina e após concluí-lo casou e partiu para África, tendo montado em Lambaréné, no Gabão, num ambiente inóspito, um hospital que inicialmente funcionou num galinheiro. Preso durante a guerra, voltaria a Lambaréné, onde ergueu um novo hospital e viveu até o fim. Foi autor de várias obras importantes e laureado com o Prémio Nobel da Paz, em 1952 (1875-1965).
[2] Mediomundo era um grande edifício retangular, de dois andares, com quarenta habitações em torno de um grande pátio interior. Tinha ainda um cisterna de água, trinta e dois lavadouros e duas casas de banho. Foi projetado por Alejandro Canstatt e inaugurado em 1885. Era conhecido como Conventillo de Risso e só depois de demolido, em dezembro de 1978, passaram a chamar-lhe Mediomundo. Situava-se na rua Cuareim, hoje, Zelmar Michelini, em Montevideo, Uruguay. Em Lisboa existiram edifícios do género. Lembro-me, por exemplo, do Convento das Bernardas, no bairro da Madragoa, onde habitavam muitas famílias de baixo extrato social.
[3] Evidentemente, toda a gente sabe quem foi o grande escritor argentino Jorge Luís Borges; Josephine Baker foi uma dançarina norte-americana, naturalizada francesa, que participou em vários filmes; Ernesto Sábato foi igualmente um grande escritor argentino, que morreu em 2011, com noventa e nove anos de idade, dois meses antes de completar um século de vida.
[4] Comparsa é um grupo de tocadores e bailarinos, uma trupe, essencialmente de percussão, que sai atuando pelas ruas, sobretudo no Carnaval.
[5] Um dos murais mais interessantes pintado por Vilaró foi num asilo para idosos latinos, em Washington. Chamou-lhe “Mural Infinito”. Os anciãos puderam pintar o mural com ele e continuar todos os dias, alterando-o e recriando-o. De acordo com Vilaró, este foi o mural em que obteve maior prazer.
[6] Hotel Delfim, em Guarajá; Yate Club, em Florianópolis; Hotel Casacolina, em Búzios; Hotel Hilton e Edifício Scarpa, em São Paulo.
[7] Eis algumas das personalidades com quem conviveu, para além dos já citados no texto: Astor Piazzola, Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer, Fidel Castro, Che Guevara, Peron, Quinquela Martín, Brigitte Bardot, Lech Walesa, Plácido Domingo, Andy Wharol, Aristóteles Onassis, Pablo Neruda, Eduardo Galeano. Entre os convidados que recebia em Casapueblo, contam-se Henry Ford, Vinicius de Moraes, Omar Shariff, Robert de Niro, Mercedes Sosa, João Goulart, Bo Derek, Tony Curtis e Kurt Jurgens, entre muitos outros. Os convidados sentavam-se sempre nos lugares de onde se avistava o mar, em torno de uma velha mesa que tinha à cabeceira, desde o início da construção de Casapueblo, uma estátua africana de madeira, representando uma mãe negra.
[8] De acordo com as palavras do próprio Vilaró, suas mãos “acariciaram e pintaram corpos de mulheres de todas as raças”.
[9] Vilaró foi casado três vezes e teve seis filhos, três argentinos e três uruguaios.
[10] Este acidente foi muito falado na época. Ao fim de alguns dias as buscas foram suspensas e os passageiros dados como mortos. Estes tinham um pequeno rádio e souberam da suspensão das buscas através das notícias, o que aumentou ainda mais o seu desespero. Logo depois reuniram-se e tomaram a decisão de se alimentarem dos corpos dos companheiros que haviam morrido. Alguns passageiros morreram logo na hora do acidente (caso do piloto) e outros foram morrendo ao longo do tempo. De um total de 45 sobreviveram 16. Só passados mais de dois meses dois destes conseguiram chegar a uma zona onde se encontravam outros seres humanos e assim dar o alerta para que os restantes fossem salvos.