A aldeia de Zibreira, hoje, terra natal de Cristóvão Ferreira.
1- A primeira vida: Cristóvão Ferreira.
Cristóvão Ferreira nasceu por volta de 1580, em Zibreira, concelho de Torres Vedras. Ingressou na Companhia de Jesus com 16 anos de idade, em Coimbra, onde tomou os primeiros votos em 27 de dezembro de 1598, ingressando no Curso de Artes, a primeira etapa da sua longa carreira jesuítica.
Cristóvão Ferreira tinha uma forte vontade de embarcar para a Ásia, motivado pelas notícias de conversão de muitos asiáticos à fé cristã, com especial destaque para os japoneses. Assim, em 1600, Cristovão interrompe os estudos e parte para o Oriente, acompanhado de vinte companheiros jesuítas. Sabe-se que passou por Goa e que chegou a Macau em fins de 1600 ou inícios de 1601. Macau era na época o centro de irradiação e de acolhimento de missionários e o mais importante foco das missões no Extremo Oriente[1]. Ali, no Colégio da Madre de Deus, ele prosseguiu os seus estudos em Filosofia e em Teologia, tendo sido ordenado padre no final de 1608. Completava assim o cursus honorum destinado a padres professos que faziam os quatro votos: de pobreza, castidade, obediência à Ordem e obediência ao Papa.
Ainda em Macau, Cristóvão Ferreira adquire os conhecimentos básicos de língua japonesa e familiariza-se com os costumes e cultura da sociedade onde iria missionar: havia muitos japoneses a residir em Macau ou de passagem pelo território, além dos estudantes nipónicos que frequentavam o colégio. Em 1609 embarca para o Japão, tendo ali chegado em 29 de junho do mesmo ano. Nesta altura, Cristóvão Ferreira teria cerca de 29 anos e iniciava a etapa da vida para a qual se preparara – o trabalho de missionário no terreno. No entanto, sem saber, ele fazia a sua viagem definitiva, pois não sairia do Japão até morrer, 41 anos depois.
O seu trabalho de missionação deu-se em condições cada vez mais difíceis. As boas perspetivas que os primeiros missionários encontraram – com destaque para Francisco Xavier – não se verificaram mais, e a situação vinha-se deteriorando à medida que a reunificação do Japão se tornava efetiva, graças à ação de três grandes chefes políticos e militares: Oda Nobunaga, Toyotomi Hideyoshi e Tokugawa Yeyasu. Este último foi o fundador do xogunato Tokugawa ou de Edo (atual Tóquio), que dominou o arquipélago até 1868. O cristianismo foi considerado uma ameaça para este processo de unificação política, religiosa e ideológica. Os padres cristãos foram considerados suspeitos de estarem ao serviço de um rei estrangeiro (fosse de Portugal ou de Espanha) que teria como intenção última a conquista do território nipónico.
Assim, ainda em 1587, Toyotomi Hideyoshi promulgou o primeiro decreto anticristão, mas este não teve grande efeito face aos interesses comerciais em jogo, uma vez que os governantes japoneses não queriam perder um negócio extremamente lucrativo, cujos principais protagonistas eram os portugueses, e os jesuítas os intérpretes e intermediários que facilitavam os contactos entre as partes. Mas a ameaça continuava latente e, dez anos depois, deu-se a primeira execução coletiva. Foram condenados à morte por crucificação e executados, em Nagasáqui, vinte e seis cristãos. Além da ameaça que representava o processo de unificação japonesa, começaram a surgir também divisões entre os missionários das várias ordens religiosas no terreno, como era o caso de dominicanos, franciscanos, agostinhos e mendicantes. A isto juntou-se a cobiça de espanhóis e, sobretudo, de holandeses, tendo estes sido os únicos autorizados a instalar uma feitoria em Hirado, em 1609. Os ingleses também apareceriam em 1613, mas retiraram-se em 1623.
Em 1610, Cristóvão Ferreira encontra-se no seminário de Arima, lecionando Latim e aprofundando os seus conhecimentos da língua japonesa. Dois anos depois, o dáimio da cidade ordena o fecho do seminário. A maior parte dos missionários residentes refugia-se em Nagasáqui. Cristóvão, porém, segue para Quioto, provavelmente para substituir o padre Carlo Spinola, destacado para Nagasáqui.
Entretanto as medidas dos governantes japoneses vão completando o cerco aos missionários, o qual se fecha com a publicação de um édito, em 27 de janeiro de 1614. Através dele se ordenava a concentração de todos os missionários no porto de Nagasáqui, para que abandonassem o Japão, e a destruição de igrejas, capelas e casas de missionários; era também proibida a prática do cristianismo, bem como se obrigava cada japonês a inscrever-se num templo budista. Ao contrário das medidas anteriores, apenas implementadas em parte, este édito é rapidamente cumprido, dado que estavam reunidas as condições políticas e económicas para que tal acontecesse: por um lado, Tokugawa Ieyasu derrotara os opositores internos na batalha de Sekigahara, em 1600, e conquistara o título de xogum, reforçando sua autoridade pessoal, centralizando o poder em Edo (Tóquio); por outro lado, os portugueses já não eram necessários, nem os jesuítas, dado que holandeses e ingleses poderiam fazer o comércio com o exterior, sem os inconvenientes do proselitismo religioso dos lusitanos.
Os missionários, a maioria jesuítas e um punhado de franciscanos e dominicanos, são então reunidos no porto de Nagasáqui e deportados: uma parte para Macau e outra parte para Manila. Apesar disso, cerca de cinquenta mantiveram-se clandestinamente no território, e um deles foi Cristóvão Ferreira. A sua vida corria graves perigos dado que a perseguição aos cristãos se intensificou com uma lei de 1616, que determinava a condenação à morte dos que protegessem ou ocultassem os missionários cristãos. Davam-se prémios pecuniários para quem os denunciasse. Muitos foram mortos.
Cristóvão Ferreira viveu os dezanove anos seguintes na clandestinidade, usando disfarces, vivendo entre Quioto, Nagasáqui e Osaka. O seu trabalho e a dedicação reconhecida à causa cristã, guindaram-no à posição de vice-provincial do Japão, o que ocorreu em 23 de dezembro de 1632. Tinha a seu cargo a elaboração de relatórios anuais sobre a atividade da missão e também muitos relatórios sobre martírios. O texto mais conhecido e inflamado de um martírio foi o que escreveu (em 22 de março de 1632) sobre o jesuíta japonês Antonio Ishida, que resistiu a diversas torturas, entre 1629 e 1632, até ser morto na fogueira em setembro deste ano.
2- A fossa
Como vimos, a repressão aos cristãos intensificou-se, sobretudo a partir dos finais da década de 1620, coincidindo com o início do mandato do terceiro xogum, Tokugawa Iemitsu (1623-1651), tendo sido tomada a decisão de extirpar de vez o cristianismo. As autoridades nipónicas passaram a considerar os martírios um motivo para o aparecimento de novos cristãos, dado que punham a nu a enorme convicção e força dos missionários, e então decidiram apostar na apostasia. Refinaram as técnicas de tortura. A mais temida era a suspensão na fossa (ana-tsurushi), que foi aplicada pela primeira vez em julho de 1633. A vítima era pendurada de cabeça para baixo e esta quase tocava nos excrementos depositados numa fossa. O corpo era atado para que o sangue não descesse ao cérebro, e era feita uma ligeira incisão na têmpora como precaução, para que o sangue escoasse lentamente. Os gases da fossa funcionavam como uma parcial anestesia, tornando o sofrimento mais prolongado. A vítima só tinha possibilidade de salvar-se fazendo um sinal com uma das mãos, deixada livre para o efeito, mostrando assim que cedia às exigências dos torturadores.
Cristóvão Ferreira foi preso em setembro de 1633 e submetido à tortura da fossa, juntamente com mais sete padres e noviços, em 18 de outubro do mesmo ano. Entre eles encontravam-se figuras proeminentes das missões, como António de Souza, superior dos dominicanos, e o padre jesuíta japonês Julião Nakaura, um dos integrantes da embaixada que foi de Kyushu a Roma (1582-1590), a primeira a sair do Japão rumo à Europa. Todos os companheiros de suplício de Cristóvão pereceram. Julião Nakaura resistiu três dias; outro aguentou nove dias; mas Cristóvão Ferreira, ao fim de cinco horas de tortura, apostatou.
Tendo em conta o percurso de Cristóvão Ferreira – uma carreira jesuítica com mais de 37 anos, cerca de 19 dos quais na dura clandestinidade -, sabendo-se que o martírio era algo aceite quando não desejado pelos missionários e sendo certo que o próprio Cristóvão sabia que, mais cedo ou mais tarde, seria capturado e torturado, a sua rendição aparece aos olhos de todos, e talvez sobretudo dos próprios torturadores, como algo surpreendente. Mais surpreendente ainda depois dos relatórios sobre martírios que escreveu, onde exaltava o comportamento de muitos de seus confrades, que pereceram sem nunca renunciarem à sua fé. Além de que, um mês antes da sua apostasia, já no cárcere, referindo-se aos companheiros que estavam com ele, escrevera: “pela graça de Deus todos estão com muito ânimo e desejo, esperando por aquela hora ditosa”.
Após a rendição, provavelmente, seguiu-se o efumie, cerimónia pela qual os apóstatas tinham que pisar imagens da Virgem Maria ou de Jesus Cristo. O leque de interpretações possíveis sobre a apostasia de Cristóvão é tão vasto que não é lícito nem prudente apostar em qualquer uma delas. Certo, certo é que a notícia teve enorme impacto quer dentro quer fora do Japão.
3- Reações
Assim, para as autoridades japonesas, empenhadas na campanha anticristã, a apostasia de Cristóvão Ferreira representou uma importante vitória, pois ficava provado ser possível vergar os cristãos. Já para estes, a notícia representou um enorme abalo. A estupefação foi tal que chegaram notícias contraditórias a Macau.
Dali se escreveram cartas secretas a Cristóvão Ferreira, incitando-o a reparar a apostasia com o martírio; e dali partiram consecutivamente alguns jesuítas, com a intenção de encontrá-lo e movê-lo ao arrependimento. Foram praticamente missões suicidas, pois era sabido que dificilmente os seus membros poderiam escapar à captura e à morte. A primeira tentativa foi levada a cabo pelo padre Marcello Mastrilli, que desembarcou no Japão em 1637, sendo imediatamente aprisionado e, depois de três dias na fossa, degolado, sem ter conseguido encontrar Cristóvão Ferreira. Dois anos depois deu-se a segunda tentativa, desta feita através do padre Pedro Kibe, que morreria na fossa em julho de 1639. No interrogatório a que foi submetido em Edo esteve presente Cristóvão Ferreira, já na pele de Sawano Chuan.
A terceira e última tentativa, que se desenrolou em duas fases, foi liderada pelo padre Giovanni Antonio Rubino. O primeiro grupo concentrou-se em Manila e chegou ao Japão em agosto de 1642. Era constituído pelo próprio Rubino (daí ter sido designado por Primeiro Grupo Rubino) mais quatro padres jesuítas e quatro dógicos. Todos foram capturados rapidamente e condenados à fossa em 17 de março de 1643. Não se sabe ao certo se nos interrogatórios a que foram submetidos esteve presente Cristóvão Ferreira. O Segundo Grupo Rubino era constituído por dez membros, entre os quais os padres Pedro Marques, Alfonso Arroyo, Francesco Cassola e Giuseppe Chiara, e chegaram ao Japão em 27 de junho de 1643. Foram imediatamente presos e submetidos a longos interrogatórios na cidade de Edo. Cristóvão Ferreira (na verdade, já Sawano Chuan) esteve presente, admoestando os prisioneiros a renegarem a sua fé, o que todos fizeram, sendo que mais tarde Alfonso Arroyo revogou a apostasia. Por seu turno, Giuseppe Chiara tornou-se o segundo renegado mais famoso, após Cristóvão Ferreira, sob o nome japonês de Okamoto San’emon.
O fervor religioso e a incredulidade fizeram com que muitas notícias da reconversão de Cristóvão Ferreira, a maioria por vias indiretas e sinuosas, chegassem a circular entre os jesuítas. Uma delas, dois anos após a sua morte, em 1650, dava conta de que ele se havia reconvertido e morrido mártir, após três dias na fossa. Essas notícias chegaram a colher alguma aceitação e foram inclusivamente partilhadas por historiógrafos da Companhia de Jesus, como António Franco e Daniello Bartolli. Inclusive, já no século XX, o historiador jesuíta Josef Franz Shütte, após analisar a documentação disponível, chegou à conclusão de que Cristóvão Ferreira “morreu corajosamente pela fé de Cristo”.
4- A segunda vida: Sawano Chuan
As fontes mais fidedignas sobre a vida de Cristóvão Ferreira após a apostasia são de origem holandesa, sobretudo através dos diários dos responsáveis das feitorias holandesas de Hirado (até 1641) e de Deshima (a partir de 1641). Por volta de 1640, o xogum Tokugawa Iemitsu proibiu grande parte da atividade marítima e conduziu o Japão a um progressivo isolamento, vulgarmente designado por sakoku (país encadeado). As exceções a este corte com o exterior foram os mercadores holandeses (confinados desde 1641 à ilha artificial de Deshima), tendo-se mantido também o tráfico com os chineses; foram mantidas ainda relações, via Kagoshima e Tsushima, com os reinos de Ryuku e da Coreia.
É neste contexto de mudança que deve ser entendido o édito promulgado em 1639, o qual proibia os mercadores portugueses de traficarem com o Japão, significando na prática o seu banimento do território. Esta decisão seria tragicamente confirmada pelo destino da embaixada enviada de Macau, em 1640, apelando à revogação do édito e ao restabelecimento da viagem Macau-Nagasáqui. Dos 74 elementos desta expedição apenas 13 foram poupados para que relatassem o sucedido. Os restantes foram decapitados. É a partir deste período que existem bases mais sólidas sobre a vida de Chuan, que se ia aculturando, ao mesmo tempo que assistia a estes sucessos trágicos e tumultuosos.
Chuan permaneceu a maior parte da sua vida em Nagasáqui, sob as ordens de Inoue Chikugo no Kami Masashige (1585-1662), inspetor-geral da campanha anticristã, um inquisidor temível, que chegou a ser comparado a Adolf Eichmann[2], e que usou Chuan como intérprete, tendo-o enviado várias vezes à feitoria holandesa de Deshima. Convém dizer, nesta altura, que o português era a língua franca comercial do Extremo Oriente, utilizada por muitos japoneses, holandeses e ingleses nos seus contactos com os nativos. A partir da década de 1640, com a campanha anticristã apaziguada, Chuan tem tempo para se dedicar a atividades mais de acordo com os seus interesses.
Faz traduções, compilações e aperfeiçoa os conhecimentos de japonês, a ponto de ler o Taiheiki (épico escrito no final do século XIV) e outros clássicos japoneses. Escreve, em 1636, o pequeno tratado Kengiroku, no âmbito da propaganda anticristã do período Tokugawa, associando na obra o imperialismo europeu à atividade missionária. Refuta de forma virulenta o cristianismo, que considera pura invenção para enganar o povo. Considera a vida após a morte como um absurdo, bem como o inferno e o paraíso; nega a existência de um criador, dado que o universo sempre existiu; o juízo final é considerado um embuste, ridículo e escandaloso. O radicalismo de Chuan levou o filósofo Michel Onfray, já no século XXI, a considerar Cristóvão Ferreira/Sawano Chuan como “o quase primeiro ateu” da história da ateologia[3].
Sawano Chuan teve também um papel importante no processo de composição em japonês do tratado Kenkon Bensetsu (Exposição sobre os Céus e a Terra), na linha dos tradicionais Tratados da Esfera, e que conta com comentários críticos de Mukay Gensho (1609-1677)[4], um erudito neo-confucionista japonês. Ao que parece este tratado foi levado para o Japão por alguém do Grupo Rubino, talvez fosse até (segundo aventa José Miguel Pinto dos Santos) uma espécie de caderno de notas elaborado pelo próprio Giovanni Antonio Rubino, algo que se inseriria na linha dos comentários existentes na época, na sua maioria tendo como referência o Tratado da Esfera (De Sphaera Mundi, c. 1230), de Johannes de Sacrobosco. O papel de Sawano Chuan na composição parece ter sido apenas o de tradutor, o que não invalida que não tenha acrescentado interpretações próprias. Seja como for, o Kenkon Bensetsu foi dos livros mais lidos sobre cosmologia ocidental no Japão até finais do século XVIII, sendo esta afirmação confirmada pelo elevado número de cópias manuscritas conhecidas.
Chuan esteve ainda envolvido na elaboração de um tratado médico, Nanbanryu-geka hidensho (Tradição Secreta da Cirurgia dos Bárbaros de Sul). O único manuscrito conhecido refere o nome de Chuan, dando a entender ser ele o autor. Trata-se de uma obra que contém uma exposição sobre teoria humoral, seguida de prescrições para os vários tratamentos, uma farmacopeia e um glossário técnico[5]. No caso da autoria ser mesmo, como tudo indica, de Swano Chuan, os conhecimentos manifestados terão sido adquiridos após a apostasia, em contacto com a feitoria dos holandeses, pois aos jesuítas estava interdita a prática médica e a posse de livros da especialidade.
Em 3 ou 4 de novembro de 1650 Sawano Chuan morreu em Nagasáqui, com cerca de 70 anos de idade. Recebeu, de acordo com a tradição budista, o nome póstumo de Chum-joko Sensei. De acordo com os registos dos templos Zen de Nagasáqui, os seus restos mortais foram depositados no cemitério de Kodaiji na mesma cidade. O estatuto que alcançou é atestado pelos monumentos aos antepassados erguidos, posteriormente, pela família Sugimoto (apelido do seu genro), primeiro em Edo e, já em 1941, em Tóquio. Em ambos, o nome de Chum-joko Sensei é o primeiro dos antepassados listados.
5- Os ecos
Em 1966, saiu no Japão, ligado à história de Cristóvão Ferreira, o romance Chinmoku (Silêncio) de Shusako Endo (1923-1996), um japonês católico, que no mesmo ano receberia o prestigiado prémio literário Tanizaki, romance que seria publicado em várias línguas, incluindo o português[6]. O Silêncio centra-se na personagem de Sebastião Rodrigues, baseada na figura histórica de Giuseppe Chiara, um dos elementos do Segundo Grupo Rubino, um jesuíta que entra no Japão em busca de Cristóvão Ferreira, procurando descobrir as razões que o levaram a renegar a sua fé.
O sucesso alcançado por este livro levou outros autores a fazerem adaptações: filme com o mesmo título saído em 1971, realizado por Masahiro Shinoda; ópera do compositor e poeta Teizo Matsunura; e sinfonia, composta em 2002, pelo músico escocês James MacMillan. É esperada já há alguns anos uma nova adaptação de Silêncio ao cinema, pelo realizador americano Martin Scorsese[7]. No entanto, em 1996, o cineasta português João Mário Grilo dirigiu Os Olhos da Ásia, filme baseado na apostasia de Cristóvão Ferreira e na história dos quatro jovens que integram a chamada embaixada do Japão à Europa. O filme termina com um paralelismo entre Julião Nakaura, que morre pela fé na fossa, e Ferreira, que a abjura.
Mais recentemente, em 2003, o romancista francês Jacques Keriguy publicou L’Agonie[8], cuja ação abrange exclusivamente os cinco dias em que Cristóvão Ferreira foi submetido à tortura da fossa. Trata-se de uma narrativa extremamente bem fundamentada sob o ponto de vista histórico. Através de uma segunda pessoa que se dirige interiormente a Cristóvão Ferreira, são revisitadas as etapas fundamentais da sua vida de missionário, que o levam a consciencializar-se dos excessos e erros cometidos, da hipocrisia de certas práticas, das dúvidas e interrogações que o atormentaram[9].
A partir do último quartel do século XVII os japoneses fecharam-se completamente ao mundo até quase 250 anos depois, quando, forçados pelas potencias ocidentais, nomeadamente a Inglaterra, tiveram de abrir o país ao comércio internacional. Quando, em 1863, chegaram a Nagasáqui os primeiros cristãos desta nova era, foram recebidos por um grupo de japoneses que recitavam uma oração. Apesar do longo período que decorrera e de todas as perseguições, mesmo escondido, o cristianismo tinha sobrevivido. Estima-se que hoje existam uns 500 mil católicos no Japão, um país com quase 130 milhões de habitantes. De acordo com algumas vozes, não fora a perseguição do século XVII, o Japão seria hoje mais católico do que as Filipinas.
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Notas:
[1] Em Macau viveu também Camões, tendo sido aí que teve o único emprego que se lhe conhece: Provedor dos Defuntos.
[2] George Elison, “Deus Destroyed. The Image of Christianity in Early Modern Japan”, Harvard University Center Asia, 1998, p. 208.
[4] Após cada capítulo, Mukay Gensho faz um comentário crítico, melhor dizendo, reage às teorias expostas de uma forma que se resume “a uma recusa dos pressupostos filosóficos ocidentais e a uma concordância, algo contrafeita, com os estritos resultados científicos”. In “O Kenkon Bensetsu e a receção da cosmologia ocidental no Japão do séc. XVII”, Revista Portuguesa de Filosofia, t. 54, fasc. 2 (abril-junho), Humberto Leitão e José Miguel Pinto dos Santos.
[5] George Elison, ob. cit., p. 209 e 448 (notas 67-68).
[6] Shusako Endo, “O Silêncio”, 1990, Edições D. Quixote. Há outra edição de 1995, com tradução de José David Antunes e Teolinda Gersão. (Esta é a informação que retiramos do artigo, mencionado na nota 8, de Maria Augusta Lima Cruz. No entanto, a edição que temos é a 2ª edição da D. Quixote, de 2010, com tradução de José David Antunes, a partir da versão inglesa de William Johnston).
[9] Como nota final, é muito importante salientar que este artigo se baseia completamente num outro, publicado pela Editora Húmus, da Universidade do Minho, em 2013, e integrado no livro “Fernão Mendes Pinto e a Projeção de Portugal no Mundo”. O título do artigo em causa é “Os Caminhos Malditos da Projeção de Portugal no Mundo: o Caso de Cristóvão Ferreira” e a autora é Maria Augusta Lima Cruz. A qualidade desse artigo é insuperável, quer pela forma, quer pelo conteúdo. Fica aqui registado o meu pedido de desculpas à autora por ter usado muitas vezes, mesmo sem querer, palavras suas, que, por serem tão apropriadas, não consegui substituir. O mérito que este artigo possa ter é, pois, todo dela. Uma última palavra para dizer que, de acordo com Maria Augusta Lima Cruz, este seu artigo se baseia no “estudo mais fundamentado e exaustivo sobre a vida de Cristóvão Ferreira”: “The Case of Christovao Ferreira”, Monumenta Niponnica (Sophia University), vol. 29, nº 1, pp. 1-54, de Hubert Cieslik, S.J.
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A nossa edição:
Virgínia Soares Pereira (coordenadora), Fernão Mendes Pinto e a Projeção de Portugal no Mundo, Editora Húmus, 1ª edição, V.N. Famalicão, 2013.
A Ilha Dourada andava nas bocas do mundo. Para alcançá-la era necessário atravessar o longuíssimo e escarpado estreito de Überfluss, quase sempre assolado por ventos terríveis e correntes cruzadas que atiravam as embarcações contra as extremidades afiadas dos grandes rochedos. Para lá dos problemas com o temível estreito, os capitães dos navios, que sempre pareciam extremamente solidários em terra firme, transformavam-se durante as viagens nos piores piratas dos oceanos, e muitos marinheiros eram postos a ferros ou mortos – e outros, ainda, simplesmente atirados borda fora para servirem de alimento aos tubarões. A maioria dos navios afundava e não havia notícia de algum ter alcançado a célebre ilha, desde que o comandante Rizzo Artington dela dera conta.
A notícia que se espalhou foi a de que ali vivia um povo pacífico, próspero e feliz; não havia patrões, nem proprietários, nem capatazes; e também não havia conhecimento do dinheiro. O clima era generoso, a água puríssima, a terra fértil – e todos viviam em comunhão com a natureza-mãe. Além disso, o mais fantástico é que não existia, no seio da sociedade, lugar para o egoísmo, a avareza ou a simples ambição. Tudo o que cada um dos seus habitantes desejava era ser mais um, uma peça única e igual, do todo harmonioso e feliz.
O fascínio que a ilha provocava era enorme – embora muitos duvidassem da sua existência – e não diminuiu após a morte de Artington. Fizeram-se planos para uma viagem vitoriosa sobre ventos e correntes e marés, e a discussão sobre quem comandaria a armada foi longa e truculenta. Finalmente, um capitão se impôs como o mais capaz de conduzir uma armada de 140 navios. Seu nome era Joseph Hoffen – e o entusiasmo que a sua presença provocava era contagiante. A esquadra partiu num dia luminoso, sob um céu todo azul, e os primeiros dias de viagem foram de calmaria e paz. Na frente seguia o magnífico navio-almirante do capitão Hoffen, com 300 ocupantes, entre os quais os seus principais assessores e conselheiros; vinte navios fortemente armados e comandados por leais servidores seguiam logo atrás – entre o navio-almirante e os demais elementos do comboio.
Dezassete dias após a partida, atingiram o estreito de Überfluss. Um vento forte e endiabrado atingiu-os pela proa, como se o Adamastor soprasse do lado de lá da fresta, entre os rochedos gigantes. O ar tornou-se pesado como chumbo; do céu tombavam uma chuva cortante e o som de pedra rachando sob raios de fogo; as nuvens carregadas estavam tão perto que parecia, a todo o instante, irem despenhar-se sobre as embarcações. As águas estavam enlouquecidas, correndo em todos os sentidos, provocando oscilações inesperadas e bruscas nos navios, ameaçando quebrá-los ao meio; vinte foram atirados contra os rochedos sem que nenhum tripulante sobrevivesse; os restantes conseguiram aguentar até o dia seguinte, quando, subitamente, o vento amainou. Continuaram, muito lentamente, durante dez dias. O vento agora quase parara e os navios também; um bando de atobás acompanhava-os, curioso; o mar era um espelho onde se refletia a linha azul do céu, cortando a mancha escura das escarpas rochosas. Assim prosseguiram por 30 dias, avançando 120 milhas.
Entretanto, a água potável começou a escassear e a comida também. Era impossível escalar aquelas escarpas para procurar fosse o que fosse; começaram a ocorrer as primeiras mortes por doenças e má nutrição. Hoffen ordenou que os víveres de vinte embarcações fossem apreendidos, em nome da sobrevivência das restantes – e afundou-as em seguida com todos os que estavam a bordo.
Dias depois, chegaram a um ponto onde a escarpa a bombordo se abria num largo semicírculo e onde o sol entrava como o foco de uma lanterna colossal. As margens ali eram mais acessíveis, mas a vegetação era pobre, escassa e de pequeno porte. Hoffen mandou executar os tripulantes de mais trinta navios, lançou-os ao mar e aproveitou a madeira para construir as primeiras habitações daquele lugar, junto a uma nascente de água que haviam descoberto. Alguns dos seus mais próximos colaboradores começaram a discordar daquelas decisões, sobretudo da de ficar por ali, uma vez que o objetivo era chegar à Ilha Dourada. Hoffen prometeu que não se desviaria jamais desse caminho, mas asseverou que aquela era a única forma de prosseguirem. E mandou executar os críticos.
Depois deu ordens para que fossem abatidos mais 20 navios. Uma enorme paliçada foi construída em torno das habitações, e torres de vigia erguidas em pontos estratégicos. No interior viviam Hoffen e seus colaboradores mais diretos e do lado de fora, abandonados à sua sorte, os sobreviventes. A maioria destes morreu de fome e alguns foram executados por se revoltarem ou tentarem fugir. Entre eles, já ninguém falava da Ilha Dourada.
Os anos passaram e um dia Joseph Hoffen morreu de uma apoplexia. Os que ainda permaneciam vivos eram tão poucos que cabiam num único navio. Decidiram, então, regressar ao continente.
À chegada, a surpresa foi enorme para muitos, mas não para aqueles que nunca acreditaram que fosse possível chegar à ilha. A discussão reacendeu-se intensamente. Outras frotas – embora bem menores que a de Hoffen, e até navios isolados – partiram. Diz-se que uma delas atingiu uma pequena ilha onde as pessoas tentaram viver de forma semelhante ao que pensavam ser a vida na Ilha Dourada. Mas não foi conseguido um acordo entre todos, e acabaram por ali ficar, isolados do mundo, longe da civilização, da paz e da prosperidade prometidas.
Hoje, já quase não partem navios em busca da ilha paradisíaca: ninguém parece ter argumentos, carisma ou força para angariar uma frota adequada ao empreendimento. Ainda assim, muitos almejam alcançá-la, acreditando na versão de Rizzo Artington.
Para a maioria, porém, a Ilha Dourada é apenas um mito e, na realidade, nunca existiu.
Ao que parece, Raquel Varela é uma figura em voga neste triste Portugal de hoje (e de quase sempre). Num brilhante artigo publicado anteontem no seu blogue, ela fala-nos do povo português. O bom e o mau. Já ontem, no programa “Barca do Inferno”, que não costumo perder, Varela brindou-nos com mais uma de suas afirmações bombásticas. Disse ela, que o voto para as legislativas não é democrático; o que é democrático é o voto de braço no ar para as Comissões de Trabalhadores. Nada disto é novo, e não me surpreende que alguma rapaziada na casa dos vinte anos simpatize com Raquel Varela. Mas espanta-me que gente da minha geração, com experiência de vida, possa suportar afirmações deste calibre. Afirmações que incluem adjetivos como cobarde para classificar o povo do 24 de Abril de 1974[1]. Afirmações que revelam um espírito arrogante e profundamente reacionário e que, sinceramente, são tão ofensivas (e estúpidas), que chega a ser surpreendente que não provoquem maior riso ou indignação. Varela despreza com asco quem não pensa como ela (rima e é verdade). Varela, que não era nascida ainda em 25 de Abril de 74, estudou, leu e pesquisou umas coisas: e convenceu-se de que descobriu a verdade. Isso confere-lhe a legitimidade de produzir os juízos morais, simplistas, tão típicos dos extremistas fanáticos, e que culminam, sempre, numa divisão entre bons e maus. Trata-se, é claro, do mais puro e velho maniqueísmo – tão velho quanto o povo animalesco e deformado que Varela detesta e que, se pudesse, não hesitaria em extirpar.
Como extirparia, sem dúvida, o que é piroso, suburbano, fabricado por alfaiates de segunda e o que é esculpido com falos desmesurados…deformando o povo e os seus (dela, evidentemente) heróis. Não é, de facto, difícil imaginar esta educadora da classe operária como líder de um Movimento da Mão Erguida. (Desde, é claro, que a mão se mantivesse longe dela). É, aliás, estarrecedor o papel de Varela enquanto garante dos íntegros valores socialistas e operários, como se pode observar no artigo Urge “Guilhotinar” os Traidores[2], onde apresenta uma listagem dos ditos cujos – traidores (fura-greves). Como futura (e, felizmente, apenas hipotética) líder do proletariado no poder, Varela seria precisa e coerente na sua divisão do mundo entre maus e bons – como demonstrou no programa “Prós & Contras”, em 20 de maio de 2013, investindo contra um jovem de 16 anos, Martim Neves, que acabara de lançar a sua própria marca de roupa, um crime, e mais uma expressão do mundo mau.
É esta ilustre representante da “esquerda caviar”, Varela, a própria, que gosta de jantar em restaurantes caros e mostrar as fotos (que retirou depois da polémica gerada) no Facebook, aonde não vão certamente os seus queridos operários do braço no ar, quem vem dando algum brilho a este Portugal acinzentado; é ela, ainda, com sua verve, quem nos dá a receita adequada para sairmos da crise em que nos encontramos – não negociando com os credores, não pagando o que devemos, e mantendo o total controlo público sobre o setor bancário e financeiro para evitar a fuga de capitais – uma receita mais que infalível para sairmos diretamente de uma situação difícil para a completa miséria, num contraste absoluto e cómico com a caracterização de Varela para “socialismo”: liberdade e abundância; e é ela, finalmente, quem acha que o Estado tem obrigação de cuidar do povo e garantir que este tenha acesso ao Estado Social que sustenta, aliás, em impostos (saúde, educação, segurança social), alimentação e roupas, e todo o kit de sobrevivência acima do mínimo, porque a produtividade hoje permite isso, permite o decente; e cuidar, claro, que as pessoas vivem em lugares dignos e confortáveis. Confuso? Sim e não, apenas um tanto mal escrito, mas ainda assim bastante claro: se o dinheiro não chegar para tudo, a gente pede emprestado de novo e depois não paga. Ou talvez nem precisemos, e consigamos o milagre de sermos auto-sustentáveis, e vivermos todos dignos e confortáveis, mesmo aqueles que não queiram…
Outros (alguns menos fanáticos e lunáticos que Raquel Varela, pelo menos aparentemente) fizeram promessas deste tipo, as quais resultaram, quando colocadas em prática pelo Poder, em segregação, fome e miséria, quando não em perseguição, tortura e morte. Mas é claro que essas tentativas de criar o paraíso falharam porque nenhuma delas era a verdadeira. Porque, como sempre justificam os extremistas, houve falhas humanas ou não estavam criadas as condições objetivas. Em Portugal, particularmente, não tivemos ainda a oportunidade de ver a classe operária no poder. Bem vistas as coisas, isso é perfeitamente compreensível, até porque, ao contrário do que acontece hoje, o povo bom (e mau) doutro tempo não teve a felicidade de ser contemporâneo de Varela.
A Primeira Guerra Mundial foi um conflito verdadeiramente global, mas não foi por isso que ficou conhecida como a “Grande Guerra”. Este título é devido não apenas a essa característica global, mas também (e sobretudo) às repercussões catastróficas que a guerra teve sobre as populações de quase todo o mundo. Repercussões que resultaram não tanto da escala mundial da contenda, mas muito mais da “combinação entre tecnologia militar e cultura dos povos que a travaram”[1]. Para enquadrarmos a Grande Guerra temos de recuar à primeira metade do século XIX, quando a Inglaterra e a França eram os países europeus mais poderosos, detendo vastos domínios coloniais. Um cenário que se alterou na segunda metade do século, com a unificação da Itália (que só se completaria no século XX) e, sobretudo, da Alemanha, países que tinham chegado atrasados à corrida colonial, mas que estavam interessados em alargar os seus territórios. Tentando colocar alguma ordem na corrida, as principais potências europeias reuniram-se em Berlim, no ano de 1884, com a intenção de chegarem a acordo sobre a partilha do continente africano. Hoje em dia pode parecer estranho que um inteiro continente tenha sido repartido dessa forma e, como disse H.G.Wells, “é difícil acreditar que um número tão grande de pessoas tenha aceitado essa pintura abrupta do mapa de África, em cores europeias, como uma definição nova e permanente das questões mundiais”[2]. Mas naquele tempo os europeus acreditavam que, ao invés de estarem a subjugar outros povos, estavam, outrossim, a salvá-los das trevas e a conduzi-los à civilização. Era, pois, uma missão meritória, aquela das potências ocidentais, auto-consideradas superiores. Na verdade, “a mente europeia do século XIX dispunha de um conhecimento histórico muito superficial, e não tinha o hábito da crítica penetrante”[3].
Ainda antes do acordo sobre África, o líder da unificação alemã, Otto von Bismarck, tinha organizado o Congresso de Berlim (1878), logo após a Guerra Russo-Turca. O chanceler tinha em vista assegurar a paz nos Balcãs, conciliando as pretensões russas (de ajudar os irmãos eslavos e cristãos) com as dos austro-húngaros (de impedir uma grande Sérvia eslava sob os auspícios da Rússia) e atribuiu uma área de influência a cada um dos impérios. Bismarck, político competentíssimo, sabia que após a unificação alemã a reação natural dos seus vizinhos seria a de unirem-se contra a Alemanha. Por isso, ele já tinha firmado uma aliança com a Rússia (uma aliança com a França era considerada inviável) em 1881, a qual fora renovada, como um “Tratado de Resseguro”, seis anos mais tarde. Porém, os sucessores de Bismarck não tinham a sua visão – estavam empenhados em transformar a Alemanha numa potência mundial (Weltmacht) – e não conseguiram renovar o tratado, o que fez surgir o temor de que os russos se pudessem aliar à França, deixando a Alemanha posicionada entre duas potências inimigas – uma a leste e outra a oeste. De facto, a França detinha o capital de que a Rússia necessitava para dinamizar a sua economia e os dois estados formaram, em 1891, a Entente Dual, para confrontar a Tríplice Aliança (Alemanha, Áustria-Hungria e Itália) que se formara em 1882, sob os auspícios de Bismarck. A Grã-Bretanha, tradicionalmente, era inimiga quer da França quer da Rússia, e o mais natural é que se tivesse aliado à Alemanha ou, pelo menos, se tivesse mantido neutra. Mas as ambições alemãs, sobretudo a de construir uma armada que desafiasse o domínio britânico nos mares, tornou uma aliança anglo-germânica impossível. Os britânicos trataram então de fazer as pazes com França e Rússia, acordando com a primeira sobre África e com a segunda sobre as fronteiras da Pérsia e do Afeganistão. A Entente Dual transformou-se, assim, em 1907, em Tríplice Entente, com França, Rússia e Reino Unido. Entretanto, a corrida armamentista já tinha começado.
Foto 2 – O imperador da Rússia e da Polónia, Nicolau II, e seu primo Guilherme II, imperador alemão (que se apresentava sempre em traje militar), poucas semanas antes de seus exércitos se confrontarem na Grande Guerra. De acordo com Michael Howard, Guilherme II encarnava as três qualidades que caracterizavam a elite alemã daquela época: “militarismo arcaico, ambição desmedida e uma insegurança neurótica”.
A partir daí, a paz só se mantinha graças ao sistema de alianças e ao poderio bélico de cada lado. Esse instável equilíbrio romper-se-ia em 1914, após o assassinato de Francisco Fernando, herdeiro do trono austro-húngaro, no dia 28 de junho. O arquiduque foi assassinado, com sua mulher, em Sarajevo, capital da Bósnia-Herzegovina, uma província anexada pela Áustria e pretendida pela Sérvia. O assassino foi um estudante bósnio – Gravilo Princip – adepto da unidade dos povos eslavos e militante da organização terrorista “Mão Negra”[4]. Em resposta ao atentado, as tropas austro-húngaras invadiram a Sérvia, iniciando o que poderia ser mais uma guerra localizada, como outras que ocorreram nos Balcãs. Mas na Alemanha havia o sentimento de que o envolvimento do país numa guerra seria inevitável, e que seria preferível que ele acontecesse antes da Rússia (que tinha sofrido pesada derrota dos japoneses em 1905) se reorganizar. O pretexto estava dado com a mobilização da Rússia para a guerra, em apoio à sua aliada, Sérvia. Deu-se o que se pode chamar de “reação em cadeia”. A Alemanha declarou guerra à Rússia, no dia 1 de agosto, e à França, no dia 3; a Inglaterra declarou guerra à Alemanha, no dia 4, após ter ficado sem resposta o ultimato que fez exigindo o respeito pela neutralidade belga; e o Império Austro-Húngaro declarou guerra à Rússia, no dia 5. O conflito alastrou de uma forma nunca até então vista na história da humanidade, e tomou proporções mundiais. Grande parte dos países europeus, bem como colónias e territórios sob sua influência, além de países interessados em ampliar sua participação no cenário internacional, como o Japão, envolver-se-iam na Grande Guerra, em combates que não aconteceram apenas na Europa, mas também em África, na Ásia, no Médio Oriente e nos oceanos e mares. Os números não são consensuais, mas as estimativas mais credíveis apontam para 8 milhões de combatentes mortos e 21 milhões de feridos, sem contar com as baixas civis[5]. A Grande Guerra foi inovadora em muitos aspetos tecnológicos. Pela primeira vez foram utilizados meios aéreos, incluindo zeppelins e aviões, armas químicas, artilharia pesada móvel e tanques, com efeitos devastadores.
A guerra terminou com a rendição da Alemanha. O mapa mundial teve de ser redesenhado. Surgiram novos países, como a Polónia, a Checoslováquia e a Jugoslávia. Os impérios alemão, russo, austro-húngaro e otomano foram destruídos; e a guerra lançou as sementes da dissolução dos impérios vencedores, sobretudo da França e da Inglaterra. As duas nações que saíram verdadeiramente reforçadas da Grande Guerra, emergindo como duas das principais potências mundiais a partir de então, foram o Japão e os Estados Unidos. Porém, o nacionalismo e o imperialismo, que tinham dado origem à guerra, continuavam latentes. Muitos historiadores consideram que houve apenas uma guerra mundial com duas partes – ambas, consequência da corrida imperialista que marcou as três décadas anteriores a 1914. De acordo com Hannah Arendt, “certos aspetos fundamentais dessa época assemelham-se tanto aos fenómenos totalitários do século XX, que se poderia considerar esse período como um estágio preparatório para as catástrofes vindouras”[6]. Essas catástrofes tiverem, pois, origem num nacionalismo e num imperialismo exacerbados. E foram impérios, as entidades que se entrechocaram na Grande Guerra. É sobre eles que vamos debruçar-nos neste trabalho, com a intenção de mostrar, em poucas palavras, as razões, os desenvolvimentos e as consequências de um conflito que mudou o mundo – e durante o qual se lançaram as sementes de um outro ainda mais absurdo e devastador.
2- O IMPÉRIO ALEMÃO
Para se ter uma ideia, a Alemanha da época imediatamente anterior à Grande Guerra era constituída por quatro reinos (Prússia, Bavária, Saxónia e Würtemberg), seis grãos-ducados, cinco ducados, sete principados e, ainda, as cidades do Hansa (Lübeck, Bremen, Hamburgo) e o território imperial da Alsácia-Lorena. O Reichstag (parlamento alemão) representava os conservadores agrários do leste, os industriais do norte e do oeste, os fazendeiros católico-romanos bávaros do sul e, acompanhando o crescimento da economia, as classes operárias industriais, com seus líderes socialistas, dos vales do Reno e do Ruhr. O grande obreiro da unificação alemã (1871) foi o chanceler Otto von Bismarck, primeiro-ministro prussiano que usou o seu prestígio político e militar, após vitórias importantes sobre o Império Austríaco (1866) e a França (1870), para os propósitos de criação da grande Alemanha. A principal preocupação de Bismarck foi, pois, a unificação. No entanto, sobretudo algumas correntes políticas, como eram o caso da Liga Pangermânica e dos partidos nacionalistas (Conservador e Nacional-Liberal), apoiados por larga franja da população, defendiam a expansão territorial[7].
Havia várias razões para que isto acontecesse. Em parte, porque a Alemanha era um estado tardio, tinha chegado muito depois de Inglaterra e França ao cenário imperial e queria competir com esses impérios. Depois, porque a Alemanha era uma grande potência económica, a maior da Europa, e isso permitir-lhe-ia construir uma grande força militar para vencer seus inimigos. Ainda, porque muitos alemães (quiçá, a maioria) estavam convencidos da superioridade racial alemã e queriam impô-la – influenciados por teorias muito em voga na época[8], por estudos “científicos” e, na prática, pelas experiências no terreno, na Europa, com judeus e polacos, em África (Oriental e do Sudoeste), onde os alemães eliminaram centenas de milhares de nativos, com os povos herero, madji-madji e nama[9]. Por fim, e talvez a razão principal, o medo. Os alemães estavam rodeados de alguns povos que consideravam hostis, sobretudo os russos, e achavam que a melhor forma de conjurar essas ameaças era um ataque preventivo, que ampliasse o território e criasse “zonas-tampão”, empurrando para longe os inimigos. Enfim, conjugavam-se perfeitamente na Alemanha de então as três condições fundamentais para a mobilização de um país para a guerra, definidas pelo general prussiano Karl von Clausewitz, na sua obra Vom Kriege: a política do governo, as atividades militares e a paixão do povo (ver nota 1).
Foto 3 – Soldado alemão usando telefone de campanha. O exército manteve-se socialmente dominante, mesmo após a unificação alemã.
A Alemanha tinha tudo preparado, com timings precisos e previra uma ação não apenas vitoriosa, mas também rápida. O plano era derrotar a França e atacar os russos ainda antes destes terem tempo de se organizar. Assim, no dia 1 de agosto de 1914, o Chefe do Estado-Maior Alemão, Helmut von Moltke, deu ordem de ataque à França. As primeiras semanas foram de regojizo para a Alemanha com a rápida progressão pela Bélgica e pelo Luxemburgo, em direção a França, e a vitória em Tannenberg (27 a 30 de agosto), a Leste, apesar de um primeiro contratempo em Gumbinnen[10]. O entusiasmo levou os alemães a planearem o “Programa de Setembro”, que se revelaria demasiado precoce e ambicioso, quando, ainda nesse mês, as forças da Entente se reagruparam no rio Marne, a Leste de Paris, contendo o avanço das tropas e o entusiasmo dos alemães. Depois desse confronto no Marne (após o qual Von Moltke sofreu um colapso nervoso e foi substituído no comando dos exércitos por Erich von Falkenhayn) e da primeira batalha de Ypres, a Frente Ocidental manter-se-ia uma imensa linha de trincheiras, com mais de 700 kms, desde a Bélgica até a Suíça, e um sorvedouro enorme de vidas humanas, sem que um ou outro lado conseguisse qualquer avanço significativo durante os quatro anos seguintes. A sangrenta Batalha de Verdun, iniciada em fevereiro de 1916, pelos alemães, resultou em nada, para além de meio milhão de baixas de ambos os lados e da substituição de Falkenhayn por Paul von Hindenburg e o seu inseparável Erich Ludendorff no comando alemão. O mesmo se pode dizer da igualmente sangrenta Batalha do Somme, iniciada em julho do mesmo ano, pelos Aliados (sobretudo britânicos), que resultou em nada de significativo para o desfecho da guerra, além da mortandade geral e das baixas estimadas em mais de um milhão.
Mas esta foi uma guerra caracterizada por muitos cenários. No Oriente, os territórios alemães, mal defendidos, foram rapidamente ocupados por japoneses (Shandong), australianos e neo-zelandeses (ilhas do Pacífico). Em África, os territórios alemães seriam ocupados, em 1915, pela Grã-Bretanha e aliados (União Sul-Africana) excetuando a África Oriental Alemã, onde o comandante Paul von Lettow-Vorbeck, à frente de 5.000 askaris[11], adotando uma tática de guerrilha, movimentando-se por uma vasta zona que incluía Moçambique, conseguiu manter o território em posse alemã até o fim da guerra. Entretanto, ainda em 1914, em novembro, a entrada do Império Otomano na conflito, ao lado das potências centrais (Alemanha e Áustria-Hungria), veio dar um novo fôlego às ambições alemãs. A entrada dos otomanos na guerra trouxe desde logo duas vantagens: homens para combaterem os britânicos no Médio Oriente e abertura de rotas para a Ásia Menor e África, através da Anatólia. A aliança com os turcos não tardaria a dar frutos e logo em abril de 1915 os otomanos, apoiados pelos alemães, repeliram os britânicos e seus aliados no estreito de Dardanelos, na célebre batalha de Galípoli. O ano de 1915 revelar-se-ia proveitoso, pois os exércitos conjuntos da Alemanha e da sua aliada Áustria-Hungria (conhecidas por Potências Centrais) conseguiram ocupar território russo, apoderando-se da Galícia, de Varsóvia e de Vilnius (capital da Lituânia), ainda no verão. E, no final do ano, as forças conjuntas da Áustria-Hungria, Alemanha e Bulgária[12] derrotaram a Sérvia, abrindo assim uma ligação direta entre Berlim e Constantinopla.
Foto 4 – Hospital alemão para cães. Recorreu-se bastante à ajuda animal durante a Grande Guerra. Não apenas cães, mas também cavalos, pombos e até elefantes, entre outros.
É claro que o esforço de guerra dependia bastante do apoio interno das forças políticas e dos movimentos sociais. Esse apoio nunca foi total nem se manteve contínuo. Partidos moderados como, o Partido Social-Democrata (SPD), o Partido do Centro ou o Partido Progressista, eram bastante relutantes em relação à guerra. Mas os partidos e movimentos nacionalistas e imperialistas radicais, como a Liga Pangermânica e o cartel dos Estados Produtores, com sua propaganda populista, conseguiam influenciar a maioria da população, o que levou muitos voluntários a alistarem-se fervorosamente, até porque estava previsto que a guerra seria curta e vitoriosa[13]. Por outro lado, o poder dos militares era enorme, tendo inclusive implementado a censura e sendo responsáveis pela manutenção da ordem pública, de acordo com a lei prussiana sobre o estado de sítio, de 1851, que havia sido incorporada na Constituição Imperial de 1871[14]. O esforço de guerra não dependia apenas dos soldados no terreno, mas também do mobilização interna da sociedade. Havia que garantir a produção industrial necessária à máquina de guerra, bem como a produção agrícola que garantisse a sobrevivência das populações. Assim, todos estavam envolvidos no esforço de guerra, e os militares ocupavam cada vez mais o espaço político, criando o Ministério Supremo da Guerra (Oberstekriegsamt) e uma burocracia paralela, que competia com a burocracia civil na administração do país. Isso gerou um conflito com as forças políticas, particularmente com o Partido Social-Democrata, que no início da guerra havia sido persuadido sobre o caráter defensivo da mesma, face à agressão russa, mas que, com a derrota russa e o agravamento das condições externas e internas, era cada vez mais favorável à paz. A estratégia dos militares para controlar os sociais-democratas, cujo apoio vinha sobretudo das classes trabalhadoras urbanas, foi tentar dividir os operários através da cooperação com os sindicatos e de grandes aumentos dos salários nas indústrias relacionadas com a guerra.
A partir de 1916, o desgaste provocado pelo conflito começou a ser mais notório. As batalhas de Verdun e do Somme foram devastadoras e resultaram praticamente em nada, como já vimos. Esse inverno foi muito duro, com um clima excecionalmente frio, dizimando a cultura da batata. Agravavam-se as condições internas: inflação, falta de alimentos, mortalidade infantil, feminina e de idosos, mortes em hospitais, por falta de assistência, etc, sendo que as doenças provocadas pela fome, como o raquitismo, o escorbuto e a tuberculose, eram endémicas. Os alemães também não conseguiam romper o bloqueio naval britânico, e optaram pela guerra submarina irrestrita (decisão que se revelaria fatal), provocando o protesto internacional e quase fazendo com que os Estados Unidos entrassem mais cedo na guerra, quando afundaram o navio Lusitania[15], em maio de 1915, com 2.102 pessoas a bordo. A guerra submarina irrestrita queria dizer que qualquer navio podia ser atacado, mesmo os de mercadorias, o que contrariava as convenções internacionais. A estratégia alemã passava pela destruição das frotas mercantes, cortando os abastecimentos e destruindo assim a economia dos Aliados. De início a estratégia deu certo, mas depois, em 1917, os americanos e ingleses conseguiram quase anulá-la, adotando o sistema de comboios marítimos, com rápidos destroyers acompanhando os navios, e construindo navios mais rápidos que os submarinos alemães. Para agravar ainda mais a situação, uma tentativa desajeitada de manietar os Estados Unidos, através de um incentivo ao México para que atacasse o seu vizinho do Norte (e reconquistasse os estados do Texas, Novo México e Arizona), acabaria por fazer com que os americanos finalmente entrassem na conflito, declarando guerra à Alemanha, em 6 de abril de 1917[16].
Foto 5 – Artilheiro alemão morto (1918). Calcula-se que tenham morrido 1.800.000 alemães durante a guerra.
Entretanto, nesse ano de 1917, a Rússia passara por grandes convulsões internas, que culminaram na vitória da Revolução Bolchevique, em outubro. O exército bolchevique, porém, não conseguiu suster o avanço alemão, que, em fevereiro de 1918, chegou às portas de São Petersburgo. Os bolcheviques foram obrigados a abdicar, assinando com os alemães o Tratado de Brest-Litovsk, em 3 de março de 1918, pelo qual os russos foram obrigados a ceder importantes territórios da Polónia e da Bielorrússia, além de três distritos arménios para a Turquia. O tratado restaurava as fronteiras turcas anteriores a 1879, deixando aos arménios um destino miserável nas mãos do seu pior inimigo. Os alemães conseguiram ainda uma vitória sobre os romenos[17], forçando-os a assinar o Tratado de Bucareste, em maio de 1918. Porém, a ambição otomana no Cáucaso (que deixaria as portas da Mesopotâmia abertas para a Entente), o colapso do exército austro-húngaro e a retirada da Bulgária da guerra, deixaram a Alemanha demasiado exposta no oriente. Na frente ocidental, ainda em 1917, Ludendorff ordenou o recuo de 40 quilómetros dos alemães para a linha Hindenburg (recuo acompanhado pela queima ou destruição das habitações, matança do gado e envenenamento dos poços de água) e resistiu às investidas de franceses (pelo Aisne) e britânicos (em Arras). No verão, tropas canadianas conseguiram tomar as colinas de Passchendaele, mas com um custo enorme, e uma nova investida dos Aliados, em Cambrai, terminou da forma habitual: baixas elevadíssimas e nenhum avanço significativo.
Em 1918, as condições internas agravaram-se. Logo no início do ano realizaram-se greves prolongadas e importantes em Kiel e Berlim, e a lei marcial foi declarada em Bradenburgo e Hamburgo. As ideias socialistas, potenciadas pelo que acontecia na Rússia, ameaçavam tomar conta do país. A paz começou a ser reclamada por várias forças políticas e, para fazer face aos pacifistas, o Alto-Comando patrocinara, ainda em 1917, o Partido da Pátria, generosamente financiado pelos industriais da Renânia, partido que contava, passado um ano, com 1,25 milhão de membros. Tratou-se do primeiro movimento de direita genuinamente populista do século XX. As reivindicações pela paz, que já haviam sido manifestadas pelo próprio Reichstag, e as convulsões internas levaram os militares a optar pela única saída que parecia possível em 1918 – uma ofensiva total e demolidora para derrotar os Aliados na frente ocidental, obrigando-os a aceitar uma paz que estivesse de acordo com os planos alemães. Ludendorff conseguiu transferir 44 divisões do leste – onde não eram necessárias depois da capitulação russa – e lançou um ataque maciço, em março, com 199 divisões. A intenção inicial de Ludendorff era abrir uma brecha no exército britânico e atingir os portos do Canal da Mancha. O primeiro ataque aconteceu em 21 de março, sobre a parte sul das linhas britânicas, a leste de Amiens, e, apesar do êxito inicial, os britânicos conseguiram resistir. No dia 5 de abril, Ludendorff suspendeu a operação e encaminhou as suas forças mais para norte, junto a Ypres, onde atacou de novo, em 9 de abril. O ataque foi fortíssimo mas mais uma vez as linhas britânicas resistiram. Isso deveu-se, pelo menos em parte, ao atraso que as forças portuguesas (apesar de reduzidas e desmoralizadas), conseguiram provocar ao avanço alemão, com grandes perdas, no vale da ribeira de La Lys, impedindo que os alemães cercassem as forças aliadas. A resistência das forças inimigas fez com que Ludendorff mandasse suspender o ataque, no dia 30 de abril. Desde o início desta ofensiva, os alemães já tinham perdido 350.000 homens.
Numa atitude que lhe granjearia várias críticas, Ludendorff mudou de novo de tática e virou-se para as linhas francesas, na zona do Aisne, em 27 de maio. Conseguiu penetrar 48 quilómetros e tomar Soissons. A artilharia de longo alcance começou a bombardear Paris, onde o governo, como já tinha feito em setembro de 1914, preparou a mudança para Bordéus. Porém, durante o ataque, os alemães perderam 130.000 homens, sendo que muitos foram abatidos por americanos, que nessa altura chegavam a França a um ritmo de 250.000 por mês[18]. Os americanos tinham começado a recrutar os seus soldados em maio de 1917 e, no início de 1918, já se encontrava um milhão de soldados americanos em França. Eles e os que os seguiram – muito mais frescos e otimistas que os desgastados combatentes europeus – seriam decisivos para o desfecho da Grande Guerra. Em 16 de julho, em Reims, os alemães voltaram a atacar. Dois dias depois, um exército composto por franceses e americanos, comandado pelo general Mangin, lançou um vigoroso contra-ataque. Em 5 de agosto, uma força combinada de franceses, britânicos e americanos lançou um ataque decisivo e fez prisioneiros 30.000 desmoralizados alemães. Ludendorff cancelou as ordens de ataque que tinha planeado no norte. A sua última cartada tinha sido jogada ali. Os alemães recuaram até a linha Hindenburg, combatendo sempre, infligindo 290.000 baixas a franceses e britânicos. Ali chegaram no início de setembro. Parecia que o impasse se instalara em definitivo, quando o marechal Foch, em 3 de setembro, ordenou uma ofensiva ao longo de toda a linha. Franceses, britânicos e americanos atacaram em massa. No dia 29, Ludendorff finalmente quebrou. Ele avisou o kaiser de que já não era possível vencer a guerra; um armistício tinha de ser firmado o mais depressa possível a fim de evitar uma derrota ainda mais humilhante.
Quando Ludendorff soube das condições que queriam impor à Alemanha, procurou interromper as negociações. Mas o governo estava preocupadíssimo também com a possibilidade da revolução irromper a qualquer momento. O novo chanceler Max de Baden conseguiu em três semanas fazer as reformas constitucionais a que o kaiser e o Exército tinham resistido no meio século anterior. O Reichstag teve os seus poderes reforçados, consagrou-se o sufrágio universal, e o kaiser passou a ter apenas um papel simbólico. Ludendorff foi substituído pelo general Wilhelm Groener. Entretanto, os motins espalhavam-se. Formaram-se os Conselhos dos Trabalhadores e dos Soldados, segundo o modelo dos sovietes russos. A Baviera declarou-se independente e a revolução parecia inevitável. Então Groener mandou Guilherme II para o exílio na Holanda, garantiu o apoio do exército ao parlamento e tratou de negociar a paz. Uma delegação organizada à pressa encontrou-se com os líderes de guerra aliados, num vagão de comboio, na floresta perto de Compiègne. No dia 11 de novembro foi assinado o armistício.
A participação da Alemanha na Grande Guerra foi caracterizada pela extrema violência. Na Bélgica, as tropas alemães prenderam e fuzilaram cerca de 5.000 civis, além de incendiarem indiscriminadamente edifícios, provocando um mar de refugiados. Os alemães foram também os primeiros a usar uma nova arma – o gás de cloro venenoso – em abril de 1915, em Ypres. Apesar destes e outros desmandos, a Alemanha perdeu a guerra e o império, e adotou o modelo de Estado-Nação, fundando a República de Weimar. Após o Tratado de Versalhes, a Alemanha foi obrigada a ceder partes de seu território à França (Alsácia e Lorena), à Bélgica, à Polônia e à Dinamarca; a divididir as suas colónias entre a Inglaterra, o Japão, a Austrália, a França, a Bélgica e a Nova Zelândia; a entregar material bélico e de transporte aos países vencedores (ficando proibida de rearmar-se); a ceder a região do Sarre, rica em minas de carvão, à França por quinze anos; por fim, a pagar aos vencedores uma pesada indemnização. Os alemães sentiram-se injustiçados. Eles acreditavam que a guerra lhes tinha sido imposta pelos seus inimigos e que a sua causa era nobre. E muitos defendiam que um governo patriótico deveria criar as condições para que se revogasse o tratado. Este sentimento justificaria, em grande parte, o enorme apoio de que viria a beneficiar Adolf Hitler. Apoio que não pode ser dado pelos dois milhões de alemães mortos na guerra[19].
3- O IMPÉRIO AUSTRO-HÚNGARO
Foto 6 – Francisco Fernando e sua mulher, Sofia, deixam a Câmera de Sarajevo, pouco antes de serem alvejados.
A anexação da Bósnia-Herzegovina para a monarquia dos Habsburgos, em 1908, para além de irritar profundamente a Rússia e a Sérvia (ambas eslavas), só contribuiu para o aumento da tensão entre as potências europeias. Formaram-se subgrupos eslavos no Sul dos Balcãs com algo em comum: o ódio aos austro-húngaros. Posteriormente, as guerras dos Balcãs[20] vieram mostrar que a Rússia passara a ter uma grande influência na região, o que preocupava o Império dos Habsburgos. Como já vimos no caso alemão, o medo de que outro império queira ganhar terreno ao nosso, é sempre mau conselheiro. Isso, associado à perda da maioria dos territórios na Europa por parte do Império Otomano, fez com que a ministro austro-húngaro dos Negócios Estrangeiros, conde Leopold Berchtold, chegasse a ponderar um ataque à Sérvia[21]. Neste contexto, o assassinato do arquiduque Francisco Fernando, em 28 de junho de 1914, foi quase um pretexto para o início da guerra, com a invasão da Sérvia pela Áustria-Hungria, precisamente um mês depois.
Além disso, o Império dos Habsburgos era um extenso mosaico, onde se falavam muitas línguas[22] e existiam muitos povos, os quais tinham crescentes aspirações independentistas, já manifestadas, aliás, nas guerras de independência de 1848-1849 e que se reacenderam na década de sessenta. Foi nessa época, em 1867, que a Hungria se tornou um reino soberano, através de um compromisso austro-húngaro, e seguiu interesses e uma agenda nacional próprios. Naturalmente, o exemplo húngaro despertou fantasias e ambições políticas por quase todo o lado, sobretudo entre as elites checa, croata e polaca, ambições que vinham surgindo desde o início do século XIX e que reclamavam uma voz na tomada de decisão política. Porém, face à constante oposição dos húngaros[23], o velho imperador e monarca Francisco José impediu a criação de novos territórios protonacionais. Apesar de tudo, o sistema político da monarquia dos Habsburgos – que oscilou entre a governação autocrática de pendor militarista e a democracia parlamentar com restrições – e a habilidade política de Francisco José impediriam que o império se desintegrasse.
Foto 7 – O arquiduque e a mulher, mortos, em Sarajevo. Após estas duas mortes, seguir-se-iam milhões, no âmbito da Guerra Imperial.
Apesar disso, com o início da guerra, a instabilidade aumentou. Com medo que os movimentos nacionalistas levassem os diversos territórios a situações incontroláveis, o império optou pela tomada de medidas preventivas e repressivas. Os alvos foram, sobretudo, os grupos que tinham mantido uma lealdade crítica à monarquia dos Habsburgos e que ainda alimentavam esperanças numa reforma do império que conferisse alguma perspetiva, a prazo, aos seus anseios de identidade nacional. A maioria destas medidas repressivas foi aplicada aos eslavos do sul, ucranianos e judeus, mas também a eslovenos, checos e italianos[24]. Quanto à guerra propriamente dita, os austríacos confrontaram-se, ainda em 1914, com dois exércitos na frente oriental – russo e sérvio. Os sérvios repeliram um ataque prematuro e obrigaram os austríacos a cruzar de volta a fronteira, com menos 30.000 homens. Ao norte, quando tentavam entrar na Polónia, os austro-húngaros foram repelidos pelos russos e perderam 350.000 homens, além da fortaleza estratégica de Przemysl, que recuperariam em março de 2015. Em novembro desse ano (2015), austríacos e alemães, acompanhados pelos búlgaros (que se tinham juntado às Potências Centrais em outubro), vingaram-se da derrota do ano anterior frente aos sérvios, e estes foram forçados a fugir pelas montanhas do Montenegro, em pleno inverno, para escaparem pelos portos do Adriático. A Sérvia foi esmagada e ocupada. Mas a luta contra os russos haveria de acarretar uma amarga derrota às mãos do general Alexei Brusilov, na fronteira da Galícia, em junho de 1916, com meio milhão de austro-húngaros feitos prisioneiros. Nesta altura, as baixas eram enormes e os soldados eslavos (checos, romenos e ruténios) começaram a desertar em massa.
Quando a Itália entrou na guerra, em 23 de maio de 1915, os austríacos confrontaram-se com o seu pior inimigo. Começaram as escaramuças nos Alpes. Em maio de 1916, na região de Trentino, os austríacos obtiveram um sucesso inicial sobre as forças italianas, que perderam 286.000 homens, entre os quais 45.000 prisioneiros de guerra. Os italianos, sob as ordens do general Luigi Codorna, contra-atacaram perto do rio Isonzo e mais tarde no Carso, a norte de Trieste. Os combates prolongaram-se por vários meses, até o verão de 1917. Ambos os exércitos estavam no seu limite, com baixas enormes. Foi então que os alemães, livres dos russos, vieram em auxílio dos austríacos. As técnicas de artilharia e infantaria dos alemães destroçaram as defesas italianas em Caporetto, no dia 25 de outubro, fazendo 250.000 prisioneiros e obrigando o exército italiano a recuar centenas de quilómetros, exército de onde desertaria cerca de meio milhão de homens. Caporetto é ainda hoje uma palavra que significa “derrota”, “vexame”, “infortúnio”, em Itália.
Foto 8 – Miklós Horthy e Adolf Hitler em 1938. Dez anos depois, outro ditador, Salazar, acolheria Horthy em Portugal.
Mas as complicações no Império Austro-Húngaro continuaram. Francisco José I, que durante quase 58 anos simbolizara a unidade das nações e a integridade territorial da monarquia, morrera em 21 de novembro de 1916, sendo substituído por Carlos I. Os checos e os eslovacos começaram abertamente a defender um Estado independente. O impacto da revolução bolchevique na Rússia, que aclamava a autodeterminação dos povos, foi enorme na Europa Oriental e Central, atingindo em cheio o Império Austro-Húngaro. Para complicar ainda mais a situação, realizou-se em Roma, entre 8 e 11 de abril de 1918, o Congresso das Nacionalidades Oprimidas. Os representantes checos, eslovacos, eslavos do sul, italianos, polacos e romenos exigiram a independência completa e o direito aos territórios ocupados pelas respetivas nacionalidades. E, para contrariar a esperança de alguns setores em relação a uma paz separada com a monarquia dos Habsburgos, aconteceu o “caso Sixto”[25], em abril de 1918. Em junho, o exército esfarrapado e faminto foi empurrado para uma ofensiva final na frente italiana, onde foi repelido e perdeu 143.000 homens, 25.000 deles prisioneiros. As tropas começaram a desertar em massa, ficando claro, a partir daí, o que passados meses viria a acontecer e era inevitável – a desintegração do império em estados nacionais. Carlos I ainda tentou uma reforma em que promovia a criação de estados nacionais unidos sob a monarquia dos Habsburgos, mas nessa altura os preparativos para as várias revoluções e a criação de Estados-nações independentes iam já bastante adiantados. Foi o fim da monarquia dos Habsburgos.
Com a dissolução da monarquia desfez-se o império. O Tratado de Saint Germain en Laye foi celebrado em 10 de setembro de 1919, entre os Aliados e a nova República da Áustria. A metade austríaca do antigo Império Austro-Húngaro perdeu, no norte, os checos, que se juntaram aos seus primos eslovacos da Hungria para formar a Checoslováquia. No sul, perdeu os eslovenos, que com os seus primos croatas da Hungria se juntaram aos sérvios, formando o Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, renomeado mais tarde Jugoslávia (a Eslávia do sul). Perderam também as terras italianas ao sul dos Alpes, incluindo Trieste, o seu principal porto no Adriático. A parte remanescente e germânica, que era tudo o que restava da Áustria, procurou juntar-se à nova república alemã, a norte, mas essa pretensão foi negada pelos Aliados. A Áustria manteve-se independente até 1938, quando Adolf Hitler realizou um Anschluss, sob aclamação popular, e a anexou à Alemanha como uma província do Terceiro Reich. Por seu turno, a Hungria, através do Tratado de Trianon, de 4 de junho de 1920, perdeu não apenas os eslovacos, ao norte, e os croatas, no sul, mas também a província da Transilvânia, a leste, para a Roménia. Perdeu também o acesso ao mar e 2/3 do seu território. Após o tratado remanesceram expressivas minorias húngaras na Checoslováquia, na Jugoslávia e na Roménia. A Hungria viu-se envolvida numa guerra civil logo após a Grande Guerra. Os comunistas tomaram o poder e fundaram a República Soviética Húngara, mas os contra-revolucionários brancos acabariam por derrubá-los pouco tempo depois. Do conflito emergiu o almirante Miklós Horthy, um ditador de direita, que recusou o fim da monarquia dos Habsburgos, governando como regente, sendo apenas derrubado no fim da Segunda Guerra Mundial, após ter colaborado com os nazis. Em 1948, Horthy exilou-se em Portugal, onde morreu, passados nove anos, no Estoril.
4- O IMPÉRIO RUSSO
O Império Russo teve a sua origem, ainda no século XV, no pequeno principado da Moscóvia, situado na Europa Oriental. No entanto, já na Idade Moderna, sobretudo através de três dos seus czares[26] mais ambiciosos, Ivan, o Terrível, Pedro, o Grande e Catarina, a Grande, ampliaram enormemente o território. Ivan abriu os caminhos para a Ásia, através do rio Volga. Pedro fundou uma capital junto ao Báltico, após vitória no Norte. Catarina expandiu o território até a costa norte do mar Negro e anexou metade da Polónia. Os seus sucessores continuaram e consolidaram a expansão: para a Tanscaucásia, norte da China, Ásia Central e orla da Península dos Balcãs[27]. A unidade do império baseava-se na autoridade do czar. Apesar disso, sobretudo durante a segunda metade do século XIX, cresceram os movimentos nacionalistas, particularmente na Polónia e na Ucrânia. Como resposta, o czar Alexandre III, em 1881, lançou um programa chamado “russificação”. Este programa, como tantas vezes acontece, teve um efeito contrário ao pretendido, e as tendências nacionalistas intensificaram-se no império com o surgimento de vários partidos nacionalistas ilegais.
Foto 9 – Cossacos russos durante a Primeira Guerra Mundial (1915).
A repressão aumentou e a instabilidade também. O desastre na guerra russo-japonesa de 1904-1905 veio enfraquecer ainda mais o já debilitado império. O povo veio para a rua protestar, foram criados os sovietes (conselhos operários para coordenar as greves) e, apesar da repressão, estavam lançadas, na revolução inconclusiva de 1905, as sementes da revolução vitoriosa de 1917. Como em outras épocas históricas, quem pagou a fatura foram os judeus, que sofreram na pele, sobretudo na Ucrânia e na Polónia, as consequências das frustrações dos nacionalistas de direita. Judeus que, aliás, foram muito maltratados também durante a Grande Guerra, discriminados e oprimidos, quer no exército, quer na vida civil. Aliás, os conflitos étnicos no seio das forças armadas seria uma das razões do colapso imperial em 1916/17. Mas a causa fundamental foi a própria guerra. Extensas áreas eram administradas pelos militares, mas estes não tinham qualquer experiência na função e revelaram-se incapazes de levar a missão a bom termo. O Estado começou a falhar. Esse vazio foi preenchido pelas aspirações nacionalistas. Como aconteceu noutros império, o esforço de guerra fez subir os preços. Cresceu a inflação. As autoridades, fazendo uma avaliação equivocada das causas inflacionárias atribuíram-nas à especulação e, claro, aos comerciantes judeus. O exército envolveu-se em quase todos os pogroms[28]. Os judeus foram ameaçados, perseguidos, torturados, assassinados e deportados em grande escala[29].
A participação russa na Grande Guerra foi desastrosa e acelerou o fim do Império. A Rússia repeliu a Alemanha ainda em 1914, mas os seus exércitos, apesar de numerosos, estavam mal equipados e tinham lideranças desatualizadas. Pese embora alguns êxitos breves, em 1915, tudo se desmoronou. A contra-ofensiva austro-alemã lançada na primavera, sob o comando do general Mackensen, foi uma estrondosa vitória que empurrou os russos dos territórios da Galícia e, posteriormente, dos territórios que correspondem às atuais Polónia e Ucrânia. O exército russo refugiou-se na Bielorússia e na Letónia. Um número impressionante de refugiados, incluindo arménios fugidos ao extermínio turco, chegou à Rússia Central e à Sibéria. Seis milhões de pessoas foram deslocadas entre abril e setembro de 1915. O apoio dado pela oposição ao regime czarista no início da guerra transformou-se em hostilidade. O tecido social rasgou-se. O regime tremeu mas não caiu. A crise abrandou a partir de outubro de 1915, em virtude das vitórias militares no sul contra os otomanos (conquista das cidades estratégicas de Erzerum e Trebizonda, na Anatólia) e também na Europa, na primavera de 1916, na Galícia, como vimos, sob o comando do general Alexei Brusilov[30]. Este sucesso fez com que a Roménia, o último país balcânico ainda neutro, se juntasse aos Aliados. Porém, a Roménia seria invadida no outono por um exército formado por forças austríacas, alemãs e búlgaras e espoliada do petróleo e dos cereais de que as Potências Centrais tanto necessitavam.
Foto 10 – Cossaco russo (1915).
Apesar de tudo, as vitórias de 1916 não conseguiram salvar o regime. Havia uma escassez enorme de mão-de-obra e muitos desertavam da guerra. De acordo com Joshua Sanborn, “em 1916 manifestaram-se todas as patologias do controlo imperial russo: falta de previsão, implementação deficiente, corrupção, brutalidade.” No verão, rebentaram revoltas nos Usbequistão e Cazaquistão. O Turquestão teve de ser colocado sob lei marcial. Colonos russos foram atacados, tendo morrido mais de 3.500. No entanto, a dinastia Romanov continuava no poder, depois de mais de 300 anos, e era, apesar de tudo, o único sustentáculo do Império. Em fevereiro de 1917, os protestos atingiram a capital. Primeiro, contra a carestia de vida e depois contra a incompetência do governo. Exigiu-se o fim da autocracia. O monarca, sozinho, abandonado até pela cúpula militar, abdicou. “A sua partida abriu um gigantesco buraco simbólico e institucional no sistema político”[31]. No dia 27 formaram-se dois comités provisórios dos quais sairiam, na prática dois governos paralelos – o Governo Provisório e o Soviete de Deputados dos Trabalhadores e Soldados. A confusão, como é óbvio, instalou-se. A Duma proclamou a República. Lenine, apoiado pelos alemães (que viam nele um potencial desestabilizador do Governo Provisório e a possibilidade de desistência da guerra por parte da Rússia) regressou ao seu país, desde Zurique, onde estava exilado.
Foto 11 – Valas para os mortos, em Moscovo, durante a Revolução Russa (1917). A Rússia foi o segundo império a perder mais vidas na Primeira Guerra Mundial, logo depois dos alemães. Aproximadamente, 1.700.000 mortos.
O que aconteceu depois é amplamente conhecido. Os sovietes caíram progressivamente na mão dos bolcheviques e tornaram-se dia para dia mais poderosos. Em outubro, a revolução bolchevique vingou. Além do pão, da terra e da paz, os bolcheviques prometeram autodeterminação aos povos do desmembrado império. Em março de 1918, entregaram grande parte do território aos alemães, através do Tratado de Brest-Litovsk. Nos meses seguintes o antigo império desmembrar-se-ia ainda mais. “Com as fronteiras ocidentais controladas pelos alemães, os territórios do Cáucaso pressionados pelos otomanos e vastas regiões do Sul e do Leste na posse de vários pequenos Estados e senhores da guerra, a Rússia bolchevique ficou reduzida às fronteiras da antiga Moscóvia. A história do Império Russo na Grande Guerra foi uma história de colapso total e absoluto”[32].
Uma consequência inevitável de uma revolução é a contra-revolução. Os exércitos brancos enfrentaram os bolcheviques. Porém, o desentendimento no seu seio, aliado aos radicalismo e imperialismo obsoletos, não lhes permitiriam uma estratégia concertada na guerra civil. A brutalidade recaiu ainda uma vez mais sobre os judeus, acusados de serem comunistas, sobretudo na Ucrânia. Levaram-se a cabo milhares de pogroms. Estima-se que tenham morrido entre 50.000 a 200.000 judeus. Entre 1918 e 1921, imperou a fome, as doenças e a guerra. No fim deste período, os bolcheviques tinham recuperado grande parte do império dos czares. Estabeleceram o modelo federal de um Estado altamente centralizado e hierarquizado. Os povos vencidos não tinham ilusões relativamente à sua autonomia. A partir dali quem mandava, local e centralmente, era o Partido Comunista da União Soviética.
5- O IMPÉRIO OTOMANO
Foto 12 – Tropas do Império Otomano, no Médio Oriente.
O Império Otomano foi um dos maiores do mundo quer em extensão territorial, quer em duração temporal (1299-1922). O período de vida da dinastia otomana superou os dos Habsburgos, Hoenzollerns e Romanovs. Uma certa tribo turca otomana, vinda do Turquestão, começou por ocupar a Ásia Menor (Anatólia), atravessou o estreito de Dardanelos e conquistou a Macedónia, a Sérvia e a Bulgária. Constantinopla, que resistira sempre a todos os ataques anteriores, foi atacada pelo lado europeu e conquistada pelo sultão otomano Maomé II, em 1453. A partir daí os otomanos ampliaram ainda mais o seu território, conquistando, no século XVI, grande parte do Norte de África, o Egito, Bagdade e a Hungria, ficando às portas de Viena. Nesse período tornaram-se os senhores incontestados do Mediterrâneo, controlando todo o comércio até serem finalmente derrotados pelos cristãos, em 1571, na Batalha Naval de Lepanto. Quando começou a Grande Guerra o Império Otomano já não possuía um território tão vasto quanto o alcançado no século XVI[33], mas ainda assim dominava quase toda a Arábia, a Anatólia e parte dos Balcãs, tendo também, teoricamente, domínio sobre o Egito.
Como vimos, os sentimentos nacionalistas espalharam-se por todo o lado e, logicamente, também pelo Império Otomano. Esses sentimentos constituíam um perigo para o império, mas a principal causa da desintegração foi a aposta em soluções militares, em detrimento de reformas políticas, de que resultou a entrada do Império na Grande Guerra. Este era composto por diversas nacionalidades: arménios, albaneses, árabes, curdos, gregos ortodoxos, judeus, búlgaros, entre muitos outros. Em julho de 1908, na sequência da tomada do poder pelos “Jovens Turcos”, um grupo de jovens oficiais determinados a modernizar o arcaico sistema político e económico, foi ainda levada a cabo uma reforma política, apelidada de “revolução constitucional otomana”, com eleições em todo o império, que daria origem ao primeiro parlamento desde 1878. No entanto, a “Primavera Otomana” duraria pouco tempo. O novo governo, liderado pelo Comité para a União e o Progresso demonstrou ser pouco democrático, e as perseguições étnicas e assassinatos políticos, nomeadamente em Adana, frustraram as esperanças de 1908, tendo o governo perdido o apoio popular e acabando por ser substituído pelo Partido da Liberdade e do Entendimento[34].
Foto 13 – Ossadas de arménios queimados pelos otomanos. Estima-se que tenham morrido entre um milhão a um milhão e meio de arménios no massacre (sempre negado pelos turcos) de abril de 1915.
A situação agravou-se quando, em setembro de 1911, sem razão aparente a não ser a ambição imperial, a Itália invadiu Trípoli, na Líbia[35]. A comunidade internacional não atendeu aos justos protestos otomanos, e os italianos reprimiram violentamente a resistência, enforcando publicamente 14 líbios, como exemplo para os restantes. Um ano depois, em outubro de 1912, um exército composto por tropas búlgaras, gregas, montenegrinas e sérvias invadiu as províncias otomanas do Kosovo, de Monastir e de Salónica, provocando grandes atrocidades sobre a população civil. Apesar de terem recuperado algum território durante a Segunda Guerra dos Balcãs (Edirne), os otomanos perderam territórios que detinham desde o século XIV e perderam também grande parte da população cristã. Os cristãos, aliás, foram acusados de deslealdade ao império durante a Guerra dos Balcãs. Se o império perdia súbditos de outras nacionalidades que não a turca, ia ganhando, por outro lado, muitos muçulmanos que se refugiavam no seu território. O círculo apertou-se. E a entrada do Império Otomano na Grande Guerra apenas apertou ainda mais o nó. A coexistência imperial esfumou-se. Com a eclosão da guerra surgiram ainda acusações mais fortes de deslealdade aos não muçulmanos e não turcos: os arménios e curdos foram acusados de se aliarem aos russos; os judeus aos britânicos; os cristãos árabes aos franceses; e os cristãos ortodoxos aos gregos[36].
O tecido do Império já se encontrava em muito mau estado quando os otomanos entraram na I Guerra Mundial, mas ficaria bem pior durante o conflito, ao ponto de rasgar-se em pedaços. Para isso contribuiu, mais uma vez, a opção militar repressiva sobre as populações. Foi o caso dos arménios, mortos e deportados em grande escala, em abril de 1915, numa ação que ficou conhecida como “Massacre Arménio”[37], estimando-se que tenham morrido entre um milhão a um milhão e meio de seres humanos. Os relatos são impressionantes. Também o que aconteceu com populações árabes da Síria e do Monte Líbano, onde, face à escassez de alimentos e ao bloqueio naval franco-britânico, a fome grassou mais fortemente do que no restante império, dizimando um número significativo da população[38]. Os protestos foram reprimidos brutalmente, o que fez muita gente virar-se contra o regime. Além disso, as populações estavam também sobrecarregadas com impostos destinados ao financiamento da guerra e sentiam-se revoltadas e reprimidas. Tudo isto constituiu um processo irreversível na direção do desmembramento do Império Otomano.
Foto 14 – Exercícios de cavalaria turca em frente ao Belenenses, na Turquia, em março de 1917
Quanto à guerra propriamente dita, é preciso perceber que a Turquia estava isolada internacionalmente. Muitos dos seus territórios eram cobiçados. Por outro lado, as potências europeias tinham acelerado o seu desenvolvimento tecnológico relativamente ao Império Otomano. Neste contexto foi vista como uma oportunidade única a aliança militar assinada entre otomanos e alemães, em 2 de agosto de 1914 – do ponto de vista turco, oportunidade para esvaziar a pressão de russos e britânicos sob os seus territórios. A primeira grande ação dos otomanos na guerra foi um ataque naval à esquadra russa no Mar Negro, em Odessa, com dois navios alemães, sob bandeira turca. Em novembro, o sultão otomano declarou a guerra santa, a famosa jihad, incitando todo o mundo islâmico ao levantamento armado. Pouco depois, na tradicional arena dos conflitos russo-turcos – o Cáucaso – os otomanos sairam frustrados, pois atacaram no início do inverno e acabariam por perder 80.000 homens durante os três meses seguintes, não conseguindo chegar à cidade de Sarikamis, território perdido para a Rússia em 1878. Noutra frente, tentaram cruzar o Suez e invadir o Egito ocupado pelos britânicos, também sem sucesso. No entanto, pouco mais de um ano depois, derrotaram os britânicos[39] em Kut, no Iraque, após estes terem conquistado Bassorá e, numa batalha mítica a que já fizemos referência, em Galípoli, no Estreito de Dardanelos, resistiram, sob o comando de Mustafa Kemal e com o apoio dos alemães, ao assalto a Constantinopla, iniciado em janeiro de 1915. Morreram na batalha 400.000 homens. Em junho de 1916, o xerife árabe de Meca, Husayn ibn Ali, revoltou-se contra o Império, apoiado pelos britânicos, que esperavam uma revolta árabe generalizada, sem sucesso. Em 1917, os otomanos conseguiram ocupar Erzurum e Trebizonda, aproveitando uma janela de oportunidade aberta pela revolução russa. No fim do ano, os ingleses conquistaram Jerusalém e, em outubro de 1918, ocuparam Alepo no Norte da Síria.
Foto 15 – Mustafa Kemal Atatürk, o fundador da moderna Turquia, considerado ainda hoje, justamente, um herói nacional.
Entretanto, a Grande Guerra terminara, mas isso não representou o fim dos confrontos para os turcos. Na primeira metade de 1919, britânicos e franceses ocuparam Istambul, enquanto os gregos desembarcavam no Oeste do Egeu e os italianos no Sul. Os turcos formaram um movimento de resistência, a princípio desgarrado, mas, ainda em 1919, organizado em torno do comandante Mustafa Kemal. Em agosto de 1920, a Turquia assinou com as potências aliadas o Tratado de Sèvres, sem a presença dos Estados Unidos e da Rússia. O Império Otomano decrescera significativamente e o seu território era agora menor que a Anatólia. Havia perdido todas as possessões na Península Arábica para novos Estados sob o controlo de franceses ou britânicos – Síria, Líbano, Iraque, Arábia Saudita, Palestina, Transjordânia – e foi invadido por forças italianas, que reclamavam seu direito a Adália (de acordo com o Tratado de londres, de 1915) e pelos gregos, que reivindicavam seus direitos na Trácia e regiões da Anatólia, sobretudo Izmir.
Estas imposições galvanizaram o movimento de resistência que as rejeitou e levou ao poder Mustafa Kemal Atatürk. Com a ajuda dos bolcheviques, foram derrotados os arménios no Leste. Seguiram-se confrontos sangrentos com os gregos (apoiados tacitamente pelos Aliados), que culminaram na conquista de Izmir, em setembro de 1922, e a expulsão dos gregos da Anatólia. As forças turcas ameaçavam ainda expulsar os britânicos dos estreitos. O sultanato turco foi abolido, mas manteve-se o califado ainda mais dois anos. Finalmente, após três anos confusos, foi assinado o Tratado de Lausanne, em julho de 1923, o qual revogou o humilhante Tratado de Sèvres e devolveu à Turquia a plena soberania sobre os estreitos de Bósforo e Dardanelos, sobre Istambul e seu território europeu, bem como a Armênia Ocidental, o Curdistão Ocidental e a costa oriental do mar Egeu (cidades como Izmir e Éfeso). A fronteira com o Iraque foi traçada de maneira velada para ser confirmada três anos mais tarde pela Sociedade das Nações, que outorgou, a título definitivo, a região do Mossul ao Iraque.
Em 29 de outubro de 1923 foi proclamada a República da Turquia. Começaram os esforços para reformar e adequar o país ao seu novo papel. Mustafa Kemal Atatürk fora um competente comandante militar e revelar-se-ia, como primeiro presidente da República Turca, um hábil reformador, levando a cabo, com sucesso, a transformação de um império muçulmano num moderno, democrático e secular Estado-Nação, que aboliu o califado, em março, de 1924 e os tribunais da Sharia, em abril. No dia primeiro de março desse ano, em discurso perante a Assembleia, Mustafa Kemal afirmou: “A religião islâmica elevar-se-á se deixar de ser um instrumento político, como aconteceu no passado”[40]. Infelizmente, como podemos verificar nos dias de hoje, essas palavras não se revelariam proféticas.
6- IMPÉRIO FRANCÊS
A França chegou atrasada em relação a Portugal e Espanha, à corrida colonial, embora tenha cobiçado territórios de ambos os países[41]. Assim, a França só iniciou o seu primeiro período colonial em 1605, com a fundação de Port Royal, no atual Canadá, que deu origem à colónia francesa de Acádia. Em 1608 é fundada a cidade de Quebec, por Samuel de Champlain, futura capital da Nova França, um extenso território, esparsamente povoado, que ia desde o Nordeste do Canadá até a atual Louisiana, nos Estados Unidos. Em 1624, os franceses estabelecem-se na Guiana e sensivelmente na mesma época já estão na Martinica, Guadalupe, Haiti e também no Senegal, construindo uma extensa e rentável rede de comércio intercontinental. Por volta de 1670 a França começa um projeto de colonização da Índia, fonte de produtos de larga aceitação comercial. Estes interesses entrarão em choque com os dos britânicos, sendo os franceses derrotados, no âmbito da chamada Guerra dos Sete Anos, entre 1756 e 1763. Este é o ponto de decadência de seu primeiro projeto colonial, resultando na perda dos postos na América do Norte, Haiti e Índia. É o fim da primeira fase do império.
Foto 16 – Navios franceses no Estreito de Dardanelos. As forças navais dos Aliados foram repelidas pelas minas inimigas na Batalha de Galípoli, em março de 1915.
Uma segunda fase surgiria já no século XIX, mais concretamente em 1830, quando a França parte para novas conquistas coloniais, concentrando-se então no inexplorado e quase desconhecido continente africano, primeiro na Argélia, e posteriormente em parte da África Ocidental e Equatorial, além de Madagascar e Djibouti. A presença francesa, ao longo do século XIX vai ainda estender-se à Indochina, com o domínio dos Cambodja, Laos e Vietnam, além das possessões no Pacífico – Nova Caledónia, Polinésia, Wallis e Futuna[42]. Tratava-se, portanto, de um grande império, com cerca de 12 milhões de quilómetros quadrados, aquele possuído pela França em vésperas da I Guerra Mundial. Desse império seriam recrutados cerca de 500.000 combatentes (e 200.000 trabalhadores), que integraram os mais de oito milhões de soldados franceses envolvidos, entre 1914-1918, no esforço de guerra, com elevados custos, diga-se, pois apenas cinco meses após o início do conflito tinham já morrido 300.000 homens[43]. Os franceses foram, aliás, os que mais sofreram nos momentos iniciais da guerra, sobretudo no Marne (setembro de 1914) e em Ypres (cerca de um mês depois), mas muitíssimo também em Verdun, já em 1916, de tal forma que a sua participação na Batalha do Somme, nesse mesmo ano, foi já inferior (com seis divisões de primeira linha) à dos britânicos (com dezanove divisões).
Os sacrifícios franceses foram considerados, em parte, responsabilidade do seu comandante Joffre, o qual foi substituído por um general politicamente mais consensual, Robert Nivelle. Mas este também não resistiu muito tempo à frente do exército, apesar do seu otimismo. Na primavera de 1917, a sua ofensiva pelo Aisne saldou-se em fracasso, com perdas de 130.000 homens. Nivelle foi então substituído por Pétain, o herói de Verdun. Nesta altura, o exército francês já não aguentava mais e entrou em colapso, com unidades inteiras a recusarem-se a alinhar na frente de combate. Pétain conseguiu restabelecer o moral, dando melhores condições aos soldados e evitando ofensivas de vulto. E assim permaneceu o exército francês até o fim desse ano, 1917 – esperando que no ano seguinte chegasse o auxílio americano. Em 26 de março de 1918, realizou-se uma conferência interaliada em Doulens, perto de Amiens, e daí resultou a importante decisão de entregar o comando dos exércitos aliados a uma única pessoa, no caso, o então chefe do Estado-Maior francês, marechal Ferdinand Foch. A partir daí tudo melhorou. Em 16 de julho, os franceses, sob o comando do general Mangin, repeliram a ofensiva alemã em Reims. E em 5 de agosto, uma força conjunta de americanos, franceses e britânicos contra-atacou, obrigando os alemães a recuar, fazendo 30.000 prisioneiros. A ofensiva aliada culminou com a ordem de Foch para um ataque geral, em 3 de setembro – “tout le monde à la bataille!” – que só parou com a rendição alemã.
Os custos da participação francesa na Grande Guerra, não foram apenas em vidas humanas. A França gastou anualmente cerca de 34 mil milhões de francos[44]. Para esse esforço contribui todo o Império, sobretudo as colónias que constituíam a enorme federação da África Ocidental Francesa (AOF) e a Indochina. O Estado interveio orientando a população indígena da AOF para a produção de determinados produtos, como os óleos de palma e de amendoim, como forma de aumentar a produção e exportação desses bens, o que veio a desestabilizar as economias locais. A França obrigou as suas colónias a venderem os produtos a preços fixos, pelo que estas, além de serem sobrecarregadas com impostos para financiamento da guerra, eram ainda obrigadas a enviar para a metrópole produtos a baixo custo.
Foto 17 – Estação telegráfica em Paris.
Para agravar a situação dos territórios coloniais, e face ao perigo que representava a presença de submarinos alemães nas águas atlânticas, as importações diminuíram bastante, o que acabou por provocar uma subida dos preços e o consequente aumento da inflação. Apesar disto, as receitas totais do Império Francês nunca excederam os custos[45], o que, na verdade, aconteceu com todos os impérios[46]. Assim, embora alguns pensassem o contrário, os impérios não eram rentáveis, mas, sobretudo, constituíam uma forma de prestígio internacional que nenhuma potência queria perder. Por outras palavras, “para muita gente, o império ainda era mais importante psicologicamente do que materialmente, apesar da visão psicológica ser alimentada por sonhos com a base material da riqueza e da força imperiais”[47].
As condições difíceis e, em alguns casos, dramáticas que ocorriam nas colónias levaram a algumas insurreições no período da guerra, que seriam resolvidas brutal e eficazmente pelas forças imperiais. Foram os casos, ambos em 1916, da sublevação da corte do imperador Duy Tan, em Annam, na Indochina, e da resistência dos membros da organização secreta anticolonialista VVS, em Madagascar. Os principais problemas com os territórios coloniais surgiriam, porém, depois da guerra, quando a França viu aumentado ainda mais o seu império, na sequência do entendimento com a Grã-Bretanha, sobre as possessões conquistadas aos otomanos no Médio Oriente, consubstanciado na Conferência de San Remo, em abril de 1920. A França assumiu o mandato da Liga das Nações sobre a Síria e o Líbano, tendo absorvido também os antigos territórios alemães em África.
As consequências da Grande Guerra não foram, porém, aquelas que os imperialistas franceses esperavam, apesar dos territórios ganhos na Europa, no Médio Oriente e em África. Na vertente doméstica, a França continuou mais fraca do que a Alemanha, que, como se verificou, continuaria uma potencial ameaça, face ao desfecho da guerra. Na vertente colonial, a Síria revelou-se sempre uma dor de cabeça para os franceses. O bombardeamento da capital, Damasco, em 1945, foi o culminar de uma série de conflitos, mas isso não impediu que a Síria abandonasse o Império Francês no ano seguinte. Foram também os casos da Indochina e do Vietnam, onde sobressaiu o anticolonialista Ho Chi Minh, e do Senegal, com a decidida ação de Léopold Senghor. É quase certo que o Império Francês se desmoronaria, mais cedo ou mais tarde, como todos os outros, mesmo se não tivesse acontecido a Primeira Guerra Mundial. Mas assim como o vasto império da França contribuiu para que o conflito fosse realmente global, também a Grande Guerra contribuiu para que a queda do Império fosse irremediavelmente mais rápida.
7- IMPÉRIO ITALIANO
A Itália é um país relativamente recente, enquanto Estado unitário, e, ainda mais que a Alemanha, chegou tardiamente à disputa imperial. É de realçar que, em 1911, a Itália estava a celebrar os 50 anos do “Risorgimento”, uma palavra que evoca o ressurgir da Terceira Itália, depois do poderoso Império Romano e do Renascimento. E, apesar de Vitor Emanuel II ter assumido, em março de 1861, o título de rei (após várias batalhas pela independência contra os austríacos), mesmo assim, a Itália desse tempo não coincidia territorialmente com a de hoje. Só em 1868, na sequência da Paz de Viena, o Veneto foi anexado ao reino de Itália, e apenas em 20 de setembro de 1870, a capital do Estados Pontifícios, Roma, após o abandono da cidade do exército francês, mobilizado para a guerra com a Prússia (1870-1871), seguiu o mesmo caminho. O Papa nunca aceitou a situação, que só ficaria resolvida no século XX, em 1929, com a criação do Estado do Vaticano, através da Concordata de São João Latrão, firmada entre Mussolini e o cardeal Pietro Gasparri, secretário de estado da Santa Sé. No entanto, no início da Grande Guerra, a Itália pretendia territórios que pertenciam ao Império Austro-Húngaro, o que só conseguiria após a guerra, em 1919.
Foto 18 – Munições usadas na Grande Guerra, descobertas recentemente, após derretimento do gelo nos Alpes italianos.
Dos pontos de vista económico, social e até militar, a Terceira Itália defrontava-se com graves problemas, sendo considerada “a menor das grandes potências”. A industrialização do país estava atrasada, a integração nacional era muito frágil e o exército italiano transportava ainda o trauma das humilhantes derrotas de Lissa, contra os austríacos, em 1866, e de Adwa, contra os etíopes, trinta anos depois. No dia 29 de setembro de 1911, os otomanos foram informados pelo ministro italiano em Constantinopla que estavam em guerra com a Itália, dado que navios italianos já cruzavam o Mediterrâneo para se apoderarem da Tripolitânia e da Cirenaica[48]. Os italianos contavam com uma vitória fácil e com a simpatia de árabes, judeus e berberes, que estariam cansados da tutela otomana.
Nada disto, porém, aconteceu. A resistência turca foi tenaz e recebeu o apoio da maioria dos habitantes locais. Houve um banho de sangue. Alguns italianos capturados foram crucificados em tamareiras, mutilados e castrados[49]. As forças italianas intensificaram os combates no Mediterrâneo Oriental, numa tentativa desesperada de fazer os otomanos capitular. Isso viria a acontecer, não tanto pelos feitos italianos, mas sobretudo porque os otomanos estavam isolados internacionalmente e decidiram concentrar seus esforços nas guerras balcânicas, na defesa dos territórios europeus. Assim, em outubro de 1912, foi assinado em Ouchy, subúrbios de Lausanne, um tratado de paz que confirmou a anexação italiana da Líbia.
No entanto, os otomanos não iriam desistir dos seus antigos territórios. A Líbia foi uma constante dor de cabeça para os italianos, que se agravaria após 1915, sobretudo depois da Itália ter finalmente entrado na Grande Guerra (em 23 de maio) e declarado guerra à Turquia, em 15 de agosto (só entrou oficialmente em combate contra a Alemanha um ano depois). Além disso, a Itália não tinha recursos suficientes para lutar em várias frentes e teve de optar entre o império e as suas ambições sobre Trento e Trieste. Luigi Cadorna, um piemontês incumbido de preparar o exército para a guerra na Europa, ficou horrorizado quando teve conhecimento do dinheiro gasto e dos recursos humanos e materiais enviados para a Líbia. Assim, em julho de 1915, mandou evacuar Fezã e a Tripolitânia, reduzindo o território italiano a Trípoli e ao porto de Homs. A Itália não gozava de grande popularidade, sobretudo pela sua inconsistência e oportunismo, primeiro fazendo parte da Tríplice Aliança (esperando o apoio alemão para retirar Nice e Saboia aos franceses) e depois juntando-se à Tríplice Entente (esperando o apoio aliado para retirar território aos austríacos). O próprio primeiro-minitro italiano confessou, com uma franqueza cativante, que a política italiana era guiada pelo “santo egoísmo”. Os italianos haviam firmado um tratado secreto com os britânicos (mais um dos muitos tratados com o título “Tratado de Londres”) em 26 de abril de 1915. Através desse tratado, eram-lhes prometidas todas as regiões italófonas ao sul dos Alpes, bem como o Tirol Meridional germanófono e as Eslovénia e Dalmácia, e ainda uma parte substancial da Anatólia.
Foto 19 – Prisioneiros austríacos em Itália. No final da Grande Guerra o exército austríaco estava completamente destroçado.
O exército italiano passou grande parte da guerra lutando nas montanhas para lá de Isonzo, onde perdeu quase um milhão de homens, sob o comando de Luigi Cadorna. Entre 24 de outubro e 9 de novembro de 1917 os italianos sofreram mais um desastre militar, desta vez na Batalha de Caporetto (já referida acima), que ocorreu perto da atual cidade de Kaborid, na Eslovénia (11.000 italianos mortos, 20.000 feridos e 275.000 prisioneiros). Os italianos recuaram até o rio Piave, onde, com a ajuda dos aliados, assentaram uma linha defensiva. Em junho de 1918, um grande exército austro-húngaro tentou romper esta linha mas foi repelido pelo exército italiano. Nova ofensiva austríaca, em outubro, haveria também de se saldar, como já vimos, por um insucesso e estabelecer o fim da Primeira Guerra Mundial, na frente italiana, determinando o fim do Império Austro-Húngaro.
Os restantes territórios ultramarinos italianos situavam-se na África Oriental, mais propriamente no designado “Corno de África”. A Eritreia foi adquirida pela Itália nos anos 80 do século XIX, como plataforma para uma futura conquista da Etiópia. Isso não veio a acontecer porque os italianos foram derrotados na Batalha de Adwa, em 1896, numa vitória estrondosa das tropas do imperador Menelik (7.000 mortos, 1.500 feridos e 3.000 capturados). Após a batalha foi assinado o tratado de Adis Abeba, que garantia as independência e soberania territorial da coroa etíope. Mais tarde, em 1935, a Itália procurou vingar-se, voltando a carregar sobre a Etiópia, com o apoio tácito de ingleses e franceses, que temiam a aliança entre Mussolini e Hitler. Um enorme exército de cerca de 177.000 homens desembarcou entre maio e setembro desse ano, na Eritreia e, a 3 de outubro, de madrugada, avançou para a Etiópia. Foi usada uma imensa violência, incluindo o uso do gás mostarda, numa evidente transgressão à Convenção de Genebra, assinada pela Itália em 1925. O imperador Haile Selassié foi obrigado a fugir para Londres. Os guerrilheiros etíopes deram imenso trabalho aos italianos, que seriam expulsos da Etiópia, cinco anos mais tarde, pelos britânicos, durante a Segunda Guerra Mundial.
Ao contrário do que aconteceu com a Líbia, na Eritreia não houve qualquer tumulto significativo, antes ou durante a Grande Guerra, o mesmo acontecendo com a Somália, que ficou ainda mais periférica relativamente ao conflito global. A Itália nunca tirou grande benefício das suas colónias, não soube desenvolvê-las e não criou as condições necessárias para ocupá-las. Em 1921, excetuando os militares, havia na Somália, 656 italianos, 3635 na Eritreia e 27.495 na Líbia. As ilhas do Dodecaneso, no extremo oriental do Mediterrâneo, hoje pertencentes à Grécia, mantiveram-se também, sem grande utilidade, nas mãos dos italianos. A colonização praticamente não existiu, havendo apenas lugar à posse. “Tudo o que a Terceira Itália fez foi construir um império de ilusões”[50].
8- IMPÉRIO BRITÂNICO
O Império Britânico, entre todos os envolvidos na Grande Guerra, era, provavelmente, o mais estável – algo notável, se tivermos em conta a sua dimensão, superior a 1/5 da superfície terrestre. A Inglaterra mantinha-se afastada de convulsões internas desde a Revolução Brilhante do século XVII. As suas instituições funcionaram adequadamente ao longo de centenas de anos e isso permitiu que os ingleses consolidassem uma cultura de confiança no Estado e criassem as condições necessárias (sobretudo, económicas) para a construção de um vastíssimo império ultramarino. Defender um império de tais dimensões não era tarefa fácil, e os britânicos, durante a Grande Guerra, foram obrigados a combater em várias frentes: na Frente Ocidental, no Médio Oriente, em África, na Ásia e no mar. De facto, o mar conferiu ao conflito a sua característica global: no Atlântico Norte, no Mediterrâneo, no Atlântico Sul, no Pacífico, nos mares da Oceania e do Sudeste asiático, no Índico. No primeiro ano de guerra, quando a maioria dos confrontos estrategicamente importantes se deu no mar, isso requereu, para além dos recursos navais, capacidades de abastecimento e comunicação. Nestes aspetos decisivos, a Marinha britânica mostrou-se sempre competente.
Já vimos como a questão era importante, de tal forma que levou a Grã-Bretanha à guerra, face à ameaça alemã. Era importante não só para controlo das rotas comerciais e zonas operacionais críticas, mas também, em caso de conflito, para apoio aos exércitos em terra, sobretudo através da realização de bloqueios e de apoio logístico. Foi com esses objetivos em mente que a Alemanha desafiou a Inglaterra na grande corrida de construção de couraçados dreadnought na primeira década do século XX, uma competição que equipou suas frotas com dezenas de vasos de guerra (em 1914, a Inglaterra tinha vinte e oito e a Alemanha dezoito) capazes de destruir-se mutuamente até uma distância de vinte e oito quilómetros[51]. As intenções alemãs falharam e, após um bombardeamento das cidades costeiras inglesas e de um confronto em Dogger Bank, no inverno de 1914-15, e ainda da inconclusiva batalha de Jutlândia (maio de 1916), a sua frota ficou confinada aos portos germânicos, controlada à distância pelos ingleses, que mantinham a sua Grande Frota, em Scapa Flow, no extremo norte da Escócia, pronta para qualquer eventualidade.
Foto 20 – Soldados britânicos antes da Batalha de Galípoli (1915). As baixas de ambos os lados foram significativas e os Aliados não conseguiram os seus intentos – tomar Constantinopla.
A Marinha Real, entretanto, fazia o seu trabalho, crucial na conquista dos territórios alemães do continente africano- Togolândia, Camarões, África Ocidental Alemã e África Oriental Alemã. O principal objetivo britânico era o afundamento de navios alemães, a conquista de portos e a destruição de estações de rádio para eliminar as comunicações do inimigo. A conquista da Togolândia (a primeira ação da Grã-Bretanha na Grande Guerra), em coordenação com as forças francesas[52] foi relativamente fácil, e ocorreu ainda em agosto de 1914, após a fuga de uma pequena força de Schutztruppen, da capital, Lomé. Os alemães nos Camarões revelar-se-iam mais coriáceos, dando luta cerrada e chegando a fazer incursões pela Nigéria, resistindo, até fevereiro de 1916, às forças britânicas, (combatentes nigerianos e um batalhão indiano). A marinha britânica abriu o caminho para a invasão da África Ocidental Alemã, desde logo ao eliminar qualquer interferência naval. A esquadra germânica da Ásia Oriental, do vice-almirante Maximiliam Graf von Spee, fora destruída; e os bombardeamentos sobre Swakopmund e Lüderitz, haviam destruído portos e estações de rádio. A invasão terrestre foi levada a cabo, no início de 1915, por 45.000 homens das forças da União Sul-Africana, apoiados por cerca de 33.000 militares africanos e mestiços desarmados[53]. Em julho de 1915, o governador Seitz sem forças para continuar a resistir, ofereceu a capitulação da colónia[54].
Na África Oriental Alemã tudo foi muito mais difícil e complicado. O intrépido comandante alemão Paul Emil von Lettow-Vorbeck repeliu a tradicional manobra britânica de atacar portos e estações de rádio, e contra-atacou sobre o caminho de ferro do Uganda, estrategicamente importante. As baixas de ambos os lados foram significativas. Alguns responsáveis militares britânicos consideravam insustentável um conflito prolongado naquela zona, com “pantanais fétidos, doenças parasitárias, como a malária e o tifo, arbustos acerados e mato denso, um calor arrasador e uma humidade sufocante”[55], mas o que aconteceu foi um conflito prolongado, que só terminaria após o armistício na Europa. As forças de germânicas, mantiveram-se sempre em movimento, evitando o cerco inimigo. Soldados da Nigéria, da Costa do Ouro[56], da Rodésia e da União Sul-Africana não conseguiram derrotar os askaris[57] comandados por Lettow-Vorbeck, que desciam para a África Central quando capitularam, após quatro anos e meio de confrontos. O esforço foi enorme e o custo em vidas humanas muito elevado. Sobretudo entre o estimado um milhão de carregadores indígenas, população de camponeses locais, que terá sido atingida por uma mortalidade, causada pela guerra e pelas doenças, superior a 10%[58].
Mas não foram apenas os camponeses africanos os únicos a pagarem com a vida a sua participação na Grande Guerra. A Grã-Bretanha contava com o apoio de todo o império – constituído por cerca de 70 unidades, entre colónias, principados, protetorados, reinos e domínios. Para além dos africanos, perderam a vida na Grande Guerra 60.000 australianos e um número idêntico de canadianos; 53.000 indianos; 35.000 irlandeses; 20.000 neo-zelandeses; e 1.000 combatentes das Índias Ocidentais.
Desde o início da guerra que a questão da lealdade ao Império preocupou os responsáveis britânicos, sobretudo nos casos irlandês e indiano, em que o sentimento pró-autonomia era mais forte. O caso dos africânderes era também de peso, porque se temia que os ressentimentos decorrentes da guerra dos Bóeres pudesse minar o entusiasmo do alistamento ou até fazer pender a balança para o lado dos alemães. As minorias católicas do Quebeque, no Canadá, e dos irlandeses, na Austrália, eram também motivo de preocupação. Afinal, os temores revelar-se-iam maioritariamente injustificados, embora tenham acontecido algumas situações muito graves, como a tragédia do domingo de Páscoa sangrento, em 1916. Poucos dias após o esmagamento da revolta, foram presos 3.500 cidadãos, tendo 90 deles sido condenados à morte. Catorze foram fuzilados três semanas depois do início da revolta, tornando-se mártires da causa republicana. Na Índia, vários movimentos nacionalistas procuraram desestabilizar o regime, mas não tiveram o efeito que desejavam pois não conseguiram cativar para a sua luta a principal corrente nacionalista. Por outro lado, uma rebelião pan-indiana programada para o Dia de Natal de 1915 seria intercetada pelos serviços de informação britânicos. Estes também tiveram de lutar pelos territórios do Médio Oriente que tinham pertencido ao Império Otomano, como foi o caso do Egito, onde em 1919 surgiu uma revolta dificilmente controlada pelos ingleses, com pelo menos 800 mortos entre os rebeldes.
Foto 21 – Mascote do cruzador HMAS Encounter (marinha australiana), dentro do cano de uma arma de 6 polegadas.
No Médio Oriente, as tropas britânicas tinham invadido a Turquia, não só vindas do Egito mas também da base que tinham estabelecido em novembro de 1914 em Basra, na ponta do Golfo Pérsico, para assegurar o controlo sobre os poços de petróleo e simultaneamente encorajar a revolta local. Foi nesta época que os britânicos começaram a trocar o carvão pelo fuel como combustível para os seus navios. Em 1915, a partir de Basra as tropas britânicas (compostas sobretudo por indianos) subiram, pelos vales do Tigre e do Eufrates, com intenção de tomar Bagdade. Nesse percurso viriam a ser assolados por doenças e, já em 1916, em abril, após um cerco de 5 meses, tiveram de se render em Kut-el-Amara, a 130 quilómetros de Bagdade. Foram feitos 10.000 prisioneiros, dos quais 4.000 morreram no cativeiro. No entanto, em dezembro, foi montada uma expedição de maior envergadura que retomou Kit e ocupou Bagdade em março do ano seguinte. Após o desaire em Galípoli, os britânicos ficaram ainda mais preocupados com a defesa do Canal do Suez, e conseguiram defendê-lo com êxito quando os otomanos atacaram pelo deserto do Sinai, em 1916. Em 1917, foi enviado para o Médio Oriente um novo comandante, general Sir Edmund Allenby, que se viria a confrontar com o alemão Erich von Falkenhayn, ambos afastados das frentes europeias. Allenby demonstrou ser um mestre na arte da cavalaria, apoiada por aviões, mas também é um facto que as suas forças eram superiores em número e equipamento. Em outubro varreu os turcos de Gaza e continuou até Jerusalém, que conquistou ainda antes do Natal. No ano seguinte completou a conquista da Palestina, com uma vitória na batalha de Megiddo – a última da história militar ocidental em que a cavalaria teve o papel principal – e continuou para norte, ao longo da costa, conquistando a Síria no final de outubro. Entretanto as comunicações ferroviárias turcas eram sabotadas por forças árabes recrutadas e lideradas por um jovem arqueólogo, o coronel T. E. Lawrence, que ficou conhecido por Lawrence da Arábia.
As vitórias de Allenby haveriam de trazer consequências impossíveis de prever na altura. Elas possibilitaram o cumprimento da promessa de criar um lar para o povo judeu feita através da Declaração de Balfour. Só que essa promessa foi realizada sem que fossem consultados os árabes, a quem também tinha sido prometido o território em troca do apoio militar. E os árabes também não foram consultados quando ingleses e britânicos decidiram dividir a região em duas esferas de influência, através do Acordo Sykes-Picot. As tentativas de conciliar as posições inconciliáveis que se construíram durante o período da Grande Guerra haveriam de manter a região em tumulto até a Segunda Guerra Mundial e, pior do que isso, criaram problemas angustiantes que em pleno século XXI permanecem sem solução[59].
Foto 22 – Soldados britânicos entram em Lylle, França, em outubro de 1918.
Na frente ocidental, os britânicos sofreram pesadas baixas, como já vimos. A sua participação foi crescendo em número de tropas, e quando chegou a 56 divisões, os decisores em Londres acharam que Sir John French já não estava à altura do desafio e substituíram-no no comando da Força Expedicionária Britânica por Sir Douglas Haig. Este militar, embora não fosse do inteiro agrado do novo primeiro-ministro, David Lloyd George, manteve-se até o fim da guerra. Lloyd George entendeu-se com o seu homólogo francês, Georges Clemenceau, no sentido de criar um Conselho Supremo de Guerra – e isso restituiu aos políticos o poder de definir a estratégia militar dos Aliados. Os desenvolvimentos na frente ocidental foram já abordados acima, quando analisámos, ainda que com pouco detalhe, as batalhas que ceivaram milhões de vidas, ao longo de quatro penosos anos, e que culminaram na ofensiva final dos Aliados. Resta apenas acrescentar que, quando nos referimos a tropas britânicas, nelas estavam incluídas forças canadianas e australianas, as quais sofreram pesadas baixas.
Apesar do Império Britânico ter passado pelos problemas tradicionais em tempo de guerra, pelos quais passaram todos os impérios, a sua extensão e profundidade não atingiu níveis alarmantes. Houve escassez de alimentos e consequente efeito inflacionário, houve aumentos de impostos para financiamento da guerra, houve muitas greves e mesmo motins, mas as sociedades não se desintegraram. Depois da guerra, o Império Britânico atingiu o apogeu da sua história, cobrindo mais território do globo terrestre do que alguma vez acontecera. Excetuando o caso da Irlanda, o império permaneceu intacto. No entanto, este triunfo era já o prenúncio do fim do império. Na maioria dos casos foi precisa uma segunda grande confrontação global para que o império finalmente se transformasse numa comunidade de parceiros iguais, mas, como aconteceu em todos os outros impérios, a Grande Guerra criou uma dinâmica política e cultural irreversível na direção da autodeterminação[60].
9- IMPÉRIO PORTUGUÊS
O envolvimento de Portugal na Grande Guerra deu-se em dois cenários distintos – França e África. Para França foram enviados 63.062 soldados e para África 34.457. Apesar do número de efetivos em França ter sido quase o dobro do de África, morreram mais portugueses no continente negro (3.800) do que em França (1.787)[61]. Isto é compreensível, porque, por um lado, as condições em África eram bastante mais duras e, por outro, porque ali a guerra começou ainda em 1914, enquanto que os primeiros contingentes do Corpo Expedicionário Português só foram enviados para França em janeiro de 1917. Portugal não estava preparado para “assumir tão exigente compromisso”, como declarou recentemente o atual Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, na Cerimónia Nacional de Homenagem aos Mortos da Grande Guerra. Isto foi notório em África (e também em França), onde os portugueses não souberam, e talvez não pudessem, colonizar efetivamente os extensos territórios, mais ou menos definidos após a Conferência de Berlim, que correspondiam a Angola e Moçambique. Os responsáveis que decidiram desenhar o célebre Mapa Cor-de-Rosa, porém, não devem ter pensado nisso – nos escassos recursos materiais e humanos existentes em Portugal.
O recuo nas pretensões portuguesas imposto pelo seu mais antigo aliado, a Inglaterra, em 1890, foi aproveitado pelo Partido Republicano, que desencadearia uma primeira insurreição, sem sucesso, no ano seguinte. Finalmente, em outubro de 1910 foi implementada a República. O Partido Republicano cindiu-se rapidamente em várias fações rivais, fruto das divergências ideológicas dentro da sua organização. Porém, todas estavam de acordo numa coisa: Portugal devia manter-se uma potência colonial. “Os republicanos eram nacionalistas com uma leitura peculiar mas errónea da história portuguesa, segundo a qual o génio nacional que se manifestara no passado, em especial, na época dos Descobrimentos, fora restringido e quase extinto por forças reacionárias como a Igreja Católica e a coroa”[62]. Havia que restaurar esse génio, e ninguém, de acordo com a sua própria leitura histórica, poderia conduzir melhor o povo nesse objetivo que os republicanos. Porém, pouca gente em Portugal, incluindo os republicanos, tinha noção, e, muito menos, experiência, de como gerir territórios tão vastos como, por exemplo, os de Angola e Moçambique.
Foto 23 – Soldado português.
Por um lado, não existia dinheiro em Portugal – um problema crónico do país, que se mantém ainda hoje. Não havia gente com capacidade para investir nas colónias, que, aliás, eram fracamente povoadas pelos portugueses, muito dos quais eram condenados enviados para o Ultramar pelo Estado. Afonso Costa[63], líder do Partido Democrático, um dos que mais lutou pela manutenção das colónias, chegou a afirmar que aquilo de que Portugal precisava para manter o império não eram massas de gente pobre, mas de umas quantas pessoas com forte capacidade de investimento. Não havendo essas pessoas, era o Estado que tinha de investir. Costa, o único chefe do Governo, até hoje, (excetuando Salazar) a conseguir excedente orçamentário, destinou parte significativa desse excedente à Marinha, cujo desenvolvimento era indispensável para manter as ambições coloniais[64]. Por outro lado, Portugal era considerado, pelas potências europeias um país, além de pobre, atrasado e incapaz de gerir e desenvolver de forma civilizada as suas colónias. Haviam relatos diversos de maus tratos sobre a população indígena. Os ingleses, sobretudo, chamaram várias vezes a atenção de Portugal sobre as condições dos angolanos, obrigados a trabalhar nas plantações de cacau de São Tomé e Príncipe. Em Moçambique, a situação era idêntica, com trabalhadores enviados para as minas do Rand e da Rodésia.
As condições nas colónias eram, portanto, graves, com uma ocupação deficiente, integração das populações locais na sociedade praticamente inexistente, pobreza, exploração e brutalidade. O imposto de palhota era muitas vezes o único elo de ligação entre os indígenas o a administração local. Estima-se que existissem na época cerca de 1.000 colonos em Moçambique e outros tantos em Angola. A integridade dos territórios não era mantida por quaisquer laços sociais, mas sim pela ameaça da força militar. É claro que quando esta ameaça era menos efetiva, havia sempre quem se revoltasse. Assim, Portugal viu-se envolvido na Grande Guerra duma forma peculiar: enquanto os outros impérios recrutaram os indígenas africanos para combater ao seu lado, os portugueses tiverem de enviar tropas da metrópole para combater os africanos. “Só em parte é que estes foram destacados para fazer frente às pequenas forças alemãs reunidas contra eles. Grande parte do esforço de guerra português em África, durante a guerra, foi dedicado a combater os africanos”[65].
Foto 24 – Trincheiras junto ao rio Rovuma, em Moçambique.
As principais revoltas africanas ocorreram no ano de 1917, e foram causadas pelos maus tratos, expropriação de terras, impostos excessivos e recrutamento para trabalho escravo. Os portugueses valeram-se das rivalidades tribais para suster as revoltas. Nesse ano horribilis, aconteceu, am abril, uma revolta nas plantações de café de Amboim e Novo Redondo, em Angola. Os revoltosos mataram colonos e suas famílias, tendo causado uma das maiores perdas de vidas europeias em Angola até 1961. Durante mais de um ano houve combates entre africanos até a revolta ter sido esmagada por auxiliares ovimbundos. Ainda na primavera desse ano, houve uma revolta dos macondes, no norte de Moçambique, reprimida com a ajuda de tropas auxiliares macuas. De novo em Angola, na província de Cuanza Sul, revoltou-se o grupo étnico dos ambundos, o qual só seria controlado no ano seguinte, com custos elevados para a população local. Mas a revolta mais grave deu-se em Moçambique, junto ao rio Zambeze, que divide o país em dois. Valeu a ação das tropas auxiliares angunes[66], cujos combatentes receberam dez xelins por mês e tiveram direito a saquear tudo o que pudessem transportar. Esta campanha militar foi baseada no terror e prolongou-se até ao fim da Primeira Guerra Mundial.
Estes problemas refletiram-se na péssima campanha portuguesa contra as forças alemãs da África Oriental[67]. Vários testemunhos, entre os quais as memórias de campanha de Carlos Selvagem, Tropa d’África (“Jornal de Campanha dum Voluntário do Niassa”), publicada no início da década de 1920, e a tese de doutoramento em Medicina, em 1919, de um médico, João Rodrigues da Costa, mostram a impreparação e a condição miserável das tropas coloniais, sem equipamentos nem formação adequados e sem qualquer experiência, chegando ao ponto de usar como comida das tropas bacalhau salgado, comida que requer água preciosa para cozinhar e que aumentava a sede dos soldados. Não admira, neste contexto, que os portugueses, embora em maior número, sofressem várias derrotas dos alemães, melhor preparados e orientados, e que contavam com a colaboração de algumas tribos locais.
Foto 25 – Tropas portuguesas desfilam numa localidade francesa em 1918, após a guerra.
As escaramuças começaram logo em 1914, dado que os alemães supuseram, erradamente, que Portugal, velho aliado de Inglaterra, também estaria em guerra contra a Alemanha. Em dezembro, na fronteira sul de Angola, um pequeno conflito culminou na batalha de Naulila e na derrota dos portugueses. Após a conquista da África Ocidental Alemã e da sua integração na República Sul-Africana, uma expedição enviada por Lisboa conseguiu restabelecer o controlo da região sul de Angola, através de uma campanha brutal. Para o norte de Moçambique, junto à fronteira com a África Oriental Alemã, foi enviada, em meados de 1916, uma força com mais de 4.500 oficiais e soldados, comandada pelo general Ferreira Gil, com o objetivo de entrar em território alemão. Porém, tudo estava contra o general: a pressão de Lisboa, que reclamava uma rápida vitória; a impreparação das tropas; as condições adversas no terreno; a tenacidade dos alemães; as ambições da União Sul-Africana sobre a baía de Moçambique e os territórios adjacentes à África do Sul[68]; e, provavelmente, a sua própria negligência[69]. Os portugueses sofreram uma derrota humilhante que só a intervenção oportuna das forças navais britânicas evitou que fosse total. No ano seguinte, deu-se a primeira invasão alemã de Moçambique, com 400 soldados, na sua maioria askaris, comandados pelo capitão Von Stümer. Portugueses e britânicos conseguiram repeli-la.
Foto 26 – Aníbal Augusto Milhais, o soldado Milhões.
No final do ano, as forças alemãs, comandadas pelo general Von Lettow-Vorbeck, que se movimentavam constantemente por forma a evitar o cerco inimigo, entraram em Moçambique e desfeitearem a posição portuguesa em Negomano, apoderando-se de armamento e munições, víveres e medicamentos, de que muito careciam. As forças portuguesas foram massacradas, tendo escapado poucos para contar o que se passou, como foi o caso do sargento Cardoso Mirão[70]. Os alemães, que estavam esgotados após dois anos de combates, tinham agora os recursos suficientes para continuarem a sua longa caminhada por Moçambique, até regressarem, em setembro de 1918, à África Oriental Alemã. O comando operacional português em Moçambique foi muito criticado, sobretudo por manter as forças dispersas e muito afastadas umas das outras. Os ingleses consideraram os portugueses um empecilho no seu combate contra os alemães e sugeriram que as forças portuguesas ficassem sob a alçada do general sul-africano Jacob van Deventer. O governo português, chefiado então pelo não-intervencionista Sidónio Pais, aceitou. A humilhação já era total mas faltava um derradeiro episódio no suplício luso em Moçambique. No dia 3 de julho de 1918, as forças germânicas atacaram Namacurra. A guarnição luso-britânica entrou em pânico e fugiu de forma tão desordenada que muitos se atiraram ao rio, acabando por morrer afogados.
Em França, os portugueses também passaram por grandes privações. As tropas, além de mal treinadas, estavam desmoralizadas, pois não eram substituídas como se impunha. A partir do final de 1917, os navios britânicos necessários ao transporte das tropas portuguesas estavam ocupados a transportar os americanos, considerados justamente bem mais importantes para a decisão da guerra que os portugueses. Além do Corpo Expedicionário Português, Portugal também enviou para França o Corpo de Artilharia Pesada Independente (CAPI), o qual operou sob comando do exército francês. A derrota na Batalha de La Lys foi a mais pesada em toda a participação portuguesa, num confronto desigual, quando Ludendorff ordenou a ofensiva alemã em Ypres, no dia 9 de abril de 1918. Muitos portugueses foram feitos prisioneiros. Foi também nesta batalha que se distinguiu o soldado Aníbal Augusto Milhais, que ficou conhecido na história como soldado Milhões[71].
No rescaldo da guerra, a posição portuguesa estava, obviamente, fragilizada. Os portugueses eram considerados incapazes por franceses, belgas e sul-africanos, que cobiçavam os seus territórios coloniais. Em março de 1919, Afonso Costa, que era o presidente da delegação lusa à Conferência de Paz de Paris, reuniu-se com o secretário das Colónias britânico, Lord Milner. Afonso Costa foi um hábil negociador e defendeu exemplarmente Portugal. Prometeu investigações sobre os casos de maus tratos às populações, referindo que muitos deles eram empolados por inimigos dos portugueses, que o eram também da Inglaterra – e lembrou que Portugal tinha entrado na guerra por solidariedade para com o seu mais antigo aliado. Os responsáveis portugueses acabaram por pedir uma avultada indemnização, que foi rejeitada. Portugal foi o único país aliado envolvido nos combates em África que não recebeu um território alemão. Em compensação, foi-lhe atribuído o disputado triângulo de Quionga[72].
As colónias portuguesas foram mantidas até 1975, tendo entretanto passado por vários estatutos, desde “províncias ultramarinas” a “estados”. Só depois de rebentar a guerra em Angola, em 1961, é que a colonização realmente começou, com muita gente emigrando para os territórios ultramarinos. Com o atraso de sempre, quando as outras potências europeias já estavam há muito tempo a descolonizar.
10- IMPÉRIO JAPONÊS
Foto 27 – Armada japonesa na costa da China.
Os japoneses propriamente ditos pertencem à raça mongol. As suas civilização, escrita, e tradições literárias e artísticas derivam dos chineses. O Japão contactou pela primeira vez com os europeus no século XVI, quando os portugueses ali chegaram numa barcaça chinesa, e um missionário jesuíta chamado Francisco Xavier começou a sua missão nipónica, em 1549. Um certo navegador inglês, chamado William Adams, tornou-se o conselheiro europeu mais confiável para os japoneses e ensinou-os a construir grandes navios. Foram realizadas viagens para a Índia e o Perú em navios construídos pelos japoneses. Muitos deles converteram-se ao cristianismo, mas complicadas disputas entre jesuítas portugueses, dominicanos espanhóis e protestantes ingleses e holandeses fizeram com que os japoneses se cansassem dos cristãos, começando a persegui-los. Em 1638 o Japão fechou-se totalmente aos europeus, e assim permaneceu por mais duzentos anos. Um dia, em 1954, após várias tentativas, os americanos conseguiram penetrar no Japão, com propostas de comércio e relacionamento. Rússia, Holanda e Grã-Bretanha não quiseram perder a corrida e vieram na esteira dos americanos. Um esquadrão de tropas ocidentais aliadas, fundeado junto a Kyoto, acabaria por impor a assinatura de tratados que obrigaram o Japão a abrir-se ao mundo, em 1865.
A humilhação infligida aos japoneses teve o efeito de mobilizar a toda a sociedade. Com inteligência e energia espantosas, lançaram-se na tarefa de elevar a sua cultura a um nível equivalente ao das grandes potências europeias. Nunca, em toda a história da humanidade, um país avançou tão depressa quanto o Japão avançou então. Em trinta anos, os japoneses passaram de um povo medieval para um outro que podia equiparar-se aos mais modernos e vanguardistas países do mundo. Em 1894-95, o Japão derrotou a China, obrigando-a a ceder Taiwan e a reconhecer a independência da Coreia. Rússia, França e Alemanha cobiçavam territórios japoneses, mas os nipónicos não se intimidaram. Reuniram forças e derrotaram a Rússia, em terra e no mar, forçando-a a ceder-lhes a Coreia[73]. Foi, pois, um poderoso Japão que entrou na Primeira Guerra Mundial, corrrespondendo a um pedido da Grã-Bretanha[74]. Após ter dado, a 15 de agosto, um ultimato para que entregasse a base militar de Jiaozhou, em Qingdao, o Japão, perante a ausência de resposta, declarou guerra à Alemanha no dia 23 de agosto de 1914 e, no dia 2 de setembro, desembarcou as suas tropas na província chinesa de Shandong e rapidamente tomaram a base alemã. Evidenciando uma superioridade militar em toda a linha, o Japão apresentou à China as suas “vinte e uma exigências”, das quais se salientavam o controlo japonês da província de Shandong, da Manchúria, da Mongólia Interior, da costa sul da China e do estuário do Yangtze. Após várias recusas, correspondentes reformulações das “exigências” e um ultimato, a China viu-se forçada a assinar dois tratados com o Japão, em 25 de maio de 1915.
Foto 28 – General kamio, comandante do exército japonês, entra em Tsing-tau (dezembro, 1914).
Ainda antes da queda de Qingdao, a Marinha imperial japonesa juntou-se à disputa aliada pelos territórios alemães no Pacífico Sul, expulsando a marinha germânica e hasteando a bandeira japonesa nas ilhas de Jaluit, Yap e Palau, em setembro de 1914. No mês seguinte, Londres e Tóquio fizeram um acordo secreto que estabelecia o equador como linha divisória entre as forças navais britânicas e japonesas. Além de ter ampliado o seu território, o Japão foi um aliado poderoso e muito requisitado. Os navios japoneses colaboraram no transporte de tropas do Império Britânico, nomeadamente neo-zelandeses e australianos, e combateram os submarinos alemães no Mediterrâneo. Unidades da Cruz Vermelha japonesa operaram na Europa e o Japão, além do transporte marítimo, forneceu cobre e dinheiro de que os aliados muito precisavam, incluindo empréstimos no valor de 640 milhões de ienes. Não admira, por isso, que a participação do Japão na Grande Guerra tenha constituído uma das principais preocupações da Alemanha e seus aliados. O embaixador alemão em Tóquio, o conde Von Rex, ficou tão perturbado ante o anúncio da participação japonesa na guerra ao lado da Entente, feito pelo ministro dos Negócios Estrangeiros japonês, Katõ Takaaki, que quebrou a cadeira onde estava sentado e quase se estatelou no chão[75].
Porém, a maior operação militar japonesa na Primeira Guerra Mundial foi a expedição à Sibéria, em 1918, aproveitando a oportunidade que a Revolução Bolchevique abriu. O Ministério da Guerra decidiu, em abril, apoiar os generais russos brancos Dimitry Leonidovich e Grigory Semyonov, que lutavam na Manchúria por uma Sibéria independente. Em agosto, os japoneses invadiram o Extremo Oriente russo com 72.000 homens. Um ano e meio depois, russos aliados do Exército Vermelho bolchevique cercaram uma guarnição de japoneses e russos brancos na cidade siberiana de Nikolayevsk, perto do rio Amur, e chacinaram-nas. O Japão imperial não teve grande dificuldade em reprimir a violência com violência, como já tinha feito com o Movimento Primeiro de Março na Coreia – e aproveitou o massacre de Nikolayevsk para prolongar até 1922 a sua presença na Sibéria, acabando por ocupar, também, o norte da ilha de Sacalina.
Assim, o fim da Grande Guerra não representou o fim dos conflitos na Ásia Oriental. Porém, após o Tratado Naval de Washington, em 6 de fevereiro de 1922, o Japão comprometeu-se a reduzir o armamento naval e, em 1925, a reduzir as forças terrestres em dez divisões. Ainda no ano de 1922, retirou as suas forças de Shandong e da Sibéria e, em 1925, do norte da ilha de Sacalina. Assim terminaria, finalmente, a Grande Guerra na Ásia, ao mesmo tempo que surgia um “Novo Japão”, empenhado na paz. Os nipónicos participaram ativamente nas principais convenções multilaterais após a guerra (Conferência de Paz de Paris, Sociedade das Nações, Conferência Naval de Washington, Conferência Naval de Genebra, Pacto Kellog-Briand e Conferência Naval de Londres), e introduziram o sufrágio universal masculino e a democracia pluripartidária. O Japão tornou-se um contribuinte muito ativo do projeto de paz global[76].
11- O IMPÉRIO DOS ESTADOS UNIDOS
Foto 29 – Soldados americanos em material de publicidade para recrutamento.
Os Estados Unidos obtiveram a sua independência quando o mundo passava por uma enorme transformação, resultante das revoluções industriais. A unificação dos primeiros estados americanos só foi possível pelo incremento dos transportes fluviais e terrestres – primeiro, o barco a vapor e, depois, o caminho de ferro. Essa revolução nas comunicações (às quais se juntou o telégrafo) veio facilitar a união entre as treze colónias costeiras britânicas, que, após uma curta guerra contra a Inglaterra, se tornariam independentes e formariam, em 1776, o núcleo inicial dos futuros Estados Unidos da América[77]. Os navios a vapor, que percorriam os grandes rios americanos, e os caminhos de ferro, foram ainda essenciais para a expansão rumo a Oeste, até a costa do Pacífico, antes e depois da Guerra da Secessão (1861-65), ganha pelos unionistas. Lincoln, o grande presidente da União, acabaria por ser assassinado, mas nessa altura a sua luta pela unidade norte-americana já era vencedora. Os Estados Unidos da América passariam ainda por muitas lutas e peripécias – sobretudo a guerra com a Inglaterra, em 1812, e com o México, em 1846[78] – até se constituírem, pouco antes da Grande Guerra, na enorme nação que se manteve até hoje.
Em fevereiro de 1898, uma explosão no couraçado Maine, que se encontrava na baía de Havana para proteger os interesses dos Estados Unidos em Cuba, foi usada como pretexto para um ultimato à Espanha, o qual culminaria numa guerra que os Estados Unidos venceram em dez semanas, obrigando os espanhóis a pedir a paz. No final, além do controlo sobre Cuba, os americanos passaram a exercer a sua autoridade colonial em Guam, Porto Rico e Filipinas[79]. Colocando em prática a doutrina Monroe, os norte-americanos continuaram intervindo na América Central e no Caribe, através de ações militares que, no seu conjunto, ficaram conhecidas como “Guerras das Bananas”. Foram os casos de Honduras, Nicarágua, Panamá, Costa Rica, República Dominicana e Haiti, entre outros, incluindo o próprio México. Em 1916, os americanos compraram as Ilhas Virgens à Dinamarca por 25 milhões de dólares (as atuais ilhas St. Croix, St. Thomas e St. John, do lado ocidental do arquipélago, pois do lado oriental ficam as Ilhas Virgens Britânicas) e, mais tarde, a Samoa Americana também haveria de ficar sob a alçada dos Estados Unidos. Evidentemente, as ações militares tinham como objetivo primordial defender os interesses comerciais e económicos dos americanos. Nessa linha se enquadrava o projeto de construção de um canal que ligasse o Atlântico ao Pacífico, algo que já tinha sido tentado sem sucesso pelos franceses, mas que haveria de ser concluído com êxito pelos norte-americanos, precisamente, quando se iniciou a Primeira Guerra Mundial.
Foto 30 – Durantes os últimos anos de guerra os EUA exportaram mais de 20.000 motos Harley-Davidson.
O Canal do Panamá foi inaugurado no dia 16 de agosto de 1914 e a sua salvaguarda foi sempre a grande preocupação norte-americana durante o período da Grande Guerra. A Marinha dos EUA presumia que uma guerra com a Alemanha iria culminar numa grande batalha naval nas Caraíbas. Os americanos tinham mesmo um plano de guerra contra a Alemanha, denominado “Plano de Guerra Preto”; e os alemães tinham um plano idêntico contra os americanos. O teórico naval americano, Alfred Thayer Mahan, viu no Canal do Panamá um ponto de viragem na história da geopolítica e influenciou a política americana de defesa, que se empenhou em reforçar o poderio naval nas Caraíbas. Esta preocupação dos norte-americanos fê-los desconfiar das intenções expansionistas germânicas, algo que parecia confirmar-se pelas ações alemãs no México, sobretudo após o derrube do ditador Porfírio Diaz, e das revolução e guerra civil que se seguiram. Os Estados Unidos enviaram tropas para ocuparem brevemente a cidade portuária de Veracruz[80]. Nos dois anos seguintes, a Alemanha ajudou os revolucionários mexicanos e isso acabaria por se tornar um fator determinante para a entrada dos Estados Unidos na guerra.
Em 6 de abril de 1917 os EUA declararam guerra à Alemanha. Dos países dentro da esfera de influência americana, apenas o México e El Salvador se mantiveram neutros. Porém, foram mobilizados poucos soldados coloniais para entrar em combate. Em regra, o que aconteceu foi uma mobilização dos soldados americanos das colónias e a sua substituição por forças locais, treinadas pelo exército americano, para manterem a ordem e a segurança públicas. A grande batalha naval com a Alemanha nunca chegou a realizar-se e o canal do Panamá nunca esteve, de facto, em perigo. Mas a entrada dos Estados Unidos na guerra transformou as suas forças armadas, que deixaram de ser uma força de fronteira para passarem a ser uma força regular global, mobilizando os recursos necessários às inovação e superioridade tecnológicas, que lhe garantiriam, no futuro, a posição de primeira força militar do mundo. Porém, inicialmente não era previsível a participação dos norte-americanos na guerra, dado que a grande maioria da sua população americana não o desejava. O presidente democrata Woodrow Wilson tentou persistentemente convencer as principais potências beligerantes a firmarem um acordo de paz. Mas antes da sua reeleição, em 1916, tal não foi possível porque ambos os lados estavam firmemente convencidos da vitória, sobretudo os alemães. Depois da reeleição, a possibilidade de paz parecia mais plausível, sobretudo porque as pressões dentro dos próprios países europeus em guerra se sentiam de forma mais insistente. Wilson convidou as partes a formularem as suas condições para a paz. O governo alemão emitiu em 12 de dezembro uma “nota de paz” com intenção de acalmar o Reichstag. Os aliados rejeitaram-na de imediato face ao seu tom belicoso. Essa rejeição ofereceu aos alemães o pretexto que pretendiam. No último dia do janeiro seguinte o embaixador alemão em Washington fez saber às autoridades americanas que começava imediatamente a guerra submarina irrestrita sobre qualquer navio que se aproximasse das ilhas britânicas.
Como reação, Wilson cortou relações diplomáticas com a Alemanha e decidiu armar e proteger os navios mercantes americanos. Por sua vez, os alemães, tomando como certa a entrada dos Estados Unidos na guerra, ofereceram (como já vimos) o seu apoio aos mexicanos numa possível guerra com o seu vizinho do norte. Mais uns afundamentos de navios americanos foram a gota de água. Os americanos declararam finalmente guerra à Alemanha. Todos estavam conscientes do potencial americano, mas os alemães consideravam que conseguiriam vencer a guerra com os seus submarinos antes que os americanos tivessem tempo de colocar tropas na Europa, dado que mediaria vários meses entre o recrutamento, treino mínimo e envio de forças para o palco de guerra. Por seu lado, os Aliados procuravam a todo o custo resistir até que isso acontecesse, como, de facto, aconteceu. Os americanos demonstraram uma capacidade extraordinária na mobilização, fazendo-o em tempo recorde. No ano decisivo de 1918, os soldados dos Estados Unidos fizeram pender o fiel da balança de guerra para o lado dos Aliados. A partir do momento em que os americanos entraram na guerra, os alemães já estavam condenados ao fracasso.
Com o fim do conflito, e também com a substituição da administração democrata de Woodrow Wilson pela republicana de Warren G. Harding, pouco mudou na gestão do império, ao contrário das dramáticas mudanças que ocorreram em outras paragens. A estratégia americana manteve-se por mais algum tempo – uma ação militar, uma força de ocupação, e a sua rápida substituição por uma força treinada e norteada pelos EUA, que agia a favor dos interesses americanos, mas não sob a sua bandeira – pelo menos até estes começarem a retirar-se, primeiro da República Dominicana, em 1924, da Nicarágua, em 1933, e do Haiti, em 1935. A Segunda Guerra Mundial, essa sim, iria presenciar uma mobilização muito maior de soldados coloniais e transformações no poder militar americano, quer nas Caraíbas, quer no Pacífico[81].
12- A CHINA E A GRANDE GUERRA
Foto 31 – Grande Muralha da China.
A história da China é muito antiga. É possível que a mais remota civilização da China tenha sido idêntica às remotas civilizações egípcias, sumérias e dravidianas. As civilizações chinesas primitivas tiveram de lidar com invasões de nómadas vindos do Norte, tribos aparentadas que ficaram conhecidas na história, sucessivamente, como hunos, mongóis, turcos e tártaros. Foram várias as dinastias chinesas. A dinastia “Shang” terminou em 1125 a.C. Sucedeu-lhe a dinastia “Chou”, que se prolongou por vários séculos, mantendo a China numa união pacífica, até se desintegrar, aos poucos, em milhares de estados independentes. Tal era a situação por volta do século VI a.C., época do grande filósofo Confúcio. Este filósofo correu vários estados procurando um príncipe que adotasse as suas ideias legislativas e educacionais, mas haveria de morrer, desiludido, sem o conseguir. Porém, após a sua morte, essas ideias teriam forte impacto no povo chinês, formando, com os de Buda e Lao Tsé, os “Três Ensinamentos” dos chineses. A China do norte tornou-se confuciana e a China do sul taoista (sob influência de Lao Tsé). Os poderes do norte, liderados por Qin, haveriam de subjugar a potência militar Chu, impondo um tratado de paz e o desarmamento, possibilitando que Shi Huangdi, filho de Qin, iniciasse um reinado que marcou o começo de uma nova era de unidade e prosperidade na China. Durante o seu reinado de 36 anos como imperador, Shi Huangdi combateu energicamente os invasores hunos dos desertos setentrionais e deu início à construção de uma grande obra para limitar essas invasões: a Grande Muralha da China.
A dinastia Qin, após a morte de Shi Huangdi, seria suplantada pela dinastia Han, a qual foi contemporânea do Império Romano, no século II a.C., sem que houvesse contacto entre os dois maiores impérios mundiais. Não havia meios de comunicação, marítimos ou terrestres que possibilitassem o confronto entre ambos. Nessa altura, a China era o maior, mais organizado e mais civilizado sistema político do mundo. No século II da nossa era uma peste de extrema virulência assolou o mundo e tornou mais vulneráveis os impérios. A dinastia Han caiu, e iniciou-se uma nova era de confusão e conflitos. No século VI a China já estava de novo unida sob a dinastia Sui e, no século seguinte, iniciar-se-ia um novo período de prosperidade, com a subida ao poder da dinastia Tang. Durante três séculos a China foi o país mais próspero, seguro e civilizado do mundo. As dinastias Sui e Tang avançaram pelo sul e a China ganhou contornos idênticos aos atuais. A vida era aprazível. Houve um grande florescimento das artes e o budismo revolucionou o pensamento religioso e político. Até que, no século X, a dinastia Tang entrou em decadência, dando azo ao surgimento de lutas entre estados, que culminaram no estabelecimento de três forças dominantes: o império Jin, a norte, o império Song, a sul, e o império Hsia no centro. O império Jin seria ocupado pelo líder dos confederados, Gêngis Khan, que capturou Pequim, em 1214, e posteriormente Nanquim, capital do império Song, tendo entregado o governo da China a seu irmão, Kublai Khan, fundador da dinastia Yuan, que perdurou até 1368, quando sobreveio a dinastia nativa Ming, pondo fim ao jugo Yuan[82].
Foto 32 – Tropas estrangeiras na Cidade Proíbida durante a Rebelião dos Boxers.
A dinastia Ming floresceu de 1368 até 1644, um dos períodos mais prósperos da China, no qual foi realizada a ampliação final da Grande Muralha. A última dinastia chinesa seria a Qing, após a derrota dos mings pelos manchus, vindos do Norte. Estes, porém, adotaram rapidamente as tradicionais regras de governo confucianas e terminaram por governar na mesma linha das dinastias nativas anteriores. Até que surgiram os ocidentais, com seus interesses e ambições, sobretudo a partir do século XIX, obrigando a China a conceder-lhes privilégios comerciais e a assinar tratados desvantajosos. As duas guerras do ópio com os ingleses debilitaram enormemente o tecido social chinês. Em suma, os britânicos forçaram os chineses a importar o ópio indiano e a abril os portos ao comércio ocidental. Grande parte da população chinesa estava viciada no ópio. A dinastia Qing estava decadente. O golpe final veio com a guerra sino-japonesa de 1984-85. As reações às derrota e humilhação impostas pelos japoneses, fizeram com os chineses repensassem sobre o seu futuro e o valor da sua civilização. A ideia generalizada entre as elites era a de mudança. Assim, surgiu a revolução de 1911, da qual resultaria, no ano seguinte, a abdicação do imperador Pu Yi[83] e a implantação da República. Foi o fim de um sistema dinástico com mais de 2.000 anos; um processo traumático, pois os chineses consideraram durante séculos que a sua civilização era a melhor do mundo (sob a tianxia) e que a China era o Império do Meio[84]. Porém, a China queria integrar-se na comunidade internacional, ser um estado-nação moderno e o republicanismo haveria de vencer.
Além destes problemas internos, relacionados com uma crise profunda de identidade, a China teve de enfrentar uma nova investida japonesa, na sequência da ocupação de Qingdao, recuperada dos alemães – a primeira ação nipónica no âmbito da sua participação na Primeira Guerra Mundial. Era óbvia a intenção japonesa de dominar a China e torná-la um estado vassalo. Em 18 de janeiro de 1915, o Japão apresentou diretamente ao presidente chinês, Yuan Shikai, as suas “21 exigências”[85]. Após várias contra-propostas, os japoneses fizeram um ultimato, obrigando o governo de Yuan a aceitar todas as exigências, exceto as da secção 5, que eram as mais gravosas. Yuan Shikai temia a desintegração nacional e acreditava que a China só poderia ser forte tendo um tipo de governo centralizado, coeso e unitário. Isso levou-o a autoproclamar-se imperador, no início de 1916. Muitos, como o eminente constitucionalista americano e conselheiro de Yuan, Frank Goodnow, também achavam que os chineses estariam “em melhor posição para resistir à agressão japonesa com uma monarquia do que com uma forma de governo republicana”[86]. Mas a China já não era a nação de quinze anos antes, e Yuan foi derrotado e humilhado, tendo morrido pouco depois. A oposição ao esquema de Yuan tinha como figuras de proa Liang Qichao e o general Cai E. A China dividiu-se e os senhores da guerra voltaram a ser os protagonistas, com as províncias a serem governadas, na prática, por exércitos independentes.
Foto 33 – Membros da Corporação de Trabalhadores Chineses junto a uma casa em ruínas.
A participação da China na Grande Guerra, amplamente apoiada pela sociedade e pelos sucessivos governantes, tardava em acontecer, apesar de ser considerada por todos, incluindo o próprio Yuan Shikai, importantíssima para angariar o apoio da comunidade internacional à causa chinesa. Isto deveu-se, primeiro, à oposição japonesa e, depois, às querelas internas chinesas. Em 1917, os desentendimentos entre o primeiro-ministro, Duan, e o presidente Li Yuanhong, levaram a sucessivos adiamentos sobre o envolvimento na guerra, demissões e readmissões, golpes e contra-golpes, culminando em nova tentativa de restabelecimento da dinastia Qing por um senhor da guerra – Zhang Xin – que duraria menos de uma semana. Finalmente, a 4 de agosto de 1917, a China (novamente dividida) entrou na Grande Guerra. O contributo iniciou-se com o envio para a Europa de 140.000 trabalhadores chineses. Com essa decisão, a China esperava obter o reconhecimento internacional e, mais do que isso, que o país e o seu povo fossem tratados como iguais, pois acreditava nas proclamações do presidente americano, Woodrow Wilson, particularmente no seu plano para uma Sociedade das Nações e para a autodeterminação nacional. Assim, não surpreendeu o entusiasmo com que foi recebida em Pequim a notícia do fim da guerra: 30.000 pessoas reuniram-se, em 17 de novembro, em frente ao palácio presidencial, gritando a uma só voz “Viva a justiça! Viva a independência nacional!”
Os objetivos da delegação chinesa à Conferência de Paz de Paris inseriam-se em três grandes categorias. Primeiro, integridade territorial ou restituição à China das concessões estrangeiras e dos territórios arrendados; segundo, restauração da soberania nacional[87]; terceiro, liberdade económica ou exercício de plena autonomia tarifária. De imediato, a China esperava que lhe fosse restituída a península de Shandong, mas tal não aconteceu. O Japão tinha uma acordo secreto com a Grã-Bretanha, a França e a Itália para permanecer no território, além de que os tratados que a China assinara com o Japão sobre Shandong, em 1915 e 1918, também lhe eram desfavoráveis. O próprio Woodrow Wilson aconselhou os chineses a respeitar os tratados. Estes sentiram-se profundamente injustiçadose recusaram-se a assinar o Tratado de Versalhes. Em vez disso, a China assinou um tratado com a Alemanha, que estabelecia uma nova relação entre dois dos países mais desiludidos com o epílogo da guerra. Outra consequência do rescaldo da Grande Guerra foi o aparecimento de um movimento estudantil na China denominado Movimento Quatro de Maio, que convocou grandes manifestações em todo o país.
O Movimento Quatro de Maio marcou o fim dos esforços chineses para se integrarem no sistema liberal ocidental, e desencadeou um outro através do qual os chineses procuraram uma terceira via entre as ideias ocidentais e a cultura tradicional chinesa. Encontraram-na na revolução bolchevique. Até então ninguém tinha prestado atenção ao marxismo. Só após 1919, depois de se sentirem traídos pelo Ocidente, é que os chineses começaram a prestar atenção à Revolução Bolchevique e a dedicarem-se ao estudo do marxismo[88]. Esta foi uma consequência direta, para a China e para o Mundo, da Primeira Guerra Mundial.
13- O BRASIL E A GRANDE GUERRA
Foto 34 – Manifestação em São Paulo contra a Alemanha, após torpedeamento do navio Paraná.
Inicialmente, o Brasil adotou uma posição neutral relativamente à Grande Guerra[89]. Essa posição foi sistematicamente criticada pela Liga de Defesa Nacional, movimento liderado por Ruy Barbosa, que defendia a participação brasileira ao lado da Tríplice Entente. Em abril de 1917, o navio Paraná, um dos maiores da marinha mercante brasileira, foi atacado em águas neutras pelos alemães, tendo morrido três brasileiros. No mês seguinte, foi atacado o Tijuca. A população brasileira reagiu e manifestou-se com indignação, atacando e destruindo vários estabelecimentos alemães. A posição política adotada pelo país, apoiada por alguns congressistas simpatizantes da Alemanha e do Império Austro-Húngaro, teve que ser reavaliada: o Brasil resolveu romper as relações diplomáticas com a Alemanha e confiscou imediatamente quarenta e duas embarcações de origem germânica. No dia 23 de outubro, o cargueiro brasileiro Macau foi atacado por um submarino alemão e viu o seu comandante ser feito prisioneiro. Face à pressão popular, o Brasil declarou guerra à “Aliança Germânica” no dia 26 de outubro.
A participação brasileira na guerra, no entanto, foi bastante limitada, até porque ocorreu já na parte final do conflito. Resumiu-se, por um lado, ao envio para França de um corpo de sargentos e oficiais (no âmbito da Real Força Aérea), e de uma missão médica. Por outro lado, o país disponibilizou uma frota naval, que acabaria por atuar no Atlântico (ao largo da costa africana) e no Mediterrâneo, poucos dias antes do fim da guerra. Foi, aliás, entre os marinheiros dessa frota que se deram as únicas 180 mortes brasileiras na guerra, provocadas, não pelas munições inimigas, mas pela gripe espanhola. Embora limitada, a participação brasileira foi meritória. Isso é reconhecido internacionalmente, como podemos comprovar pelas palavras do historiador francês Olivier Compagnon: “o Brasil, depois dos países centro-americanos e caribenhos tragados pela entrada dos Estados Unidos na guerra em 1917, juntou-se, é certo, ao campo dos Aliados, mas ninguém pode achar que seu corpo expedicionário semeou a morte na Europa. Ao contrário, a contribuição do Rio de janeiro destaca-se mais por um espírito humanitário através do hospital militar da rua de Vaugirard, que tentou ajudar os feridos a reencontrarem uma vida normal após sua desmobilização[90]”.
Esta modesta e simultaneamente meritória colaboração, garantiu assento na Conferência de Paz de Paris, que deu origem ao Tratado de Versalhes, e o Brasil conseguiu que a Alemanha pagasse com juros o valor do café perdido com os navios naufragados, mais 70 navios dos Impérios Centrais (a maioria alemã) que haviam sido apreendidos em águas brasileiras quando da declaração de guerra e que foram incorporados na frota brasileira a preços simbólicos. O Brasil esteve presente na Conferência de Versalhes, com uma comitiva chefiada pelo futuro presidente Epitácio Pessoa. Esta comitiva conseguiu incluir no acordo de paz uma indemnização relativa às sacas de café apreendidas nos portos alemães, aquando da declaração de guerra e a venda dos navios alemães apresados. Por outro lado, o Brasil foi um dos fundadores da Liga das Nações. Sob o ponto de vista económico, a guerra acabou por beneficiar a indústria brasileira. Embora as exportações de café tivessem decaído bruscamente, num primeiro período, o Brasil passou a ter boas oportunidades comerciais logo após o conflito. As exportações brasileiras quase duplicaram desde o ano anterior à guerra (1913) para o primeiro ano do pós-guerra (1919)[91]. O aumento da procura internacional por géneros alimentares e produtos primários, incentivou o país a industrializar-se. Nessa época surgiu um surto industrial inédito , com mão-de-obra imigrante, composta sobretudo por europeus fugidos da fome e da guerra. O número de fábricas quadruplicou nos anos da guerra, duplicando o número de operários. A indústria brasileira conquistou o mercado interno. Isto provocou a diminuição das importações, modificando o perfil sócio-económico do Brasil.
14- CONCLUSÃO
Foto 35 – Tropas italianas na estrada Udine-Codroipo durante a batalha de Caporetto.
Durante a guerra, as potências aliadas haviam estabelecido o Supremo Conselho de Guerra, o qual incluía representantes da Grã-Bretanha, da França, dos Estados Unidos, da Itália e do Japão, como orgão coordenador das operações militares contra as Potências Centrais. Foi essa entidade que se transformou, depois da guerra, no Conselho Supremo da Conferência de Paz de Paris. Por outras palavras, esse Conselho autodeclarou-se soberano mundial provisório, com autoridade para decidir sobre os termos da paz. Pese embora o seu imenso poder, as grandes potências atuaram com base nos famosos “14 pontos” do presidente americano, Woodrow Wilson, que os havia enunciado ao Congresso americano, em 8 de janeiro de 1918. Wilson visava assegurar uma paz mundial duradoura após a Primeira Guerra Mundial. O 14º, e último, ponto propunha a criação da Sociedade das Nações[92], o que efetivamente veio a acontecer. Através da Sociedade das Nações instituiu-se o sistema de mandatos, divididos em três classes – A, B e C. Os mandatos de classe A (partes do antigo Império Otomano) foram atribuídos aos territórios que “atingiram tal grau de desenvolvimento, que a sua existência como nações independentes pode ser provisoriamente reconhecida”. Nos mandatos de classe B (antigas colónias alemãs que ficaram sob a responsabilidade da Sociedade das Nações depois da guerra), a independência iria acontecer num futuro indeterminado e a potência mandatária seria responsável por governar o território, garantindo a liberdade de consciência e de religião, bem como a proibição do tráfico de escravos, armas e álcool. Por fim, os mandatos de classe C (áreas do Sudoeste africano e algumas ilhas do Pacífico Sul) eram os mais parecidos com as antigas colónias e “não poderiam ser melhor administrados do que pelas próprias leis do mandatário, como parte integrante do seu território”. Os “Poderes Mandatários” foram a Inglaterra, a França, a Bélgica, a Nova Zelândia, a Austrália e o Japão.
O sistema de mandatos veio trazer imensos problemas, sobretudo porque algumas nações dos impérios vencedores se sentiram (com razão) injustiçadas face às dos impérios vencidos. Estas tinham a autodeterminação em perspetiva, enquanto aquelas, com mais ou menos autonomia, permaneciam colónias. Mas muitos mais problemas se colocaram depois da guerra. O Conselho Supremo da Conferência de Paz deparou-se com o problema dos “Estados Sucessores”. Havia que delimitar territórios, e os critérios para levar a cabo essa tarefa eram muito difíceis de elaborar e nunca seria possível desenhar um novo mapa que agradasse a todos. O critério essencial era o de “a cada nação o seu Estado”, sendo que “nação” (ou etnia) se definia pela combinação de língua, cultura e religião. Mas essas fronteiras “nacionais” esbarravam com as fronteiras “históricas” – as primeiras construídas por políticos, etnógrafos e ativistas e as segundas pelas casas reais e imperiais. Por outro lado, havia uma preocupação com as minorias étnicas, e a solução wilsoniana passava pela vigilância da Sociedade das Nações. Mas, apesar de todos os esforços, sobretudo na Europa Central e do Leste, as fronteiras permaneceram instáveis, as minorias étnicas não ficaram protegidas e a paz não ficou assegurada[93].
Foto 36 – Serventes japoneses de metralhadora.
Como vimos no capítulo sobre o Império Otomano, a guerra não terminou, pelo menos para os Turcos, em 1918, mas sim com a assinatura do Tratado de Lausanne, em 1923. Os Turcos conseguiram expulsar da Anatólia não apenas o seu Estado sucessor rival, a Grécia, mas também os impérios europeus que queriam transformar a Anatólia num protetorado interaliado. Além disso, o fim da guerra não trouxe qualquer pacificação ao Médio Oriente, como se pode ver ainda hoje, pelo conflito israelo-palestiniano, cuja origem remonta ao período da Grande Guerra, mais precisamente a 2 de novembro de 1917, com a Declaração de Belfour.
Em suma, ninguém obteve vantagens significativas, pelo menos, a médio/longo prazo. Quatro impérios multinacionais terrestres desintegraram-se: o dos Habsburgos, o dos Romanovs, o dos Hohenzollerns e o dos otomanos. Os impérios marítimos mais pequenos, como os de Portugal e da Bélgica, mantiveram-se apesar das críticas à sua administração. Os impérios francês e inglês até se expandiram, ao abrigo da Sociedade das Nações, mas foi um crescimento efémero. Dificilmente franceses e ingleses poderiam manter os territórios do Médio Oriente, pois a principal ameaça à sua segurança viria, como veio a confirmar-se, de uma Alemanha inevitavelmente ressurgente. A expansão japonesa no Pacífico e na Península de Shandong iria criar sonhos demasiado ambiciosos de domínio na Ásia Oriental e intensificar a desconfiança securitária de outra grande potência em ascensão, os Estados Unidos[94].
O conjunto das duas guerras mundiais, incluindo o intervalo entre ambas, marca um período da história europeia caracterizado pela violência extrema. A Grande Guerra foi apenas a primeira parte de uma época de brutalidade, consequência, por um lado, de teorias românticas e políticos fracos e, por outro, da ascensão de uma classe burguesa, com excedente de capital, que via no imperialismo a solução ideal de investimento – aquilo que Hannah Arendt chamou de “aliança entre capital e ralé”[95]. Por ter sido o início deste período, a Primeira Guerra Mundial tem uma importância acrescida, pois foi esse trágico evento que esteve na origem de tudo o que aconteceu a seguir. Provavelmente, sem a Grande Guerra não teria havido nazismo, nem estalinismo, nem maoísmo, nem II Guerra Mundial.
Entre os factores que conduziram à guerra há dois que são surpreendentes. Em primeiro lugar, a adesão das massas: o anúncio da guerra foi efusivamente celebrado em Berlim e noutras cidades. Por que razão a guerra é tão atrativa? Talvez porque, em parte, como diz Michael Howard, “durante um século, a autoconsciência nacional fora inculcada por programas educacionais estatais que visavam a formação de cidadãos leais e obedientes”; por outro lado, porque “a guerra era vista como um teste de “virilidade” que a vida urbana suave já não proporcionava aos pensadores impregnados da teoria darwiniana. Acreditava-se que essa “virilidade” era essencial, se as nações quisessem estar “aptas para sobreviver” num mundo onde o progresso era, ou assim acreditavam, o resultado antes da competição que da cooperação entre as nações assim como entre as espécies. O pacifismo liberal continuava influente nas democracias ocidentais, mas era também visto por muitos, especialmente na Alemanha, como um sintoma de decadência moral. Essa beligerância sofisticada tornava o advento da guerra bem-vindo para muitos intelectuais, bem como para os membros das antigas classes governantes, que aceitavam com entusiasmo a sua tradicional função de liderança na guerra. Artistas, músicos, académicos e escritores competiam entre si para oferecer seus serviços ao governo. Os futuristas na Itália, os cubistas na França, os vorticistas na Grã-Bretanha, os expressionistas na Alemanha, viam a guerra como um aspeto da libertação de um regime obsoleto que eles próprios já vinham desbravando há uma década”[96].
Foto 37 – Soldados alemães na Frente Ocidental.
Em segundo lugar, a incapacidade de políticos supostamente responsáveis. Eles deixaram que os seus falcões de guerra os influenciassem a ponto de tomarem (ou omitirem) decisões contrárias às suas próprias convicções. Isso aconteceu quando o chefe do Estado-Maior alemão, Helmuth von Moltke, convenceu o kaiser Guilherme II de que não havia alternativa à invasão da Bélgica, pois era imperativo fazer um movimento de foice para cercar Paris. Guilherme II, neto de um monarca britânico (a rainha Vitória) e sobrinho de outro (o rei Eduardo VII) não queria ocupar a Bélgica pois sabia que isso faria a Inglaterra entrar na guerra, mas Moltke caiu a seus pés, num ataque de histeria, gritando que alterações ao plano iriam deixar a Alemanha sem defesa. Hoje sabe-se que isso não era verdade, pois havia um plano de contingência para atacar a França sem invadir a Bélgica. Por outro lado, também a Inglaterra poderia e deveria ter evitado entrar na guerra. Churchill, então Ministro da Marinha, informou o primeiro-ministro Herbert Asquith de que a queda dos portos belgas constituiria um grave perigo para a Inglaterra, pelo que havia de responder preventivamente com uma contra-invasão. Ora, ao contrário do que acontecera no passado (no tempo dos navios à vela), os portos belgas já não constituiam um perigo para os britânicos. Sobretudo a partir do momento em que os novos vasos de guerra ingleses deixaram de ser alimentados a carvão e passaram a consumir fuel. A autonomia e a velocidade dos navios movidos a combustível líquido tornaram irrelevante o controlo dos portos belgas. Por outro lado, anos antes da guerra, Churchill tomara a decisão de não usar os portos do canal da Mancha em caso de conflito com a Alemanha. Em vez disso, concentraria a frota numa base remota nas ilhas Órcades, no norte da Escócia. Isto colocava, também, a Inglaterra ao abrigo de um ataque surpresa da Alemanha e com capacidade de resposta a qualquer manobra alemã[97].
De acordo com Martin Sieff, em artigo escrito no dia 22 de abril de 2014, no sítio The Globalist, de Washington,[98] “os erros de Moltke e Churchill, em 1914, e o facto de nem o kaiser alemão Guilherme nem o primeiro-ministro britânico Asquith terem sido capazes de os questionar são lições esclarecedoras para os decisores políticos ocidentais do século XXI. Os erros facilmente evitáveis de Moltke e Churchill condenaram os mesmíssimos impérios que serviam e acabaram por custar muitos milhões de vidas inocentes. A Revolução Russa, o genocídio-fome ucraniano de Holodomor[99], o Grande Terror de Estaline e o Holocausto de Hitler poderiam nunca ter acontecido se o Reino Unido e a Alemanha não tivessem sido empurrados para um conflito reciprocamente ruinoso em 1914[100].” Certamente os erros que conduziram à Primeira Guerra Mundial não foram apenas de Moltke e Churchill. Erros, saliente-se, que resultaram em milhões de perdas de vidas humanas, sem que o mundo tivesse ficado melhor – um custo imenso para um resultado nulo. Mas muito mais importante que atribuir erros seja a quem for, é aprender com eles. Estarão os líderes mundiais, sobretudo na Europa, conscientes das terríveis consequências das ações belicistas? A avaliar por acontecimentos recentes no tão massacrado Leste europeu, a resposta, infelizmente, tem de ser “não”.
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Notas:
[1] Michael Howard, “Primeira Guerra Mundial”, Rio de Janeiro, L&PM Pocket, 2013, p. 21. (Diz ainda Howard na mesma página: “Karl von Clausewitz escreveu, na sequência das Guerras Napoleónicas, que a guerra era uma trilogia composta por política do governo, atividade dos militares e “paixões dos povos”. Cada um desses elementos deve ser levado em consideração, se quisermos compreender não só por que a guerra aconteceu, mas também por que ela tomou o curso que tomou”).
[2] Herbert George Wells, “Uma Breve História do Mundo”, L&PM Pocket, Rio de Janeiro, 2013, p. 341.
[3] H. G. Wells, ob. cit., p. 341. De facto, não foi apenas no século XIX que muita gente estava convencida da superioridade europeia. Muito depois de ter terminado a Grande Guerra, em 1956, o famoso filósofo alemão Martin Heidegger, que fora um apoiante do nazismo, escrevia: “O Ocidente e a Europa, e somente eles, são, na marcha mais íntima de sua história, originariamente “filosóficos””. (Em “Qu’est-Ce Que la Philosophie?”).
[4] Em 1903, a dinastia Obrenovic, que tinha uma política de aproximação à Monarquia Dual (austro-húngara) havia sido deposta, em Belgrado, através de um golpe de estado. O novo regime era favorável à expansão da Sérvia e procurava a libertação dos sérvios, em particular os da Bósnia. Quando, cinco anos mais tarde, o Império Austro-Húngaro anexou a Bósnia-Herzgovina, o governo sérvio reagiu criando um “movimento de libertação”, o qual possuía uma fação terrorista secreta chamada “Mão Negra”, treinada e apoiada por elementos do exército sérvio. Paralelamente, encorajada pela Rússia, a Sérvia formou uma “Liga Balcânica”, com a Grécia, o Montenegro e a Bulgária, com intuito de expulsar definitivamente os turcos da península. Em resultado dessas movimentações, deram-se as duas guerras balcânicas, a primeira aproveitando a oportunidade que surgiu quando os turcos lutavam com os italianos na Líbia – e que resultou na expulsão dos otomanos da península, à exceção de uma cabeça de ponte junto a Adrianópolis – e a segunda entre os vencedores da primeira guerra, que não estavam contentes com os despojos, sobretudo a Bulgária. Na sequência dessas duas guerras, o território e a população sérvios duplicaram e as ambições da Sérvia foram imensamente encorajadas. Pelo contrário, como seria de esperar, os austro-húngaros ficaram bastante apreensivos. Foi neste contexto que Gravilo Princip, um jovem treinado pela Mão Negra, assassinou o arquiduque austríaco e a mulher (Michael Howard, ob. cit., p. 34).
[5] Muita gente morreu, sobretudo nos campos, por falta de comida ou assistência médica, e também por doenças. A mais mortífera foi a Gripe Espanhola (1918-1919), que dizimou milhões de pessoas em todo o mundo.
[6] Hannah Arendt, “Origens do Totalitarismo”, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 189.
[7] Para lá da Liga Pangermânica, outros grupos de pressão influentes, como a Liga Colonial e a Liga da Marinha, obrigaram Bismarck a mudar de política e a adquirir colónias no ultramar, tendo em vista equiparar o Império Alemão de 1871 aos impérios francês e inglês. Em 1914 a Alemanha tinha um império marítimo consolidado, com os seguintes territórios. África do Sudoeste Alemã, África Oriental Alemã, Camarões e Togolândia (em África); Qingdao (Tsingtao), na província de Shandong, no norte da China, cedido, em 1898, por 99 anos; Samoa, Nova Guiné Alemã, Kaiser-Whilhelmsland, Arquipélago de Bismarck, Ilhas Marshall, Carolinas e Marianas, no Pacífico. Os alemães haveriam de perder todas as colónias ultramarinas, como consequência da guerra.
[8] Na verdade, as teorias racistas não eram novas. Elas apenas ressurgiram neste período da história alemã e vieram para ficar durante largo tempo. As primeiras teorias racistas surgiram em França. Seria sobretudo através do Conde de Gobineau, que publicou, em 1853, o seu “Essai sur l’inégalité des races humaines”, que essas teorias se tornariam mais populares. A teoria de Gobineau centrava-se na decadência das civilizações pela degenerescência racial. Ele acreditava ter descoberto, assim, uma lei natural da história. Por outro lado, em Inglaterra, as principais teorias racistas foram o poligenismo (os indivíduos de origem mista não são seres humanos, pois há uma luta dentro de cada célula dos seus corpos) e, posteriormente, o darwinismo, sobretudo com a sociologia de Spencer, baseada na evolução. De acordo com Hannah Arendt, “o aspeto mais perigoso dessas doutrinas evolucionistas estava no facto de aliarem o conceito de hereditariedade à insistência nas realizações pessoais e nos traços de carácter individuais, tão importantes para o amor-próprio da classe média do século XIX”… “A idolatria do herói, que lhe granjeou vastas plateias tanto na Inglaterra como na Alemanha, tinha as mesmas origens que a idolatria da personalidade do romantismo alemão”. (“Origens do Totalitarismo”, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 261).
[9] Lothar von Trotta.
[10] Em 15 de agosto de 1914, o exército russo entrou na Prússia e inflingiu uma severa derrota aos alemães, fazendo com que o general Von Prittwitz entrasse em pânico e ordenasse uma retirada geral para trás do Vístula. Após essa derrota, os alemães substituíram Prittwitz por Paul von Hindenburg e Erich Ludendorff, que levaram os alemães à vitória em Tannenberg, matando ou ferindo 50.000 russos e fazendo 90.000 prisioneiros. Hindenburg e Ludendorff que já gozavam de enorme prestígio foram guindados na Alemanha, após essa batalha, ao estatuto de semideuses.
[11] Combatentes africanos ao serviço dos alemães.
[12) A Bulgária entrara na guerra para se juntar às potências centrais, com o objetivo de reconquistar a Macedónia, perdida na Segunda Guerra dos Balcãs.
[13] Um dos que se alistaram foi um jovem pangermânico, vindo da Áustria, chamado Adolf Hitler.
[14] Shelley Baranowski, “Império Nazista”, São Paulo, Edipro, 2014, p. 98.
[15] Apesar do nome, o Lusitania não era português, nem fora construído em Portugal. Era um navio da companhia inglesa Cunard Line, lançado em 1906. Seu nome foi uma homenagem à província romana da Lusitânia, que hoje é parte do território de Portugal. Apesar de ser um navio inglês, quando foi afundado, em 6 de maio de 1915, e pese embora o aviso do cônsul alemão em Nova Yorque sobre o perigo que corriam os passageiros, embarcaram no Lusitania 128 americanos, a maioria dos quais pereceu no ataque.
[16] Os alemães procuraram desestabilizar os países inimigos, procurando alargar o “soft power”, a par da guerra convencional. Os chamados “programas revolucionários” foram desenvolvidos com organizações políticas revolucionárias da Irlanda, da Finlândia, da Ucrânia, da Geórgia, da Pérsia, da Índia, da Polónia, da Flandres e da Rússia. Quase todos falharam, mas houve uma importantíssima exceção – a revolução bolchevique. (“Impérios em Guerra, 1911-1923”, Dom Quixote, Lisboa, capítulo sobre o “Império Alemão”, de Heather Jones, p. 130.)
[17] Os romenos entraram na guerra em agosto de 1916, após a promessa da Entente de que poderiam anexar a Transilvânia da Hungria.
[18] Shelley Baranowski, ob. cit., p. 119; Michael Howard, ob. cit., pp. 121-29. Estes dois autores apresentam números diferentes. O primeiro refere 250.000 soldados americanos a cada mês, enquanto o segundo refere 300.000. O primeiro escreve que o ataque alemão foi realizado com 192 divisões enquanto o segundo refere 199.
[19] John Keegan, “Uma História da Guerra”, São Paulo, Companhia das Letras 2006, p. 465. Por seu turno, Michael Howard (ob. cit., p. 144), aponta para 1.800.000 alemães mortos na Grande Guerra.
[20] Na Primeira Guerra dos Balcãs (outubro de 1912 a maio de 1913), Sérvia, Montenegro, Grécia e Bulgária formaram a Liga Balcânica contra os Turcos. A Liga venceu e, no rescaldo (Tratado de Londres, em maio de 1913) quatro grandes potências europeias (Alemanha, Áustria-Hungria, Rússia e Grã-Bretanha) apoiaram a criação de uma Albânia independente, o que convinha aos Austro-Húngaros interessados em cortar o acesso dos Sérvios ao mar. Por outro lado, foram reconhecidos os avanços dos estados balcânicos a leste da linha Enos-Medea. O Tratado de Londres não satisfez ninguém (contrariou o que estava previamente combinado entre os membros da Liga), e a Bulgária, que já tinha um regimento estacionado em Salónica, reclamou por território macedónico, o qual também era cobiçado por Sérvia e Grécia. A Segunda Guerra dos Balcãs começou no fim de junho de 1913, com as forças da Bulgária a lutarem contra os exércitos de Sérvia, Grécia, Montenegro, Império Otomano e Roménia (que reclamava a fortaleza de Silistra da Bulgária como contrapartida à sua neutralidade na I Guerra dos Balcãs). As forças oponentes à Bulgária eram muito superiores. Enquanto os búlgaros combatiam sérvios e gregos, os romenos aproveitaram para invadir o Norte da Bulgária e os otomanos para ocupar algumas posições na Trácia (que haviam perdido na primeira guerra balcânica), ou seja, os búlgaros viram-se cercados por todos os lados e foram derrotados, depois de mês e meio de guerra. Novas fronteiras foram definidas pelos tratados de Bucareste e Constantinopla, mas foram rapidamente ultrapassadas pelos acontecimentos da I Guerra Mundial.
[21] Graydon A. Tunstall, “Austria-Hungary”, in Richard F. Hamilton e Holger H. Herwig (eds.), The Origins of World War I (Cambridge, Cambridge University Press, 2003), pp. 112-49, na p. 117.
[22] No Império Austro-Húngaro falava-se alemão, húngaro, checo, eslovaco, polaco, sérvio, croata, bósnio, ucraniano, romeno, esloveno, italiano e outras menos representadas.
[23] O influente primeiro-ministro húngaro István Tisza, antes e durante a guerra, opôs-se sempre às tentativas de junção de um terceiro membro à monarquia dual, algo que esteve na mente do arquiduque Francisco Fernando, juntando à Áustria e à Hungria um futuro Estado eslavo do Sul.
[24] Peter Haslinger, “Impérios em Guerra, 1911-1923”, Lisboa, Dom Quixote, 2014, capítulo sobre o “Império Austro-Húngaro”, p. 163.
[25] Carlos encetou conversações secretas com a França através dos irmãos de sua mulher, Zita. Um deles chamava-se Sixto de Bourbon-Parma. Daí o nome do caso. Nesse potencial acordo era oferecida a Alsácia-Lorena à França (o que, de facto, veio a acontecer depois da guerra). Clemenceau, primeiro-ministro francês, revelou esta ação secreta ao público, em 12 de abril de 1917, o que irritou a Alemanha.
[26] Czar quer dizer “César”.
[27] Joshua Sanborn, “Impérios em Guerra, 1911-1923”, Lisboa, Dom Quixote, 2014, capítulo sobre o “Império Russo”, p. 181.
[28] Os pogroms (palavra de origem russa) constituem ataques maciços a certas comunidades e ficaram conhecidos sobretudo pelos ataques a judeus, particularmente no Sul da Rússia, entre 1881-1884, mas também noutros períodos e lugares. Muitos milhares de judeus (incluindo crianças) foram mortos em territórios imperiais da Rússia, antes, durante e após a participação do Império Russo na Grande Guerra.
[29] Joshua Sanborn, ob. cit., p. 190.
[30] Michael Howard, ob. cit., p. 87;Joshua Sanborn, ob. cit., p. 194.
[31] Joshua Sanborn, ob. cit., p. 198.
[32] Joshua Sanborn, ob. cit., p. 203.
[33] No século XVI, aconteceram várias escaramuças entre os otomanos e os portugueses no mar Vermelho e no Índico, por causa do controlo do comércio com a Índia. De acordo com o historiador e investigador da Universidade Católica Portuguesa, Paulo Pinto, houve também acordos locais no sentido da cooperação, entre turcos e portugueses, os quais beneficiaram ambas as partes.
[34] Mustafa Aksakal, “Impérios em Guerra, 1911-1923”, Lisboa, Dom Quixote, 2014, capítulo sobre o “Império Otomano”, p. 59.
[35] A invasão da Líbia e da Tripolitânia pela Itália, que entrou assim em guerra contra o Império Otomano, foi inspirada na integração de Marrocos no Império Francês, sob a forma de protetorado, em 1912 (James Joll, “The Origins of the First World War”, 2ª ed., Londres, Longman, 1992, p. 59.
[36] Mustafa Aksakal, ob. cit., p.68.
[37] Não fora a primeira vez. Os Turcos são acusados de, já em 1895, terem massacrado cerca de 100.000 arménios, sob o temor de uma sublevação.
[38] Uma praga de gafanhotos assolou a Palestina em 1915, destruindo tudo à sua volta, o que agravou ainda mais a situação de fome. De acordo com Aksakal, “num único dia, um enxame do tamanho de Manhatan podia devorar o equivalente à quantidade de alimentos consumida no mesmo período por 42 milhões de seres humanos”.
[39] As forças britânicas eram compostas sobretudo por tropas indianas.
[41] “França Antártica”, em 1555, no atual Rio de Janeiro, Brasil; São Luís, em 1612, no Brasil. Em ambos os casos os franceses foram derrotados pelos portugueses. E também, em território espanhol, o ataque a Forte Caroline, em 1562, na Florida espanhola.
[43] Richard S. Fogarty, “Impérios em Guerra, 1911-1923”, Lisboa, Dom Quixote, 2014, capítulo sobre o “Império Francês”, p. 230.
[44] Leonard V. Smith, Stéphane Andoun-Rouzeau e Annette Becker, “France and the Great War”, Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p. 65.
[45] Isto é possível constatar através da excelente investigação de Jacques Marseille em “Empire Colonial et Capitalism Français: Histoire d’un Divorce” (Paris, Albin Michel, 1984).
[46] Como se pode verificar pela obra de David S. Landes em “The Wealth and Poverty of Nations: Why Some are so Rich and Some so Poor” (Nova Iorque, WW. Norton, 1998).
[47] Richard S. Fogarty, ob. cit., p. 222.
[48] Tripolitânia e Cirenaica que seriam romanticamente rebatizadas por “Líbia”, o nome da região no tempo dos césares.
[49] Richard Bosworth e Giuseppe Finaldi, “Impérios em Guerra, 1911-1923″, Lisboa, Dom Quixote, 2014”, capítulo sobre o “Império Italiano”, p. 87.
[50] Richard Bosworth e Giuseppe Finaldi, ob. cit., p.111.
[51] John Keegan, ob. cit., pp. 461-62. Ver também nota 96.
[52] A coordenação com a França em África nunca foi a melhor. Isto porque as ambições britânicas e francesas muitas vezes chocavam. Por outro lado, a ajuda de outros países aliados, como a Bélgica e Portugal, sempre foi considerada ineficiente pelos britânicos, que se valeram muito mais dos aliados locais, sobretudo a União Sul-Africana.
[53] Os combatentes armados no ataque à África Ocidental Alemã eram brancos, dado que Pretória proibia o armamento de africanos.
[54] Bill Nasson, “Impérios em Guerra, 1911-1923″, Lisboa, Dom Quixote, 2014”, capítulo sobre “A África Imperial Britânica”, pp. 247-266.
[55] Bill Nason, ob. cit., p. 270.
[56] Atual Gana.
[57] Soldados africanos ao serviço da África Oriental Alemã.
[58] Para além dos carregadores e combatentes mortos, a campanha na África Oriental Alemã atingiu também as populações locais, que se viram obrigadas a ceder comida para as tropas de ambos os lados. Além disso, viram-se ainda confrontados com a estratégia de “terra queimada”, num clima de violência extrema.
[59] Michael Howard, ob. cit., pp. 114-16.
[60] Stephen Garton, “Impérios em Guerra, 1911-1923″, Lisboa, Dom Quixote, 2014”, capítulo sobre “Os Domínios, a Irlanda e a Índia”, pp. 285-329.
[61] Em África, além dos 3.800 mortos ficaram feridos 40.000 homens, incluindo recrutas locais. Em França, além dos 1.787 mortos, ficaram feridos (ou incapacitados para trabalhar) 12.483 combatentes. Há que referir também que a guerra em África custou a vida de 273.547 civis africanos (in “Impérios em Guerra, 1911-1923″, Lisboa, Dom Quixote, 2014”, capítulo sobre “Império Português”, p. 356).
[62] Filipe Ribeiro de Menezes, “Impérios em Guerra, 1911-1923″, Lisboa, Dom Quixote, 2014”, capítulo sobre “Império Português”, p. 335.
[63] A Primeira República foi fértil em episódios que hoje nos pareceriam caricatos. Por exemplo, Afonso Costa, em 3 de julho de 1915, receando um ataque bombista, saltou da janela de um elétrico e sofreu fratura de crânio.
[64] Filipe Ribeiro de Menezes, ob. cit., pp. 336-37.
[65] Filipe Ribeiro de Menezes, ob. cit., p. 342.
[66] Angónia é um distrito da atual província de Tete.
[67] A África Oriental Alemã situava-se no território onde hoje está a Tanzânia.
[68] O general sul-africano Jan Smuts, queria trocar com os portugueses a parte de Moçambique a sul do rio Zambeze por território a ser conquistado à África Oriental Alemã. De acordo com Hew Strachan (in The First World War in Africa), “se os portugueses obtivessem pelo seu próprio esforço o que Smuts lhes queria dar, o argumento para lhes pedir que entregassem a baía de Moçambique e os territórios adjacentes à África do Sul sairia consideravelmente enfraquecido”. Cf. em Filipe Ribeiro de Menezes, ob. cit., p. 344.
[69] Durante as sessões secretas do Parlamento, que se realizaram em Lisboa, em julho de 1917, Ferreira Gil foi acusado de negligência, indignidade e cobardia pelo deputado da oposição Tamagnini Barbosa.
[71] “Aníbal Augusto Milhais, viu-se sozinho na sua trincheira, apenas munido da sua menina, uma metralhadora Lewis, conhecida entre os lusos como a Luísa. Munido da coragem que só no campo de batalha é possível, enfrentou sozinho as colunas alemãs que se atravessaram no seu caminho, o que em último caso permitiu a retirada de vários soldados portugueses e ingleses para as posições defensivas da retaguarda. Vagueando pelas trincheiras e campos, ora de ninguém ora ocupados pelos alemães, o Soldado Milhões continuou ainda a fazer fogo esporádico, para o qual se valeu de cunhetes de balas que foi encontrando pelo caminho. Quatro dias depois do início da batalha, encontrou um médico escocês, salvando-o de morrer afogado num pântano. Foi este médico, para sempre agradecido, que deu conta ao exército aliado dos feitos do soldado transmontano. Regressado a um acampamento português, o comandante Ferreira do Amaral saudou-o, dizendo o que ficaria para a História de Portugal, “Tu és Milhais, mas vales Milhões!”” (http://pt.wikipedia.org/wiki/Soldado_Milh%C3%B5es).
[72] Filipe Ribeiro de Menezes, ob. cit., pp. 343-60.
[73] H. G. Wells, ob. cit., pp. 341-45.
[74] A Grã-Bretanha invocou formalmente, a 7 de agosto de 1914 (apenas três dias após ter declarado guerra à Alemanha), a aliança anglo-japonesa, de 1902, para solicitar a participação japonesa na Grande Guerra.
[75] Frederick R. Dickinson, “Impérios em Guerra, 1911-1923″, Lisboa, Dom Quixote, 2014”, capítulo sobre “Império Japonês”, p.375.
[76] Frederick R. Dickinson, ob. cit., pp. 364-87.
[77] Independência reconhecida formalmente pela Inglaterra no Tratado de Paris de 1783.
[78] Sem esquecer, evidentemente, o extermínio dos índios, que seriam uns 12 milhões e hoje representam menos de 1% da população americana (cerca de 3 milhões).
[79] Para a Espanha a perda destes territórios foi um desastre, que se concluiria no ano seguinte, com o Tratado Germano-Espanhol de 1899. Uma nova vaga, apelidada Geração de 98, surgiu como resposta a esse trauma, marcando um renascimento da cultura espanhola.
[80] Christopher Capozzola,“Impérios em Guerra, 1911-1923″, Lisboa, Dom Quixote, 2014”, capítulo sobre “O Império dos Estados Unidos”, pp. 431-32.
[81] Christopher Capozzola, ob. cit., pp. 440-55.
[82] H. G. Wells, ob. cit., pp. 129-33, 136-40, 201-02, 236-41.
[83] A vida de Pu Yi é o principal motivo do (excelente) filme de Bernardo Bertolucci, “O Último Imperador”.
[84] “Tianxia” quer dizer “tudo sob o céu”, e incorpora uma perspectiva pública mundial enraízada no pensamento moral e político de Confúcio. Recentemente, ressurgiram na China moderna novos discursos radicados na “tianxia”, em busca de formas morais e culturais de relacionar e articular a sociedade internacional. (Ver: https://web.stanford.edu/dept/asianlang/cgi-bin/about/what_is_tianxia.php). O “Império do Meio” era assim chamado porque ficava entre o território dos deuses e o dos outros povos todos.
[85] As 21 exigências incluíam a necessidade de um controlo japonês da província de Shandong, Manchúria, Mongólia Interior, da costa sul da China e do estuário do Yangtze. Foi também exigido que a China comprasse metade do armamento militar do Japão.
[86] John Jordan, alto diplomata britânico na China, informando um superior do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Londres.
[87] Desde a Guerra dos Boxers que praticamente quem mandava na China eram as potências estrangeiras. A Guerra dos Boxers começou como reação ao imperialismo estrangeiro, quando um grupo nacionalista chinês decidiu atacar os europeus que viviam na China. Os rebeldes dedicavam-se às artes marciais, cujos movimentos se assemelhavam à luta de boxe, e daí surgiu o nome “boxers”. No fim do século XIX, as principais potências europeias começaram a dominar bairros fechados nas maiores cidades chinesas, onde a autoridade do país não entrava. Face à incompetência do poder chinês, um grupo de pugilistas criou a sociedade secreta conhecida como “A Sociedade dos Punhos Unidos” ou “A Sociedade dos Boxers”, que começou a atuar no norte do país. Os lutadores praticavam todo tipo de terrorismo nas regiões dominadas pelos estrangeiros. As ações tiveram início na província de Shandong e foram motivadas pelos desemprego e pobreza rural – que os rebeldes acreditavam estarem relacionados com as importações do Ocidente. No dia 17 de junho de 1900, os rebeldes cercaram a parte da cidade de Pequim que era ocupada pelas delegações estrangeiras e cometeram vários atentados, chegando a assassinar o embaixador alemão e o secretário da delegação japonesa. A revolta tinha o apoio da imperatriz Cixi (Tseu-Hi) – mulher que governou o país por 47 anos durante a Dinastia Qing – e de funcionários do governo. Em agosto do mesmo ano, Inglaterra, Alemanha, França, Rússia, Japão, Itália e Estados Unidos levaram a cabo uma intervenção armada para desarticular as ações violentas do movimento, constituindo um exército de 100 mil homens, sob o comando do marechal alemão conde de Waldersee. Os aliados bombardearam os fortes de Taku, tomaram Tientsin e ocuparam Pequim – principal foco dos conflitos. A resposta dos boxers foi rápida, com ataques aos imperialistas e o isolando o bairro das embaixadas. Nesse período, Cixi e o imperador fugiram disfarçados. Finalmente, as tropas estrangeiras venceram os rebeldes e os membros do exército chinês que apoiavam o motim. No dia 7 de setembro de 1901, o Protocolo de Pequim oficializou os acordos que puseram fim à Guerra dos Boxers. A corte chinesa teve que transferir-se para o Sião (atual Tailândia) e as tropas estrangeiras determinaram a partida dos boxers da região. Além disso, a China, derrotada, viu-se obrigada a pagar uma grande indemnização em ouro, além de aceitar a política de “porta aberta”, pela qual se reconhecia a sua integridade territorial em troca de favores económicos ao Ocidente. Contudo, o tratado não impediu novas perdas de territórios, pois os japoneses ocuparam a Coreia, os franceses atacaram a Indochina, os russos avançaram sobre a Manchúria e os alemães dominaram a península de Chan-tung. Os estrangeiros impuseram a sua autoridade na capital chinesa, proibindo a população de importar armamentos, e eram eles quem, de facto, exercia o poder na China.
[88] Xu Guoqi,“Impérios em Guerra, 1911-1923″, Lisboa, Dom Quixote, 2014”, capítulo sobre “A China e o Império”, pp. 389-424.
[89] Através do decreto 11.037, de 4 de agosto de 1914.
[90] Olivier Compagnon, “O Adeus à Europa – A América Latina e a Grande Guerra”, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 2014, p. 220.
[91] Olivier Compagnon, ob. cit., p. 130.
[92] A criação da Liga das Nações ou Sociedade das Nações foi uma ideia do presidente americano Woodrow Wilson. Ganhou forma em Versalhes, no dia 28 de abril de 1919, e a sua última reunião ocorreu em abril de 1946. Face à recusa do congresso dos Estados Unidos em ratificar o Tratado de Versalhes, este país nunca foi membro da organização. Desta faziam parte cinco membros permanentes e seis rotativos, tendo estes o mandato vencido em três anos, com a possibilidade de reeleição. A Sociedade das Nações falhou no seu principal propósito – manter a paz – e foi substituída pela atual ONU – Organização das Nações-Unidas, em 1946.
[93] Em “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos” (Editorial Fragmentos, Lisboa, 1993, Vol. II), Karl Popper critica abertamente o presidente americano Wilson, apesar de reconhecer as suas boas intenções. Diz-nos Popper: “Com o império de Alexandre, o nacionalismo tribal genuíno desaparece para sempre da prática política e, durante muito tempo, da teoria política. A partir de Alexandre, todos os Estados civilizados da Europa e da Ásia foram impérios, abrangendo populações de origens infinitamente diversificadas. A civilização europeia e todas as unidades políticas nela integradas permaneceram internacionais, ou, mais precisamente, intertribais desde então” (…) “Até há cerca de cem anos atrás, o nacionalismo platónico-aristotélico desaparecera praticamente das doutrinas políticas” (…) Por conseguinte, pouco tempo decorreu desde que o princípio do Estado nacional foi reintroduzido na teoria política. Apesar disso, ele é tão amplamente aceite nos nossos dias que é usualmente tomado como ponto assente, e muitas das vezes sem que se tenha consciência disso. Constitui agora, por assim dizer, um pressuposto implícito do pensamento político popular. É inclusivamente considerado por muitos como o postulado básico da ética política, especialmente desde o princípio, bem intencionado mas não tão bem ponderado de Wilson sobre a auto-determinação nacional. É difícil entender como é que alguém com um mínimo de conhecimentos da história europeia, das migrações e misturas de todas as espécies de tribos, das inúmeras vagas de povos vindos do seu habitat asiático original e que se disseminaram e entrecruzaram ao alcançar esse labirinto de penínsulas a que se chama continente europeu, como é que alguém com esses conhecimentos tenha podido alguma vez propor um princípio tão inaplicável. A explicação está em que Wilson, que era um democrata sincero (e também Masaryk, um dos maiores defensores da sociedade aberta), foi vítima de um movimento oriundo da filosofia política mais reacionária e servil jamais imposta à submissa e paciente humanidade. Foi vítima da sua formação nas teorias metafísico-políticas de Platão e Hegel e do movimento nacionalista baseado nelas” (pp. 53-4).
[94] Leonard V. Smith,“Impérios em Guerra, 1911-1923″, Lisboa, Dom Quixote, 2014”, pp. 457-95.
[95] Hannah Arendt, ob, cit., p. 218.
[96] Michael Howard, ob. cit., pp. 47-8.
[97] A Grã-Bretanha estava convencida de que a guerra se decidiria no mar, tal como acontecera no tempo de Nelson e de Napoleão, pois a luta em terra seria inconclusiva. O vencedor conseguiria matar o inimigo de fome e forçá-lo a render-se, ou pelo menos interromper o seu comércio forçando a economia a colapsar. Apesar disso (e do afundamento de três cruzadores britânicos por um submarino alemão, em setembro de 1914, no Canal da Mancha, com perda de 1.500 vidas) a Grande Frota britânica permaneceu em Scapa Flow, no extremo norte da Escócia, durante toda a guerra, enquanto a Frota Germânica de Alto-Mar também permaneceu nos portos alemães. A restante frota alemã foi abatida e sua marinha mercante foi varrida dos mares. Houve um bombardeamento de cruzadores alemães sobre as cidades costeiras inglesas no inverno de 1914-15, e um confronto em Dogger Bank, em janeiro. O confronto mais sério deu-se dois anos depois quando o novo comandante alemão Scheer conduziu a frota de Alto-Mar ao Mar do Norte, desafiando os britânicos. Perto da costa dinamarquesa deu-se a batalha naval de Jutlândia (Skaggerak, para os alemães). Foram afundados 14 navios britânicos e 11 alemães. Mas a situação estratégica não se alterou. Os navios ingleses continuaram a dominar os mares e a Frota Germânica de Alto-Mar permaneceu no porto alemão até o fim da guerra (Michael Howard, ob. cit., p. 61).
[99] Holodomor quer dizer “matar pela fome”. Foi mesmo isso que aconteceu na Ucrânia, no início da década de 1930, com a política soviética da “deskulakização” e coletivização agrícola. Matou-se toda uma população pela fome. Os números são difíceis de apurar (uma das políticas soviéticas era a destruição de documentos) mas as estimativas mais credíveis apontam para mais de 3 milhões de mortes. Muitos países já reconheceram o desastre de Holodomor como genocídio, entre eles o Brasil. Lamentavelmente, o mesmo não se pode dizer de Portugal. Informações mais detalhadas sobre o massacre em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Holodomor.
[100] No mesmo artigo, Martin Sieff, faz também uma interessante referência histórica. Diz ele: “John F. Kennedy aprendeu depressa, em 1961, durante a crise dos mísseis cubanos, a não confiar nos instintos belicosos dos generais da sua própria força aérea. Teriam preferido envolver o mundo numa guerra nuclear a deixar uma provocação sem resposta – ou negociar – em nome da paz. Após o assassínio de Kennedy, porém, o seu sucessor, Lyndon Johnson, atolou-se ingenuamente no pântano do Vietname. O motivo foi simples: um homem que se centrara na política interna durante toda a sua carreira, até ao assassínio de Kennedy, não tinha confiança (nem competência) para questionar os falcões que havia entre os seus conselheiros quando estes lhe garantiam que era inevitável envolver-se militarmente no Vietname. Ironicamente, os líderes políticos pacíficos que não gostam de guerra e a quem falta o conhecimento profissional e histórico sobre a mesma são os que têm mais probabilidade de cair nela. Nos estados Unidos, por exemplo, os presidentes que foram generais bem sucedidos – homens como George Washington, Andrew Jackson, Zachary Taylor, Ulysses S. Grant e Dwight D. Eisenhower – foram, não raro, os mais competentes na manutenção da paz”.
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Foto 1 – Revista Courrier Internacional, edição portuguesa, nº 223 (setembro de 2014).
Foi quase há um ano que deixei aqui o meu artigo “Base de um Programa Eleitoral para Mudar o Brasil, em 10 Pontos Prioritários”. Entretanto, ocorreu a campanha eleitoral e o que se debateu? Tudo, menos aquilo que realmente importava discutir: os problemas gravíssimos que o país enfrenta. Um mês depois do fim da campanha para a presidência, a luta política continua nos mesmos moldes: quem é mais corrupto; se se rouba mais hoje que ontem; se este governo é mais ou menos ladrão que o anterior…
As cidades brasileiras continuam sem saneamento; as estradas e ruas e passeios do Brasil continuam esburacados; continuam a ser assassinados mais brasileiros todos os anos do que soldados em muitas guerras; nem 10% dos crimes de morte são investigados; os brasileiros continuam sem educação de qualidade e isso reflete-se em todos os setores da vida comunitária; a produtividade é confrangedoramente baixa; a inflação ameaça o rendimento dos mais desfavorecidos; a corrupção do Estado é gigantesca; o investimento é anémico; a dívida externa não pára de crescer; a burocracia tolhe o desenvolvimento económico e a paciência dos cidadãos; a Saúde Pública é deficiente; a Justiça não é independente; etc, etc, etc.
E o que se discute é quem é o maior ladrão – se o partido A ou o partido B…
Talvez fosse preferível o Brasil seguir a frase escrita em sua bandeira. “Ordem e Progresso”. Primeiro “ordem” e depois “progresso”, e não o contrário.
Se isto parecer pouco importante, talvez um economista do desenvolvimento, o britânico Paul Collier, seja mais elucidativo[1]. Diz ele que o estabelecimento do Estado de Direito num país acontece em quatro etapas:
1ª – Reduzir a violência.
2ª – Proteger os direitos de propriedade.
3ª- Impor controlos institucionais sobre o governo.
4ª- Combater a corrupção no setor público.
Parece que, sob o conjunto destes critérios, o Brasil não é, de facto, um Estado de Direito. Mas pode vir a sê-lo se os brasileiros se convencerem que têm de seguir, sem inversões e sem cedências à demagogia, o que está escrito na sua bandeira.
Saramago, como todos os radicais, era um pessimista militante que queria salvar o mundo.
Se fosse vivo, completaria hoje 92 anos o aclamado escritor português, vencedor do Nobel da Literatura de 1998, José Saramago. Muito apreciado, não apenas pelos livros que escreveu, mas também pelos ideais políticos, o pensamento de Saramago tem sido dissecado, em posts, nas redes sociais: as críticas ao sistema capitalista e à globalização; a defesa dos mais desfavorecidos; a denúncia das prepotências das grandes potências, sobretudo da grande potência EUA; a indignação perante as injustiças; a “guerra” contra a Igreja; a militância comunista; etc. Para além disto, que penso ser o mais conhecido, em larga medida devido à grande divulgação das ideias de Saramago pela comunicação social, existem também os livros que escreveu1. Sobre estes, a minha opinião não é certamente a mais credenciada, embora não reconheça em José Saramago o brilhantismo que, para mim, alcançaram escritores como Eça de Queirós, Aquilino Ribeiro, Machado de Assis ou Guimarães Rosa, só para referir nomes de prosadores de língua portuguesa. (Deixemos os poetas fora disto).
Saramago teve, porém, o mérito de criar temas e estilo, e soube desenvolvê-los. Trabalhou incansavelmente para isso. O seu virtuosismo resulta da disciplina e do trabalho árduo, minucioso, inventariado, obsessivo, não tanto do talento inato. Saramago viveu para construir um mito. A prova disto é a sua obra tardia, após o 55 anos, fruto de toda uma maturação. Não sou eu quem vai contestar o seu mérito, o seu valor artístico, o seu estatuto de eminente e consagrado escritor.
Porém, se a apreciação da obra é subjetiva, a par dela Saramago construiu uma imagem pessoal – a do homem político – essa sim, bem mais objetiva. E tenho para mim que não foi tanto o político que serviu a obra, mas muito mais a obra que serviu o político. Notoriamente, este usou o prestígio angariado com aquela em prol da construção do mito do lutador social. Do ponto de vista teórico, a luta de Saramago não foi contra uma qualquer visão da sociedade, contra uma ideologia específica. A luta de Saramago foi contra toda uma civilização – afinal, aquela na qual ele próprio nasceu, viveu e morreu.
Mas, afinal, em que baseava Saramago a sua luta? Supostamente numa moralidade superior: a sua. José foi um moralista, sem dúvida, um dos maiores do início deste século. Como a maior parte dos moralistas, porém, a sua moral era bastante duvidosa. Numa entrevista, justificou o saneamento de vinte e dois jornalistas, quando era diretor-adjunto do “Diário de Notícias”, como uma decisão coletiva, colegial, na qual não teve qualquer responsabilidade particular2. Não seria preciso procurarmos muito até encontrarmos alguém que assumisse toda a responsabilidade num caso semelhante – a responsabilidade que José Saramago enjeitou. Na verdade, muitos cidadãos comuns seriam capazes de o fazer. A posição rígida de Saramago e a sua incapacidade de reconhecer um erro, constituem uma prova de que a moralidade, de facto, não se apregoa, pratica-se. E quanto mais se apregoa, menos se pratica e vice-versa.
Pouco antes de escrever este artigo, assisti ao filme “José & Pilar”, de Miguel Gonçalves Mendes. Um filme interessante mas tristíssimo, na verdade, tétrico, que retrata a vida de um homem em seu estádio final – sem esperança, sem alegria, nas suas próprias palavras, “sem tempo” – um homem totalmente dependente de uma mulher. Isto sobrepõe-se, surpreendentemente, ao que seria expectável, até pelo título da película, e de que não se pode duvidar – o amor entre Pilar e José. Aquela foi – e continua a ser através da sua qualidade de Presidente3 da Fundação Saramago – a eterna secretária deste. Numa passagem do filme, antes ainda de ficar doente, Saramago conta que a mulher uma vez lhe perguntou o que deveria fazer no futuro, ao que ele respondeu, sem hesitar: “continuar-me”. Noutra, ainda, vê-se Pilar abrindo cartas, anunciando remetentes e assuntos a Saramago. Uma delas era do Dalai-Lama, que convidava o escritor para uma comissão de honra. Este comentou que não gostava do líder budista – e passou-se à carta seguinte.
Antes de Pilar, Saramago viveu com outras mulheres, como se sabe. Uma delas, Isabel da Nóbrega (ainda viva), era já escritora4 quando Saramago nem sequer se aventurara na ficção. Foi ela quem sugeriu o nome de Blimunda para a protagonista de Memorial do Convento5 e foi nela que o escritor se inspirou para a referida personagem. De tal forma que lhe dedicou a obra, escrevendo: “À Isabel, porque nada pede ou repete, porque tudo cria e renova”. Em edição posterior, porém, já separado da escritora, haveria de apagar a dedicatória, numa atitude estalinista, típica da sua personalidade.
Nada disto parece surpreendente, sobretudo se falamos de alguém que, além de não gostar do Dalai-Lama, era também um crítico severo da humanidade. Humanidade exemplarmente retratada, em suas contradições, na frase que o próprio Saramago produziu numa entrevista, em 2003, ao programa de televisão brasileiro, Roda Viva: “Sou capaz de perdoar, mas também sou capaz de um eterno rancor!”
Ao contrário da maioria dos meus concidadãos, não gosto do discurso político (e moral) de Saramago. Gostaria de citar alguns nomes de diversificadas personalidades contemporâneas de Saramago – Karl Popper, Nelson Mandela, Tenzin Gyatso, José Mujica, Jorge Mario Bergoglio, e (o portuguesíssimo e brasileiríssimo) Agostinho da Silva – cujos pensamento e ação estão nos antípodas do pessimismo de José Saramago. Admiro-as por uma razão bem simples: suas vidas inspiram os mais novos. E a transmissão de esperança e otimismo constitui, essa sim, uma obrigação moral – talvez a maior – que temos, todos, relativamente às gerações vindouras.
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Notas:
1Eis a pequena lista dos (cinco) livros completos que li de Saramago. Memorial do Convento, História do Cerco de Lisboa, Viagem a Portugal, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Ensaio sobre a Cegueira.
2Um discurso inflamado de Saramago, num plenário que antecedeu a votação sobre a expulsão dos vinte e dois trabalhadores, influenciou claramente o sentido de voto, dado o prestígio que o diretor-adjunto gozava; e, no dia da votação, o próprio Saramago votou pela expulsão.
3Pilar del Rio rejeita o termo “presidente” e, tal como Dilma Rousseff, afirma-se “presidenta”.
4Escritora cuja obra vale a pena revisitar. Publicou romances, contos, peças de teatro e crónicas diversas. O seu romance mais conhecido é Viver com os Outros, de 1964.
O último ranking fora publicado em janeiro de 2014 e, daí para cá, há a registar a entrada de José Sócrates, “O Engenhocas”, e logo para o segundo lugar. Cavaco, “O Conspirador”, mantém-se na primeiríssima posição, pelo quinto ranking consecutivo. Paulo Portas, “O Oportunista”, trocou de posição com Nuno Crato, “O Contabilista”. João Semedo, “O Acusador”, subiu da nona para a quinta posição. Regresso de Marques Mendes, “O Concentrado”. Saídas de Aguiar-Branco, “O Consultor”, e António José Seguro, “O Desastrado”.
Parece-me evidente que o antiamericanismo tem crescido no mundo. Não sei se tem crescido também nos países ocidentais. Sei, porque o vejo todos os dias, que é efetivo, quer no Brasil, quer em Portugal.
Se, por um lado, esse sentimento é compreensível – sobretudo em tempos de grave crise económica e financeira – por outro, é completamente ilógico. Em primeiro lugar, porque os EUA são compostos por várias gerações de homens e mulheres do mundo inteiro – europeus, sul-americanos, portugueses, brasileiros, etc. Em segundo lugar, e principalmente, porque a partir do momento em que os EUA se tornaram o país dominante no mundo este ficou, de facto, melhor.
Os que criticam a política internacional americana esquecem-se de que, não muito antes dos EUA se tornarem a maior potência mundial, os países que o antecederam nesse papel dividiram entre si um inteiro continente, sentados confortavelmente, em torno de uma mesa, numa reunião em Berlim[1]. E que, para manterem seus impérios, alguns deles praticaram o extermínio sobre milhões de seres humanos[2]. Essa partilha imperial, inicialmente traçada a lápis, culminaria numa guerra fratricida, com duas partes distintas, traçada, desta vez, com projéteis de diversas dimensões – as primeira e segunda Guerras Mundiais. E o extermínio ampliou-se, brutalmente, até o inconcebível.
Se os EUA se demitissem do papel de líder mundial, é quase certo que a potência que ocupasse o seu lugar – e só um sonhador pode imaginar um mundo sem nenhum país mais poderoso, pois não há no mundo vazios de poder – seria pior. Claro que o exercício do poder, por mais democrático que seja, contém sempre alguma arbitrariedade e, consequentemente, alguma injustiça; e é ainda verdade que alguns presidentes americanos interpretaram de forma muito negativa, e por vezes trágica, o papel dos EUA no mundo[3]. Mas isso não invalida que a supremacia militar dos EUA (entre outras) seja muito menos agressiva do que todas as que a antecederam no decorrer dos últimos séculos.
Essa supremacia iniciou-se ainda no decorrer da Grande Guerra e consolidar-se-ia com a Conferência de Paz que se lhe seguiu, em Paris[4], onde as ideias e propostas progressistas do presidente democrata Woodrow Wilson prevaleceram – ideias e propostas que defendiam a autodeterminação dos povos, a proteção das minorias étnicas e a criação da Liga das Nações[5]. Foi o estertor dos estados imperiais[6].
Apesar do desmantelamento dos impérios, muitos consideram, hoje, os EUA um país imperial. Isso deve-se sobretudo à ação americana durante a Guerra Fria e, mais recentemente, às intervenções no Médio Oriente, nomeadamente no Iraque[7]. Cumpre dizer que esta foi, de facto, completamente despropositada, imprudente e injusta – uma reação irrefletida aos atentados de 11 de setembro[8]. Tal não invalida, porém, que outras intervenções se justifiquem, como é o caso da presente luta contra o ISIS – o Estado Islâmico no Iraque e na Síria.
A grande diferença entre os americanos e os outros é que, nos EUA, em qualquer decisão, participam sempre várias pessoas que pensam de forma diferente entre si. Nos países seus inimigos, sejam governados por radicais islâmicos pela esquerda radical marxista ou por autocratas como Putin, quem participa das decisões são pessoas que pensam da mesma forma[9], subjugadas, sempre, seja por um ditador, seja pela crença cega numa religião ou ideologia, sendo que ambos quase sempre se confundem. Os EUA – e os países ocidentais que partilham os mesmos valores – são a expressão última de um tipo de sociedade que se iniciou há 2.500 anos na Grécia Antiga, e o resultado de uma luta constante e interminável pela Liberdade e pela Democracia.
[1] Conferência de Berlim, realizada entre 19 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885. Curiosamente, foi proposta por Portugal. Participaram Grã-Bretanha, Bélgica, Dinamarca, Holanda, França, Espanha, Estados Unidos, Itália, Suécia, Áustria-Hungria, Império Otomano, Alemanha e Portugal.
[2] Na verdade, os negros exterminados em África eram considerados seres inferiores aos brancos pela maioria dos colonizadores da época.
[3] Os casos mais evidentes são os de Richard Nixon (Guerra do Vietnam) e George W. Bush (Guerra do Iraque).
[4] A Conferência de Paz de Paris decorreu durante cerca de um ano, entre janeiro de 1919 e janeiro de 1920.
[5] As ideias de Wilson foram anunciadas pela primeira vez ao Congresso dos Estados Unidos num discurso realizado em 8 de janeiro de 1918. Esse discurso ficou célebre e conhecido pelo discurso dos “quatorze pontos”. Ver em http://pt.wikipedia.org/wiki/Quatorze_Pontos. Apesar das boas intenções de Wilson, há (e houve, claro) quem ponha em causa a aplicação do conceito de “estado-nação”, sobretudo porque contribuiu para o aumento dos problemas, relativamente aos impérios tradicionais.
[6] Um livro interessante sobre esta matéria é “Impérios em Guerra: 1911-1923”, org. de Robert Gerwarth e Erez Manela, Editora D. Quixote, Lisboa, 2014.
[7] Como é evidente, os americanos são também muito criticados por intervirem militarmente na defesa de seus interesses económicos. Mas, tal como o mundo está organizado hoje – e convém dizer que essa organização deve muito aos EUA – essas intervenções arbitrárias são cada vez mais difíceis, dado que são objecto de escrutínio por parte da comunidade internacional. e também da imprensa mundial, incluindo a própria imprensa (livre) norte-americana.
[8] Foi depois do 11 de setembro que John Perkins, um auto-intitulado “pistoleiro económico” (economic hit man) americano escreveu o seu polémico livro Confessions Of An Economic Hit Man, publicado em 2004. Perkins relata os episódios vividos enquanto consultor da empresa norte-americana Main, junto de alguns governantes de países em desenvolvimento. O papel dessas empresas era o de facilitar o empréstimo de dinheiro para infraestruturas, o qual mais tarde retornaria, naturalmente, aos EUA. Caso não fossem aceites as condições propostas, usava-se a força, ora assassinando esses líderes, ora, em último recurso, intervindo militarmente. Como seria de esperar, o livro é muito polémico, e Perkins não apresentou qualquer documento que envolva o governo americano. Esse facto é realçado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, que rejeita todas as acusações e afirma que o livro de Perkins é “pura ficção”. A propósito duma edição desta obra, em 2006, no Reino Unido, veraqui um excelente artigo de Gary Youngue, no The Guardian.
[9] De facto, os membros dos partidos marxistas/leninistas orgulham-se de pensarem todos da mesma maneira e de eclipsarem a sua individualidade no coletivo superior do Partido. Sobre este tema “individualismo/coletivismo”, ver artigo deste blog, https://ilovealfama.com/2012/10/19/por-que-deixei-de-ser-marxista/.
Parece haver apenas duas formas de nos posicionarmos face aos Descobrimentos Portugueses. Uma é considerada conservadora, atrasada, imperialista, de Direita. Outra, anti-patriótica, ignorante, leviana, de Esquerda. Estes sentimentos antagónicos acirram-se ainda mais em tempos de crise, como o que vivemos atualmente.
No entanto, factos são factos, e os Descobrimentos foram efetivamente um feito extraordinário, não apenas da História de Portugal, mas também da História Universal[1]. Portugal alargou o mundo para lá do Mediterrâneo que – como o nome indica – era até então o centro da Terra. África, América, Ásia e, ao que parece, a própria Austrália[2] foram alcançadas pelos navios portugueses. Tal feito é ainda mais extraordinário se considerarmos a pequena dimensão de Portugal e o seu reduzido número de habitantes. A solução para o problema populacional foi encontrada através da miscigenação, por um lado, e pelo comércio de escravos (sobretudo para o Brasil), por outro.
Portugal foi no século XVI talvez o país mais rico do mundo. Não apenas o mais rico, mas também bastante avançado nos campos científico e tecnológico. O conhecimento era “de experiência feito”, como escreveu Camões, e essa experiência entrava pelo Tejo num número impressionante de navios, oriundos de todas as partes do mundo.
As embarcações lusas eram as melhores e as maiores que existiam e ainda hoje algumas delas são procuradas, como é o caso do galeão Flor de la Mar, afundado em 1511 nas águas costeiras de Sumatra, antes de concluir meio-dia de viagem. Em 1992, a casa de leilões de arte Sotheby’s avaliou o tesouro afundado com o Flor de la Mar, a preços desse ano, em 2,5 mil milhões de dólares[3]. Outro navio, o Madre de Deus, capturado nos Açores pelos ingleses[4], em 1592, foi conduzido a Inglaterra. Este navio era três vezes maior que qualquer navio britânico e vinha da Índia carregado de tesouros. A carga foi avaliada em meio milhão de libras esterlinas, uma soma astronómica, equivalente a quase metade de todo o tesouro inglês[5].
O império português foi um império marítimo, tal como o inglês, mas no caso português essa denominação é ainda mais verdadeira pois, como vimos, os portugueses não tinham homens em número suficiente para ocupar as terras. Estabeleceram-se várias praças nas zonas costeiras, através das quais os portugueses controlavam e faziam o comércio. Ainda assim, em todos os lugares por onde passaram, deixaram legados culturais, seja no património edificado, seja na língua[6], nas artes, na religião ou em outras manifestações, como a gastronomia.
Portugal é um país voltado para o mar. Espanha, o único país com quem tem fronteiras terrestres, constituiu sempre uma espécie de barreira que obrigou Portugal a enfrentar o desafio marítimo. Nunca se procurou a expansão continental, nem isso seria possível. Portugal abriu caminho para que outros impérios marítimos surgissem, sobretudo o holandês e, com uma implantação posterior mas também mais forte, o inglês. Portugal e Inglaterra foram velhos aliados contra espanhóis, holandeses e franceses. Claro que a Inglaterra, como país muito maior, se aproveitou muitas vezes das nossas fraquezas[7]. Mas é também verdade que mantivemos algumas colónias (sobretudo, o gigante Brasil) graças à proteção dos ingleses.
Outros países europeus, mais virados para o continente do que para o oceano, procuraram construir impérios pela via terrestre – sobretudo os casos russo e alemão[8] – e estes impérios terrestres haveriam de ser bem mais destrutivos que os marítimos, custando muito caro à Eurásia, dizimada pelos regimes nazi e estalinista. Quando no final do século XIX os europeus decidiram repartir entre si o continente africano, Portugal já ali se implantara há 500 anos. A colonização africana foi brutal, sobretudo a belga e a alemã[9] – e isso conduz por vezes à discussão sobre colonizações “suaves” (se é que existem) e “brutais”.
A colonização portuguesa, apesar das idiossincrasias locais, foi, em alguns períodos, brutal. Há relatos de atrocidades cometidas pelos portugueses, praticamente em todos os lugares onde se estabeleceram. Mas nunca praticaram o extermínio. Até porque precisavam dos habitantes locais para se multiplicarem e para conseguirem a mão-de-obra necessária à manutenção dos territórios. A escassez de mão-de-obra foi, aliás, sobretudo no Brasil, uma das razões principais da prática da escravatura – o que pode ser considerado a maior pecha da colonização portuguesa. Apesar da escravatura sempre ter existido e continuar a existir, talvez sob formas piores, tal não constitui desculpa para uma prática, sem dúvida, infame.
Hoje esse grande país chamado Brasil é o resultado da miscigenação de índios, negros e portugueses, pontuada por habitantes de outros povos – um exemplo para o mundo de uma sociedade verdadeiramente inter e intra-racial. É por isso que faz todo sentido uma expressão popularizada, não apenas em Portugal: “Deus criou o branco e o preto. Os portugueses criaram o mulato”.
O espírito português está bem retratado no livro A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto[10], um aventureiro que percorreu todo o sudeste asiático e viveu as mais incríveis peripécias até regressar a Portugal, passados 21 anos. Durante algum tempo pensou-se que esse relato fosse no mínimo exagerado e até fantasioso, mas os japoneses sempre confirmaram os episódios narrados que lhes diziam respeito e muitos historiadores – como é o caso da americana, Rebecca Catz, professora da Universidade da Califórnia, em Los Angeles – chegaram à conclusão de que o relato é verdadeiro[11]. Aliás, só poderia ser verdadeiro, dado que o que se conta na Peregrinação apenas chegou ao conhecimento dos europeus vários anos depois da morte de Fernão Mendes Pinto. Ora, este não podia ter conhecimento daqueles factos se não os tivesse presenciado[12].
Hoje o império marítimo português não passa de uma memória. Mas o fascínio pelo mar continua intacto. Nas artes, na gastronomia, no lazer, no imaginário, na memória e no horizonte de Portugal.
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Notas:
[1] Adam Smith, o célebre economista liberal escocês, considerou os Descobrimentos Portugueses como um dos maiores feitos da humanidade.
[2] Também a América do Norte tem sido reclamada como uma descoberta dos portugueses. Ver artigo deste blog sobre a Pedra de Dighton.
[3] Martin Page, “Portugal e a Revolução Global”, Nova Fronteira, Brasil, 2011.
[4] Apesar de os ingleses terem sido quase sempre nossos aliados, isso não aconteceu durante os 60 anos em que fomos governados pela Espanha, após a crise dinástica provocada pela morte de D. Sebastião, dado que a Espanha era inimiga da Inglaterra.
[5] Nigel Cliff, “Guerra Santa”, Globo Livros, Brasil, 2013.
[6] “Obrigado”, por exemplo, deu origem, no Japão, a “arigato” e “pão” a “pan”.
[7] Ver artigo deste blog.
[8] Também o francês (com Napoleão) e outros, embora não tão devastadores.
[9] Os belgas mataram milhões de seres humanos, no Congo, e os alemães quase exterminaram o povo herero, na atual Namíbia, além de terem dizimado cerca de 300.000 maji-maji, na África Oriental Alemã. Os alemães, embora tardiamente, também quiseram ter o seu império marítimo mundial e, de certa forma, conseguiram-no, embora por um curto período que terminou na Primeira Guerra Mundial.
[12] Não devemos ser ingénuos e considerar que tudo o que é relatado na “Peregrinação” é verdadeiro (no sentido de “exato”). Seria impossível Mendes Pinto recordar (a obra foi escrita vários anos após os acontecimentos narrados) tantos pormenores. A “Peregrinação” continua a ser um desafio, sobretudo no que toca às fontes a que Mendes Pinto recorreu, sendo certo que recorreu a várias, mais ou menos identificáveis, e a algumas (muitas) de impossível identificação. Sobre este assunto, ver o excelente artigo de Rui Manuel Loureiro, “Missão Impossível: em Busca das Fontes da Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto”, inserido no livro, organizado por Virgínia Soares Pereira, “Fernão Mendes Pinto e a Projeção de Portugal no Mundo”, editado pela Universidade do Minho (2013). No entanto, tal como referimos no texto, parece que Pinto “mente cada vez menos” (“Fernão Mentes? Minto”) tal como refere, ainda na obra aqui citada, o investigador holandês, Arie Pos, através do seu artigo “Imagens da China na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto”. Ver também a obra de António Rosa Mendes, “A Peregrinação e a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto”, Gente Singular Editora, Olhão, 2011, onde o autor discorda de Rebecca Catz, desmontando e negando a tese de que a Peregrinação seria essencialmente uma sátira.