Voltaire e os Egípcios

voltaire (1)Voltaire, um homem tolerante, faz um retrato surpreendentemente intolerante (e muito curioso) sobre os egípcios no seu livro “Tratado sobre a Tolerância por Ocasião da Morte de Jean Calas”, de 1763. Numa extensa nota de rodapé (n. 52), Voltaire, na página 54 (Relógio D’Água, 2015), escreve o seguinte.

Desde que a história sucedeu à lenda, convenhamos que os egípcios só podem ser vistos como um povo tão cobarde como supersticioso. Com uma única batalha, Cambises conquista o Egito; Alexandre manda nele, sem ter travado um só combate, sem que uma única cidade tenha sequer ousado esperar por um cerco; os Ptolomeus conquistam-no sem qualquer dificuldade; César e Augusto subjugam-no com a mesma facilidade; numa única campanha, Omar conquista-o integralmente; os mamelucos, povo da Cólquida e dos arredores do monte Cáucaso, tomam-no depois de Omar; são eles, e não os egípcios, que desbarataram o exército de São Luís e fazem este rei prisioneiro. Por fim, os mamelucos, tendo-se tornado egípcios, ou seja, moles, covardes, desleixados, frívolos, como os naturais desse clima, caem em três meses sob o jugo de Selim I, que manda enforcar o seu sultão, e anexa essa província ao Império Turco, até que outros bárbaros o voltem a conquistar um desses dias.

Heródoto conta que, nos tempos fabulosos, um rei egípcio, chamado Sesóstris, saiu do seu país com o projeto expresso de conquistar o universo: é evidente que um projeto desses só é digno de um Picrochole ou de um Dom Quixote; e sem contar que o nome de Sesóstris não é absolutamente nada egípcio, podemos colocar esse tipo de acontecimentos, assim como todos os factos anteriores, ao nível das Mil e uma Noites. Não há nada de mais comum, entre todos os povos conquistados, que o inventar fábulas sobre a sua grandeza passada, como acontece, em certos países, em que algumas famílias miseráveis fazem ascender as suas origens a antigos soberanos. Os padres do Egito contaram a Heródoto que esse rei, que ele diz chamar-se Sesóstris, fora subjugar a Cólquida; era como se dissesse que um rei de França partira de Touraine para ir subjugar a Noruega.

Não é por se contarem todas essas histórias, em mil e mil volumes, que elas se tornam mais credíveis; é bem mais natural que tenham sido os habitantes robustos e ferozes do Cáucaso, os Colquídeos, e outros citas, que vieram tantas vezes devastar a Ásia, a descer até o Egito; e se os sacerdotes de Colcos levaram para as suas regiões a moda da circuncisão, isso não prova que tenham sido subjugados pelos egípcios. Diodoro de Sicília conta que todos os reis vencidos por Sesóstris vinham todos os anos do extremo dos seus reinos pagar-lhe tributo, e que Sesóstris se servia deles como cavalos de carroça, que ele os fazia atrelar ao seu carro, para ir ao templo. Essas histórias de Gargântua são todos os dias fielmente copiadas. Seguramente que esses reis eram muito bons para virem de tão longe fazer assim de cavalos.

Quanto às pirâmides e outras antiguidades, elas só demonstram o orgulho e o mau gosto dos príncipes do Egito, assim como a escravidão de um povo idiota, que usava os braços que tinha, e que eram o seu único bem, para satisfazer a grosseira ostentação dos seus donos. O governo desse povo, nessa mesma época tão gabada, parece absurdo e tirânico; diz-se que todas as terras pertenciam aos seus monarcas. Eram mesmo esses escravos que seriam capazes de conquistar o mundo!

A profunda ciência atribuída aos sacerdotes egípcios é ainda um desses enormes ridículos da História Antiga, ou seja, da fábula. Gente que pretendia que, no decurso de onze mil anos, o Sol se tinha levantado duas vezes, ao poente, e deitado duas vezes a nascente, recomeçando o seu curso, estava, sem dúvida, abaixo do autor do Almanaque de Liège. A religião desses padres que governavam o Estado não era comparável com a dos povos mais selvagens da América: sabemos que adoravam crocodilos, macacos, gatos, cebolas; hoje, em toda a terra, só o culto do grande lama se lhe pode talvez comparar em absurdo.

As suas artes não valiam mais do que a religião que tinham; não há uma única estátua egípcia da Antiguidade que seja sequer suportável, e tudo o que eles têm de bom foi feito em Alexandria, no tempo dos Ptolomeus e dos Césares, por artistas da Grécia: precisaram de um grego para aprenderem a geometria.

O ilustre Bossuet extasia-se com o mérito egípcio, no seu Discours sur l’ Histoire Universelle dirigido ao filho de Luís XIV. O discurso pode encantar um jovem príncipe, mas há poucos eruditos que se dêem por satisfeitos: é uma eloquentíssima declamação, mas um historiador deve ser mais filósofo que orador. Para terminar, não deve ver-se nestas reflexões mais do que uma conjetura: que outro nome dar a tudo o que se diz sobre a Antiguidade?

Voltaire, um parisiense cujo nome verdadeiro era François-Marie Arouet, esteve preso várias vezes por ter criticado o Poder. Espírito livre, refugiou-se em Inglaterra onde escreveu Cartas sobre os ingleses, comparando o sistema inglês, liberal, ao francês, clerical e absolutista. Avesso a todo o tipo de fanatismo, deixou-nos uma vastíssima obra. Sobre ele escreveu Jorge Luis Borges: “Descobriu e repudiou a obra de Shakespeare. Sentiu a vastidão dos impérios do Oriente e a vastidão do espaço astronómico. Colaborou na enciclopédia de Diderot. Deixou escrito que um testemunho da sagacidade italiana é ter feito com que o mais pequeno dos territórios da Europa, o Vaticano, fosse um dos mais poderosos. Entre tantas coisas, legou-nos uma história de Carlos XII, que tem muito de epopeia. A felicidade de escrever nunca o abandonou; a sua gratíssima obra compreende noventa e sete volumes. Quevedo troçou da inofensiva mitologia dos gregos; Voltaire, da cristã, da do seu tempo. Observou que abundam as igrejas dedicadas a virgens e a santos e ergueu uma capela a Deus, talvez a única na terra. No frontispício lê-se, de potência a potência, Deo erexit Voltaire. Está a umas léguas de Genebra, em Ferney. Sem ter intenção, preparou a Revolução Francesa, a qual teria abominado.”

Apesar de tudo, há questões que permanecem sem resposta. O que teria levado Voltaire a dizer tão mal do povo egípcio? E, mais do que isso, teria ele razão (muita, pouca, nenhuma) sobre o que escreveu, e aqui ficou transcrito?

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Foto retirada de: konica.al

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A nossa edição:

“Tratado sobre a Tolerância” Voltaire, Editora Relógio d’Água, 1ª edição, Lisboa, 2015.