Como me seduzem estas palavras: ruelas, beirais, alfurjas, saguões, becos, escadarias, planos, serventias, pátios; um único Rossio – o Chafariz de Dentro; uma única avenida – os Remédios; um único monumento – a Torre de São Pedro; postigos, esquinas, arestas, lápides, siglas, grades, portais esquecidos.
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A nossa edição:
Maria Gabriela Llansol, Um Falcão no Punho, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 1998.
Muito curioso este mapa publicado pelo Washington Post [1]. Podemos verificar que são poucos os países que atingem o nível mais elevado de recetividade a visitantes estrangeiros. Em toda a América, apenas o Canadá. Na Europa, oito países tão diversos quanto o são Portugal, a Islândia, a Bélgica, a Irlanda, a Áustria, a Bósnia-Herzgovina, a Macedónia e Malta. Em África, Marrocos, Mali, Senegal e Bukkina Faso. No Médio Oriente, o Yemen e os Emiratos Árabes Unidos. Na Ásia, apenas a Tailândia e Singapura. Por fim, a Nova Zelândia, na longínqua Oceania… ao todo, 18 países.
Numa segunda linha, aparecem países como o Brasil, a Austrália, o México, a Turquia, a Finlândia e a Suécia.
A leitura deste mapa suscita-nos duas reflexões, que gostaria de partilhar aqui. Em primeiro lugar, mostra-nos que a diferença entre os dois países ibéricos, Portugal e Espanha, se reflete na diferença entre o Brasil e os restantes países da América do Sul. Há uma correlação positiva entre Portugal e Brasil, países claramente bons anfitriões, e chega a ser surpreendente, a baixa recetividade a estrangeiros de países como a Argentina, o Equador e, sobretudo, a Bolívia e a Venezuela. Isto está de acordo – ou, pelo menos, não é contraditório – com a ideia, defendida por muitos, de que a colonização portuguesa foi bastante mais tolerante do que a colonização espanhola.
Por outro lado, este mapa mostra-nos que existe uma outra riqueza no mundo que não apenas a riqueza material. Tal como as pessoas que concluem com êxito cursos de ciência e tecnologias são, em geral, financeiramente mais ricas do que aquelas que concluem cursos de humanidades ou letras, também os países podem ser, económica e financeiramente, muito ricos, sendo, ao nível humano, relativamente pobres. E tanto mais pobres quanto mais basearem as suas estratégias exclusivamente nas questões económicas. A riqueza humana não é transacionável nos mercados.
Miradouro das Portas do Sol. Um dos pontos obrigatórios, com vista fantástica sobre Alfama e o Tejo, para quem visita Lisboa.
Por fim, tudo isto me leva a pensar no grande número de estrangeiros que visitam diariamente Alfama. Na maioria das ruas de Alfama vemos, hoje em dia, mais estrangeiros que portugueses. Muitos voltam. E muitos, ainda, decidem aqui viver. Alfama, com sua multiplicidade de visitantes e habitantes, é a prova provada da ancestral hospitalidade portuguesa[2].
Um dos momentos mais interessantes do Santo António, em Alfama, é quando a marcha sai do bairro, no dia 12, para o desfile na Avenida da Liberdade. Os moradores vêm em peso para a rua e juntam-se aos turistas formando uma claque sempre diferente em cada ano e sempre vibrando com a alegre passagem dos marchantes e músicos da grande Marcha de Alfama.
Marcha de Alfama que, por sinal, foi a grande vencedora da edição deste ano do concurso das marchas populares, que já vai na 81ª edição. Desde 1932 que existe o concurso da Marchas de Lisboa, o qual, nesse ano, foi organizado por Leitão de Barros.
Atualmente, as Marchas Populares são avaliadas com uma pontuação de 0 a 20 e em dois momentos, no Meo Arena, antigo Pavilhão Atlântico, este ano nos dias 7, 8 e 9 de Junho e na Avenida da Liberdade, dia 12 de Junho, nas categorias de Coreografia, Cenografia, Figurino, Melhor Letra, Musicalidade, Melhor Composição Original e Desfile da Avenida.
Resultados das Marchas Populares de Lisboa 2013[1]:
1º lugar – Alfama
2º lugar – Alto do Pina
3º lugar – Bica
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Nota:
[1] Alfama só não participou em quatro edições das marchas – 1969, 1981, 1982 e 1983. Até hoje o concurso realizou-se por 46 vezes (teve várias interrupções, embora se realize ininterruptamente desde 1988), tendo Alfama conquistado 17 primeiros lugares, 11 segundos e 4 terceiros. É de longe a Marcha com mais títulos e também a única que venceu em cinco anos consecutivos (1996 a 2000).
Nenhuma História da Alfama dos últimos 50 anos ficará completa sem uma referência aos personagens mais conhecidos do bairro, cidadãos ilustres, míticos, mais ainda porque nenhum deles teve consciência do seu estatuto de alfamense imortal.
Entre todos, o maior era o Mata-Gatos. Bom rapaz, mas… que não se metessem com ele! A malta cumprimentava “bom dia Zé”, “boa tarde Zé” – e o Zé sempre sorria e cumprimentava também. E se havia alguém que, escondido num beco ou dissimulado num grupo, gritava “ó Mata-Gatos!”, aí era certinho, voavam os pombos sem asas que o Zé levava nos bolsos do casaco! Às vezes acontecia quebrar uma cabeça ou o vidro de um carro, mas o mal do Zé era batatas…
Grande Mata-Gatos! Era uma figura – daquelas que não se fazem mais!
Outro personagem – o único que pode ainda estar vivo – é o Vítor Beatas, que continuava a apanhar restos de cigarros (“beatas” ou “grilas”) do chão, há cerca de um ano, a última vez que o vimos, em Alfama. Nunca comprou tabaco. E durou, pelo menos, até os 85 anos, sempre a fumar beatas. Espero que esteja ainda vivo, e revê-lo a apanhar beatas, como sempre, desde há cinquenta anos, quando voltar em breve a Alfama.
Os demais ilustres – sobretudo na Alfama de Cima, onde mais convivemos – eram o Teófilo Borda d’Água, o Augusto Galinha (também conhecido por Augusto É Bom), o Magala, o Esticó Braço, o Rei do Sebo e o Doutor Maluco.
Amália foi uma cantora de dimensão mundial, ao nível dos melhores intérpretes de todos os géneros musicais.
Muitas músicas foram compostas e interpretadas tendo como referência Alfama – fados, sobretudo. Um deles – “Igreja de Santo Estevão” – interpretado por Fernando Maurício, poderia ser o escolhido por muitos, se tivessem de optar por uma canção para Alfama; os Madredeus lançaram nos anos 90 uma bela canção, precisamente, “Alfama”, digna também de uma representação musical do bairro; “O Barco vai de Saída” (“adeus ó cais d’Alfama”), de Fausto Bordalo Dias, é um tema belíssimo e muito animado que se coaduna com a tradição marítima do bairro, e poderia ser escolhido, também; várias marchas populares poderiam igualmente representar (provavelmente da forma mais bairrista entre todas) a nossa querida Alfama…
Eu, porém, escolhi uma composição, uma letra e uma interpretação que me pareceram as melhores. E um local também. A composição é de Alain Oulman, a letra de Ary dos Santos, a interpretação da grande Amália e o local Tunes, na Tunísia. Não teve influência na minha opção, mas é de realçar o facto de Ary dos Santos ter vivido muitos anos na Rua da Saudade, nos arrabaldes do bairro; e a escolha de um país árabe, como palco desta fabulosa interpretação (como todas) de Amália, é carregada de simbolismo.
Como não podia deixar de ser, o tema em questão intitula-se “Alfama” – e é arrebatador.
No tempo da minha infância, nos anos sessenta do século XX, ainda circulavam machos e burros puxando carroças com legumes e outras mercadorias pelas ruas de Alfama. Havia poucos carros. Tudo se comprava em avulso, pesado e embalado no comércio local: 500 gramas de açúcar, 250 gramas de azeitonas, um litro de feijão (sim, era um litro e não um quilo), meio-quilo de café; sete e meio de branco ou tinto na taberna do Zé Gordo, onde hoje é a Mesa de Frades. Não se usava plástico nem Tetra Pak. Sou do tempo da Fonte das Ratas e lembro-me de ver — ainda! — os vendedores de água, conhecidos por aguadeiros, apregoando “aú”! Eu próprio vendia leite avulso de porta em porta, ajudando os meus pais, o que me custou a alcunha de Norma Leiteiro, que eu detestava. As pessoas colocavam colchões nos becos e nos pátios e dormiam ao ar livre, nas noites quentes. Muitos criavam galinhas, coelhos, patos e outros animais que andavam com seus filhotes pelo empedrado do bairro. Algumas crianças tomavam banho nos chafarizes e alguns adultos também. Muitas habitações não tinham casa de banho. Aos sábados à noite ia-se ao café ver o Bonanza na televisão a preto-e-branco, como hoje se vai ao cinema; e aos domingos, sempre às três da tarde, ouviam-se no rádio os relatos do futebol. Ninguém pensava em ganhar dinheiro com os Santos Populares: as pessoas ofereciam sardinhas, pão e vinho a quem passava; cantava-se, dançava-se e saltava-se a fogueira: cada beco fazia a sua festa — e era muito, muito mais bonito que agora! Naquele tempo havia mais gente, mais atividades, mais pregões, mais cheiros. E tudo era maior porque eu era mais pequeno. Havia também as Casas da Malta, onde se amontoavam imigrantes, em geral do Norte, que vinham trabalhar para Lisboa. Muitas das profissões — estivadores, conferentes, fiéis de armazém, pescadores, armadores, manobradores, timoneiros, mestres, arrais, marinheiros, entre muitas outras — estavam ligadas ao porto e ao rio, para além de várias atividades ilícitas, em geral, complementares àquelas. Era comum encontrar-se — sobretudo de manhã, bem cedo, para o “mata-bicho” e, ao fim do dia, para o “copo-de-três” — muitos destes trabalhadores, distribuídos pelas tabernas do bairro. Trabalhadores e tabernas em vias de extinção. A ancestral relação entre Tejo e Alfama perdeu força nas últimas três, quatro décadas, até se extinguir, e esta foi a maior transformação, não apenas dos últimos cinquenta anos, mas desde sempre: o fim de uma relação milenar! Terminou um ciclo, no qual Alfama descobriu o mundo, e inaugurou-se outro, em que o mundo descobre Alfama. O turismo cresceu bastante nos últimos anos, ao mesmo tempo que o cais e o rio se esvaziaram. A Doca da minha infância, repleta de fragatas e varinos, onde tantos, como eu, aprenderam a nadar, foi aterrada; o Tejo ficou mais distante, inacessível; Alfama, sem ele, divorciada, perdeu vivacidade e alegria: entrou num processo de transformação e aos poucos foi-se adaptando e regenerando. Agora, os hábitos e a maioria dos habitantes são outros: muita gente, de muitos lugares, veio morar para Alfama. Há mais diversidade profissional, social, cultural; multiplica-se o pequeno comércio de chineses, cingaleses, indianos; a vida noturna animou-se com a proliferação de casas de fado e bares diversos. Enfim, o bairro revitaliza-se, renova-se, mas não perde a identidade. Isto percebe-se melhor quando subimos a colina e alargamos a vista, primeiro em Santo Estevão e, depois, em Santa Luzia: lá está o Tejo, afinal, com sua corrente forte; o casario e o traçado árabe parecem eternos; e as andorinhas continuam a chegar no fim dos dias longos, em grande algazarra, anunciando o Verão. Alfama ainda é a minha aldeia.
Alguns dos meus amigos de infância ainda se devem lembrar dele. E talvez haja algum que se lembre de quem lhe colocou a alcunha — Doutor Maluco — não sei se por ser diferente de todos os comuns mortais conhecidos no bairro, se pela figura eminente e misteriosa.
Passava pela Rua dos Remédios com ar altivo, ele que, de facto, era alto, distinto; fato preto, boina preta, sapatos pretos que riscavam o ar, impecavelmente engraxados.
(O negro contrastando com a alvura da pele).
Passava depressa, direito, flutuando — sempre pelo meio da rua, jamais sobre o passeio.
– “Então ó Doutor Maluco!”
E o Doutor Maluco — eu nunca soube o verdadeiro nome dele — continuava imperturbável o seu caminho, olhando em frente, por cima de todos, jamais baixando os olhos ou a cabeça, o rosto correctíssimo, impenetrável e sereno.
Lembro-me que numa tarde de Carnaval alguém lhe acertou com um ovo. O Doutor estancou, sacudiu a boina, limpou-a com um lenço alvíssimo que tirou duma algibeira, e sem enfado, sem olhar para nós ou para alguém, retomou seu caminho.
O tempo passou e nós teríamos, talvez, uns 18 anos quando um dia o encontrámos, no Largo da Graça. Vimo-lo à distância, e logo o Rui exclamou, “olha o Doutor Maluco!”
O Chico, que também ia connosco e sempre se saía com tiradas surpreendentes, sem mais, perguntou:
– Sr Doutor, o que é um homem que injeta heroína?
A resposta saiu pronta, natural, suave, como lhe houvessem perguntado as horas — e foi a única vez que ouvi a sua voz:
– É um herói.
Nunca mais vi o Doutor Maluco, que seguiu, olhando por cima dos transeuntes.
Cinco anos depois, o Rui e o Chico morreram, vítimas da heroína. Jovens, belos e audazes — como os heróis.