Doutor Maluco

Alguns dos meus amigos de infância ainda se devem lembrar dele. E talvez haja algum que se lembre de quem lhe colocou a alcunha – Doutor Maluco – não sei se por ser diferente de todos os comuns mortais conhecidos no bairro, se pela figura eminente e misteriosa.

Passava pela Rua dos Remédios com ar altivo, ele que, de facto, era alto, distinto; fato preto, boina preta, sapatos pretos que riscavam o ar, impecavelmente engraxados.

(O negro contrastando com a alvura da pele).

Passava depressa, direito, flutuando – sempre pelo meio da rua, jamais sobre o passeio.

“Então ó Doutor Maluco!”

E o Doutor Maluco – eu nunca soube o verdadeiro nome dele – continuava imperturbável seu caminho, olhando em frente, por cima de todos, jamais baixando os olhos ou a cabeça, o rosto correctíssimo, impenetrável e sereno.

Lembro-me que numa tarde de Carnaval alguém lhe acertou com um ovo. O Doutor estancou, sacudiu a boina, limpou-a com um lenço alvíssimo que tirou duma algibeira, e sem enfado, sem olhar para nós ou para alguém, retomou seu caminho.

O tempo passou e nós teríamos, talvez, uns 18 anos quando um dia o encontrámos, no Largo da Graça. Vimo-lo à distância, e logo o Rui exclamou, “olha o Doutor Maluco!”

O Chico, que também ia connosco e sempre se saía com tiradas surpreendentes, sem mais, perguntou:

– Sr Doutor, o que é um homem que injeta heroína?

A resposta saiu pronta, natural, suave, como lhe houvessem perguntado as horas – e foi a única vez que ouvi a sua voz:

– É um herói.

Nunca mais vi o Doutor Maluco, que seguiu, olhando por cima dos transeuntes.

Cinco anos depois, o Rui e o Chico morreram, vítimas da heroína. Jovens, belos e audazes – como os heróis.