A Construção de Jesus

Tolentino (1)
O quadro Le Repas de Simon, de Philippe Lejeune, serviu para ilustrar a capa deste excelente livro  de Tolentino Mendonça.

Conhecíamos Tolentino Mendonça das crónicas do “Expresso”, que lemos, semana a semana, religiosamente; agora conhecemo-lo também por este magnífico livro. Trata-se de uma versão abreviada e adaptada da sua tese de doutoramento em Teologia Bíblica, defendida em 2004[1]. Foi mantido o título – A Construção de Jesus – e alterado o subtítulo para A Surpresa de um Retrato. Ambos são felizes, pois se adequam perfeitamente ao que podemos ler nas cerca de duzentas páginas desta obra de excelência.

A partir de um episódio do evangelho lucano, cujos protagonistas são Jesus, um fariseu de nome Simão e uma inominada pecadora, Tolentino Mendonça parte, à boleia da narrativa de Lucas, para a descoberta da (ou de uma) identidade de Jesus, a qual se mostra, de facto, surpreendente. Quanto a nós, o livro revela três aspetos essenciais da vida de Cristo: a condição de Messias; o apego aos pecadores e o poder de perdoá-los; e o anúncio da salvação através da fé. Transcrevamos o episódio em causa narrado por Lucas, intitulado O perdão gera o amor (Lc. 7, 36-50).

Certo fariseu convidou Jesus para uma refeição em casa. Jesus entrou em casa do fariseu e pôs-Se à mesa. Apareceu então certa mulher, conhecida na cidade como pecadora. Ela, sabendo que Jesus estava à mesa na casa do fariseu, levou um frasco de alabastro com perfume. A mulher colocou-se por detrás, chorando aos pés de Jesus; com as lágrimas começou a banhar-Lhe os pés. Em seguida, enxugava-os com os cabelos, cobria-os de beijos e ungia-os com perfume. Vendo isso, o fariseu que havia convidado Jesus pensou: “Se este homem fosse mesmo um profeta, saberia que tipo de mulher Lhe está a tocar, porque é pecadora”. Jesus disse então ao fariseu: “Simão, tenho uma coisa a dizer-te”. Simão respondeu: “Fala, Mestre”. “Certo credor tinha dois devedores. Um devia-lhe quinhentas moedas de prata e o outro devia-lhe cinquenta. Como não tivessem com que pagar, o homem perdoou aos dois. Qual deles o amará mais?” Simão respondeu: “Acho que é aquele a quem ele perdoou mais”. Jesus disse-lhe: “Julgaste bem”. Então Jesus voltou-Se para a mulher e disse a Simão: “Vês esta mulher? Quando entrei em tua casa, não Me ofereceste água para lavar os pés; ela, porém, banhou-Me os pés com lágrimas e enxugou-os com os cabelos. Não Me deste o beijo de saudação; ela, porém, desde que entrei, não deixou de Me beijar os pés. Não derramaste óleo na minha cabeça; ela, porém, ungiu-Me os pés com perfume. Por esse razão Eu te declaro: os muitos pecados que ela cometeu estão perdoados, porque demonstrou muito amor. Aquele a quem foi perdoado pouco, demonstra pouco amor”. E Jesus disse à mulher, “Os teus pecados estão perdoados”. Então os convidados começaram a pensar: “Quem é este que até perdoa pecados?” Mas Jesus disse à mulher: “Salvou-te a tua fé. Vai em paz!

O que é verdadeiramente extraordinário, em muitos autores antigos, é a sua invulgar capacidade narrativa. Aqui deixamos este belíssimo texto no Dia de Páscoa do ano 2017[2].


Notas:

[1] o título da tese é “A Construção de Jesus. Uma leitura narrativa de Lc. 7,36-50”. Foi publicada na coleção de teses da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa e na editora Assírio & Alvim.

[2] De acordo com Tolentino Mendonça, Shusaku Endo (1923-1996), um romancista japonês, autor do Silêncio, um livro que deu origem ao recente filme homónimo de Martin Scorsese, teve influência sobre a abordagem de Tolentino a este texto lucano, tal como o próprio nos diz na “Abertura”: “Devo ter ouvido antes este episódio dezenas de vezes, mas o que me fez caminhar para ele intrigado, perfeitamente movido pelo espanto, foi um comentário do romancista japonês Shusaku Endo, no seu livro Uma Vida de Jesus (…). Ora, o que Shusaku Endo defende é que a peripécia da pecadora intrusa, que faz tudo para tocar naquele hóspede, é um momento central do Evangelho de Lucas, mais eficaz na transmissão de Jesus do que muitos outros, inclusive do que as histórias de milagres, porque dá de Jesus, precisamente pelo efeito de realidade, uma imagem viva, surpreendente e real. Confesso que tive um sobressalto e senti que tinha de compreender melhor o que o romancista sugeria.” E entretanto também nós fizemos nos últimos tempos um trajeto que se aproxima dos autores referidos por Tolentino e até a ele próprio. Da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto seguimos para o volume, publicado pela Universidade do Minho, intitulado Fernão Mendes Pinto e a Projeção de Portugal no Mundo, e para um dos artigos nele publicados – Os Caminhos Malditos da Projecção de Portugal no Mundo: O Caso de Cristóvão Ferreira, de M. Augusta Lima Cruz (aqui). Depois continuámos para o Silêncio, de Shusaku Endo, antes de chegarmos a esta Construção de Jesus, de José Tolentino Mendonça, que nos conduziu a uma revisitação da Bíblia. Caminhos como este – caminhos sem fim que, algures, sempre acabam por se cruzar com outros – tornam a vida mais rica, doce e surpreendente.

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A nossa edição:

José Tolentino Mendonça, A Construção de Jesus, a Surpresa de um Retrato, Editora Paulinas, 2ª edição, Prior Velho, 2015.

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Keynes – Uma Teoria Útil à Economia Mundial

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John Maynard Keynes.

Quando após a Primeira Guerra Mundial, França e Inglaterra impuseram à Alemanha, além de outras sanções, o pagamento do esforço de guerra que tinham realizado (incluindo os empréstimos que tinham pedido aos Estados Unidos), o mundo entrou numa gravíssima crise económica, da qual sairia apenas depois de terminada a II Guerra Mundial. Antes da Grande Guerra, no início do século XX, a Alemanha era já o país mais industrializado da Europa e o seu grande motor económico. Ao passar, no espaço de meia década, de um país rico a um país devedor, esse papel ficou comprometido. A Alemanha viu-se obrigada a valorizar a sua moeda para saldar a pesada dívida que a obrigaram a contrair, e isto provocou uma inflação crescente, que nem dois avultados empréstimos dos Estados Unidos conseguiram estancar. No final dos anos vinte, a Alemanha deparou-se com uma hiperinflação e os Estados Unidos entraram em profunda recessão. Keynes tinha avisado que isto poderia acontecer na sua obra As Consequências Económicas da Paz, onde alertava para os graves perigos do desequilíbrio mundial causado pelas sanções à Alemanha.

Keynes pensou na melhor forma de resolver o problema causado por um mundo em depressão. A solução encontrada por Keynes foi a de propor uma política expansionista do Estado para reanimar a economia. (Isto contrariava o que acontecera logo após a Primeira Guerra Mundial, e o que acontece hoje na Europa). Grandes investimentos públicos – estradas, caminhos-de-ferro, portos, aeroportos, hospitais, escolas – para criar emprego, aumentar o consumo interno, fazer subir os preços, criar condições para o investimento privado e assim dinamizar por dentro o crescimento, até a produção começar a crescer e por essa via crescerem também as exportações, e assim se atingir um novo equilíbrio. De acordo com Keynes, fazer o ajustamento por via de cortes salariais não era solução. Isso não permitiria que os preços subissem e não contribuiria para que as empresas contratassem mais pessoas.

Por desenvolver uma resposta inovadora ao enorme desemprego resultante da Grande Depressão, Keynes inaugurou uma nova disciplina económica – a macroeconomia. O desemprego não é determinado pelo nível dos salários, mas pelo nível de produção e, em última análise, a nível mundial, resulta do Paradoxo da Poupança, da contração geral das economias. É geralmente aceite que se deve à aplicação no terreno das ideias de Keynes a retoma económica que ocorreu, sobretudo, após a II Guerra Mundial e que se prolongou por décadas. Esse período ficou conhecido como era keynesiana, um período entrecortado com algumas crises financeiras localizadas, sobretudo na década de setenta, mas sem a dimensão da anterior Grande Depressão nem da grave crise económica que afeta hoje a União Europeia, particularmente os países do Sul pertencentes à zona-euro. Estes abdicaram da prerrogativa de desvalorizarem as suas moedas, ao aderirem à moeda-única, e isto, na prática, resulta no mesmo que voltar à rigidez do padrão-ouro. Nestas condições, é muito difícil que estes países endividados consigam cumprir as suas obrigações financeiras.

De acordo com David Vines e Peter Temin, a resposta adequada está ainda em Keynes. É preciso que as economias mais fortes, nomeadamente a Alemanha, adotem políticas expansionistas, induzindo as economias mais fracas, nomeadamente a Grécia, Portugal, Espanha e Itália, a exportarem mais, investirem mais, criarem emprego e riqueza. Só assim poderão equilibrar-se. Como todos sabemos, esta visão é muito polémica. A Europa está dividida entre a visão keynesiana e a dos liberais e monetaristas que acham que os países endividados têm de emagrecer ainda mais, mesmo que esse emagrecimento implique o fim do Estado Social, tal como o conhecemos, um Estado Social que não podemos sustentar sem endividamento excessivo. Polémicas à parte, certo é que será necessário que os nossos países passem muitos anos a exportar mais do que importam para pagar à Alemanha. Mas para onde exportar o que é necessário se todos os países querem também exportar mais do que importam? Para a situação mudar é imperioso ultrapassar este Paradoxo da Poupança, mas não se vislumbra, com os atuais políticos europeus, como isso possa acontecer.

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A nossa edição:

Peter Temin & David Vines, Keynes – Uma Teoria Útil à Economia Mundial, D. Quixote, 1ª edição, Lisboa, 2015.

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A Ilusão da Memória

Julia Shaw
A jovem psicóloga canadiana Julia Shaw.
  1. A memória é maleável. Com o passar do tempo incorpora interesses, preferências, sonhos, experiências diversas e modifica-se, podendo transformar completamente um acontecimento passado, falseando-o, quer este tenha sido (emocionalmente) marcante ou banal. Muitas das nossas memórias são falsas, mesmo aquelas (talvez sobretudo essas) que nos parecem extremamente claras.
  2. Vários estudos confirmam amplamente que a grande maioria de nós considera-se mais inteligente (ou mais culta, ou mais sábia, ou mais talentosa) que a média, algo que, logicamente, se traduz numa impossibilidade estatística, pois não pode haver uma maioria acima (ou abaixo) da média. O que realmente acontece é que quase todos somos afetados por algo muito comum: o pretensiosismo. Os mais presunçosos são também, como seria de esperar, os mais confiantes. Porém, uma maior confiança na própria memória não significa que esta seja mais exata, antes pelo contrário.
  3. A ciência é sempre preferível à pseudociência, e os cientistas são sempre mais interessantes que os charlatães (profetas, iluminados, lunáticos, etc.). Por exemplo, a hipnose é uma treta: ninguém consegue recordar coisas de quando era pequenino ou de qualquer outra fase da vida através da hipnose.
  4. Por falar em ciência e pseudociência, o sinónimo mais aproximado para “Freud” é… “fraude”.
  5. Há muitas capacidades mnemónicas espetaculares, como indivíduos capazes de memorizar uma quantidade impressionante de dados, outros extremamente dotados para recordar rostos e outros ainda com uma excelente memória fotográfica (eidética), mas isso, ao contrário do que possa parecer, não é bom. Muitos autistas, por exemplo, não conseguem relacionar-se socialmente e, no entanto, alguns deles são hipertimésicos (savants), isto é, têm uma capacidade de memória incrivelmente superior à dos indivíduos comuns.
  6. As capacidades excecionais são, portanto, muito menos importantes que o equilíbrio. A memória funciona por associação e cada conceito ou imagem ativa um nódulo cerebral, que por sua vez ativa outro e assim sucessivamente até muitos nódulos se ligarem e formarem memórias mais complexas. Pensa-se que o hipocampo (situado, sensivelmente, no meio do cérebro) seja o responsável pela formação destas redes, em tempo real; e cada vez que recordamos criamos uma nova memória diferente da anterior, sendo influenciados de múltiplas formas quer no momento em que algo acontece, quer nos momentos em que recordamos esse acontecimento.
  7. A plasticidade do nosso cérebro, a capacidade que detém para fazer associações, não permite que as memórias sejam impermeáveis, pelo contrário, elas são suscetíveis a todo o tipo de influências. Porém, é graças a essa plasticidade que também conseguimos aprender, relacionar, criar. Jamais seríamos humanos se não tivéssemos um cérebro altamente equilibrado e relacional.
  8. O saudável equilíbrio está ligado a racionalidade e a independência. Somos seres paradoxais, dotados de uma racionalidade frágil, muitas vezes eclipsada pelas emoções e pela necessidade de pertença a grupos – turmas, escolas, clubes de futebol, bairros, partidos, nações, igrejas, etc -, o que nos leva a aceitar a irracionalidade, quase sempre sem darmos conta disso. O mundo passa a dividir-se entre nós, os bons, e os nossos rivais, os maus. (Quem quiser aprofundar este tema pode procurar um excelente livro, publicado em 2008: Previsivelmente Irracional: as forças ocultas que formam as nossas decisões, do americano Dan Ariely).
  9. É por isso que muitas vezes relutamos em contrariar alguém de um determinado grupo ou quadrante – porque temos a clara noção de que seremos imediatamente catalogados como pertencentes ao grupo ou quadrante rival. Por exemplo, se criticamos uma ideia vinda da direita é porque somos um perigoso esquerdista, e vice-versa. Ser membro fervoroso de um grupo torna-nos radicais e retira-nos a capacidade de entendermos o pensamento independente, mesmo que este constitua, como de facto acontece, a única atitude racional.
  10. Finalmente, só conseguiremos aproximar-nos de um pensamento independente se formos críticos. Mais exatamente, autocríticos. Somos seres flexíveis e influenciáveis: a racionalidade absoluta não existe e a independência completa também não. Mas mantendo-nos autocríticos poderemos ter, em momentos mais ou menos importantes, uma atitude menos irracional (e menos presunçosa, também). Isto pode parecer pouco relevante, mas talvez não seja: a racionalidade é a única forma de, no mundo, alcançarmos a paz.

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Foto retirada de: http://www.vice.com

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A nossa edição:

Julia Shaw, A Ilusão da Memória ,Círculo de Leitores, 1ª edição, Lisboa, 2016.

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O Capital – Livros I e II

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Os dois primeiros livros de O Capital, publicados pela editora brasileira Boitempo.

Não se pode compreender a fundo “O Capital” de Marx, especialmente o primeiro capítulo, sem o paciente estudo e assimilação de toda a “Lógica” de Hegel. Consequência disto é que, depois de meio século, não se conhece um só marxista capaz de compreender Marx1.

Lenine

1- A PROBLEMÁTICA DAS EDIÇÕES D’O CAPITAL

O Capital (cujo título completo é O Capital: Crítica da Economia Política 2 é uma obra monumental, dividida em quatro volumes. Marx trabalhou cerca de vinte anos na sua construção, e apenas o Livro I – O Processo de Formação do Capital 3 – foi, em 1867, na Alemanha, editado por ele4. Só depois de Marx ter morrido (em 1883), é que Engels editou os livros II e III, respetivamente, em 1885 e 1894. O último volume (Livro IV) só foi publicado após a morte de Engels (1820-1895), em 1905, numa edição de Kautsky.

Para lá da extensão, O Capital é igualmente uma obra complexa. A sua organização constituiu um grande problema. Os manuscritos que Marx deixou tiveram que ser interpretados, ordenados e estruturados para, com base neles, Engels editar os livros II e III5. No entanto, Engels não se limitou a esse papel escrutinador. “Em seu árduo trabalho editorial, ele também entendeu ser necessário preencher diversas lacunas no corpo do texto marxiano, estabelecendo conexões e desenvolvendo pontos que julgava não estarem suficientemente explicitados”6, de tal forma que alguns estudiosos da obra, sustentados em investigações recentes, chegam a admitir que a autoria dos livros II e III deveria ser atribuída a Friedrich Engels e não a Karl Marx 7.

Porém, Engels jamais aceitaria essa autoria. A sua fidelidade a Marx foi total. Engels dedicou-se, após a morte de Marx, à obra essencial do amigo, deixando para segundo plano, ou mesmo abandonando, os seus projetos pessoais (apesar de ainda ter publicado um livro de sua autoria)8. Este grande trabalho de Engels foi muito importante e continua, hoje, praticamente desconhecido do grande público. E foi também um trabalho ingrato: os manuscritos deixados por Marx sobreviveram até à atualidade9 e têm sido alvo de um minucioso escrutínio por parte de especialistas, muitos dos quais apontam erros substanciais ao trabalho do pobre Engels. Isto seria sempre inevitável, e só o facto de Engels se ter sujeitado a críticas que (ele sabia) iriam durar muito para lá da sua vida, já prova a extraordinária amizade que o ligava a Marx.

2- ENQUADRAMENTO HISTÓRICO-SOCIAL D´O CAPITAL

O Capital é uma obra de Economia que deve ser encarada sob um ponto de vista mais amplo. É esta, aliás, a perspetiva do próprio Marx, que reclama um enquadramento histórico do capitalismo, sem o qual este dificilmente será compreendido. Aliás, segundo ele, o indivíduo não é mais do que uma peça na engrenagem do imparável processo histórico10, sendo inútil qualquer tentativa para contrariar esse processo. Este aspeto de O Capital é muito importante, pois revela que a obra essencial do marxismo não pode ser desligada do contexto histórico nem, sobretudo, de uma visão político-social, defendida por Marx e Engels, que podemos apelidar de historicista11. Por outras palavras, o processo histórico da luta de classes, tal como Marx o desvendou, teve um início, um meio (a época de capitalismo selvagem em que Marx viveu) e teria um fim com o advento da sociedade socialista, e a tomada do poder pelo proletariado.

A teoria histórica de Marx desenvolve-se em três fases: a) análise das forças económicas do capitalismo e a sua influência sobre as relações entre as classes (O Capital trata apenas deste ponto); b) a inevitabilidade da revolução; c) a emergência da sociedade sem classes12. É a partir da análise realizada em O Capital (alínea a) que Marx retira as conclusões (erradas) das alíneas b) e c). De uma análise sobre o presente e o passado, Marx retira conclusões ousadas para o futuro; a partir de um conhecimento empírico, factual, histórico, Marx deduz o futuro, o qual nunca pode ser empírico, factual nem, obviamente, histórico. É por isso, que a teoria marxiana falha.

A previsão de Marx, e dos teóricos marxistas, era que o colapso do capitalismo e a tomada do poder pela classe operária ocorreria primeiro nos países onde o capitalismo estivesse mais desenvolvido. Ora, isso não aconteceu nem se vislumbra onde tal possa acontecer. Pelo contrário, as revoluções operárias (ou em nome dos operários e camponeses) realizaram-se em países pouco desenvolvidos do ponto de vista capitalista e foram impostas de forma violenta às populações. Mais: económica e socialmente, foram um desastre. Os marxistas usam normalmente dois tipos de “argumentos” para justificarem o fiasco que resultou dos governos comunistas: não estavam reunidas as “condições objetivas” ou, por outro lado, não existiram “condições políticas” (em geral, por inépcia dos governantes) para implementar a verdadeira doutrina comunista. Em suma: tudo o que possa correr mal não pode decorrer da teoria marxista, porque esta está correta, mas de algum fator externo.

Nós, porém, temos duas justificações diferentes, uma decorrente da doutrina de Marx, outra derivada dos marxismos. Pelo lado do próprio Marx, este quis que a sua doutrina fosse científica e materialista, procurou limpá-la da especulação filosófica (como ele próprio disse: “não basta interpretar o mundo, é preciso mudá-lo”). Marx pensou erradamente que o comportamento humano seria linearmente determinado pelo processo histórico, pelo condicionamento económico e social. Tinha uma visão determinista, possuía sólidos conhecimentos de Economia e de História, mas fraco entendimento de Psicologia; conhecia mal o género humano: as suas aspirações, a sua capacidade de transformação e, sobretudo, o seu apego à liberdade. Isso conduziu-o ao historicismo. Por seu turno, os marxistas confundiram intenções com realidade. Se a intenção é boa, o resultado deverá ser igualmente bom, pensaram eles. Se algo falha, a culpa não é, naturalmente, de quem é bem-intencionado… Ora, esta confusão revelar-se-ia um erro fatal; um erro associado a morte e a sofrimento; um erro que – embora residual nas sociedades mais avançadas de hoje – ainda persiste.

3- CONTEÚDO D’ O CAPITAL

Já nos referimos à extensão e ao detalhe desta obra de referência, uma das mais famosas de sempre. O Capital não é, de forma alguma, uma obra fácil. Louis Althusser13, um marxista francês, avisa, em “Advertência aos leitores do Livro I d’O Capital“, que, “para ser compreendido, o Livro I precisa ser relido quatro ou cinco vezes consecutivas”14. Não seguimos o aviso de Althusser: lemos o Livro I, e também o Livro II, apenas uma vez. Isso não nos impediu – nem deve impedir ninguém – de emitir opinião sobre uma obra em que, apesar dos detalhe e minúcia, transparece de forma bem clara a intenção de seu autor: denegrir o sistema capitalista, denunciando aquilo que ele considera ser o seu caráter iníquo.

Marx viveu numa época em que o capitalismo selvagem, sem regras, proliferava na Europa, sobretudo em Inglaterra, fruto da Revolução Industrial. Foi uma época chocante, com horários de trabalho desumanos, condições degradantes, trabalho infantil, abuso do trabalho feminino, salários miseráveis, direitos sociais praticamente inexistentes. Marx indignou-se, justamente, com esta situação. Procurou as causas, o modus operandi do sistema capitalista. Tal como os economistas burgueses, que não fizeram mais do que “traduzir, sistematizar e fazer a apologia doutrinária das ideias dos agentes dessa produção (capitalista), presos às relações burguesas de produção”15, também Marx não fez mais do que tomar em mãos a apologia dos interesses dos trabalhadores, mostrando como estes são explorados e precisam revoltar-se para derrotarem os capitalistas.

No Livro I, Marx mostra-nos como se dá essa exploração. Ele mostra que cada época tem, do ponto de vista económico, o seu modo de produção – é este que caracteriza e define cada época histórica. Quando as sociedades humanas viviam ainda fechadas, toda a produção era consumida no seio da tribo, não havia troca, nem comércio16, nem dinheiro, tudo isso apareceu mais tarde, com o desenvolvimento técnico, particularmente dos transportes. No modelo económico que antecedeu o capitalismo – o feudalismo – o senhor feudal detinha os meios de produção, nos quais se incluía a força de trabalho do servo. E foi apenas com o surgimento da sociedade burguesa, quando o servo conquistou a liberdade e passou a poder vender a sua força de trabalho, tornando-se um assalariado, que surgiu, verdadeiramente, o capitalismo. O capitalista passou a ser o detentor dos meios de produção: a) o capital constante (matérias-primas terrenos, maquinaria, etc) e b) o capital variável (a força de trabalho).

É neste momento que surge o ponto crucial da “lei” de Marx – a teoria da mais-valia. Só existe capitalismo porque no ciclo de produção e circulação se estabelece uma mais-valia; e só existe mais-valia porque existe o trabalhador livre, portador da força de trabalho. É usando a força de trabalho em seu benefício (explorando-a) que o capitalista cria a mais-valia, aquilo que os ricardianos apelidavam de lucro. Isto acontece porque a força de trabalho – que, como qualquer outra mercadoria, deveria ser comprada pelo seu valor17 (o tempo de trabalho necessário), no caso, o tempo necessário à produção dos meios de subsistência do próprio trabalhador  – é usada pelo capitalista muito para lá do necessário. Se, por exemplo, o tempo de trabalho que cobre as necessidades de subsistência do trabalhador for de 6 horas e a jornada de trabalho imposta ao assalariado for de 12 horas (como foi durante bastante tempo), as restantes 6 horas constituem uma mais-valia, capital que pode metamorfosear-se em vários tipos, como o capital-monetário18, o capital-mercadoria ou o capital produtivo. Esta é a questão fulcral de O Capital.

A nova teoria económica de Marx, baseada na mais-valia, corta com a chamada corrente da Economia Política, cujos representantes maiores são Adam Smith e David Ricardo, sobretudo em dois aspetos. Em primeiro lugar, ao introduzir o próprio conceito de mais-valia. Enquanto aqueles economistas se referem a “lucro”, ou seja, a uma dedução ao salário que é adiantado pelo capitalista ao trabalhador, considerada equivalente à parcela de trabalho que este adiciona à matéria-prima, Marx vem dizer  que essa dedução corresponde a trabalho excedente, a uma parte não remunerada do trabalho, ou seja, a uma mais-valia, que deve constituir, segundo Marx, uma categoria própria – e muito importante – de qualquer teoria económica. Em segundo lugar, Marx introduz o importantíssimo conceito de “força de trabalho”. Esta força de trabalho é portadora de um valor específico – como “a gravidade pode ter um peso especial, o calor uma temperatura especial, ou a eletricidade uma voltagem especial”19 – e não um valor que não é rigoroso, tal como o que está incluído no conceito simples, e anterior a Marx, de “trabalho”. É o conceito específico de força de trabalho que nos permite avaliar o valor do trabalho incorporado numa mercadoria (o trabalho socialmente necessário para a sua produção e reprodução) e, simultaneamente, nos permite avaliar com rigor o valor apropriado pelo capitalista como mais-valia (ou mais -valor).

Evidentemente, isto passa-se na época da Revolução Industrial, pelo que o capital dessa época se designa por “capital industrial”, e é este que Marx analisa nas suas fases de produção e circulação, as quais estão intimamente ligadas e formam uma unidade20. Esta unidade também pode ser chamada de “capital total”. Neste ciclo maior, o capital transforma-se sucessivamente em capital-mercadoria, capital-monetário e capital-produtivo (cada um deles com seu ciclo especifico e todos interligados) num processo contínuo que se reproduz indefinidamente. O mais óbvio destes ciclos menores é, aparentemente, o capital-monetário porque, de acordo com Marx, a sua “finalidade e motivo propulsor – a valorização do valor, o ato de fazer dinheiro e a acumulação – apresentam-se aqui numa forma evidente (comprar para vender mais caro)”21.

Não vamos entrar em detalhes sobre o que se passa em cada ciclo, nem decompor outros conceitos importantes da teoria económica de Marx. Limitamo-nos, modestamente, ao essencial, tendo o cuidado de relembrar que este artigo se refere “apenas” aos livros I e II de O Capital. Há que reconhecer muito mérito a Marx. Para lá da nova perspetiva que introduziu sob o ponto de vista económico, Marx produziu igualmente uma obra erudita, sob os pontos de vista histórico, social e, pelo menos no Livro I, até literário.

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Notas:

1 Lenine citado em “Os Pêssegos Verdes”, de Augusto Meyer, Edição da Academia Brasileira de Letras, 2002.

2 No desenvolvimento do presente trabalho adotaremos sempre o título abreviado, aquele, aliás, pelo qual a principal obra de Marx (e Engels) foi popularizada : O Capital.

3 Livro II- O Processo de Circulação do Capital; Livro III- O Processo Total da Produção Capitalista; Livro IV- Teorias do Mais-Valor.

4 Marx nasceu em Trier, no sudoeste da Alemanha (Renânia), a 5 de maio de 1818, e faleceu em Londres, a 14 de março de 1883.

4 O Livro I é composto de textos escritos por Marx entre 1866 e 1875; o Livro II, de textos surgidos entre 1868 e 1881; o Livro III, de um manuscrito redigido em 1864-1865.

5 O Capital- Crítica da Economia Politica, Livro II- O Processo de Circulação do Capital, Karl Marx, Editorial Boitempo, São Paulo, 2014, Nota da Tradução (Rubens Enderle), p. 14.

6 Isso mesmo nos diz David Harvey em Para entender O Capital: Livros II e III, Editorial Boitempo, São Paulo, 2014, p. 15.

8 A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado. Temos  Uma edição brasileira desta obra. Lafonte, São Paulo, onde Engels não esconde o seu fascínio pelos tempos tribais, quando não existiam ainda as instituições que figuram no título do seu último livro.

9 Manuscritos que foram classificados em grandes grupos, denominados Manuscrito I, II, III… até VIII.

10Meu ponto de vista, que apreende o desenvolvimento da formação econômica da sociedade como um processo histórico-natural, pode menos do que qualquer outro responsabilizar o indivíduo por relações das quais ele continua a ser socialmente uma criatura, por mais que, subjetivamente, ele possa se colocar acima delas” (Prefácio da 1ª edição de O Capital, escrito por Karl Marx, ob. cit., Livro I, p. 80).

11 Empregamos aqui o termo “historicismo” no sentido popperiano. Neste sentido, uma teoria historicista caracteriza-se por prever (ou determinar) o futuro da sociedade. Para Marx, essa sociedade futura seria dominada pela classe operária. Ainda no jargão popperiano, trata-se de uma teoria (social) “fechada”. Para Popper, o futuro é aberto, indeterminável. Daí o título da sua obra, de 1945, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, tratada em artigo deste blogue, que pode ser lido aqui.

12 Estas fases foram (bem) definidas por Karl Popper (A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Vol. II, Editorial Fragmentos, Lisboa, 1993, p. 136). 

13 Louis Althusser (1918-1990), filósofo marxista, foi professor da École Normale Supérieure de Paris. Em 1980, imagine-se, matou a mulher por estrangulamento.

14O Capital- Crítica da Economia Politica, Livro I – O Processo de Produção de Capital, Karl Marx, Editorial Boitempo, São Paulo, 2013, p. 44.

15 O Capital- Crítica da Economia Política, Livro II – O Processo de Circulação do Capital, Karl Marx, Editorial Boitempo, São Paulo, 2014, p. 99.

16 “A circulação de mercadorias é o ponto de partida do capital”. (Livro I, p. 223).

17 É muito importante perceber que qualquer mercadoria só tem valor porque tem trabalho associado. A força de trabalho tornou-se, com o capitalismo, ela própria, uma mercadoria.

18 O dinheiro que não é investido não pode ser considerado capital.

19 Livro II, p. 99 (Prefácio da primeira edição, escrito por Engels).

20 “processo inteiro apresenta-se como unidade do processo de produção e do processo de circulação; o processo de produção torna-se mediador do processo de circulação, e vice-versa” (Livro II, p.179). 

21 Livro II, p. 138.

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As nossas edições:

  • Karl Marx, O Capital – Crítica da Economia Politica, Livro I – O Processo de Produção de Capital, Editorial Boitempo, São Paulo, 2013.
  • Karl Marx, O Capital – Crítica da Economia Politica, Livro II – O Processo de Circulação do Capital, Karl Marx, Editorial Boitempo, São Paulo, 2014.

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O Tratado Lógico-Filosófico

Wittgenstein
É provável que a popularidade de Wittgenstein se deva sobretudo à sua biografia.

As obras  de Wittgenstein aqui analisadas (Tratado Lógico-Filosófico e Investigações Filosóficas) foram editadas, num único livro pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 1987[1], e basearam-se em edições inglesas de 1961 (Tratado Lógico-Filosófico) e 1983 (Investigações Filosóficas), embora os respetivos textos tenham sido escritos muito antes: o primeiro no decorrer da Primeira Guerra Mundial e o segundo entre 1936 e 1949. Muitos consideram que esses textos correspondem a dois períodos distintos, que apelidaram de “Primeiro Wittgenstein” e “Segundo Wittgenstein”. Isto faz jus ao que o próprio, em 1945, afirmou: “Há quatro anos tive ocasião de voltar a ler o meu primeiro livro (Tractatus Logico-Philosophicus) e de explicar as suas teses. De súbito, pareceu-me que devia publicar conjuntamente a minha velha com a minha nova maneira de pensar: que esta só podia ser verdadeiramente iluminada pelo contraste e contra o campo de fundo daquela. Desde que há 16 anos comecei de novo a ocupar-me de Filosofia, tive que reconhecer erros graves no que escrevi no meu primeiro livro”[2].

O próprio Wittgenstein reconhece, portanto, que não existe unidade na sua obra. Não devemos criticá-lo por isso, antes pelo contrário, mas algo mais estranho, paradoxal mesmo, ocorre quando ele anuncia no próprio Tractatus: “As minhas proposições são elucidativas pelo facto de que aquele que as compreende as reconhece afinal como falhas de sentido”[3]. Sim, Wittgenstein considera as proposições da Filosofia “sem sentido”, incluindo, coerentemente, as suas. Convém, aqui, esclarecer que Wittgenstein adotou a tríplice distinção feita por Bertrand Russell[4] entre enunciados verdadeiros, falsos e sem sentido ou “insignificativos”[5]. Assim, numa tentativa (levada a cabo muito antes, e com muito maior sucesso, por Kant) de demarcar o senso do contra-senso, o campo da experiência do campo da especulação, a ciência da metafísica, ele vai considerar que apenas nas ciências da natureza se pode afirmar que uma proposição é verdadeira ou falsa; a filosofia, pelo contrário, não produzirá proposições verdadeiras ou falsas, o seu trabalho “consiste essencialmente em elucidações” e no “esclarecimento de proposições”[6]. A filosofia, portanto, só produz proposições sem sentido.

O que terá levado Wittgenstein a esta conclusão? Teria ele noção de que, de acordo com a sua teoria, muitas das proposições do Tratactus teriam de ser consideradas “sem sentido”? (Ver nota 4). Tendo em conta o que transcrevemos acima sobre o que ele escreveu no Prólogo às Investigações Filosóficas, é bem possível que sim, que tivesse noção dos “erros graves” do Tratactus. Parece-nos que, nesta obra, Wittgenstein chegou à conclusão de que a melhor forma (talvez a única) de delimitar a ciência da metafísica é através da lógica da linguagem. Uma linguagem rigorosa que elimine a ambiguidade. Com isto, porém, Wittgenstein obteve um resultado inesperado e paradoxal: não conseguiu alcançar esse tipo de linguagem, mas abriu caminho (na verdade, levou-o mais além)[7] para um novo tipo de filosofia, cujo objeto se reporta à busca de uma metalinguagem – a “ciência” dos símbolos, das palavras, e de o que está por detrás delas – aquilo que Popper designou por “essencialismo”. E pouco importa que Wittgenstein tenha reconhecido, anos depois, erros na sua “teoria”[8] – o séquito manteve-se até hoje[9].

É, pois, bastante curioso que, ao pretender proteger as ciências naturais da especulação filosófica, Wittgenstein acabasse por introduzir nas mesmas uma discussão sobre a linguagem – algo a que nunca se dedicou, nem dedica, nenhum verdadeiro cientista. Os desafios da ciência não se prendem de forma nenhuma com a linguagem, mas sim com problemas reais e concretos que não dependem daquela. A discussão sobre a linguagem – a tentativa de rigorosamente definir os seus termos e delimitar as respetivas conotações – é estéril, não conduz a lado algum, a não ser a uma regressão infinita, pois é sempre possível (mais: é sempre necessário) definir os termos definidores de uma qualquer palavra que queiramos definir[10]. Além destes “erros graves”, a clareza do Tratactus – essa sim, uma característica verdadeiramente importante de qualquer linguagem – deixa muito a desejar.

Clareza que também está arredada das Investigações Filosóficas. Se, no Tractatus, Wittgenstein chega a algumas conclusões (mesmo que erradas), nas Investigações Filosóficas não chega a qualquer conclusão, limitando-se a emitir pensamentos, opiniões e observações, em doses homeopáticas, sobretudo de caráter psicológico. Esta fragmentação[11] é assumida por Wittgenstein logo no Prólogo quando diz: “Depois de diversas tentativas mal sucedidas para soldar os meus resultados num tal todo, compreendi que nunca conseguiria fazê-lo”[12]. Isto não ajuda à clareza do texto. É impossível seguir uma linha de pensamento coerente porque, pura e simplesmente, ela não existe. Wittgenstein perde-se em introspeções, como quem toma apontamento dos pensamentos que a cada dia lhe afloram ao espírito. Lamentavelmente, as suas elucubrações não conduzem a qualquer avanço conhecido, seja em que área do conhecimento for.

Não conseguimos discernir, como já dissemos, um fio condutor nas ideias expressas por Wittgenstein. Resta-nos dizer que, pelo menos, apreciamos a sua sinceridade. Talvez algum do fascínio que se nota à sua volta resida nas sinceridade e simplicidade, mesmo numa certa infantilidade, que parece ter mantido até o fim[13]. Pensamos que, de certa forma, as últimas palavras que Wittgenstein usou no Prólogo às Investigações Filosóficas ilustram bem essa característica sincera e quase inocente da sua personalidade: “É com sentimentos duvidosos que trago a público as minhas observações. Não é impossível que seja o destino deste trabalho, na sua escassez e nas trevas desta época, lançar luz num cérebro ou noutro; mas, claro, não é provável. Gostaria de ter escrito um bom livro. Não aconteceu assim e já passou o tempo em que eu poderia melhorá-lo”[14].

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Notas:

[1] Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico e Investigações Filosóficas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1987.

[2] Ob. cit., p. 166 (Prólogo às Investigações Filosóficas – Parte I).

[3] Ob. cit., p. 142.

[4] Russell que escreve na Introdução ao Tratactus: “As coisas que têm de ser ditas, para conduzir o leitor a compreender a teoria do senhor Wittgenstein, são todas elas coisas que a própria teoria condena como sem-sentido” (Ob. cit., p. 7). Diga-se de passagem que Wittgenstein não gostava muito da Introdução de Russell e que este não pensava em autorizar a sua republicação em 1961, permitindo-a apenas após longa insistência do editor.

[5] Um dos principais críticos desta tríplice distinção (e de Wittgenstein) é Karl Popper. Diz-nos ele: “É importante notar que o emprego dos termos “sem significado” ou “sem sentido” é, em parte, concordante com o uso comum, mas é muito mais nítido, pois muitas vezes, no uso comum, enunciados reais são classificados como “sem significado”, se, por exemplo, forem “absurdos”, isto é auto-contraditórios ou obviamente falsos. Assim, um enunciado que afirme que determinado corpo físico está ao mesmo tempo em dois lugares distintos não é um enunciado sem significado, mas um enunciado falso, ou que contradiz o emprego da palavra “corpo” na física clássica; similarmente, um enunciado asseverando que um electrão tem um lugar e um impulso precisos não é destituído de sentido – como alguns físicos asseveraram e alguns filósofos repetiram – mas simplesmente contradiz a física moderna” (in A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Vol. II, Editorial Fragmentos, Lisboa, 1993, p.286).

[6] Ob. cit., p. 62.

[7] Este caminho iniciou-se com Platão e Aristóteles, sobretudo com este último – que considerava como métodos fundamentais da obtenção de conhecimento a demonstração (ou prova) e a definição (daqui saiu a doutrina perversa  da adoração das palavras).

[8] Colocámos o termo “teoria” entre aspas porque as ideias de Wittgenstein não constituem, tanto em nossa opinião como na dele, um todo coerente.

[9] São variadíssimos os filósofos influenciados por Wittgenstein, desde Gilbert Ryle a Giorgio Agamben (ver artigo sobre ele aqui), passando por Kai Nielsen e John Searl, entre muitos, muitos outros.

[10] Popper dá-nos um exemplo concreto: “Poder-se-á dizer que o que se tem em mente, ao pedir uma definição, é a eliminação de ambiguidades tantas vezes relacionadas com palavras como “democracia”, “liberdade”, “dever”, “religião”, etc.; que é claramente impossível definir todos os termos, mas é possível definir alguns desses termos mais perigosos, e não ir além disso; e que os termos definidores têm apenas de ser aceites, isto é, que devemos deter-nos depois de avançarmos um passo ou dois, a fim de evitar uma regressão infinita. Esta defesa é, porém, indefensável. Admite-se que os termos mencionados sejam usados incorretamente. Mas nego que a tentativa de os definir possa melhorar as coisas. Só pode torná-las piores (…) De facto, visto que não poderíamos exigir que todos os termos definidores fossem por sua vez definidos, um político ou um filósofo hábil poderia facilmente satisfazer a exigência de definição. Se lhe perguntassem o que entendia por “democracia”, por exemplo, poderia dizer: “o governo da vontade geral” ou “o governo do espírito do povo”; e, como acabara de dar uma definição, satisfazendo assim os mais elevados padrões de precisão, ninguém ousaria criticá-lo mais. E, na verdade, como poderia ser criticado se a exigência de que “governo”, ou “povo” ou “vontade” ou “espírito” fossem por sua vez definidos nos colocaria no caminho e uma regressão infinita, de modo que qualquer um hesitaria em fazê-la? Mas, se apesar de tudo fosse feita, então poderia ser igualmente satisfeita sem dificuldade. Por outro lado, a questão de saber se a definição era correta, ou verdadeira, só poderia levar a uma controvérsia, fazia de sentido, sobre palavras” (in  A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Vol. II, Editorial Fragmentos, Lisboa, 1993, p. 24).

[11] Ambas as obras (quer o Tractatus, quer as Investigaçõs Filosóficas) são divididas apenas em parágrafos numerados, tal como as suras do Alcorão ou os versículos dos livros da Bíblia, sem recurso às divisões tradicionais, como sejam índice, capítulos ou secções.

[12] Ob. cit., p. 165.

[13] Fascínio que também pode ser justificado por outros aspetos da sua biografia – como a suposta homossexualidade, a participação nas duas guerras mundiais, o despojamento e a irascibilidade (manifestada, por exemplo, no episódio do atiçador, com Popper) – que não nos compete aqui desenvolver.

[14] Ob. cit., p. 167.

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A nossa edição:

Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico e Investigações Filosóficas, Fundação Calouste Gulbenkian, 1ª edição, Lisboa, 1987.

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foto retirada de http://www.bbc.co.uk

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Tornar-se Pessoa

Carl-Rogers (1)
Carl Rogers

Carl Rogers nasceu em 1902 nos Estados Unidos e dedicou toda a sua vida (que findou em 1987) à Psicologia, sendo reconhecido como o maior representante da denominada Terapia Centrada na Pessoa, uma corrente humanista que se opõe a quase todas as outras correntes psicológicas[1], sobretudo ao behaviorismo, uma vez que rejeita qualquer tipo de condicionamento, sequer algum tipo de direcionamento, oferecendo às pessoas todo o espaço para seguirem por onde quiserem.

Embora Rogers, evidentemente, tivesse sofrido algumas influências, a teoria que viria a desenvolver ao longo da sua longa carreira sustentou-se, quase exclusivamente, na experiência enquanto terapeuta[2]. De acordo com essa teoria, a Terapia Centrada na Pessoa só terá êxito se estiverem reunidas, em primeiro lugar, algumas condições relativas ao terapeuta. Este tem de ser autêntico (ou, como veremos abaixo, tem de possuir um alto grau de congruência); de aceitar-se a si mesmo; de aceitar o outro como ele é e de estar permanentemente de espírito aberto para receber opiniões diversas das dele próprio; e, finalmente, de estar disponível para a mudança que inevitavelmente ocorrerá não apenas no outro mas também nele próprio.

A atitude do terapeuta é, assim, muito mais importante que os seus conhecimentos. É essa atitude, sumariamente descrita acima – onde não existe crítica e muito menos julgamento – que vai permitir ao “paciente”[3] se encontrar consigo próprio. Este sente absoluta confiança no terapeuta e, por isso, começa aos poucos a afastar-se das atitudes (defensivas) que pensa ser as que agradam aos outros, abandonando as posições de fachada, e acaba por se aceitar como é, não como os outros gostariam que ele fosse. Nesse percurso (jamais fácil) dá-se uma libertação do eu, a pessoa vai ganhando confiança à medida que o processo avança, vai mostrando cada vez mais os seus verdadeiros sentimentos, até que finalmente se assume como o indivíduo integral que é. E assim se torna uma pessoa plena, sem necessidade de esconder seus sentimentos e mais preparada para aceitar os dos outros.

A atitude veiculada por Rogers, a sua extraordinária abertura, não se limitava à relação terapêutica, antes constituiu uma prática de vida. É bem conhecida, por exemplo, a forma como desenvolvia a sua atividade académica, particularmente a componente letiva, não conduzindo as aulas, sendo apenas mais um entre os alunos na busca livre de alguma opção comum. Há relatos extraordinários de “alunos” que jamais esqueceram os momentos que passaram com Rogers na sala de aula. Mas o ensino não era a vocação dele. O que realmente gostava de fazer era ouvir os outros, meter-se na sua pele, percorrer com eles o fantástico caminho da descoberta de um novo ser.

Rogers acreditava que a sua atitude de aceitação, de compreensão sincera, sem julgamento do outro, seria benéfica em todo e qualquer tipo de interação social. Na família, no seio das organizações laborais, nas relações internacionais. Sobretudo, colocou grande ênfase na questão da autenticidade, da congruência – conceito importantíssimo que Rogers utilizou mais tarde para incorporar “uma correspondência mais adequada entre a experiência e a consciência”[4]. O grau de congruência mede-ser precisamente por essa correspondência. Se sentimos raiva, ou medo, ou, pelo contrário, amor ou confiança é salutar que isso transpareça em nós; é sempre melhor quando os nossos sentimentos fluem, quando não temos necessidade de reprimi-los, quando o que comunicamos está de acordo com o que sentimos[5].

A partir da relação terapêutica que tão bem conhecia, da experiência que considerava tão cara, Rogers formulou uma hipótese válida para qualquer tipo de relação social, uma lei geral provisória, que descreveu da seguinte forma. Quanto maior for a congruência da experiência, da consciência e da comunicação por parte de um indivíduo, mais a relação originada implicará: uma tendência para uma comunicação recíproca caracterizada por uma crescente congruência; uma tendência para uma compreensão mútua mais adequada da comunicação; uma melhoria da adaptação psicológica e do funcionamento de ambas as partes; satisfação recíproca na relação. Inversamente, quanto maior for a incongruência comunicada da experiência e da consciência, mais as relações assim originadas envolvem: comunicações posteriores com as mesmas características; desintegração da compreensão adequada, e adaptação psicológica e funcionamento de ambas as partes menos adaptadas; insatisfação recíproca na relação[6].

Uma questão que se nos colocou após a leitura de Tornar-se Pessoa foi a de saber quem foi na realidade Carl Rogers. A sensação que fica é que um indivíduo que se dedica totalmente aos outros, que incorpora todo o tipo de sentimentos, quase não tem personalidade própria; a sua personalidade espartilha-se por todos com quem se relaciona e, por outro lado, incorpora um pouco da de todos eles. Isto é realmente assombroso. É como se a personalidade de Rogers fosse uma enorme esponja que tudo absorve, mas onde nada fica. Não será isto uma forma de despersonalização? Como é possível chegar a tal ponto? A resposta talvez esteja nas fugas que Rogers fazia para o México e as Caraíbas. Ele precisava de períodos para estar só. Gostava de pintar, fotografar e escrever. Penso que, sem estes períodos, regulares e largos, o trabalho que realizou teria sido impossível.

Em Tornar-se Pessoa, Carl Rogers cita Karl Popper e a Sociedade Aberta e Seus Inimigos deste[7]. Não admira. Ambos amavam a liberdade e ambos rejeitavam qualquer tipo de autoridade. Ambos eram sinceramente humildes. Ambos acreditavam num  mundo melhor e, evidentemente, na capacidade dos seres humanos para o construírem. Ambos foram grandes humanistas, curiosamente, nascidos no mesmo ano. Que a humanidade possa um dia retribuir, em sua memória, a confiança que nela ambos depositaram[8].

Notas:

[1] Como seria de esperar, Rogers foi duramente atacado pelos representantes dessas correntes, e não só, como, aliás, acontece com todos os grandes humanistas. 

[2] É o próprio Rogers quem nos diz: “Nenhuma ideia de qualquer outra pessoa, nem nenhuma das minhas próprias ideias, têm a autoridade que reveste a minha própria experiência. É sempre à experiência que eu retorno, para me aproximar cada vez mais da verdade, no processo de descobri-la em mim. Nem a Bíblia, nem os profetas – nem Freud, nem a investigação – nem as revelações de Deus ou dos homens – podem alcançar procedência relativamente à minha própria experiência direta.” (Carl Rogers, Tornar-se Pessoa, Padrões Culturais Editora, Lisboa, 2009, p. 47).

[3] Embora seja este o termo traduzido na edição portuguesa, citada na nota anterior, de On Becoming a Person, penso que Rogers não concordaria com o mesmo. Na edição inglesa escreve-se Person-Centered Therapy ou Client-Centered Therapy, expressões traduzidas para Terapia Centrada no Paciente. Também nós não concordamos com esta tradução. Seria mais lógica a expressão Terapia Centrada na Pessoa.

[4] Ob. cit., p. 388.

[5] “Talvez seja esclarecedor recorrer ao exemplo do que se passa com uma criança de berço. Se a criança tem uma experiência de fome a um nível fisiológico e visceral, a sua consciência manifesta-se como adaptada a essa experiência e a comunicação é igualmente congruente com a sua experiência. A criança tem fome e não está satisfeita, e isto é verdade para ela a todos os níveis. Nesse momento, ela integra-se ou unifica-se no facto de “ter fome”. Por outro lado, se está saciada e contente, também se trata de uma congruência unificada, idêntica ao nível visceral, ao nível da consciência e ao nível da comunicação”. (Ob. cit., p. 388).

[6] Ob. cit., p. 394.

[7] Rogers cita esta obra de Popper porque defende tal como este a sociedade aberta, sem condicionamentos de qualquer espécie, condicionamentos defendidos por vários de seus colegas psicólogos e ilustrado, em vertentes diferentes, nos igualmente citados livros de Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo) e George Orwell (1984).

[8] Além das semelhanças reais entre Rogers e Popper, a junção de ambos no final do artigo tem também que ver com uma conversa que mantivemos há uns anos com um amigo (na altura estudante do ISCSP), numa noite de Alfama – Ricardo Carvalho.

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A nossa edição:

Carl Rogers, Tornar-se Pessoa, Padrões Culturais Editora, 1ª edição, Lisboa, 2009.

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Foto retirada de http://www.awaken.com.

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Nozick

nozick (1)
Nozick, o primeiro prisioneiro da sua teoria libertária.

A obra mais conhecida e mais importante de Robert Nozick é Anarchy, State and Utopia, publicada em 1974[1]. Consta que a mesma constitui uma reação a A Theory of Justice, livro publicado três anos antes (1971) por um colega seu do departamento de Filosofia de Harvard, John Rawls. Enquanto este defende a igualdade e a justiça social, Nozick manifesta-se em defesa da liberdade individual e da propriedade privada, e declara que os direitos individuais são incompatíveis com qualquer tipo de distribuição social. Assim, “ficaram estabelecidos os fundamentos do debate entre liberais-igualitários (ou sociais-democratas), por um lado, e libertaristas (ou neoliberais), por outro”[2].

Nozick é um liberal puro, não propriamente social ou económico. A sua investigação insere-se no âmbito de uma filosofia que se baseia na lógica pura, sem ligação à experiência concreta. De acordo com João Cardoso Rosas, autor da excelente “Introdução à Edição Portuguesa” da obra aqui analisada, “Nozick foi muito influenciado pela chamada filosofia analítica, o que se traduz numa preocupação grande com a análise semântica e o rigor lógico da argumentação”[3]. Ora, esta influência está, em nossa opinião, na base de um tipo de argumentação que merece crítica. Perdendo o apoio da experiência, o pensamento enreda-se em hipóteses formais, teóricas, sem preocupações de testar a sua validade. Estamos no campo dos puros princípios.

O primeiro desses princípios é, na esteira de Locke, o da liberdade individual. Nada nem ninguém pode pôr em causa os direitos individuais. Um desses direitos é o direito à propriedade, aos haveres. Nozick designa este direito como princípio da titularidade. Qualquer estado que adote uma política distributiva violará esse principio. Como todos reconhecerão, estamos perante uma estrita visão neoliberal. Ou melhor, a filosofia de Nozick está na base das teorias neoliberais ainda hoje presentes em todo o mundo, sendo que essa base não é, fundamentalmente, de cariz económico, como o de Milton Friedman ou político, como no caso de Friedrich Hayek, mas de cariz eminentemente moral.

A intenção de Robert Nozick é boa. Do seu ponto de vista, um estado intervencionista é um estado injusto. E, em teoria, talvez o seja. Mas a realidade é diferente do mundo mental de Nozick. É bastante mais complexa, sobretudo em tempos de globalização, porque uma sociedade, seja qual for, não está isolada; há variáveis externas (sobretudo nos países mais pobres) que chocam com as experiências mentais de Nozick. Experiências que podem ser resumidas pelas palavras do próprio, no Prefácio à obra aqui analisada:

Uma forma de actividade filosófica assemelha-se ao acto de pressionar e empurrar as coisas para fazê-las encaixar no contorno fixo de uma forma específica. Todas essas coisas estão espalhadas por aí e têm de ser encaixadas. Pressionamos e empurramos o material para a área rígida, fazendo-o encaixar de um lado e saltar do outro. Voltamos e fazemos pressão na parte saliente, fazendo que o mesmo aconteça noutro ponto. Assim, pressionamos, empurramos e recortamos os cantos às coisas para que encaixem e forçamo-las até que por fim quase tudo fica mais ou menos precisamente no sítio; o que não fica é arremessado para longe para não se ver [4]

Talvez este método se ajustasse à realidade se as peças reais se encaixassem como nos jogos mentais de Nozick. Mas não. A realidade não se ajusta a pressupostos puros, é mais complexa. No afã de relevar a injustiça praticada pelos estados distributivos, Nozick ignora simplesmente uma característica fundamental da humanidade, algo que as sociedades mais evoluídas incorporaram já (irreversivelmente?) em seu seio – a solidariedade. O que fazer, no estado mínimo defendido por Nozick, aos deficientes, aos loucos, aos que não têm família, aos que não têm, por qualquer razão, capacidade para se integrarem em sociedade sem a ajuda de alguém?

Para justificar a sua teoria da titularidade, Nozick afirma que é necessário que a mesma se baseie em critérios justos; é necessário que haja justiça na aquisição, justiça na transferência e, finalmente, quando for o caso, retificação da injustiça. Mas mais uma vez, isto é muito teórico. Toda a gente sabe que a justiça é algo que se pretende alcançar , mas jamais é atingida. Não é fácil garantir a justiça quer na aquisição, quer na transferência, quer na sua reposição. É por isso que é necessária alguma intervenção do Estado. Entre o Estado máximo e o Estado mínimo estará algures o Estado ideal. Nozick peca por se posicionar num dos extremos, tomando assim uma atitude radical.

Mais uma vez, chamamos a atenção para o alerta de Popper. As ciências sociais continuam atrasadas relativamente às suas irmãs “naturais” porque ainda não adotaram o método destas. Um método que leva em conta a experiência, a qual se constitui como o único meio pelo qual as teorias podem ser testadas. Ora, sem testabilidade não há ciência. E sem experiência – já Kant há muito mostrou – não pode haver conhecimento.

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Notas:

[1] A tradução para português da edição que temos em mãos é de Vítor Guerreiro.

[2] ob. cit., p. 8.

[3] ob. cit., p. 7.

[4] ob. cit., p. 25.

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A nossa edição:

Robert Nozick, Anarquia, Estado e Utopia, Edições 70, Lisboa, 2009.

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foto retirada de http://www.partiallyexaminedlife.com

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Giorgio Agamben

Agamben (1)
Giorgio Agamben – a sua investigação insere-se no mais puro essencialismo.

Como costumamos dizer, não devemos seguir acriticamente algumas pessoas só porque as achamos muito inteligentes e eruditas. Referimo-nos àquelas que — talvez por considerarem ter uma intuição especial, um dom natural, uma inquebrantável convicção ou um invulgar conhecimento — não têm consciência dos seus limites.

Agamben é uma dessas pessoas. Mostra-o claramente no livro A Potência do Pensamento — uma compilação de conferências e ensaios escritos entre 1979 e 2004 — onde patenteia os seus sólidos conhecimentos linguísticos, desde o grego ao alemão, passando pelo hebraico, e o seu vasto conhecimento das filosofias de autores tão esotéricos quanto ele próprio, como são os casos de Walter Benjamin, Aby Warburg, Friedrich Hölderlin, Max Kommerell e, claro, o grande Hegel, entre muitos outros. O que estes autores têm em comum é pertencerem a uma corrente da Filosofia baseada na especulação, na intuição e no misticismo, em contraste com uma outra, que tem por base a racionalidade, a experiência e o realismo.

Mais de duzentos anos depois de Kant (completamente ignorado neste livro) ter afirmado que só podemos conhecer as coisas como elas se nos apresentam e não como são em si mesmas, os magos da Filosofia fazem tábua rasa da investigação kantiana e empenham-se com afinco em conhecer, precisamente, a essência das coisas. Agamben fá-lo usando a mesma linguagem obscura, densa e esotérica dos seus amigos alemães acima citados. O que lhes interessa são objetivos metafísicos como, por exemplo, conhecer a arquê, o absoluto, a essência, o indefinido, o puro, em última instância, Deus. Como não é possível chegar a tal conhecimento através do raciocínio lógico, Agamben recorre a “uma profunda intuição” filosófica (várias vezes apresentada no livro), evidentemente, ao alcance apenas de alguns predestinados.

Na busca desenfreada de uma metalinguagem, Agamben menoriza e deplora o papel operacional das palavras, como instrumento necessário para as socialização e cultura, idolatrando os signos, transformando-os na razão da existência humana. Qual a origem do verbo? Qual a palavra, o nome do qual derivam todos os outros e todas as línguas? Como regressar à linguagem pura? “O existente puro é o que corresponde à pura existência da linguagem, e contemplar a segunda significa contemplar o primeiro”.

São problemas desta natureza, os que ocupam Agamben. A linguagem é vista como um rio e os seus inúmeros braços são as línguas deste mundo. Mas, antes do leito caudaloso, há um fio,  uma gota inicial. O que originou essa gota? De onde vem? Isso ninguém sabe, mas também não importa. Agamben continua a filosofar como nada se tivesse passado desde o tempo de Aristóteles.

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Foto retirada de http://www.zeit.de.

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A nossa edição:

Giorgio Agamben, A Potência do Pensamento, Editora Relógio D’Água, Lisboa, 2013.

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O macaco cozinheiro

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Richard Wrangham, ilustre primatologista britânico.

É possível encontrar muitas semelhanças dentro do mundo animal, incluindo emoções, linguagem e até, em escalas diferentes, algum tipo de pensamento. Mas há algo exclusivamente humano, algo que nenhum outro animal pode fazer como nós: cozinhar. Poderíamos pensar que foram as nossas capacidades excecionais que nos levaram a usar o fogo e com ele transformarmos a comida, através do cozimento. Mas não. Foi, pelo contrário, o cozimento que nos moldou como humanos.

Há várias teorias sobre a forma como o homem pré-histórico aprendeu a gerar e guardar o fogo, não sendo possível dizer, por enquanto, qual delas é a verdadeira. O que se sabe, ou se julga saber, é que há dois milhões de anos, os australopitecinos deram lugar aos habilinos1, graças, segundo se pensa, à mudança para uma dieta que passou a incluir cada vez mais carne. Porém, a grande mudança deu-se cerca de 200 mil anos depois, há cerca de um milhão e oitocentos mil anos, quando o domínio do fogo e o cozimento dos alimentos fizeram com que o cérebro dos habilinos crescesse significativamente, até alcançar os 950 cm3 do homo erectus. O desenvolvimento das técnicas de cozimento continuaram a melhorar a dieta até chegarmos ao homo heidelbergensis, há 800 mil anos, com os seus substanciais 1.200 cm3 de volume cerebral, e finalmente ao homo sapiens, há cerca de 200 mil anos, com um cérebro de 1.400 cm3, uma capacidade próxima da atual.

O cérebro é, na verdade, um grande consumidor de energia, ele nunca pára de trabalhar, nem quando dormimos, e usa 20% da nossa taxa metabólica basal (o orçamento energético para um corpo em repouso), embora o seu peso corresponda apenas a 2,5% da nossa massa corporal. A princípio os investigadores pensaram que isso se devia a uma maior taxa metabólica humana, devido à alimentação mais rica, mas acabaram por descobrir que essa taxa era sensivelmente igual à esperada para um qualquer primata com o mesmo peso. Esta descoberta foi muito importante porque se os nossos grandes cérebros, ávidos de glicose, não são alimentados por uma dose de energia suplementar, então os tais 20% devem ser usados por nossos cérebros à custa de outra parte do nosso corpo.

Que parte? Por comparação com os outros primatas, os cientistas descobriram que esse enorme fluxo de energia consumido pelo nosso cérebro só é possível porque os nossos sistemas digestivos são mais curtos e pequenos, e não precisamos de despender muita energia na digestão, ao contrário de todos os outros primatas; o custo energético é muito maior nos organismos dos nossos primos, enquanto que nos humanos essa energia poupada pode alimentar um cérebro maior.  O nosso sistema digestivo é muito mais rápido a transformar os alimentos em calorias e energia, e isso só é possível porque os alimentos que comemos são altamente digeríveis e calóricos, graças ao cozimento.

De facto, várias experiências2 demonstraram que os alimentos cozidos são mais facilmente digeridos que os alimentos crus. Isto porque o cozimento é responsável por dois processos peculiares: a gelatinização e a desnaturação. A primeira ocorre sobre os amidos que se encontram no interior das células vegetais: “quando aquecidos na presença de água, os grânulos de amido começam a inchar porque as ligações de hidrogénio nos polímeros de glicose se enfraquecem quando expostas ao calor, e isso faz com que a sua apertada estrutura se alargue”3. Já a desnaturação acontece quando as ligações internas das proteínas se enfraquecem, obrigando as moléculas a abrir-se, proporcionando uma ação mais perfeita das enzimas digestivas, particularmente a tripsina. Embora o calor não seja o único fator a provocar a desnaturação das proteínas — marinadas, picles e sucos ácidos contribuem para a desnaturação quando aplicados por tempo suficiente4 — não há dúvida de que o cozimento proporciona uma digestão muitíssimo menos custosa5.

A digestibilidade dos alimentos que nos fornecem energia (através dos hidratos de carbono, gorduras e proteínas) é muito importante e não há dúvida nenhuma de que esta se torna mais disponível pelo aquecimento dos alimentos. Essa melhor digestão6 proporcionada pelo cozimento é realmente importantíssima por duas razões: 1- há uma melhor absorção de calorias por parte do nosso sistema digestivo, transformando, assim, os alimentos cozidos em alimentos mais eficientes7, dado que os alimentos crus não são completamente digeridos pelo organismo e, em grande parte, são desperdiçados através das fezes8 e 2- o cozimento, ao proporcionar digestões mais fáceis e rápidas, permite que não necessitemos de consumir demasiada energia na digestão. O cozimento proporciona, pois, uma dieta mais rica, um menor custo da digestão e, consequentemente, um tubo digestivo mais curto, e tudo isto resulta em energia disponível, a qual, no nosso caso, é canalizada para o cérebro9. Esta é a chamada teoria do “tecido custoso”.

O cozimento permitiu ainda que os nossos antepassados tivessem mais tempo livre, o que proporcionou uma maior socialização, indo ao encontro do que muitos autores defendem: as estratégias sociais contribuíram para o aumento do volume do cérebro e o incremento da inteligência, e vice-versa. Esta interação só foi possível graças ao cozimento dos alimentos.

Este é apenas um pequeno apontamento sobre um livro delicioso10, escrito magistralmente por Richard Wrangham e publicado em 2009, com o título original Catching Fire – How Cooking Made us Human —realmente, a não perder. Após os oito capítulos do livro, Richard Wrangham refere-se, num epílogo denominado O Cozinheiro Bem Informado, a uma questão muito interessante: quantas calorias os diversos alimentos fornecem aos nossos corpos? A convenção que ainda hoje, com ligeiras alterações, domina a estimativa de valores energéticos dos alimentos, e está na base do modelo da sua rotulação no mundo ocidental, é o sistema de Atwater11. Ora, Wrangham chama a nossa atenção para o facto da digestão não ser um processo puramente químico, mas igualmente físico. Como vimos, há um custo energético na digestão e, além disso, “os sistemas digestivos tratam diferentes substractos de maneiras diferentes”12, sendo que, acresce a tudo isto, os próprios sistemas digestivos humanos operam de forma muito diversificada13. Vale, portanto, conhecer o seu funcionamento, sobretudo o do intestino delgado, o nosso “segundo cérebro” (ver nota 13). O cozinheiro bem-informado será, em tese, um ser humano com melhor qualidade de vida.

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Notas:

1 Calcula-se que os habilinos pesassem entre 32 e 37 kg, e o homo erectus entre 56 e 66 kg.

2 Particularmente as de Leslie Aiello e Peter Wheeler, em 1995.

3 Richard Wrangham, Pegando Fogo – Por que cozinhar nos tornou humanos, Editora Zahar, 2010, p.52.

4 Lembremo-nos, por exemplo, do ceviche, um prato de origem peruana em que o peixe cru, marinado em suco de limão, fica delicioso.

5 Ob. cit., p. 56.

6 Na verdade há dois tipos de digestão. Uma realizada desde a boca até o intestino delgado, onde se faz a parte principal da digestão, e outra realizada no intestino grosso, que, na verdade, é uma fermentação, realizada por mais de 400 tipos de bactérias e protozoários. A primeira produz calorias inteiramente úteis, mas a segunda dá apenas cerca de metade da energia disponível nos hidratos de carbono e absolutamente nada no caso das proteínas (ob. cit., p. 51).

7 Pode parecer um contra-senso, mas não é. Por exemplo, pensava-se que os ovos crus eram alimento muito mais rico que ovos cozidos. Ora, isto não é verdade. Cientistas belgas, ainda nos anos 1990, verificaram que o cozimentos dos ovos aumentava o valor proteico dos ovos em cerca de 40% (ob. cit., p. 56).

8 Algures, durante o processo evolutivo, perdemos a capacidade de extrairmos a energia necessária dos alimentos crus. Todo o nosso aparelho digestivo está adaptado à comida cozida, a começar por nossos maxilares, bocas e dentes (ob. cit., p. 36).

9 Foi confirmado em variados espécimes (nomeadamente entre os grandes símios), que os seus  cérebros relativamente grandes deriva de uma dieta mais rica, quando comparada com outras dietas mais pobres em animais de cérebros menores. Essas dietas mais ricas permitem sempre intestinos menores. No entanto, há espécimes que não canalizam o ganho de energia, proporcionado por uma dieta rica, para o cérebro. Espécies como a nossa, que vivem em grupos sociais mais complexos, fazem-no. Mas outras espécies, como alguns tipos de aves, usam essa energia para fortalecer os músculos das asas e assim voarem mais tempo e mais longe, supostamente, porque isso é mais importante para elas que desenvolverem cérebros grandes. 

10 O título deste artigo foi também inspirado no livro. Diz-nos Richard Wrangham (ob. cit., p. 39): “Os zoólogos sempre procuraram exprimir a essência de nossa espécie com expressões como macaco nu, bípede ou de grande cérebro. Eles poderiam igualmente chamar-nos o macaco da boca pequena”.

11 Wilbur Olin Atwater (1844-1907) foi um químico americano, conhecido sobretudo pelos seus estudos sobre a nutrição humana e o metabolismo. Preocupado com a alimentação dos mais pobres buscou saber qual o número mínimo de calorias de que necessitavam para viver. Usando um calorímetro de bomba, registou quanto calor era libertado quando gorduras, hidratos de carbono e proteínas eram completamente queimados. Descobriu que não havia grande variação entre os diferentes tipos de cada idem. Por exemplo, todas as proteínas tendiam a produzir um pouco mais de 4 quilocalorias por grama. Depois disto, Atwater quis saber que quantidades dos principais macronutrientes referidos um alimento contém. A mais fácil de determinar foi a gordura, dado que esta, ao contrário dos outros dois, se dissolve no éter. O pesquisador picava finamente os alimentos, inseria-os no éter e pesava quanto material se dissolvia no líquido. Assim determinava a quantidade de lípidos (estes incluem tanto as gorduras sólidas, à temperatura ambiente, quer a gordura líquida contida em óleos). Este método é usado ainda hoje. A quantidade de proteína é mais díficil de detrminar, pois não há testes para identificá-la. Mas Atwater sabia que 16% do peso das proteínas médias são nitrogénio. Conseguiu um método de medir a quantidade de nitrogénio e assim a concentração de proteína. O mais difícil de medir foram os hidratos de carbono. Não havia nenhum método na época, tal como hoje ainda não há. Mas sabendo que toda a matéria orgânica dos alimentos era composta por estes três grandes grupos e conhecendo o peso dos outros dois, Atwater podia determinar o dos hidratos de carbono, por subtração. Para tal queimava o alimento completamente, deixando de lado a parte que não queimava, isto é, a parte inorgânica. Mas Atwater quis saber também quanto dos macronutrientes era digerido pelo corpo, ou seja, não era expelido pelo corpo sem ser usado. Dedicou-se então a analisar as fezes de pessoas que comiam alimentos rigorosamente medidos e pode determinar quanto de cada nutriente era efetivamente digerido. O químico conseguiu assim o que queria saber: quanta energia cada um dos três macronutrientes continha, que quantidade de cada um estava presente num alimento e quanto dela era usada no corpo.  Richard Wrangam defende, porém, que, apesar dos ajustamentos já feitos, o sistema de Atwater peca por não ter o rigor necessário, dado que o cozimento (ou não) dos alimentos altera as calorias que fornece, bem como o trabalho do sistema digestivo e o respetivo custo energético varia de indivíduo para indivíduo (ver ob. cit., pp. 151-159).

12 ob. cit., p. 152.

13 A forma como o aparelho digestivo trabalha é um tema fascinante que merece ser tratado num artigo específico. Os orientais já conhecem a importância da região abdominal do nosso corpo há muitos anos, mas, no Ocidente, só após Michael Gershon, professor da universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, ter publicado o excelente Second Brain (1998), onde defendeu a existência de uma interação entre distúrbios nervosos e mau funcionamento do sistema digestivo, se inaugurou um novo ramo da medicina denominado neurogastroenterologia. Os maiores especialistas desta disciplina, desde logo o próprio Gershon (que estudou o assunto durante mais de trinta anos), apontam para a existência de “neurónios” digestivos, dentro do sistema nervoso entérico (SNE), o nosso segundo cérebro. De acordo com Irina Matveikova, uma médica russa que vive em Espanha (autora de O Intestino Feliz, Esfera dos Livros, Lisboa, 2015, pp. 28/9), “o número de neurónios que se encontram na rede do intestino delgado chega aos cem milhões. Este número representa, por exemplo, um valor consideravelmente superior ao dos neurónios da espinal medula. O cérebro dos intestinos é a maior fábrica responsável pela produção e armazenamento das substâncias químicas conhecidas com neurotransmissores, a maioria dos quais são idênticos aos que se encontram no sistema nervoso central (SNC), tal como a acetilcolina, a dopamina e a sorotonina.  Estas substâncias regulam a nossa energia, bem estar emocional e psicológico, e constituem um grupo de substâncias essenciais para a correta comunicação entre os neurónios e o sistema de alerta. Representam as “palavras” no idioma neuronal. Gershon revelou que 90 por cento da serotonina (a famosa hormona da felicidade e do bem-estar físico) é produzida e armazenada no intestino. Aí regula os movimentos peristálticos e a transmissão sensorial. E apenas os 10 por cento restantes de serotonina do corpo são sintetizados pelos neurónios do sistema nervoso central, ou seja, no cérebro superior”.

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A nossa edição:

Richard Wrangham, Pegando Fogo – Por que Cozinhar nos Tornou Humanos, Editora Zahar, 1ª edição, Rio de Janeiro, 2010.

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Foto retirada de http://www.youtube.com

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Problemas no Paraíso

outraspalavras-net (1)
Slavoj, um dos maiores teóricos revolucionários da atualidade.

Trata-se de um dos últimos livros (2014) de Slavoj Zizek, o famoso filósofo esloveno[1]. Zizek (o antropónimo original tem um acento circunflexo invertido em cima de cada “z”) é um intelectual na moda, professor em várias universidades de renome, conferencista em inúmeros países de todo o mundo, inimigo acérrimo do sistema capitalista e comunista convicto.

A filosofia de Slavoj Zizek assenta numa mistura, em doses variáveis, das psicanálise de Freud, dialética de Hegel e luta de classes de Marx. Nisto reside (e a isto se resume) a sua originalidade. Como se, ao misturarmos três receitas diferentes, obtivéssemos um prato novo. No final (ou antes ainda), verificamos que tudo é demasiado velho – o prato que Zizek nos apresenta é uma fraude.

De facto, este senhor recorre com frequência à desonestidade e à ambiguidade, a primeira tão característica do seu ídolo, Hegel[2], e a segunda do seu guru, Marx. (O próprio texto é largamente hegeliano, na pior tradição alemã – denso, obscuro, mistificador). Zizek prepara o leitor, numa primeira fase da sua lengalenga, com belas intenções, para, de seguida, apresentar as suas ideias totalitárias e defender a violência necessária para as implantar.

O autor recorre a inúmeros filmes (nota-se que é um grande cinéfilo), livros, acontecimentos políticos contemporâneos, enfim, a inúmeros exemplos, dos quais retira invariavelmente a mesma conclusão: o sistema “hedonista, liberal e democrático” é miserável e só a revolução e o comunismo nos podem salvar. E, se Marx era ambíguo relativamente ao uso da violência, não a descartando mas não a apoiando abertamente, Zizek vai mais longe e apela diretamente à violência, algo que para ele, imagine-se, é um “ato de amor”! À boa maneira de Hegel, o mau é (dialeticamente) transformado em bom. Não há limites para os ilusionistas hegelianos!

É difícil aceitar que alguém se deixe seduzir por isto, porém, para mitigar o impacto que pode causar no leitor o apelo à violência, Zizek puxa dos galões de psicanalista : “quanto mais brutal for a nossa violência, mais conseguiremos escapar ao círculo vicioso do superego”[3]. E, mais à frente: “a libertação revolucionária autêntica é mais diretamente identificada com a violência – é a violência em si que liberta”[4]. “Além disso, é preciso desmistificar o problema da violência, rejeitando afirmações simplistas de que o comunismo do século XX usou em demasia a violência assassina e de que deveríamos ter cuidado para não voltar a cair nessa armadilha”[5].

Zizek deveria ter um pouco mais de respeito pela memória dos milhões de seres humanos mortos durante o período de vigência do “comunismo do século XX”. Mas isso seria pedir muito. O que ele propõe é mais do mesmo: uma nova tentativa revolucionária, com violência e muito “amor”. E tal como Platão pensava certamente nele próprio quando defendeu em “A República” a tomada do poder pelo filósofo-rei, também o “filósofo” esloveno pensa provavelmente em si mesmo quando se refere à necessidade de um “mestre” para conduzir a revolução[6].

Tudo isto, além de demasiado velho, é também doentio: ao rejeitarem a testabilidade metodológica das ciências naturais, alguns supostos cientistas sociais continuam a enredar-se na crença e no dogma, moldando a realidade à ideologia.

Zizek manterá o rumo até ao fim, como sempre fazem os ditadores teóricos. Há quem chame a isto “coerência”. Nós chamamos-lhe cegueira intelectual, e, neste caso, da pior espécie: aquela revestida com erudição.

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Notas:

[1] Slavoj Zizek, Problema no Paraíso – do fim da História ao fim do Capitalismo, Editora Zahar, Rio de Janeiro, 2015.

[2] Eis um exemplo do estilo hegeliano, os espantosos detalhes que ele descobriu sobre o som e as relações deste com o calor: “O som é a mudança verificada na condição específica de segregação das partes materiais e na negação dessa condição; é meramente uma idealidade abstracta ou ideal, por assim dizer, dessa especificação: Mas esta mudança é, por consequência, em si mesma imediatamente a negação da subsistência material específica; o que é, portanto, a idealidade real da gravidade específica e da coesão, isto é, o calor. O aquecimento de corpos sonoros, assim como dos corpos percutidos ou friccionados, é a aparência de calor que surge conceptualmente juntamente com o som”. (Hegel, in “Filosofia da Natureza”).

[3] Ob. cit., p. 105.

[4] Ob. cit., p. 229.

[5] Ob. cit., p. 235.

[6] Ob. cit., pp. 206-15.

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Foto: outraspalavras.net

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A nossa edição:

Slavoj Zizek, Problema no Paraíso – do fim da História ao fim do Capitalismo, Editora Zahar, Rio de Janeiro, 2015.

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