A Sociedade Aberta e Seus Inimigos

Karl Popper
Karl Popper fotografado na sua terra natal, Viena, em 1983.

1- INTRODUÇÃO

Quando Karl Popper concluiu os manuscritos dos dois volumes da obra em título, o primeiro em outubro de 1942 e o segundo em fevereiro de 1943, certamente estaria longe de supor que a mesma teria uma repercussão tão ampla como a que alcançou junto de cientistas sociais, filósofos e população em geral. Muito menos seria de esperar essa repercussão, se atentarmos ao facto de que o objetivo de Popper não era, inicialmente, o de escrever um livro, mas apenas recolher algumas notas ilustrativas das filosofias historicistas. Essas notas atingiram tal volume que acabaram por dar origem às mais de setecentas páginas de A Sociedade Aberta e Seus Inimigos1.

É por isso que esta obra é um trabalho de permanente consulta; cada um dos seus vinte e cinco capítulos pode ser estudado separadamente. Popper, aliás, hesitou sobre a estrutura da obra, sobre qual o capítulo que deveria abrir o livro e sobre a sequência dos restantes. Independentemente das vicissitudes que estiveram na origem da construção do livro, Popper legou-nos uma das obras mais importantes do século XX e uma das mais importantes de todos os tempos na área da Filosofia Social. Para nós (mas nós somos suspeitos) a obra maior de Sociologia alguma vez publicada.

De que trata o livro, afinal? Como o título indica, da sociedade aberta2. E dos seus inimigos, ou seja, dos defensores da sociedade fechada. Três destes, com enorme influência sobre intelectuais do mundo inteiro, são particularmente visados por Popper: Platão, Hegel e Marx. E por que trata Popper das doutrinas destes autores e não de outros? Por um lado porque os três são historicistas3; por outro lado, porque estes três sociólogos são os mais conhecidos, os mais estudados, os mais influentes e os mais venerados em todo o mundo. Popper, aliás, adverte o leitor para este facto, logo no Prefácio da primeira edição de A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, em 1943.

Se, neste livro, são proferidas críticas desabridas a alguns dos maiores expoentes intelectuais da humanidade, a minha intenção não foi, espero, diminuir essas figuras. Antes foram elas motivadas pela convicção de que para garantir a sobrevivência da nossa civilização devemos abandonar esta deferência arraigada face às grandes sumidades. Na verdade, grandes homens podem cometer grandes erros; e, como se procura mostrar neste livro, alguns dos mais eminentes líderes do passado apoiaram o perene ataque contra a liberdade e a razão. De resto, na medida em que raramente é posta em causa, a sua influência continua a transviar e a dividir aqueles de quem depende a defesa da civilização.

O mais dissecado dos três filósofos referidos é Platão, talvez porque – pela sua incrível capacidade de comunicação e pelo seu indiscutível talento – é também o mais respeitado entre a comunidade intelectual. O mais detestado por Popper é Hegel, considerado um charlatão4, e o que lhe merece maior respeito é Marx, que, embora tenha preconizado uma solução errada, procurou, segundo Popper, libertar a humanidade da escravidão5. Tendo em conta que estes três grandes filósofos (além de muitos outros) foram, em diferentes épocas e por diferentes formas, inimigos da sociedade aberta, é óbvio que (os seus pensamentos) deverão ter algo em comum. Para além do historicismo, já referido, as suas filosofias enquadram-se em contextos históricos similares. Popper constata que todas as filosofias radicais, como as de Platão, Hegel e Marx, surgem em tempos de convulsão social; são uma resposta às disputas e atribulações dentro da sociedade, numa determinada época histórica.

Por isso mesmo, essas filosofias são datadas, marcadas no tempo, e não podem ser transportadas para o futuro – porque o futuro é aberto, não depende de uma qualquer profecia histórica, mas apenas de nós. A sociedade aberta, sustenta Popper, é uma sociedade livre de qualquer tipo de determinismo, dado que não é possível, seja por uma intuição superior, pela definição de um processo histórico irreversível ou por uma infalível predição científica antecipar racionalmente o que será a sociedade futura.

A luta pela sociedade aberta é muito antiga. Iniciou-se com a emancipação humana, quando uma parte da humanidade, pela primeira vez livre do pensamento mágico e coletivo da tribo, começou a pensar individual e criticamente. Esta foi a maior revolução da história humana e terá ocorrido, de forma mais consistente na Grécia Antiga, provavelmente no século VI antes de Cristo. Popper chama a nossa atenção para algo que ocorreu na sequência dessa emancipação: a diferenciação entre leis naturais e leis convencionais, ou seja, leis criadas pelo homem. Nas sociedades primitivas, fechadas, apenas existiam leis do primeiro tipo; o homem regia-se por elas, cumprindo rituais mágicos que estariam de acordo com a natureza, pois não distinguia entre as sanções auto-impostas para punir a transgressão de um tabu e as experiências infligidas pelo meio natural6. Com o advento da sociedade aberta, o homem passou a criar, libertou-se das grilhetas das leis naturais. Um aspeto importantíssimo desta emancipação é que, com ela, o homem adquiriu também responsabilidade moral. O seu comportamento não dependia agora exclusivamente da natureza, mas sobretudo dele próprio. De acordo com Popper, as sociedades fechadas são caracterizadas pelo monismo acrítico; porém, com o advento da sociedade aberta, surgiu o que ele denominou dualismo crítico, quando existia já uma clara distinção entre factos naturais e convenções humanas.

Como seria de esperar, esta mudança não se fez de forma abrupta. Popper refere, inclusive, algumas fases intermédias7. Além disso, as sociedades fechadas não desapareceram completamente, existem ainda hoje muitos vestígios vivos de sociedades fechadas e tribais8, que nos mostram claramente que a sociedade aberta não está absolutamente consolidada. Mas os ataques mais cerrados à sociedade aberta vêm sobretudo da comunidade intelectual, através da influência nefasta de muitos filósofos, entre os quais sobressaem Platão, Hegel e Marx. A opção pela sociedade aberta implica responsabilização, implica decisões morais, com todas as consequências que daí advêm, implica tomarmos nas mãos o nosso próprio destino. Levado a sério, isto representa um peso sobre os nossos ombros, talvez um peso excessivo, para muitos que resolvem enjeitá-lo. Esta atitude de rejeição revela um extremo ceticismo moral, uma descrença no homem e nas suas possibilidades9, e está na base dos regimes autoritários. A necessidade de refúgio na tribo, no grupo, enfim, em qualquer entidade coletiva superior, que resolva os problemas por nós, que nos proteja, é própria do ser humano;  e esta atitude defensiva ainda não foi – e talvez nunca seja – completamente superada.

Podemos comparar essa necessidade de refúgio com a necessidade que a criança tem da proteção dos pais. Normalmente, a partir da adolescência a maioria dos jovens emancipa-se, mas muitos só conseguem fazê-lo bastante mais tarde. Podemos considerar que a humanidade se encontrava na adolescência, numa fase de emancipação, portanto, naquele período da Grécia Antiga, quando uma parte se emancipou da tribo. Uma das conquistas daquela época foi a implantação do regime democrático, protagonizada pelos atenienses, sob a liderança de Péricles, ilustre representante da Grande Geração – denominação que Popper deu ao primeiro grupo de homens que lutaram de forma crítica e racional pela Liberdade10. À cidade-estado de Atenas opunha-se, como é sabido, Esparta, onde vigorava um regime tirânico. A guerra entre as duas cidades era inevitável, pois tinham visões antagónicas da sociedade. A Guerra do Peloponeso11 representa a primeira grande batalha que uma parte da humanidade, no caso, os atenienses, teve que travar em defesa da sociedade aberta. E a luta continua.

2- PLATÃO

Platão, cujo tio, Crítias, foi um dos Trinta Tiranos 11, sempre defendeu o lado espartano. Influenciado pela teoria do devir13 de Heráclito, Platão era avesso à mudança. Para ele, toda e qualquer alteração social constitui uma degenerescência da ideia de Estado, da qual todos os estados posteriores são cópias imperfeitas. A base da filosofia platónica é, como se sabe, a sua teoria das formas ou ideias – estas não existem no espaço-tempo (são, portanto, eternas) e por isso não podem ser apreendidas pelos sentidos, apenas pelo pensamento puro. Em consequência, Platão considera que o conhecimento puro ou ciência visa a descoberta ou descrição da verdadeira natureza das coisas, ou seja, da sua realidade oculta ou essência14. Esta ideia é classificada por Popper como essencialismo metodológico, ao qual se opõe o que o ele denomina nominalismo metodológico. Através deste não se procura conhecer a natureza das coisas, mas a forma como elas funcionam15; em vez de se debruçar sobre o que é, como faz o essencialista, o nominalista procura saber como os fenómenos ocorrem. De acordo com Popper, é este o método das ciências naturais (as palavras não designam essências, mas constituem ferramentas para explicar os fenómenos)16, em contraste com as ciências sociais cujos mentores se mantêm, em larga maioria, essencialistas. Esta divergência metodológica está na base, segundo Popper, do atraso da Sociologia, relativamente às ciências naturais, como a Física, a Química ou a Biologia.

Na sua ânsia de encontrar um sistema político que sustenha a mudança, as convulsões sociais, a desagregação da classe governante e, finalmente, toda a decadência e degeneração, Platão formula a seguinte pergunta: Quem deve governar? E a resposta é: o filósofo-rei. (Popper sustenta que Platão pensou nele próprio, como exemplo maior de governante)17. Essa pergunta essencialista formulada por Platão está na origem da sua teoria historicista e das dos filósofos historicistas que se lhe seguiram, como Rousseau, Comte, Mill, Hegel e Marx. Popper opõe a essa pergunta essencialista uma outra nominalista: Como poderemos organizar as instituições políticas de forma a evitar que os governantes perniciosos ou incompetentes provoquem danos excessivos?18 A diferença entre a primeira e a segunda pergunta equivale à diferença entre ditadura e democracia, porque a primeira indaga sobre quais as pessoas ou grupos que devem exercer o poder, e a segunda sobre como criar as instituições que limitem a ação dessas mesmas pessoas ou grupos. Isto quer dizer que, em democracia, o poder é sempre limitado, ao contrário das ditaduras onde a crítica ao poder não existe, porque é reprimida, daí o poder ser potencialmente totalitário19.

Não admira, portanto, que Platão, deteste a democracia, que aliás ridiculariza nas suas obras20, nomeadamente na República21. Platão considera a democracia um sistema político muito afastado da ideia de Estado, ou seja, do modelo intemporal de Estado do qual todas as cópias mundanas derivam. O regime que mais se aparenta ao Estado perfeito e imutável é a timocracia22 (ou timarquia), o governo dos mais nobres, que procuram honra e fama; depois surge a oligarquia, caracterizada pelo domínio das famílias mais ricas; posteriormente, vem a democracia, regime da liberdade, isto é, da ausência de leis; e, finalmente, a tirania, a última enfermidade do Estado23. Há, portanto, uma degradação desde a timocracia até a tirania. Platão pretende travá-la, impondo uma rígida estratificação social, onde cada indivíduo cumpre apenas o seu papel dentro da classe a que pertence. Trata-se de uma sociedade parada, fechada e coletivista, idealizada de modo a preservá-la de qualquer convulsão social, uma vez que são as perturbações à ordem social estabelecida que provocam a degeneração, isto é, a passagem dos melhores para os piores regimes. Um Estado imóvel é o que mais se aproxima da ideia platónica de Estado.

Embora a descrição que Platão faz do Estado perfeito seja muitas vezes considerada como um plano utópico, Popper toma-a à letra, e leva a sério o que Platão declara, ou seja, não vê na obra platónica uma qualquer utopia futura, mas sim o desejo de regresso ao passado estratificado da sociedade tribal. Uma vez que Platão detestava a mudança, ele acabou por defender um estado com apenas duas grandes classes sociais – a elite governante e a grande massa de governados. Sobre esta não demonstrou grandes preocupações, visto tratar-se, afinal de gado humano, que apenas deve ser dominado. A preocupação vai para a classe dominante, para que esta não se divida, face a um possível empobrecimento ou a uma riqueza excessiva. Assim, Platão defende o comunismo, isto é, a abolição da propriedade privada, e a privação da ligação pessoal a mulheres e crianças. Nenhum membro da classe dirigente deve ser capaz de identificar seus filhos ou mulheres24. Assim se preservará a unidade da classe dirigente, imprescindível para a estabilidade; e qualquer mistura ou mudança de uma classe para outra será considerada um crime contra a cidade25. A classe governante deve assumir, portanto, a sua superioridade e, inclusive, à semelhança de Esparta, praticar o infanticídio com fins eugénicos, devendo ser treinada como uma classe de guerreiros profissionais26. Platão defende a escravatura e, como já foi dito, uma rígida estratificação social. Além disso, é um coletivista convicto: defende um estado holístico e totalitário, onde o indivíduo deve comportar-se estritamente dentro do que é conveniente para o próprio Estado.

Platão é, pois, inimigo de tudo o que é individual. Ele vê no individualismo o maior perigo para o seu projeto totalitário. Assim, até o que a natureza concedeu a cada indivíduo deve estar ao serviço do coletivo. Os nossos próprios olhos, ouvidos ou as nossas mãos veem, ouvem e agem não em função de um ser particular, mas de toda a comunidade, sendo os homens moldados de forma a consentirem todos na mesma unanimidade de censura ou louvor, de prazer ou tristeza relativamente às mesmas coisas e em uníssono27. Perante esta aversão a tudo que é individual, não admira que a conceção platónica de Justiça, tema central da República (não devemos esquecer-nos que o subtítulo desta obra é Da Justiça), se resuma a tudo o que favorece o seu Estado superior, sendo o contrário, considerado como injustiça. Platão examina na República as teorias sobre a Justiça mais importantes da sua época, mas não discute o conceito de isonomia, ou seja, da igualdade perante a lei, o que é muito estranho, tanto mais que o mesmo fora discutido no Górgias, diálogo anterior à República. Esta omissão só pode entender-se como reação aos movimentos igualitários e humanitários surgidos na época de Platão, os quais defendiam uma teoria humanitária de justiça, baseada em três propostas, a saber “(a) o princípio igualitário propriamente dito, isto é, a tentativa de abolir todos os privilégios naturais, (b) o princípio genérico do individualismo e (c) o princípio de que o Estado deve ter como função e finalidade garantir a liberdade dos cidadãos”. Em contrapartida, o platonismo propõe (a1) “o princípio de que existem privilégios naturais, (b1) o princípio geral do holismo ou coletivismo e (c1) o princípio de que o indivíduo deve ter por função e finalidade manter, fortalecer e garantir a estabilidade do Estado28.

Podemos considerar a proposta platónica como precursora dos totalitarismos do século XX, que tanto marcaram Popper e o levaram a escrever A Sociedade Aberta e seus Inimigos. Não há qualquer dúvida de que a filosofia de Platão se baseia numa (a)moralidade coletivista, tribal e totalitária, sendo apenas bom aquilo que se subordina aos interesses do grupo, tribo ou Estado. Além disso, esta subordinação aos interesses superiores do Estado abriu caminho para a filosofia belicista de Hegel, de onde derivaram, por diferentes vias, os totalitarismos de direita e de esquerda que tantas vítimas inocentes causaram em tempos mais recentes. Ao nível das relações internacionais, a filosofia do Estado perfeito de Platão conduziu à noção de que o Estado nunca erra enquanto conservar a sua força; que está no seu direito não só de exercer a violência sobre os seus cidadãos quando isso conduz a um acréscimo do seu poder, mas ainda de lançar ofensivas contra outros estados, desde que elas não acarretem o seu enfraquecimento. A ilação que resulta desta atitude, isto é, o reconhecimento expresso da amoralidade do Estado e, consequentemente, a apologia do niilismo moral nas relações internacionais, foi ultimada por Hegel29.

Antes de irmos a Hegel, porém, ainda algumas palavras sobre Platão. Para Popper, a República é um manifesto político do seu tempo, recheado, aliás, de alusões a problemas e personagens contemporâneos. Platão preocupou-se sobretudo com a preservação do Estado estratificado que preconizou. Esse Estado deveria ser dirigido pelos mais sábios, pelos filósofos, por uma determinada casta em comunicação com o divino. Preocupado sempre com a desintegração do Estado, Platão conhecia os perigos de um excesso populacional (que aliás tinha estado na origem da desintegração das tribos do seu tempo) e procurou criar limites aos nascimentos, introduzindo o que ficou conhecido pelo número platónico, uma quantificação que nunca foi totalmente explicitada, um número místico que só seria do conhecimento dos filósofos-reis. Platão é, pois, um elitista e um inimigo da liberdade. Por que é então tão prestigiado? Em primeiro lugar, pelo seu indiscutível talento, inclusive o da dissimulação. Particularmente na República, ele não deixa de preparar o leitor para as suas invetivas reacionárias, tendo em vista convencê-lo de que as suas intenções são humanitárias. Para tal, recorre a variados subterfúgios linguísticos, trocadilhos e expressões como os amigos comungam de todos os bens que possuem30. Esta tática convenceu muitos dos seus seguidores, que deturparam as ideias originais do filósofo com traduções suavizadas e humanizadas das suas obras; e fez também com que interpretassem com a mesma suavidade e humanidade as principais ideias de Platão. Popper não alinha nesse coro31. Ele desmascara os filósofos totalitários e historicistas mostrando como os seus argumentos são falaciosos, tendenciosos e reacionários.

3- HEGEL

Talvez o maior ataque contra a razão tenha vindo de Hegel, um dos maiores charlatães da história das ideias. É quase inacreditável como este homem (é muito difícil designá-lo filósofo) angariou o prestígio que se conhece, ao ponto de ser reconhecido por muitos como o maior filósofo alemão. Sobre ele já se escreveu muito, mas o seu compatriota e contemporâneo Schopenhauer foi um dos que, sem dúvida, o retratou melhor: Se alguma vez quiseres embotar as capacidades de um jovem e privar-lhe o cérebro de qualquer espécie de pensamento, o melhor que podes fazer é dar-lhe a ler Hegel. Porque as monstruosas acumulações de palavras, que se anulam e contradizem mutuamente, levam o espírito a atormentar-se em vãs tentativas para pensar o que quer que seja em relação a elas até sucumbir finalmente a uma completa exaustão. Assim, toda a capacidade de pensar é de tal modo destruída que o jovem acabará por confundir a verbosidade vazia e oca com o pensamento real. Um tutor receoso de que o seu pupilo se possa tornar demasiado inteligente para lhe descobrir os planos, pode impedir esse contratempo sugerindo inocentemente a leitura de Hegel32.

É difícil saber por onde começar quando abordamos o pensamento de Hegel. Como se sabe, ele é mais conhecido pela dialética, pelo idealismo e também pelo romantismo, próprios da época em que viveu. Para Hegel não há barreiras, nem impossíveis. Onde outros esbarram em alguma dificuldade, Hegel resolve o problema com a dose certa de engenharia semântica e um pouco de lógica barata, tudo de categoria inferior, mas bem embalado num palavreado pomposo e incompreensível.

Talvez isto fique um pouco mais claro se esclarecermos, desde já, que Hegel era um assalariado do Estado prussiano, particularmente, do rei Frederico Guilherme III, que contratou o maior idealista alemão para que este subvertesse as ideias igualitárias saídas da revolução de 1789, em França, as quais ameaçavam o poder totalitário daquele soberano. Recorremos uma vez mais a Schopenhauer para ilustrar este aspeto revelador da biografia de Hegel, a sua relação com o poder político: A filosofia é indevidamente utilizada: do lado do Estado, como um instrumento, do lado oposto, como um meio de lucro33.  Muitos outros corroboram esta afirmação de Schopenhauer, pois, de facto, parece improvável que Hegel se pudesse converter na figura mais influente da filosofia germânica, se não tivesse por trás de si a autoridade do Estado prussiano34.

Hegel cumpriu o papel que Frederico Guilherme lhe reservou, na perfeição. Tendo em vista demonstrar a excelência do Estado, em geral, e do Estado prussiano, em particular, Hegel  não teve dificuldades em deturpar as ideias humanitárias saídas da Revolução Francesa, com vista a ajustá-las aos objetivos do seu chefe. Conseguiu a proeza de proceder à transformação dialética da exigência de uma constituição na de uma monarquia absoluta35 e de distorcer a igualdade transformando-a em desigualdade. Com efeito, admite a igualdade dos cidadãos perante a lei, mas afirma que essa igualdade não passa de uma tautologia, concluindo que a igualdade perante a lei é a mesma que existe fora da lei, isto é, igualdade meramente formal, a qual é superada pela desigualdade concreta e real dos indivíduos, e que esta pode ser constatada nos estados modernos. Distorções deste tipo pontuam toda a incrível “filosofia” de Hegel.

A escrita obscura deste filósofo insere-se na tradição alemã, mas consegue, apesar de tudo, ir mais além. Veja-se este magnífico exemplo, retirado da sua Filosofia da Natureza: O som é a mudança verificada na condição específica de segregação das partes materiais e da negação dessa condição; é meramente uma idealidade abstrata ou ideal, por assim dizer, dessa especificação. Mas esta mudança é, por consequência, em si mesma imediatamente a negação da subsistência material específica; o que é, portanto, a idealidade real da gravidade específica e da coesão, isto é, o calor36. Esclarecedor, não?

Sendo Hegel, afinal, um mero charlatão, para quê preocuparmo-nos com ele? Porque a sua “doutrina” influenciou decisivamente quer a extrema-direita, quer a extrema-esquerda, e os movimentos totalitários que tantas vítimas inocentes fizeram na Europa e no mundo; e porque, por incrível que pareça, a sua influência é ainda grande junto da comunidade académica, sendo, inclusive, considerado um dos maiores filósofos de todos os tempos. Hegel conseguiu essa proeza baseando a sua filosofia em dois grandes pilares – a dialética e a teoria da identidade. Ao contrário de Platão, Hegel acreditava no progresso. O progresso dialético.

A dialética de Hegel, porém, é uma deturpação das antinomias kantianas. Kant afirmava que, fora do campo da experiência, a razão entra em conflito (ou contradição) consigo mesma, não podendo decidir sobre as questões metafísicas ou ideias puras. Por exemplo, não é possível a razão decidir sobre se o mundo teve um início ou existiu sempre: sem o apoio da experiência, para cada afirmação haverá sempre uma contra-afirmação válida. Hegel resolveu este problema afirmando que é da própria natureza da razão contradizer-se, e que é justamente dessa forma que a razão se desenvolve; dialeticamente, ou seja, em ritmo ternário: tese, antítese e síntese. Todas as coisas são em si mesmas contraditórias37, defende Hegel, marcando uma posição que não só significa o fim de toda a ciência como de toda a argumentação racional38.

Não adianta, pois, perdermos muito mais tempo com Hegel. O essencial é perceber que o seu intuito foi o de demonstrar as virtudes do Estado totalitário prussiano, concluindo que a Constituição, reclamada por muitos, não era necessária, pois a forma mais perfeita de Estado é a monarquia absoluta, tendo como modelo a monarquia prussiana e o seu chefe, Frederico Guilherme III. Com este fim, o grande Hegel não se coibiu de praticar toda a espécie de tropelias. Conseguiu demonstrar que a nação tem um espírito (uma das características do nacionalismo é tratar os estados como personalidades) e esse espírito age na história. Uma vez que o Estado deve ser poderoso, deve desafiar os poderes de outros estados. Deve afirmar-se no “Palco da História”, deve demonstrar a sua essência peculiar ou Espírito e o seu caráter nacional “estritamente definido” pelos seus feitos históricos, e deve, fundamentalmente, visar o domínio do mundo39.

O efeito pernicioso de Hegel foi enorme junto da intelectualidade alemã40, mas não só. Ainda hoje ele é admirado por intelectuais e académicos de todo o mundo. As suas ideias no campo político-social podem resumir-se nas seguintes: a) o Estado é a incarnação do Espírito e uma nação escolhida está destinada a dominar o mundo; b) o Estado, inimigo de todos os outros, deve afirmar-se pela guerra; c) tudo é admissível para a vitória do Estado, inclusive a mentira e a distorção dos factos, o que importa é o sucesso; d) a guerra é um bem, só interessam a vitória, a fama, o destino e a guerra, os bens mais desejáveis; e) o Grande Homem é um misto de conhecimento e paixão; f) o ideal da vida heroica é o de viver perigosamente, em oposição à vida medíocre da burguesia41.

Enfim, Hegel representa o elo perdido entre o totalitarismo de Platão e o marxismo. O espírito hegeliano foi substituído, em Marx, pelos interesses económicos e materiais e, no fascismo, pelo sangue ou pela raça. Eis o brilhante legado do grande charlatão.

4- MARX

Popper acredita que Marx é bem intencionado – não é um reacionário como Platão e Hegel. Marx indignou-se justamente com a miséria social existente no seu tempo, particularmente em Inglaterra, fruto de um capitalismo desenfreado, sem regras e sem direitos sociais de qualquer espécie. Como sempre acontece, as principais vítimas foram os mais desfavorecidos, incluindo mulheres e crianças, obrigados a trabalhar em condições sub-humanas. Marx constata que o ser humano vive, digamos, em duas dimensões. O reino da liberdade e o reino da necessidade. Este vem primeiro, pois sem satisfazer as necessidades básicas do seu metabolismo, o homem nunca será livre. Marx afirma que a burguesia delega no povo essa necessidade básica – satisfeita através do trabalho – pelo que ela (burguesia) acaba por ser livre, ao passo que os trabalhadores não são mais que escravos.

Marx quer reduzir a servidão do trabalho de modo a que possamos ser todos livres durante uma certa parte da nossa vida. Assim, a liberdade (espiritual) depende da necessidade (material). É este o dualismo de Marx. Daí que, do ponto de vista científico e causal, os pensamentos e as ideias devam ser tratados como superestruturas ideológicas com base nas condições económicas. O homem estará acorrentado enquanto estiver dominado pela economia. Há, por isso, que dar o salto do reino da necessidade para o da liberdade. Toda a ênfase é colocada, portanto, na economia, sobretudo nos meios materiais de produção. No caso concreto do capitalismo, a maquinaria, em contraste com o estádio anterior – o feudalismo – em que prevalecia a produção manual.

A teoria historicista de Marx desenvolve-se em três fases, sendo que o Capital trata sobretudo da primeira. São elas: 1- Análise das forças económicas do capitalismo e a sua influência sobre as relações entre as classes; 2- Inevitabilidade da revolução; 3ª Emergência da sociedade sem classes. Como é evidente, basta observar as democracias ocidentais da atualidade para se concluir que o processo histórico previsto por Marx não se concretizou (embora muito marxistas ainda esperem por essa concretização). Na primeira fase, Karl Marx constata que existe uma tendência para o aumento da produtividade do trabalho, devido à acumulação dos meios de produção e à utilização da maquinaria. Esta acumulação deverá fazer com que cada vez maior riqueza fique num menor número de pessoas, ou seja, nas mãos da burguesia. Pelo contrário, a esmagadora maioria das pessoas, o proletariado, ficará na miséria. Na segunda fase, as condições da primeira são tidas como assentes e daí se tiram duas conclusões: a) excetuando a burguesia exploradora e o proletariado explorado, todas as outras classes desaparecem ou tornam-se insignificantes; b) a crescente tensão entre as duas classes levará inevitavelmente a uma revolução social. Na terceira fase, as conclusões da segunda são igualmente tidas como assentes. E a conclusão final é a de que, após a vitória dos trabalhadores sobre a burguesia, haverá uma sociedade constituída por uma só classe e, portanto, uma sociedade sem classes e sem exploração – o socialismo42.

Popper contesta esta conclusão de Marx. Não há qualquer razão para pensar que os indivíduos que formam o proletariado mantenham a sua unidade de classe, depois de cessar a pressão da luta contra o inimigo comum. Qualquer conflito latente de interesses é agora suscetível de dividir o proletariado, anteriormente unido, em novas classes, desencadeando uma nova luta de classes. No que diz respeito à União Soviética, a história daria razão a Popper, pois ali surgiria, após a revolução, uma nova aristocracia ou burocracia. Popper não acredita também que todas as classes desapareçam (ou se tornem insignificantes) para além do proletariado e da burguesia. O mais provável é que se formem outras classes43. Havendo outras classes, para além da burguesia e do proletariado, a inevitabilidade da revolução de Marx parece estar comprometida. E, por falar em revolução, como ela se realizará? Popper acusa Marx (e os marxistas) de ambiguidade em relação a isto: a revolução pode ser violenta ou não. Depende. A ambiguidade deve-se ao caráter historicista do modelo de Marx, ou seja, o que é importante é que o objetivo se cumpra, pouco importando a forma de chegar lá. Esta ambiguidade em relação à violência é insuportável para Popper, uma irresponsabilidade gravíssima, acentuada pela inoperância dos comunistas: quando os fascistas tomaram o poder, os comunistas nada fizeram, pois pensavam que o advento do fascismo seria o estádio final do capitalismo.

A profecia de Marx foi, assim, largamente contrariada pelos factos. A teoria da Marx é, além de profética, puramente historicista, no sentido atribuído ao termo por Popper. Não existe no programa de Marx (se é que existe “programa”) qualquer tipo de engenharia social. Qualquer reforma social é considerada por Marx como utópica. Por isso, Lenine, seu discípulo, também não tinha qualquer preparação em questões económicas e, quando tomou o poder na Rússia, percebeu que o marxismo não o podia ajudar nesse campo. Ele próprio afirmou: Não conheço nenhum socialista que tenha tratado desses problemas; nada havia escrito sobre estas questões nem nos textos bolchevistas nem nos menchevistas. Lenine decidiu então adotar medidas que representavam um retorno temporário à empresa privada. A NEP (Nova Política Económica) e os Planos Quinquenais, etc., nada têm a ver com as teorias do socialismo científico outrora propostas por Marx e Engels. Como Lenine admite, dificilmente se encontra na obra de Marx uma palavra sobre a economia do socialismo, excetuando slogans inúteis como de cada um segundo as suas capacidades e a cada um segundo as suas necessidades.

Segundo Marx, o sistema de todas as relações de produção constitui a estrutura económica da sociedade, isto é, o sistema social, o qual, por sua vez, determina as ações dos indivíduos, quer sejam burgueses ou proletários. As leis do mecanismo social tornam inúteis quaisquer esforços dos indivíduos para as contrariar. Marx revela-se, assim, para além de historicista, um determinista. Neste cenário pré-determinado há muito pouco espaço para a política; há apenas que seguir o determinismo da história. É por isto que Marx dá (como se queixava Lenine) pouca importância às reformas político-jurídicas. Marx acredita que as leis nunca serão alteradas a favor do proletariado enquanto os burgueses estiverem no poder.

Marx, como vimos, não é um reformador social. É sobretudo um profeta. Há uma dimensão religiosa, sem dúvida, no marxismo. Existe a crença de que tudo decorrerá de acordo com a profecia de Marx, mesmo que a realidade teime em negar essa mesma profecia. O mundo é muito diferente de há 150 anos, quando Marx escreveu o Capital; e muito diferente, igualmente, do mundo que ele profetizou nessa obra. As condições sociais são incrivelmente melhores do que eram naquela época; e incrivelmente melhores, igualmente, que aquelas em que os cidadãos comuns viveram nos estados onde a revolução socialista (temporariamente) vingou. Marx falhou. O sistema capitalista foi melhorado, aperfeiçoado, aprimorado. Não é um sistema perfeito, mas pode ser reformado, e isto é impossível num regime comunista. Popper ensinou-nos que não é possível combinar socialismo com liberdade individual. E que a liberdade é o valor mais alto em qualquer regime político. Liberdade com limites, evidentemente, porque a minha liberdade pessoal não pode sobrepor-se a nenhuma outra.

Apesar de tudo, Popper revela simpatia pelo esforço de Marx, mesmo discordando da dimensão historicista da sua obra. Popper condena sobretudo o marxismo. A maioria dos marxistas nem sequer entenderam Marx. Curiosamente, a simpatia que este pode ter provocado em Popper parece ter-se desvanecido um pouco, depois deste ter lido o livro de Leopold Schwarzschild sobre Marx, The Red Prussian. Em nota publicada na última página da obra aqui analisada, numa adenda de 1965, Popper deixa-nos a seguinte advertência: Muito embora o livro [The Red Prussian] possa nem sempre ser justo, contém testemunhos documentais, especialmente da correspondência entre Marx e Engels, que mostram que Marx não era tão humanitário e tão amante da liberdade como o meu livro deixa transparecer. Schwarzschild descreve-o como um homem que via no proletariado, sobretudo, um instrumento da sua própria ambição pessoal. Embora esta forma de colocar a questão possa ser mais dura do que a evidência indicaria, há que admitir que a própria evidência é esmagadora44.

5- CONCLUSÃO

Não foram apenas Platão, Hegel e Marx os visados por Popper neste grandioso livro45. Mas estes reuniam as principais características historicistas que Popper queria combater. Sobretudo, o essencialismo, inaugurado por Platão, quando se questionou sobre quem deveria governar. A ânsia de responder a esta pergunta faz com que até os melhores espíritos passem por cima da liberdade – e esta não pode ser secundarizada, é essencial para a sociedade aberta. Tudo o que restrinja a liberdade restringe igualmente a nossa responsabilidade. Significa refugiarmo-nos em uma qualquer entidade superior a nós, que pode decidir por nós; significa, como mostra claramente Popper, o regresso ao coletivismo da tribo.

Contra esta visão fechada da sociedade se opuseram, primeiro, a Grande Geração, na Grécia, depois o movimento cristão (antes do cristianismo ser aceite como religião oficial do Império Romano) e, posteriormente, todos os amantes da liberdade, da tolerância e da razão. Popper, sem qualquer dúvida, está entre eles.

A Sociedade Aberta e Seus Inimigos foi escrita quando decorria a II Guerra Mundial. É bastante curioso reparar que nem por uma vez Popper menciona Hitler. Nem Estaline. Nem Mussolini. A aversão de Popper a estas personalidades é tão forte que ele preferiu não lhes atribuir importância. Mas, mesmo sem os mencionar, o ataque que lhes lançou é, com certeza, o maior de sempre, pois nunca ninguém tinha ido tão longe, à raiz das ideologias totalitárias. Estas permanecem vivas, apesar dos ditadores irem morrendo. Popper acredita que a razão é o instrumento mais adequado para combatê-las. E que a razão é ainda o instrumento mais eficaz para se garantirem a paz e a liberdade, dois valores interdependentes. Só em liberdade e paz poderemos esgrimir com argumentos em vez de bombas. Esta é, para quem, como Popper, abomina a violência, a superioridade da Sociedade Aberta.

ADENDA

Certa vez ouvi, num documentário, um músico de quem não me recordo nome nem rosto, dizer que dedicara a vida inteira a estudar o Concerto nº 2 para piano e orquestra, de Rachmaninoff. Fiquei a pensar naquilo. Também eu era (e sou) fã incondicional dessa obra.

Uma das formas de encontrarmos um sentido para a vida talvez seja essa – descobrirmos a nossa obra e consultá-la vezes sem conta, como quem tem a Bíblia permanentemente à cabeceira.

Existem várias obras na minha vida e uma delas é a de Rachmaninoff, que citei acima. Mas se houvesse alguma que eu tivesse de considerar a minha Bíblia, essa seria, sem dúvida, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, de Popper. Com ela aprendo todos os dias, se é lícito falar em aprender. No fundo, talvez tudo se resuma a uma questão de fé. Mesmo que a fé seja, como acontece com Popper, uma fé na razão.

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Notas:

1 Diz-nos Popper:No meu livro The Poverty of Historicism, procurei argumentar contra semelhantes pretensões, mostrando que, apesar da sua plausibilidade, na verdade elas resultam de uma interpretação equívoca do método científico, ignorando em especial a distinção entre previsão científica e profecia histórica. Ao mesmo tempo que me ocupava da análise sistemática e da crítica das pretensões historicistas, procurei recolher algum material passível de ilustrar a evolução destas filosofias. As notas coligidas para este propósito constituíram a base do presente livro.” (Karl Popper, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Editorial Fragmentos, Lisboa, 1993, volume I, p. 15).

2 De acordo com Popper, os termos “sociedade aberta” e “sociedade fechada” foram usados pela primeira vez por Henri Bergson na sua obra Two Sources of Morality and Religion. (Ob. cit., p. 211).

3 De acordo com Popper, o historicismo caracteriza-se por “uma abordagem das ciências sociais, que pressupõe que a previsão histórica é o seu objectivo primordial, e que pressupõe que este objectivo é atingível por descobrir os ritmos ou padrões, as leis ou as tendências que estão subjacentes à evolução da história” (A Pobreza do Historicismo, Editora Esfera do Caos, Lisboa, 2007, p. 3)

4 A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Editorial Fragmentos, Lisboa, 1993, volume II, p. 57. Além de “charlatão”, Hegel é ainda apelidado de “palhaço” (juntamente com Fichte). De realçar que estes “mimos” não são habituais no discurso de Popper, bem pelo contrário. Em nenhuma outra parte Popper foi tão longe na linguagem crítica.

5 A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Editorial Fragmentos, Lisboa, 1993, volume I , p.84.

6 ob. cit., p. 75.

7 Popper refere, como fases intermédias, o “naturalismo biológico”, o “positivismo ético ou jurídico” e o “naturalismo psicológico ou espiritual”.

8 Os exemplos são abundantes. Bastará lembrarmo-nos dos partidos políticos, do fundamentalismo religioso, das claques desportivas. Os seus membros frequentemente negam a realidade para a adequarem aos seus objetivos coletivos. O pensamento individual fica limitado. Ora, isto são caraterísticas mais do que evidentes do tribalismo.

9ob. cit., p. 86.

10 Além de Péricles, faziam parte da Grande Geração: Sófocles, Tucídides, Aristófanes, Heródoto, Protágoras, Demócrito, Alcidamas, Licofronte, Antístenes, Górgias e Sócrates.

11 A Guerra do Peloponeso desencadeou-se entre Atenas e seu império contra a Liga Peloponesa liderada por Esparta, e decorreu entre 431 a.C. e 404 a.C. Terminou com a instalação do governo dos Trinta Tiranos, fiéis a Esparta.

12 Como vimos na nota anterior, o regime oligárquico que resultou da Guerra do Peloponeso.

13 O devir é o que acontece com todas as coisas, uma alternância entre os contrários de que todas as coisas são constituídas. A realidade emana da guerra entre os opostos, de que todas as coisas são constituídas.

14 Foi este essencialismo que Kant precisamente negou, ao distinguir entre fenómeno (como as coisas se nos apresentam) e númeno (as coisas-em-si). O númeno é, para Kant, inacessível aos seres humanos.

15 “De acordo com o essencialismo metodológico, há três formas de conhecer uma coisa: podemos conhecer a sua realidade imutável ou essência; podemos conhecer a definição da essência; e podemos conhecer o seu nome.” (Ob. cit., p. 47). Por aqui se vê que o essencialista ama as definições. Provavelmente, este essencialismo platónico está na origem (pelo menos está ligado) das filosofias modernas da linguagem e do positivismo. Claro que Popper discorda de todas elas.

16 Ob. cit., p. 47.

17 Ob. cit., pp. 163-64-65.

18 Ob. cit., p. 134.

19 Diz-nos Popper: “Aqueles que acreditam que a primeira pergunta é fundamental partem do princípio que “essencialmente” o poder político não deve ser fiscalizado (unchecked), isto é, que estando nas mãos de um indivíduo ou de um organismo coletivo – por exemplo, uma classe -, aquele que o detém pode fazer mais ou menos o que estiver na sua vontade, devendo acima de tudo reforçá-lo, tornando-o o mais possível ilimitado e livre de controlo. Nesta perspetiva, o poder político é fundamentalmente soberano e a questão mais importante que suscita consiste em saber “quem deverá ser o soberano?” (ob. cit., p. 134).

20 República, Livro VIII, 560-564.

21 De acordo com Popper, Platão é idealizado por muitos dos que estudam a sua obra, incluindo tradutores da mesma. Assim, muitos termos são suavizados ou deturpados para nos darem uma visão mais humana do mestre. O próprio termo “República” se inclui nesse rol, tendo em vista dar uma ideia liberal ou mesmo revolucionária. O termo mais correto como tradução do original grego seria “Constituição”, “Estado” ou “Cidade-Estado” (Karl Popper, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Editorial Fragmentos, Lisboa, 1993, volume I, p. 103).

22 Os melhores exemplos dos regimes timocráticos eram, para Platão, as aristocracias tribais de Creta e de Esparta ou Lacedemónia (ob. cit., p. 62).

23 Ob. cit., p. 57; República, Livro VIII, 544c.

24 É curioso verificar que uma obra do século XIX, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de Friedrich Engels, poderia ser uma obra de Platão. A apologia da gens não é mais que a apologia da tribo. Diz-nos Engels, nesta obra (p.70): “os germânicos estavam quase inteiramente de acordo com os espartanos, entre os quais, conforme vimos, também não havia desaparecido totalmente o casamento pré-monogâmico”.

25 Ob. cit., p. 65.

26 Platão vai ao ponto de sugerir que as crianças provem o sangue da batalha: “não te lembras que afirmámos que era preciso levar as crianças ao combate, para observarem de cima dos cavalos, e que, se houvesse condições de segurança, se deviam aproximar e provar o sangue, como os cães?” (República, Livro VII, 537a).

27 Karl Popper, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Editorial Fragmentos, Lisboa, 1993, volume I, p. 116.

28 Ob. cit., pp 108/9.

29 Ob. cit., p. 120.

30 Ob. cit., p. 117.

31 Ver excerto do Prefácio à primeira edição da “Sociedade Aberta e Seus Inimigos” citado na “Introdução”. (Ob. cit., p. 9).

32 Schopenhaeur, citado em Karl Popper, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Editorial Fragmentos, Lisboa, 1993, volume II, p. 78.

33 Ob. cit., p. 38.

34 Ob. cit., p. 35.

35 Ob. cit., p. 48.

36 Ob. cit., p. 34

37 Popper cita Hegel (Ob. cit., p. 44).

38] Ob. cit., p.44.

39 Ob. cit.,p. 65.

40 Citemos apenas alguns dos pensadores românticos, nacionalistas ou racistas alemães influenciados por Hegel: Heinrich von Treitschke (1834-1896), Ernst Haeckel (1834-1919), Wilhelm Schallmayer (1857-1919), Edmund Husserl (1859-1938), Max Scheler (1874-1928), Moeller van den Bruck (1876-1925), Ernst Krieck (1882-1947), Oswald Spengler (1880-1936), Karl Jaspers (1883-1969), Alfred Rosenberg (1893-1946), Hans Freyer (1887-1969), Fritz Lenz (1887-1976) e Martin Heidegger (1889-1976), entre muitos outros.

41 Ob. cit., pp. 64-65.

42 Ob. cit., pp.135-144.

43 Popper enumera algumas delas: grandes latifundiários; outros proprietários rurais; trabalhadores rurais; nova classe média; operários industriais; proletariado-ralé; etc.

44  Ob. cit., p. 381.

45 Há vários outros “monstros sagrados” da filosofia visados nesta obra de Popper. Heráclito, Aristóteles, Fichte, Wittgenstein, Karl Jaspers e Heidegger são, talvez, os alvos das críticas mais fortes, além de Platão, Hegel e Marx, evidentemente.

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Nossas edições:

  • Karl Popper, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Volume I (Platão), Editorial Fragmentos, 5ª edição revista, Lisboa, 1993.
  • Karl Popper, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Volume II (Hegel e Marx), 5ª edição revista, Editorial Fragmentos, Lisboa, 1993.

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Foto de Popper:

http://www.faz.net/aktuell/wirtschaft/wirtschaftspolitik/philosoph-sir-karl-popper-ueber-eine-offene-gesellschaft-13913183.html

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Marcelo presidente

Marcelo Rebelo de Sousa - Clube da Alameda

Temos tentado mostrar, desde há bastante tempo, que política feita com mais pragmatismo e menos ideologia é a marca dos países socialmente desenvolvidos. Se isto é válido para a governação, é mais válido ainda para cargos não-executivos, como é o caso do Presidente da República, em Portugal, país que, apesar de tudo, tem mostrado uma significativa maturidade eleitoral, não embarcando, desde a Revolução de Abril, em aventuras ideológicas radicais. Assim, independentemente das simpatias pessoais, há que tentar perceber o que levou as pessoas a oferecerem-lhe de bandeja a vitória mais fácil, em eleições democráticas, desde o 25 de Abril.

Há três razões essenciais.

1ª- Sampaio da Nóvoa, o único candidato que poderia forçar Marcelo a uma segunda volta, cometeu um erro crasso. Precisamente, não ter percebido o que dissemos acima. Além das pessoas não quererem mais ideologia (a maturidade da maior parte do eleitorado português, prova-o), muito menos a aceitam num cargo não-executivo, como o de Presidente da República. Ora, Sampaio da Nóvoa não entendeu isto. Procurou afirmar-se, precisamente, mostrando que tinha uma ideologia. Fez uma enorme confusão. Deveria ter-se afirmado, pelo contrário, por novas ideias (uma vez que lhe era difícil apresentar um grande currículo político). Esta confusão constituiu, desde o início, o anúncio da sua derrota.

2ª- Marcelo Rebelo de Sousa, esperto como é, percebeu de forma clara que não deveria introduzir mais ideologia no debate. Procurou apresentar-se como um candidato de todos os credos. Mostrou que queria unir em vez de dividir. Afirmou-se pela competência pessoal de professor de Direito, de constitucionalista, de intérprete maior da Constituição, que é um dos papéis essenciais de qualquer presidente, como se sabe. Esta tática permitiu-lhe apresentar-se perante o eleitorado mais indeciso como o menos mau dos candidatos. E, como se sabe, é o menos mau quem ganha (quase) sempre as eleições.

3ª- Como pano de fundo, há que ter em conta as circunstâncias políticas em que se deram estas eleições. Como sempre, a Esquerda apresentou-se com vários candidatos (mais uma vez, a ideologia). O PS apresentou-se dividido. O PCP apresentou um candidato que nem 4% dos votos obteve. O Bloco teve uma boa votação relativa e com isso cantou vitória: o seu objetivo era esse, e não evitar a vitória de Marcelo. Enfim, mais uma vez por questões ideológicas, a Esquerda apresentou-se dividida e sem candidatos credíveis. Isto facilitou enormemente a missão de Marcelo.

Posto isto, há que dizer que, depois de Cavaco, pior é impossível. Veremos como se porta o novo Presidente. Afinal, é difícil de prever o que fará um dos personagens mais imprevisíveis da política (à) portuguesa. Por nós, damos-lhe o benefício da dúvida. Esperamos que o aproveite bem.

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Foto: Pedro Ganadeiro, Global Imagens.

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O salário mínimo no Brasil

inflaçao

Foi anunciado ontem o aumento de 11,7% do salário mínimo, que passará dos atuais 788,00 para 880,00 reais em 2016. Como é hábito no Brasil, trata-se de mais uma medida para agradar a gregos e troianos (leia-se população em geral – sobretudo, potenciais eleitores do PT – e governo). Os primeiros ficam satisfeitos porque acham que o seu poder de compra vai crescer e o segundo porque vê a sua imagem sair um pouco melhor desta conjuntura de final de ano.

Mas o que é mais impressionante não é a imprudência do povo e a medida populista do governo. O que impressiona mesmo é a falta de conhecimento de comentadores e economistas, pessoas (supostamente) instruídas e especializadas em assuntos económicos. É que, realmente, um aumento demasiado substancial do salário mínimo pode não ser vantajoso para ninguém. Parece um contrassenso, mas é fácil de esclarecer. O Brasil é um país com inflação elevada e crónica. Ora, esta medida irá contribuir para o aumento da inflação no país pelos seguintes motivos.

1- Os empresários, para fazerem face ao aumento dos custos vão aumentar os preços dos bens e serviços, repassando o ónus desta medida do Governo para o consumidor. Isto quer dizer que o aumento do salário vai ser “comido” pelo aumento dos preços.

2- Sendo o salário mínimo um valor de referência, outros salários vão aumentar proporcionalmente, ou, o mais provável, mais que proporcionalmente, criando o efeito de “corrida aos armamentos”, através de mais aumentos dos preços, e novos aumentos dos salários, e assim sucessivamente, continuando e reforçando o processo inflacionário.

3- Os reajustes salariais vão contribuir para o aumento dos gastos do Governo, que já está endividado, aumentando igualmente a pressão para que se mantenham os impostos altíssimos e/ou se crie mais moeda. Mais moeda implica duas coisas: desvalorização e inflação.

Estas são as três consequências básicas e previsíveis. Para que este impacte inflacionário não seja desastroso o que podem fazer o Governo e o Banco Central? Por um lado, cortar nas prestações sociais para diminuir a despesa pública e, por outro, manter altíssimas as taxas de juro, prejudicando a economia, mantendo o Brasil com taxas de investimento medíocres. Estas medidas piorarão as condições de vida dos brasileiros em geral, sobretudo dos mais pobres. Como se sabe, a inflação é sobretudo um flagelo para a população mais desfavorecida, pelo que a propaganda do Governo e medidas como o reajuste do salário mínimo são opções de “fim de linha”, agravando um problema que deveria ser evitado a montante. Com a inflação alta, os únicos beneficiários são os ricos, pelo que o dever principal de um Governo dos trabalhadores deveria ser o de controlar a inflação. Isso deveria fazer-se com aumentos progressivamente menores, que dessem um sinal de combate à inflação, e não com aumentos populistas de sinal contrário, os quais mostram que o Governo se preocupa sobretudo com ele próprio e não com as pessoas. Como pano de fundo deste cenário está o protecionismo, ou seja, o fechamento da economia brasileira ao mundo, a tentativa de proteger a sua economia que resulta, por falta de concorrência, numa ineficiência crónica. (Podem ler mais sobre o assunto aqui e aqui).

Infelizmente, o que prevalece no Brasil continua a ser a propaganda generalizada. As regras da economia são negligenciadas e o povo, desconhecendo-as, não tem como se defender, pelo contrário, luta pelo que só agrava a sua própria condição.

Mais um paradoxo num país paradoxal.

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Imagem retirada de forum.antinovaordemmundial.com

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Nova guerra ou mais uma batalha?

atentados paris

Uma série de atentados concertados voltaram a ocorrer há poucas horas em Paris, provocando, segundo as informações apuradas até agora, quase uma centena e meia de mortos. É difícil dizer seja o que for, após uma carnificina desta dimensão. O espanto e a impotência invadem-nos, e cruzam-se com uma raiva dificilmente contida. Há que fazer qualquer coisa, há que travar esta barbaridade.

Não são raros os autores que veem no radicalismo islâmico dos nossos dias o prolongamento de uma guerra santa entre islâmicos  e cristãos – uma guerra iniciada no século oitavo, após a invasão berbere da Península Ibérica (711) – como é o caso do historiador britânico, Nigel Cliff, na sua obra de 2011, intitulada, precisamente, Holy War (já em 2001, Peter Bergen havia publicado Holy War, Inc.).

Após a invasão muçulmana, a resistência cristã manteve-se no Norte da Península, nas Astúrias, e, logo em 722, a vitória de Pelágio e seus seguidores, em Covadonga, haveria de marcar o início da reconquista, continuada por Afonso II e Afonso III, do reino das Astúrias, que poucos anos depois haveria de ter a sua sede em Leão, e mais tarde, depois da morte de Afonso IX, em 1230, de se unir com Castela.

(Não se pense, porém, que os árabes se detiveram na Península Ibérica. Em 732, os Francos (povos germânicos ocidentais), liderados por Carlos Martel (o “Martelo”), derrotaram os muçulmanos às portas de Poitiers, em França. Foi para descrever os homens de Martel que um cronista usou pela primeira vez o termo “europenses” – europeus).

Na Península, a guerra com os mouros prolongou-se por centenas de anos, incluindo aqueles em que Portugal nasceu, primeiro como condado e depois como reino – o mais antigo da Europa com as fronteiras atuais. O primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, acabaria por conquistar, com a ajuda dos cruzados (alemães, ingleses e normandos, entre outros), a importante cidade de Lisboa, em 1147. A Alfama árabe de então, o bairro mais populoso, comercial e contrabandista de Lisboa, foi, certamente, palco de lutas ferozes.

Mas as conquistas e reconquistas continuaram, e a reação islâmica, através dos Almorávidas, tribos berberes fundamentalistas, e mais tarde dos Almóadas, ambos povos aguerridos que lutavam ardentemente pelo Islão, foi brutal. Só no final do século XV, em 1492, os últimos muçulmanos, do reino de Granada, foram definitivamente expulsos da Ibéria.

Entretanto, as Cruzadas, que se iniciaram em 1098, com uma primeira expedição de peregrinos desarmados – a “Cruzada do Povo” – e que haveria de ter um fim trágico às mãos dos Turcos (só no ano seguinte se realizaria a verdadeira Primeira Cruzada, que conquistaria Jerusalém), continuariam até 1291.

A guerra entre cristãos e muçulmanos não terminaria aqui. Em 1415, uma expedição comandada por D. João I e seus filhos conquistou a cidade de Ceuta aos mouros. A partir daí, os portugueses começaram, através dos Descobrimentos, a exportar o cristianismo para partes longínquas, quer do Oriente, quer do Novo Mundo. No Oriente, a guerra santa não parou, pois os portugueses continuaram, ali, a combater os “infiéis”. A ânsia religiosa culminaria, como se sabe, em 1570, com o desastre de D. Sebastião em Alcácer-Quibir.

Já antes entrara em cena a nefasta Inquisição. A perseguição aos não-cristãos, nessa época, marcou um dos períodos mais obscuros, tenebrosos e fundamentalistas da história ocidental. Depois disso, como é sabido, as diversas tendências cristãs – católica, ortodoxa, protestante, etc. – parecem ter ultrapassado o fundamentalismo e a violência, muito por influência do desenvolvimento político que atingiu o Ocidente, com os seus estados laicos e democráticos, primeiro no Norte e depois no Sul da Europa.

Curiosamente, houve períodos em que os muçulmanos conviveram pacificamente com membros de outras religiões, numa demonstração de grande tolerância e de avanço civilizacional, relativamente aos ocidentais. Hoje, porém, o radicalismo islâmico, como tragicamente se (re)confirmou há poucas horas, é uma triste realidade.

Nestas poucas linhas, tentámos elaborar um pequeno esboço histórico, que poderia continuar, por exemplo, com a luta contra o Império Otomano (curiosamente apoiado pelos franceses até o século XIX) o qual apenas foi derrotado na sequência da Grande Guerra, sobretudo com a intenção de mostrar que a História nem sempre segue em linha reta (e nem sequer falámos nos judeus, grandes intervenientes nesta “história”). O caos instalado no Médio Oriente iniciou-se com o desmantelamento do Império Otomano, e a instituição de protetorados ou possessões ocidentais – britânicos, franceses e italianos. Temos, como é evidente, grandes responsabilidades sobre o que está a acontecer.

Apesar de termos o dever de aprender com os nossos erros do passado (remoto ou recente), não podemos esquecer-nos que temos pela frente um enorme problema. A grande questão é: perante o aumento drástico do radicalismo islâmico, conseguiremos manter a nossa tolerância religiosa, tão laboriosamente conquistada, ou seremos forçados a retomar a “Guerra Santa”, a qual, para muitos, afinal, ainda não terminou? Este parece ser, cada vez mais, no presente contexto histórico, o nosso grande desafio.

Cremos que a primeira hipótese vencerá. Os líderes políticos e religiosos ocidentais parecem conscientes da importância de mantermos as nossas conquistas civilizacionais, face a um evidente fundamentalismo religioso protagonizado pelo ISIS e outros radicais islâmicos. Mas o medo, a raiva, o sentimento de vingança e outras forças negativas poderão abrir frestas nas nossas democracias, abrindo espaço para a entrada em cena de líderes radicais e de um novo espírito de cruzada. Não devemos esquecer nunca as nefastas consequências da ação desse “cruzado” recente, que dá pelo nome de George W. Bush.

“Santa”, “civilizacional” ou outra, o facto é que estamos numa guerra com treze séculos e, quem sabe, ainda longe do fim. Uma guerra que, em nome dos nossos valores – liberdade, democracia, tolerância e paz – urge vencer.

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Foto retirada de http://www.lefigaro.fr.

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Ranking dos 10 políticos portugueses mais detestáveis

1- Cavaco Silva, “O Conspirador”.

2- Nuno Crato, “O Contabilista”.

3- António Costa, “O Náufrago”.

4- Raquel Varela, “A Anarquista”.

5- Paulo Portas, “O Oportunista”.

6-Marcelo Rebelo de Sousa, “O Quadrilheiro”.

7- Catarina Martins, “A Sonhadora”.

8- Jerónimo de Sousa, “O Petrificado”.

9- Passos Coelho, “O Liberal”.

10- Sampaio da Nóvoa, “O Citador”

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E este é já o nosso oitavo ranking, o que significa, dada a periodicidade semestral, que já passaram quatro anos desde o primeiro. O último, antes do de hoje, foi no dia 10 de abril de 2015. Nesse constavam os nomes de Marques Mendes, “O Concentrado”, Poiares Maduro, “O Infrassumo” e José Sócrates, “O Engenhocas”. Foram substituídos no presente ranking por Jerónimo de Sousa, “O Petrificado”, Sampaio da Nóvoa, “O Citador” e António Costa, “O Náufrago”. Cavaco Silva, “O Conspirador”, mantém a liderança, consecutivamente, desde o primeiro ranking.

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As legislativas de 2015

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Cavaco não comparecerá nas cerimónias do 5 de outubro para “analisar o resultado das eleições”. Mais uma atitude deplorável do mais deplorável Presidente da República de Portugal.

Amanhã Portugal vai mais uma vez a votos e não há que esperar nada de novo. A Direita unida, a Esquerda desunida – é esta a constante desde o 25 de abril, em Portugal e, historicamente, em todo o mundo.

A atitude do BE e do PCP é a de continuarem a afirmar que o sistema (capitalista) está viciado, que as regras são injustas, que os árbitros estão comprados, que há privilégios para uns que outros não têm, enfim, que é preciso romper com o sistema e mudar as regras.

(Isto faz-me recordar o discurso do presidente de um certo clube que, por sinal, é o meu).

No meio desta polémica (um tanto estéril) sobre o “modelo” ideal de sociedade, introduzida quotidianamente no ambiente político pelo BE e PCP está – entalado – o PS: acusado pela Direita de querer alinhar com quem quer romper com o sistema e pela Esquerda de não querer abandonar o atual. 

Estes dados bastante simples já eram conhecidos há muito. Face aos mesmos, qual foi a estratégia do “entalado” PS? Querer agradar a gregos e troianos – uma ambiguidade que lhe custará caro. António Costa deveria saber que, nesta competição, as jogadas para golo não se constroem nas laterais, mas sim pelo Centro do terreno. E isto também não é novo; de facto, é uma tendência que se verifica em toda a Europa.

Se ganhar, o PS será derrubado por iniciativa dos mesmos de sempre – aqueles que lhe exigem que rompa com o “sistema”. Porém, com tanta ambiguidade, o PS é mesmo capaz de perder; há gente que não gosta do governo, mas que não vê neste PS uma alternativa credível.

Perante estes dois cenário prováveis, a única coisa que parece certa é que ninguém (PS ou PàF) vencerá com maioria absoluta, o que dará, sem mérito, um prémio de consolação (que será celebrado como uma vitória) aos partidos anti-sistema – BE e PCP.

Assim, não haverá amanhã um vencedor claro, mas apenas um perdedor – o país – pelo menos até as próximas eleições legislativas, as quais ocorrerão provavelmente antes de 2019. 

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Foto de Cavaco Silva retirada de http://www.declinioqueda.wordpress.com

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Os 11 aspetos distintivos de Portugal

1- A LUZ

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A luz de Lisboa.

A luz de Portugal é famosa. Lisboa, a “Cidade Branca”[1], é elogiada por artistas plásticos, fotógrafos e cineastas – para quem a luz é parte importante do seu trabalho – por sua luminosidade particular. Além da luz diretamente recebida, há também a luz filtrada e a luz refletida. É na combinação destes tipos de luz que se manifesta a particularidade de Portugal. Neste contexto, têm uma importância acrescida o vento (normalmente, de Norte), o céu limpo (Portugal é um dos países do mundo com mais dias de sol) e as edificações de matizes claros (nomeadamente as construídas em pedra, que é quase sempre o calcário branco) ou pintadas de branco, que ampliam a transparência da luz. Este tipo de construções encontram-se sobretudo nas regiões do Sul de Portugal continental, nomeadamente no Alentejo e no Algarve.

2- A PAISAGEM

Costa da Caparica
Pôr do sol na Caparica, arredores de Lisboa.

Portugal é um país pequeno mas extremamente diversificado. Isto reflete-se em tudo (como veremos, muito, na gastronomia), mas também, claro, na paisagem. Temos vários tipos de clima, alguns dos quais separados por poucos quilómetros de distância – o Norte de Portugal, por exemplo, vai desde o verde viçoso do Minho (onde podemos encontrar o exuberante Gerês) ao árido (mas belo) Trás-os-Montes. As praias são magníficas: as do Norte com água bem fria, e as do Sul (nomeadamente no Algarve) com águas mornas (no Verão) e calmas, excelentes para banhos. As principais cidades portuguesas situam-se junto a belos rios – O Mondego, o Douro e o Tejo. Seguir o seu percurso equivale a conhecer por dentro algumas das mais belas paisagens naturais do mundo. Os arquipélagos dos Açores e da Madeira – onze ilhas de encantos muito diversos – são igualmente famosos pelas suas belezas paisagísticas.

3- O MAR

Barril
Praia do Barril, Tavira, Algarve.

Não existe outro país continental onde as pessoas tenham uma relação tão estreita com o mar. Esta relação está já inscrita no código genético dos portugueses. Isso é visível na distribuição da população pelo território. Esta apetência para o mar – manifestada pelas mais diversas atividades profissionais, culturais e de lazer – deriva da presença em Portugal dos Fenícios, povo que, tal como nós, embora muito antes, se dedicou, durante largo período, ao comércio marítimo. Os portugueses quase sempre aceitaram os desafios do mar. Nele, muitos ganharam a vida e muitos outros a perderam. Dificilmente um português conseguirá viver longe da água salgada. Esta relação completa-se com o fiel cão de água português, o canino mais adaptável, em todo o mundo, ao ambiente marítimo[2]. Como se sabe, esta vocação marítima conduziu os portugueses aos quatro cantos do mundo. Portugal foi o primeiro império marítimo mundial[3]. Data desses tempos o início do processo conhecido por “globalização”. As campanhas do bacalhau na Terra Nova e na Gronelândia que os portugueses levaram a cabo durante décadas, sob condições terríveis, constituem outro marco indelével da ligação histórica do nosso povo ao mar.

4- A CORTIÇA

cortiça
Colares e brincos em cortiça.

Trata-se de uma especificidade portuguesa. Portugal é o maior produtor mundial de cortiça. Este produto tem características muito próprias – sobretudo a sua combinação de impermeabilidade e leveza – que o tornam excelente em várias utilizações, sobretudo, claro, como rolha, em garrafas de vinho[4]. Porém, nem toda a cortiça dá para fazer rolhas. A primeira extração de cortiça só se realiza quando o sobreiro tem 25 anos. E a cortiça adequada para produzir rolhas só é extraída quando o sobreiro tem 43 anos (terceira extração). O sobreiro (Quercus Suber L.), única árvore em que a casca se regenera, dura em média 200 anos, isto é, suporta cerca de 17 extrações. A cortiça tem mais aplicações para além de rolha. Os produtos derivados são utilizados em áreas tão diversas quanto a moda, a construção, o design, a saúde, a produção de energia ou a indústria aeroespacial.

5- A GASTRONOMIA

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O peixe grelhado, sobretudo a sardinha, é uma iguaria muito apreciada pelos portugueses.

A gastronomia em Portugal é excelente. As duas vertentes de uma gastronomia de elevada qualidade são as boas matérias-primas e os bons cozinheiros (que fazem – ou reproduzem – as boas receitas). O peixe é a melhor matéria-prima de Portugal, em termos gastronómicos. Aqui existe, reconhecidamente, os melhores peixes do mundo. A sardinha é rainha e o bacalhau é rei. Ninguém sabe tratá-los melhor que os portugueses. Depois, fabricamos o melhor pão, aliás, os melhores pães (e broas), pois a variedade é enorme. Excelentes vinhos (brancos, tintos, espumantes, rosés e generosos) são produzidos em Portugal. O vinho do Porto é famoso no mundo inteiro. Os nossos queijos são variados e de qualidade insuperável. O queijo “Serra da Estrela” já foi várias vezes considerado o melhor do mundo. O nosso azeite é de altíssima qualidade e ganha regularmente, tal como o vinho e o queijo, prémios internacionais. Finalmente, a doçaria. É de chorar. Os nossos melhores doces vêm de uma tradição “conventual”. Enfim, perante coisas ancestrais, é quase pecado falar em “nouvelle cuisine” (que também aqui há). A nossa cozinha não é uma moda, não é uma nova forma de arte. A nossa cozinha é cultura (viva), é sabedoria – e é amor[5].

6- O MANUELINO

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A Torre de Belém, desenhada por Francisco de Arruda, é um magnífico exemplar do estilo manuelino.

Mais fácil e melhor que descrevê-lo é observá-lo nas mais variadas obras de arte, quer em edificações, quer em ourivesaria. Tradicionalmente, considera-se o manuelino como uma evolução do estágio ulterior do estilo gótico, e por isso é também denominado como gótico português tardio ou flamejante. O estilo manuelino desenvolveu-se sobretudo no reinado de D. Manuel, embora já existisse no do seu antecessor, D. João II, e desenvolveu-se também a partir da arte mudéjar, tendo ainda, mais tarde, incorporado elementos do Renascimento italiano. Os motivos principais do manuelino (designação cunhada em 1842 por Francisco Adolfo Varnhagen) são a esfera armilar, a cruz da Ordem de Cristo e elementos naturalistas ou fantásticos. As três obras mais emblemáticas do manuelino são, provavelmente, o Mosteiro dos Jerónimos, a Torre de Belém e a janela do Capítulo, no Convento de Tomar, todas construções do século XVI.

7- A CALÇADA PORTUGUESA

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Calçada portuguesa no Largo do Chiado, em Lisboa.

Foi considerada recentemente por um colunista do Financial Times uma das principais atrações entre aquelas que figuram nas mais belas cidades do mundo. Os efeitos visuais são sempre interessantes e, em imagens vistas de cima, muitas vezes, de rara beleza. Exportámos esta arte para outros países, da China (Macau) ao Brasil, como se pode verificar, por exemplo, no Rio de Janeiro. Mas é em Portugal Continental e nas Ilhas que se encontram os exemplos mais cativantes. No Continente, a pedra usada é sempre o calcário, sobretudo preto e branco (mas também castanho, vermelho, azul, cinzento e amarelo) mais fácil de trabalhar que o (mais duro) basalto negro, usado nas Ilhas, sendo ali os desenhos formados em calcário branco. Os trabalhadores especializados na colocação deste tipo de calçada são denominados mestres calceteiros. Esta arte iniciou-se (nos moldes em que hoje a conhecemos) em meados do século XIX e, desde 1986, existe a Escola de Calceteiros da Câmara Municipal, situada na Quinta do Conde dos Arcos, em Lisboa.

8- A AZULEJARIA

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Casa do Alentejo, em Lisboa.

O que dizer do azulejo português? Essa expressão artística manifesta-se em todo o país e cobre todas as camadas da população, desde os artesãos dos lugares mais recônditos, aos mais consagrados artistas. Com cerca de 500 anos de produção, a sua origem é árabe. No início, os azulejos predominavam em igrejas e palácios, mas com o tempo popularizaram-se, sobretudo a partir do século XIX, e chegaram às fachadas e aos interiores dos edifícios residenciais. Embora a azulejaria se tenha desenvolvido noutros países (como a Espanha, a Itália e os Países Baixos), em Portugal a sua originalidade deriva sobretudo da relação estabelecida com outras artes, nomeadamente a pintura, a gravura e a arquitetura, e do diálogo que mantém com o espaço envolvente, iluminando-o e transformando-o globalmente. No Museu Nacional do Azulejo, situado no Convento da Madre de Deus, em Lisboa, é possível observar magníficos exemplares. Quem goste desta expressão artística deve também fazer uma visita à Quinta da Bacalhôa, em Azeitão, na Península de Setúbal.

9- O FADO

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Fado na Mesa de Frades.

Apesar do recente reconhecimento como Património Mundial pela UNESCO, o fado ainda é visto por muitos como uma expressão artística menor. Mas há fados e fados. E há o Fado. Este foi imortalizado por Amália Rodrigues e desde aí não foi mais possível ignorá-lo. Amália, sobretudo no período em que cantou poemas de grandes poetas portugueses dentro das composições de Alain Oulman, guindou o fado a uma das expressões artísticas mais genuínas, belas e nobres. As suas atuações eram absolutamente arrebatadoras e Amália guiava-as apenas com a sua espantosa intuição. Uma das características únicas do fado é a utilização da guitarra portuguesa (há a de Lisboa e a de Coimbra, com afinações diferentes), com sua sonoridade única e inequívoca. Neste instrumento se destacaria um intérprete e criador extraordinário chamado Carlos Paredes. E é ainda uma voz feminina que se destaca nos dias de hoje no fado: Mariza é a digna sucessora de Amália.

10- A POESIA

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Estátua de Fernando Pessoa, junto à “Brasileira”, em Lisboa.

No campo da escrita, Portugal não é apenas um país de poetas. Desde Fernão Mendes Pinto que existem ilustres contadores de histórias, narradores exímios, domadores lestos, que cavalgam as palavras. Eça de Queirós é um deles. Mas foram dois poetas que marcaram para sempre as letras portuguesas: Luís de Camões e Fernando Pessoa. Radicalmente diferentes, na vida e na obra, igualam-se e complementam-se no génio. Ambas as obras, separadas por um quarto de milénio, estão no topo do que alguma vez foi produzido, no género, por homens e mulheres. Ambos viveram durante algum tempo em Lisboa (e passaram por Alfama), e ambos são símbolos importantíssimos da cidade, e de toda a nação. Mas outros nomes de poetas poderíamos acrescentar – Camilo Pessanha, Cesário Verde, Florbela Espanca, Sophia de Melo Breyner, Ruy Belo, Herberto Helder, entre muitos, muitos outros.

11- OS PORTUGUESES

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Veraneantes em Cabanas, Algarve.

As generalizações são sempre abusivas, ainda mais quando se trata de povos e, neste campo, não há melhores ou piores. Existem vários tipos de portugueses, como existem vários tipos de subsolos: o transmontano é duro e rude como o granito; o alentejano maleável como a argila e macio como o xisto. A diversidade reina. Mas talvez seja possível encontrar alguma tipicidade num país com 850 anos. O português tem, como já vimos, uma costela fenícia, à qual devemos acrescentar as árabe, judaica e berbere. Ou seja, o arcaboiço é semita[6]. Por outro lado, uma característica básica do português é a miscigenação. Basta ver os negros no Brasil e os negros dos Estados Unidos para perceber como as colonizações portuguesa e inglesa foram diferentes. A expressão “Deus criou o branco e o preto, e o português criou o mulato” tem pleno cabimento. Talvez por isso o português se adapte rapidamente à vida longe de casa. E, nesta, ninguém sabe receber tão bem quanto ele, o típico hospitaleiro. Pena é que, a nível social, dependa tanto do Estado. O português raramente tem iniciativa e precisa de ser liderado. Este é um problema cultural, que justifica, em parte, o atraso do país.

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Notas:

[1] A capital portuguesa ficou conhecida como “Cidade Branca”, sobretudo, após o filme, com título homónimo, do realizador suiço Alain Tanner, rodado em Lisboa e estreado em 1983.

[2] Existe também um cão de água espanhol, mais pequeno que o português e, ao que parece, menos sociável com as crianças. Sobre o cão de água português ver artigo deste blogue: https://ilovealfama.com/tag/cao-dagua-portugues/.

[3] Ver artigo deste blogue: https://ilovealfama.com/2014/08/22/o-primeiro-imperio-maritimo-mundial/.

[4] 60% das rolhas de cortiça de todo o mundo são produzidas em Portugal. Seguem-se Espanha e Itália. Há ainda pequenas parcelas que são produzidas em Marrocos, Argélia e Tunísia. Por outro lado, nem todas as rolhas de cortiça têm suficiente qualidade. Isto é muito importante, dado que a oferta de rolhas de qualidade não é suficiente para a procura. Os preços, naturalmente, sobem (uma boa rolha de cortiça pode custar mais de um euro), até porque todo o processo de extração só pode ser feito por processos manuais.

Para se ter ideia da importância das rolhas de vinho em cortiça, recordemos um curiosíssimo episódio ocorrido em 2010. Nesse ano foram descobertas no Mar Báltico, em área finlandesa, mais de 160 garrafas de champanhe provenientes de um naufrágio. O vinho tinha cerca de 200 anos e estava em perfeito estado de conservação, pois a enorme pressão no fundo do mar fez com que as rolhas se mantivessem estanques. Foi decidido provar o vinho que se verificou estar em perfeitas condições (a quase total escuridão e a temperatura média de 4 graus também contribuíram para isso). E, sem surpresa, foi solicitado o apoio técnico à melhor corticeira do mundo – a portuguesa Amorim – que estudou o assunto e substituiu algumas das rolhas originais por rolhas naturais de alta qualidade.

[5] Para lá da excelência da nossa gastronomia, e a condizer com ela, há que referir também o gosto dos portugueses pela comida. Somos dos poucos povos que fazem questão de almoçar e jantar com refeições completas. E somos dos que mais gostam de ir ao restaurante. De acordo com Barry Hatton, um jornalista britânico radicado em Portugal (in “Os Portugueses”, Editora Clube do Autor, 9ª edição, nov. de 2013, p. 261), “um estudo de 2008 revelou que as famílias portuguesas gastam 9,5% do seu orçamento familiar a comer e a beber fora – mais do dobro da média da UE. Essa estatística ajuda a explicar a razão pela qual Portugal tem três vezes mais restaurantes per capita do que o resto da UE (um por 131 pessoas; a média da UE é de um por 374)”. Podemos – e devemos – ainda acrescentar à lista de produtos fabulosos “made in Portugal”, algo tão básico e importante como o sal. O sal português é de altíssima qualidade, sobretudo o da região do Algarve, nomeadamente de Tavira. A flor de sal é um produto que resulta das pequenas placas que flutuam na água do mar apresada nos talhos das salinas. Logo após a recolha é depositada em caixas perfuradas para escorrer e secar ao sol, até ser armazenada. É muito apreciada pelos melhores cozinheiros mundiais. Tanto o sal tradicional quanto a flor de sal de Tavira são recolhidos entre julho e setembro, e a Comissão Europeia atribuiu-lhes, em novembro de 2013, a Denominação de Origem Protegida – DOC. 

[6] Aqui discordamos abertamente de Teixeira de Pascoaes. Escreve ele no seu ensaio “Arte de “Ser Português” (Assírio & Alvim, 1ª edição, 1991, p. 58): “Portugal resiste, há oito séculos, ao poder absorvente de Castela. Demonstra este facto que, de todas as velhas Nacionalidades peninsulares, foi Portugal a dotada com mais força de carácter ou de raça. E este seu carácter, trabalhado depois pela Paisagem, resultou ou nasceu da mais perfeita e harmoniosa fusão que, neste canto da Ibéria, se fez do sangue ariano e semita. Estes dois sangues, equivalendo-se em energia transmissora de heranças, deram à Raça lusitana as suas próprias qualidades superiores, que, em vez de se contradizerem – pelo contrário – se combinaram amorosamente, unificando-se na bela criação da alma pátria”.

Ora bem, este é um retrato bastante romântico do português. Basta olhar à nossa volta para perceber isso – basta olhar para nós próprios. Embora haja, evidentemente, algum sangue ariano entre nós, somos, sem dúvida, semitas e, mais, (estudos genéticos comprovam-no), goste-se ou não, somos em larga medida africanos, com sangue ancestralmente negro. Claro que nos referimos a cruzamentos antigos. Somos dos povos mais miscigenados do mundo e estamos também presentes noutros povos, como, por exemplo, no Brasil. Atualmente, em Portugal, de acordo com um artigo publicado no Journal of Human Genetics, por Mark A. Jobling, Susan Adams, João Lavinha e outros (The Genetic Legacy of Religious Diversity and Intolerance: Paternal Lineages of Christians, Jews, and Muslims in the Iberia Peninsula), vol. 83, nº 6, 2008, pp 725-736, existem, no Norte do país, 64,7% de população de ascendência ibérica, 23,6% de ascendência judaica sefardita e 11,8% de ascendência berbere. Já no Sul de Portugal as proporções são 47,6% (ibéricos), 36,3% (sefarditas) e 16,1% (berberes).

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Voltaire e os Egípcios

voltaire (1)Voltaire, um homem tolerante, faz um retrato surpreendentemente intolerante (e muito curioso) sobre os egípcios no seu livro “Tratado sobre a Tolerância por Ocasião da Morte de Jean Calas”, de 1763. Numa extensa nota de rodapé (n. 52), Voltaire, na página 54 (Relógio D’Água, 2015), escreve o seguinte.

Desde que a história sucedeu à lenda, convenhamos que os egípcios só podem ser vistos como um povo tão cobarde como supersticioso. Com uma única batalha, Cambises conquista o Egito; Alexandre manda nele, sem ter travado um só combate, sem que uma única cidade tenha sequer ousado esperar por um cerco; os Ptolomeus conquistam-no sem qualquer dificuldade; César e Augusto subjugam-no com a mesma facilidade; numa única campanha, Omar conquista-o integralmente; os mamelucos, povo da Cólquida e dos arredores do monte Cáucaso, tomam-no depois de Omar; são eles, e não os egípcios, que desbarataram o exército de São Luís e fazem este rei prisioneiro. Por fim, os mamelucos, tendo-se tornado egípcios, ou seja, moles, covardes, desleixados, frívolos, como os naturais desse clima, caem em três meses sob o jugo de Selim I, que manda enforcar o seu sultão, e anexa essa província ao Império Turco, até que outros bárbaros o voltem a conquistar um desses dias.

Heródoto conta que, nos tempos fabulosos, um rei egípcio, chamado Sesóstris, saiu do seu país com o projeto expresso de conquistar o universo: é evidente que um projeto desses só é digno de um Picrochole ou de um Dom Quixote; e sem contar que o nome de Sesóstris não é absolutamente nada egípcio, podemos colocar esse tipo de acontecimentos, assim como todos os factos anteriores, ao nível das Mil e uma Noites. Não há nada de mais comum, entre todos os povos conquistados, que o inventar fábulas sobre a sua grandeza passada, como acontece, em certos países, em que algumas famílias miseráveis fazem ascender as suas origens a antigos soberanos. Os padres do Egito contaram a Heródoto que esse rei, que ele diz chamar-se Sesóstris, fora subjugar a Cólquida; era como se dissesse que um rei de França partira de Touraine para ir subjugar a Noruega.

Não é por se contarem todas essas histórias, em mil e mil volumes, que elas se tornam mais credíveis; é bem mais natural que tenham sido os habitantes robustos e ferozes do Cáucaso, os Colquídeos, e outros citas, que vieram tantas vezes devastar a Ásia, a descer até o Egito; e se os sacerdotes de Colcos levaram para as suas regiões a moda da circuncisão, isso não prova que tenham sido subjugados pelos egípcios. Diodoro de Sicília conta que todos os reis vencidos por Sesóstris vinham todos os anos do extremo dos seus reinos pagar-lhe tributo, e que Sesóstris se servia deles como cavalos de carroça, que ele os fazia atrelar ao seu carro, para ir ao templo. Essas histórias de Gargântua são todos os dias fielmente copiadas. Seguramente que esses reis eram muito bons para virem de tão longe fazer assim de cavalos.

Quanto às pirâmides e outras antiguidades, elas só demonstram o orgulho e o mau gosto dos príncipes do Egito, assim como a escravidão de um povo idiota, que usava os braços que tinha, e que eram o seu único bem, para satisfazer a grosseira ostentação dos seus donos. O governo desse povo, nessa mesma época tão gabada, parece absurdo e tirânico; diz-se que todas as terras pertenciam aos seus monarcas. Eram mesmo esses escravos que seriam capazes de conquistar o mundo!

A profunda ciência atribuída aos sacerdotes egípcios é ainda um desses enormes ridículos da História Antiga, ou seja, da fábula. Gente que pretendia que, no decurso de onze mil anos, o Sol se tinha levantado duas vezes, ao poente, e deitado duas vezes a nascente, recomeçando o seu curso, estava, sem dúvida, abaixo do autor do Almanaque de Liège. A religião desses padres que governavam o Estado não era comparável com a dos povos mais selvagens da América: sabemos que adoravam crocodilos, macacos, gatos, cebolas; hoje, em toda a terra, só o culto do grande lama se lhe pode talvez comparar em absurdo.

As suas artes não valiam mais do que a religião que tinham; não há uma única estátua egípcia da Antiguidade que seja sequer suportável, e tudo o que eles têm de bom foi feito em Alexandria, no tempo dos Ptolomeus e dos Césares, por artistas da Grécia: precisaram de um grego para aprenderem a geometria.

O ilustre Bossuet extasia-se com o mérito egípcio, no seu Discours sur l’ Histoire Universelle dirigido ao filho de Luís XIV. O discurso pode encantar um jovem príncipe, mas há poucos eruditos que se dêem por satisfeitos: é uma eloquentíssima declamação, mas um historiador deve ser mais filósofo que orador. Para terminar, não deve ver-se nestas reflexões mais do que uma conjetura: que outro nome dar a tudo o que se diz sobre a Antiguidade?

Voltaire, um parisiense cujo nome verdadeiro era François-Marie Arouet, esteve preso várias vezes por ter criticado o Poder. Espírito livre, refugiou-se em Inglaterra onde escreveu Cartas sobre os ingleses, comparando o sistema inglês, liberal, ao francês, clerical e absolutista. Avesso a todo o tipo de fanatismo, deixou-nos uma vastíssima obra. Sobre ele escreveu Jorge Luis Borges: “Descobriu e repudiou a obra de Shakespeare. Sentiu a vastidão dos impérios do Oriente e a vastidão do espaço astronómico. Colaborou na enciclopédia de Diderot. Deixou escrito que um testemunho da sagacidade italiana é ter feito com que o mais pequeno dos territórios da Europa, o Vaticano, fosse um dos mais poderosos. Entre tantas coisas, legou-nos uma história de Carlos XII, que tem muito de epopeia. A felicidade de escrever nunca o abandonou; a sua gratíssima obra compreende noventa e sete volumes. Quevedo troçou da inofensiva mitologia dos gregos; Voltaire, da cristã, da do seu tempo. Observou que abundam as igrejas dedicadas a virgens e a santos e ergueu uma capela a Deus, talvez a única na terra. No frontispício lê-se, de potência a potência, Deo erexit Voltaire. Está a umas léguas de Genebra, em Ferney. Sem ter intenção, preparou a Revolução Francesa, a qual teria abominado.”

Apesar de tudo, há questões que permanecem sem resposta. O que teria levado Voltaire a dizer tão mal do povo egípcio? E, mais do que isso, teria ele razão (muita, pouca, nenhuma) sobre o que escreveu, e aqui ficou transcrito?

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A nossa edição:

Voltaire, Tratado sobre a Tolerância, Editora Relógio d’Água, 1ª edição, Lisboa, 2015.

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Foto retirada de: konica.al

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Ranking dos 10 Políticos Portugueses Mais Detestáveis

1º- Cavaco Silva, “O Conspirador”.

2º José Sócrates, “O Engenhocas”.

3º Nuno Crato, “O Contabilista”.

4º Paulo Portas, “O Oportunista”.

5ª Raquel Varela, “A Anarquista”.

6ª Catarina Martins, “A Sonhadora”.

7º Marques Mendes, “O Concentrado”.

8º Rebelo de Sousa, “O Quadrilheiro”.

9º Poiares Maduro, “O Infrassumo”.

10º Passos Coelho, “O Liberal”.

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O último ranking data de 23 de outubro de 2014. Em relação ao mesmo, salienta-se a entrada de duas senhoras, bem para o meio da tabela, Raquel Varela, ” A Anarquista”, e Catarina Martins, “A Sonhadora”. Saídas de João Semedo, “O Inquisidor”, e Nuno Melo, “O Malandreco”. Cavaco, “O Conspirador”, mantém a liderança há sete rankings consecutivos, ou seja, desde há mais de três anos. Nuno Crato, “O Contabilista” entra no pódio. O ranking é atualizado de seis em seis meses.

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