Homo Interstaticus

Homo Biologicus, é o título do primeiro livro do médico francês Pier Vincenzo Piazza.

Todo o organismo tende para um estado de equilíbrio, o estado homeostático. Temos de respirar, comer e beber para manter esse equilíbrio, sendo que a auto-regulação do nosso organismo faz o resto. Há milhões de anos, quando os nossos ancestrais viviam num ambiente em que os recursos alimentares disponíveis eram escassos, a seleção natural, por uma questão de sobrevivência da espécie, “criou” o que hoje chamamos de homem “exostático”, aquele que, em oposição ao homem “endostático” que apenas se alimenta até ficar saciado, come mais do que necessita para repor o equilíbrio momentâneo, isto é, armazena comida no organismo prevenindo momentos futuros de escassez. Tal como beber sem ter sede ou respirar mais do que o necessário, também comer sem ter fome era, naquela período, penoso. Então, a seleção natural teve de “engendrar” uma estratégia para que o organismo dos nossos ancestrais armazenasse o bem mais escasso de que necessitava – comida – e assim nasceu o prazer.

A nossa espécie passou, a partir daí, a ter dois tipos de indivíduos, os “endostáticos” e os “exostáticos”. Estes últimos são os mais propícios a ter todo o tipo de prazeres, desde a vontade incontrolável de comer (daí a praga da obesidade), ao consumo de drogas, passando pelo vício do jogo e a apetência para desportos radicais. Para lá de um sistema endocabinoide mais operante próprio dos “exostáticos”, não existe nada de errado com estes indivíduos. O que acontece é que o processo de seleção natural tem uma escala de milhões de anos e o processo tecnológico humano de transformação dos recursos terrestres (nomeadamente a agricultura) tem uma escala muito menor. Ou seja, os nossos organismos preparados pela natureza para viverem em tempos de escassez, viram-se subitamente rodeados de abundância. Daí que haja tantos indivíduos obesos nas sociedades ocidentais: enquanto “exostáticos”, eles estão “programados” pela natureza para comerem mais do que necessitam e assim armazenarem energia, em prol da sobrevivência da espécie.

Esta dualidade endo/exos da nossa espécie reflete-se também nas visões que temos do mundo. O indivíduo “endostático” tende a ser conservador e o “exostático” progressista. As visões “endostática” e “exostática”, além de se oporem entre si, são limitativas e parciais, não nos permitindo enfrentar com eficácia os graves problemas que o mundo enfrenta, pois tal só é possível se compreendermos, afinal, por que existe essa oposição. Para isso, Piazza, o autor de Homo Biologicus, o livro onde tudo isto se esclarece, propõe um homem novo, com uma nova visão: o homo interstaticus. Com uma abordagem mais abrangente, este novo homem está pronto para sintetizar as visões “endostática” e “exostática”, e assim dar resposta aos problemas que a nossa espécie enfrenta. Por exemplo, não é mais possível, considerar os viciados em drogas (ou noutra coisa qualquer) como pessoas falhas de vontade, uma vez que a sua biologia os impele a ter esse comportamento. Ninguém se lembraria de considerar um esquizofrénico ou um autista como pessoas falhas vontade. Pois o mesmo deve acontecer com os viciados em drogas (das leves às duras, incluindo as mais disseminadas e legais como o álcool e, sobretudo, o tabaco) que, à luz dos conhecimentos científicos contemporâneos, tal como os que padecem de Alzheimer ou Parkinson, são pessoas doentes.

A abordagem aos problemas causados pelas drogas está pois condicionada pelo nosso dualismo. É por isso que a maioria de nós ainda pensa que as drogas consideradas “duras” são as mais perigosas, quando na realidade são as menos tóxicas e as que menos matam. Estas drogas são proibidas em quase todas as sociedades, ao contrário do álcool (proibido apenas em algumas sociedades) e do tabaco (cujo consumo não é proibido em nenhum país), que matam um número de indivíduos muitíssimo superior em todo o mundo, simplesmente por uma razão: porque um viciado em tabaco consegue perfeitamente trabalhar enquanto um viciado em heroína tem grande probabilidade de deixar de ser produtivo. Esta perspetiva utilitarista, que considera o viciado um fraco sem domínio de si mesmo, não nos permite abordar a raiz do problema.

Na verdade, essa visão do homem sem vontade, advém mais uma vez de uma perspetiva dualista ainda presente nas nossas sociedades: a de que somos compostos por duas partes, uma material (o corpo) e outra imaterial (a mente ou a alma). Piazza mostra-nos que tal coisa não existe: a nossa suposta “vontade” é fruto do que se passa no nosso cérebro que, apesar da sua incrível complexidade, é matéria. Somos, de facto, um animal exclusivamente biológico, um organismo com o cérebro proporcionalmente maior, mas ainda assim, um organismo como os outros na natureza. É com consciência das nossas limitações que devemos também abordar o futuro, repensar tudo, incluindo o percurso de guerras e destruição ambiental que vem caracterizando a atividade humana. É necessário um novo ponto de partida e a esperança reside numa abordagem mais abrangente e integral, à luz dos novos conhecimentos científicos sobre a biologia humana, a do homo interstaticus.

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A nossa edição:

Homo Biologicus, Pier Vincenzo Piazza, Bertrand Editora, Lisboa, 2020.

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Foto retirada de :

https://www.sudouest.fr/2019/09/29/piazza-la-biologie-et-la-vie

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