(…) Se começarmos a revolucionar a sociedade e a erradicar as suas tradições, não poderemos travar esse processo se e quando nos apetecer. Numa revolução tudo é questionado, incluindo os objetivos dos revolucionários bem intencionados – objetivos que se desenvolveram a partir – e que faziam necessariamente parte – da sociedade que a revolução destruiu.
Algumas pessoas dizem que não se importam com isso; que o seu maior desejo é limpar completamente a tela – criar uma tábula rasa social e recomeçar do zero, pintando nela um sistema social absolutamente novo. Mas não deveriam ficar admirados se descobrissem que, em destruindo a tradição, a civilização desaparecia com ela. Eles iriam verificar que a Humanidade havia regressado à situação em que Adão e Eva começaram – ou, usando uma linguagem menos bíblica, que haviam regressado ao estado animalesco. Tudo o que esses progressistas revolucionários poderiam então fazer seria recomeçar o lento processo da evolução humana (e desse modo chegar, daqui a alguns milhares de anos, talvez, ao novo período de capitalismo que os conduziria a uma outra revolução radical, seguida de mais um regresso à condição animalesca, e assim sucessivamente, para todo o sempre). Por outras palavras, não há qualquer razão concebível para que uma sociedade cujo conjunto tradicional de valores tenha sido destruído se converta, de motu proprio, numa sociedade melhor (a menos que acreditemos em milagres políticos, ou esperemos que, uma vez desmantelada a conspiração dos diabólicos capitalistas, a sociedade tenda naturalmente a tornar-se bela e boa).
Os marxistas, claro está, não admitirão isto. Mas a ideia marxista, ou seja, a ideia de que a revolução social nos conduzirá a um mundo melhor, só é compreensível à luz dos pressupostos historicistas do marxismo. Se soubermos, com base numa profecia histórica, qual deverá ser o resultado da revolução social, e se soubermos que esse resultado será tudo aquilo por que ansiamos, nesse caso, então – mas nesse caso apenas – poderemos considerar que a revolução, com todo o seu indizível sofrimento, constitui um meio para alcançar o objetivo de uma indizível felicidade. Mas, com a eliminação da doutrina historicista, a teoria da revolução torna-se totalmente insustentável.
A ideia de que a revolução terá por tarefa livrar-nos da conspiração capitalista e, com ela, da oposição à reforma social, está muito disseminada. Mas é uma ideia insustentável, ainda que suponhamos, por um momento, que tal conspiração exista. Com efeito, uma revolução tem tendência a substituir os velhos senhores por novos senhores, e quem garante que esses novos irão ser melhores? A teoria da revolução ignora o aspeto mais importante da vida social: que aquilo de que necessitamos não é tanto de boas pessoas, mas de boas instituições. Mesmo o melhor dos homens pode ser corrompido pelo poder. Mas as instituições que permitam aos governados exercer algum controlo efetivo sobre os governantes forçarão até os maus de entre estes últimos a agir de acordo com o que os primeiros consideram ser os seus interesses. Ou, para pôr a questão de outro modo: nós gostaríamos de ter bons governantes, mas a experiência histórica demonstra-nos que não é provável que o obtenhamos. E é por isso que é tão importante criar instituições que impeçam mesmo os maus governantes de causar demasiado dano.
Existem apenas duas espécies de instituições governamentais: aquelas que permitem uma mudança de governo sem derramamento de sangue e as que não o permitem. Mas se o governo não puder ser mudado sem derramamento de sangue, não poderá, na maioria dos casos, ser destituído de modo nenhum. Não precisamos de discutir palavras, ou pseudo-problemas como o significado verdadeiro ou essencial da palavra “democracia”. Podemos escolher as designações que quisermos para os dois tipos de governo. Eu, pessoalmente, prefiro chamar “democracia” ao tipo de governo que pode ser afastado sem violência, e “tirania” ao outro. Mas, tal como disse, não se trata aqui de uma discussão de palavras, mas sim de uma importante distinção entre dois tipos de instituições.
Os marxistas foram ensinados a pensar não em termos de instituições, mas de classes. As classes, todavia, nunca governam, não mais do que as nações. Os governantes são sempre pessoas determinadas. E, seja qual for a classe de que são oriundos, quando chegam ao governo passam a pertencer à classe dirigente.
Os marxistas, hoje em dia, não pensam em termos de instituições. Depositam a sua fé em determinadas personalidades, ou talvez no facto de determinadas pessoas terem pertencido anteriormente ao proletariado – uma consequência da sua fé na importância predominante das classes e das lealdades de classe. Os racionalistas, pelo contrário, mostram-se mais inclinados a confiar nas instituições para controlar as pessoas. É esta a principal diferença.
Conjeturas e Refutações, Karl Popper
(Tradução de Benedita Bettencourt)