Formação Económica do Brasil

celso furtado
Celso Furtado (1920-2004).

Trata-se de um clássico. Este livro é muito interessante para nós, portugueses, pois explica, bem melhor do que todos os livros de história que lemos até hoje, como e por que razão Portugal nunca foi o principal beneficiado com as riquezas da sua colónia americana. É muito comum ouvir alguém dizer, em Portugal, “nunca soubemos aproveitar as riquezas, sempre esbanjámos tudo, desde o ouro do Brasil”. Ora, Celso Furtado demonstra-nos, através deste magnífico livro, que essa história do esbanjamento tem muito pouco de verdadeira. O ouro apenas passava por Lisboa – o seu destino final era Londres, na Inglaterra.

É isso que iremos ver em seguida, pois optámos por nos debruçar, neste apontamento, exclusivamente sobre as duas principais riquezas brasileiras da época colonial: primeiro o açúcar e depois o ouro.

A – Quanto ao açúcar

1 – Foi devido à exploração da cana de açúcar que os portugueses puderam implantar-se no Brasil. Não fora essa exploração e jamais os portugueses conseguiriam ocupar o território e cobrir os enormes gastos com a defesa do mesmo – muito cobiçado, sobretudo pelos franceses. Foi um grande êxito essa empresa agrícola do século XVI – única na época.

2 –  O conhecimento técnico por parte dos portugueses – que já tinham experiência de produção de açúcar nas ilhas atlânticas – permitiu-lhes ocupar boa parte do território do nordeste brasileiro, que rapidamente foi aumentando, dado que a exploração da cana é extensiva. O negócio do açúcar expandiu-se enormemente, sobretudo a partir da segunda metade do século XVI, graças à colaboração dos flamengos, sobretudo, holandeses. Estes recolhiam o produto em Lisboa, refinavam-no e faziam a distribuição por toda a Europa, particularmente o Báltico, a França e a Inglaterra. Os holandeses eram grandes comerciantes e tinham o tipo de organização ideal para distribuir um produto novo, como o açúcar, pela Europa.  A contribuição dos holandeses não se limitou, porém, à refinação e comercialização do açúcar. Eles financiaram a instalação de engenhos produtivos no Brasil e também a importação de mão de obra escrava. Além disso, parte do transporte do produto para Lisboa era também realizado por eles. Logicamente, obtinham em todo este processo bons lucros, e o negócio acabava por ser mais deles do que dos portugueses.

3 – Este negócio foi praticamente um monopólio, durante muitos anos, porque a outra potência colonizadora, a Espanha, estava concentrada na extração de metais preciosos. Isso provocou um enorme poder económico no estado espanhol, que cresceu desmesuradamente, o que provocou um enorme aumento dos gastos públicos e privados subsidiados pelo governo. Consequência: inflação, que chegou a propagar-se por toda a Europa, traduzida em persistente déficit da balança comercial, via aumento das importações. Assim, os metais preciosos recebidos da América provocavam um fluxo de importação de efeitos negativos sobre a produção interna, altamente estimulante para as demais economias europeias. A decadência económica de Espanha prejudicou enormemente suas colónias americanas e nenhuma exploração de envergadura, fora da mineira, chegou a ser encetada. As exportações agrícolas de toda a imensa região não alcançaram importância significativa durante os três séculos do império espanhol. Um factor importante do êxito da colonização agrícola portuguesa foi, assim, a decadência da economia espanhola, que se deveu principalmente à descoberta precoce dos metais preciosos.

4 – O sistema, montado pelos colonos portugueses e pelos comerciantes e investidores holandeses, desarticular-se-ia quando Portugal perdeu sua independência sendo integrado na Espanha. Os holandeses que controlavam todo o comércio europeu por mar, incluindo o do açúcar, logo se envolvem em guerra com a Espanha, vindo a ocupar (por um quarto de século) a região produtora de açúcar, no Brasil. Aqui os holandeses adquiririam  os conhecimentos técnicos e organizacionais da indústria, que mais tarde constituiriam a base para a implantação e desenvolvimento de uma indústria concorrente na região do Caribe. Estava perdido o monopólio de que beneficiaram o portugueses e holandeses nos três quartos de século anteriores. Na segunda metade do século XVII os preços do açúcar reduzir-se-iam a metade e permaneceriam baixos durante todo o século seguinte. Perdeu-se o monopólio, mas a produção de cana manteve-se no Brasil até hoje.

B – Quanto ao ouro

1 – A corrida ao ouro brasileiro começou no início do século XVIII e proporcionou o primeiro grande fluxo de imigração de origem europeia, nomeadamente portuguesa, para o Brasil. Era possível pessoas de recursos limitados se aventurarem na mineração, pois aqui não se exploravam grandes minas – como ocorria com a prata no Perú e no México – mas o ouro de aluvião, que se encontrava depositado no fundo dos rios. Calcula-se que a população de origem europeia (e das ilhas atlânticas) tenha decuplicado no decorrer do século da mineração, no Brasil. A exportação de ouro cresceu em toda a primeira metade do século XVIII e alcançou seu ponto máximo em torno de 1760, quando atingiu o valor de 2,5 milhões de libras. A partir daí decresceu e, por volta de 1780, já não alcançava 1 milhão de libras.

2 – Depois da restauração da independência, Portugal encontrava-se numa situação muito difícil. Havia perdido os melhores entrepostos orientais e a melhor parte da colónia americana havia sido ocupada pelos holandeses. A situação interna era muito complicada também, com os espanhóis, durante mais de um quarto de século, não reconhecendo a independência. Portugal compreendeu que para sobreviver como metrópole colonial tinha de se aliar a uma grande potência, o que significaria necessariamente alienar parte da sua soberania. Tentou em primeiro lugar aliar-se aos holandeses, inclusive propondo a divisão do Brasil, mas a Holanda rejeitou a proposta, talvez demasiado confiante no seu poder marítimo. A solução acabaria de vir pelo lado dos ingleses, através de sucessivos acordos (1642-54-61) que estruturaram uma aliança que marcaria profundamente a vida política e económica de Portugal e do Brasil durante os dois séculos seguintes.

3 – Assim, tal como não se poderia explicar o grande êxito da empresa açucareira sem ter em conta a cooperação comercial-financeira com os holandeses, também só pode explicar-se a persistência do pequeno e empobrecido reino português como grande potência colonial na segunda metade do século XVII, bem como sua recuperação no século XVIII – durante o qual manteve sem disputas a colónia mais lucrativa da época –  se tivermos em conta a situação especial de semi-dependência que aceitou como forma de soberania. Portugal fazia concessões económicas e a Inglaterra pagava com promessas ou garantias políticas. Os ingleses conseguiam o privilégio de manter comerciantes residentes em praticamente todas as praças portuguesas e Portugal conseguia, através de uma cláusula secreta do acordo de 1661, que os ingleses se comprometessem a defender as colónias portuguesas contra quaisquer inimigos.

4 – Mas o acordo que haveria de ser determinante sobre o percurso do ouro foi o acordo comercial de 1703 (Tratado de Methuen). Portugal abria o seu mercado às lãs inglesas e a Inglaterra dava preferência aos vinhos portugueses. O acordo foi ruinoso para Portugal, que se viu obrigado a transferir para Inglaterra o impulso dinâmico criado pela produção aurífera no Brasil para pagar o deficit comercial. Em contrapartida, porém, conseguia manter uma sólida posição política, consolidando definitivamente seu território americano.O mesmo agente inglês que negociou o acordo comercial de 1703 (John Methuen) também tratou das condições que garantiriam a Portugal uma sólida posição na conferência de Utrecht. Aí conseguiu o governo lusitano que a França renunciasse a quaisquer reclamações sobre a foz do Amazonas e a quaisquer direitos de navegação nesse rio. Igualmente nessa conferência Portugal conseguiu da Espanha o reconhecimento de seus direitos sobre Colónia do Sacramento. Ambos os acordos tiveram a garantia direta da Inglaterra.

5 – Assim, enquanto a economia do ouro brasileiro proporcionou a Portugal apenas uma aparência de riqueza, trouxe à Inglaterra um forte estímulo ao desenvolvimento manufactureiro (e o oposto a Portugal), uma grande flexibilidade à capacidade de importar, permitindo uma concentração de reservas que fizeram do sistema bancário inglês o principal centro  financeiro da Europa, que se transferiu de Amsterdam para Londres. Recebendo a maior parte do ouro que então se produzia no mundo, os bancos ingleses reforçaram a sua posição. Segundo fontes inglesas, as entradas de ouro brasileiro em Londres chegaram a atingir as 50 mil libras por semana, permitindo uma acumulação substancial de reservas metálicas, sem as quais a Grã-Bretanha dificilmente poderia ter atravessado as guerras napoleónicas.

******************************

A nossa edição:

Celso Furtado, Formação Econômica do Brasil, Editora das Letras, 24ª edição, São Paulo, 2011.

******************************

Foto retirada de jornalggn.com.br

******************************

A Ideia de Justiça

Sen
Amartya Sen

A edição original é de 2009, pela Penguin Books, Grã-Bretanha, e a edição que temos em mãos é de 2012, Companhia das Letras, Brasil.

Nesta categoria (“Livros”), a nossa ideia é mais de divulgação do que de crítica. Entretanto, eis a nossa síntese de “A Ideia de Justiça” em seis linhas-mestras.

1- A ideia de justiça deve ser sobretudo uma prática;

2- Os comportamentos são mais importantes do que instituições e regras;

3-  A uma estrutura “transcendental” devemos opor uma estrutura comparativa;

4- A uma perspetiva paroquial devemos opor uma visão universalista;

5- O IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) é mais importante que o PIB (Produto Interno Bruto) para o desenvolvimento de um país;

6- É muito importante trabalhar as “capacidades” – em vez de basearmos a realização do indivíduo no rendimento, devemos baseá-la na perspetiva de lhe proporcionar autonomia, para que ele tenha oportunidade e liberdade de optar por empreendimentos que o realizem enquanto ser humano e não apenas enquanto assalariado/consumidor.

Além disto (o livro é todo baseado em dicotomias, que revelam duas visões opostas sobre a justiça), os exemplos históricos mencionados por Sen são muito interessantes, sobretudo a abordagem à cultura oriental, nomeadamente a indiana, de onde Amartya Sen é oriundo. Estamos de acordo com Sen – pouco importa ter leis muito avançadas se não tivermos pessoas educadas e esclarecidas para as pôr em prática. A ação (praxis) é que importa ou, por outras (e nossas) palavras, mais vale minimizar efetivamente a injustiça, do que maximizar uma justiça que fica apenas no papel.

E daqui partima para uma crítica simples, que é, afinal, apenas um reparo. É que sobre este assunto – acho nós- é impossível ignorar um filósofo como Karl Popper. (É curioso notar que Amartya Sen refere ter sido primeiro matemático, depois físico, economista e, por último, filósofo). O tema da justiça é caríssimo, como não poderia deixar de ser, a Popper. Não interessa agora para o caso o que este autor pensa sobre o assunto, mas, pode dizer-se, está, substancialmente, em linha com a visão de Sen.

Neste livro, Sen cita cerca de 700 autores (além de 450 nos “Agradecimentos”), mas nem uma única vez Popper. No meio de tanta erudição, será Popper um filósofo desconhecido? Ou, sendo conhecido, apenas desprezado?

******************************

A nossa edição:

Amartya Sen, A Ideia de Justiça, Editora Companhia das Letras, 1ª edição, São Paulo, 2012.

******************************

Foto retirada de www.scoopwhoop.com

******************************

A Mitologia

mythology
Edições de “Mitologia”, de Edith Hamilton.

Livro de Edith Hamilton (1867-1963), publicado em 1942. A versão portuguesa que tenho em mãos é de 1983, 3ª edição, publicada pela Dom Quixote.

Pode pensar-se, à primeira vista, que se trata de um livro antigo, mas é preciso ter em conta que os temas tratados datam de há mais de três mil anos até, sensivelmente, ao século II da nossa era.

Em primeiro lugar, releva desde logo, após a leitura deste belíssimo livro, a contribuição que os gregos – esse povo hoje tão massacrado – deram para que a humanidade encarasse o mundo e as divindades de uma forma simultaneamente mais racional, bela, pacífica, natural, rica e até divertida. Com os gregos, os deuses foram humanizados. Tinham qualidades e defeitos como nós. Zeus, por exemplo, o principal deus do Olimpo, era bastante mulherengo e Hera, sua mulher, vingava-se castigando as mulheres por quem Zeus se apaixonava. Os gregos racionalizaram o mundo!

A própria representação física dos deuses se baseava no que era observável, por exemplo, nos jogos: os corpos ágeis e harmoniosos dos jovens em competição. O escultor sentia que a sua imaginação não poderia conceber algo mais belo – e assim esculpiu a estátua de Apolo. O escritor, por seu turno, visualizou o deus como “um jovem na idade em que se é mais belo” (Homero). “Os artistas e poetas gregos compreenderam quão esplêndido, escorreito, rápido e forte o homem podia ser. O homem era a realização da sua busca de beleza. Toda a arte e todo o pensamento da Grécia se concentraram no ser humano”.

Esta moldagem dos deuses à imagem humana contrasta absolutamente com a abordagem anterior, onde os deuses não tinham qualquer semelhança com os seres do mundo real. No Egito ou na Mesopotâmia, os deuses eram representados como figuras inumanas, ferozes, colossais, aterradoras. Algo radicalmente diferente de qualquer estátua grega de um deus, perfeita e natural.

Em segundo lugar, pois claro, os mitos. Não há mitologia sem eles nem há mitos sem heróis. Perseu, Teseu, Hércules, Aquiles, Odisseu e Eneias são os mais conhecidos. No livro são narrados, pela autora, todos os mitos mais importantes e outros secundários, obviamente, citando as fontes e baseando-se nelas – fontes que mais não são do que os escritos dos grandes poetas gregos e romanos da Antiguidade, embora Hamilton aborde também, no capítulo final, a mitologia nórdica. Como é óbvio, não cabe aqui uma transcrição dos mitos. Mas deixarei, no final, o mito sobre a criação do mundo e da humanidade. Entretanto, apenas mais dois apontamentos, quiçá, úteis, o primeiro sobre  os principais deuses e o segundo sobre os principais escritores clássicos.

Os deuses viviam no Olimpo. A localização do Olimpo é incerta, mas sabe-se que tinha um portão de nuvens e que era guardado pelas quatro estações do ano. Para lá dele os deuses comiam, bebiam, davam grandes festins e viviam na paz e felicidade absolutas. Os doze olimpianos constituíam uma família divina. Eram eles:

1) Zeus (Júpiter), era o chefe; depois, seus dois irmãos, 2) Posídon (Neptuno) e 3) Hades, também chamado Plutão; 4) Héstia (Véstia), irmã dos três; 5) Hera (Juno), mulher de Zeus e 6) Ares (Marte), filho de ambos; os filhos de Zeus: 7) Atena (Minerva); 8) Apolo; 9) Afrodite (Vénus); 10) Hermes (Mercúrio) e 11) Artemisa (Diana); e, finalmente, o filho de Hera, 12) Hefesto (Vulcano), referido, por vezes, como sendo também filho de Zeus.

Os principais escritores clássicos gregos foram Homero (séc X a.C.), que escreveu a Íliada” e a “Odisseia”; Hesíodo (séc. VIII a.C.), que escreveu “Os Trabalhos e os Dias” e “Teogonia”; Píndaro (séc. VI a.C.); Ésquilo, Sófocles e Eurípedes (os 3 poetas trágicos, que terão vivido por volta do séc. V a.C.); Heródoto (primeiro historiador da Europa, que foi ainda contemporâneo de Platão); Apolónio de Rodes, Teócrito, Bíon e Mosco  (séc. III a.C., são designados poetas alexandrinos, dado que o centro da literatura grega se transferira para Alexandria); Apolodoro, Luciano e Pansânias (já nos séculos I e II da nossa era).

Os escritores gregos foram os melhores guias para o conhecimento da mitologia, dado que acreditavam no que escreviam. Já para os romanos, os mitos eram algo muito remoto, meras sombras. Mesmo assim, aqui fica o nome dos dois mais importantes. Todos eles viveram um pouco antes ou um pouco depois de Cristo. O mais relevante de todos eles foi Virgílio, que deu vida às personagens mitológicas como ninguém conseguira desde os tragediógrafos gregos e outro que merece referência é Horácio.

A CRIAÇÃO DO MUNDO E DA HUMANIDADE

Hesíodo (séc. VIII a. C.) é a autoridade máxima quanto a mitos relativos à origem do universo. Este mito conta também com uma pequena colaboração de Ésquilo (séc. V a. C.)

No princípio era o Caos, o abismo vasto e imenso mergulhado na escuridão de breu. A noite era filha do Caos, tal como Érebo, a profundidade impenetrável onde a morte habita. Em todo o Universo não havia mais nada, tudo era escuro, vazio, silencioso, infinito. E foi então que a Noite depôs um ovo trazido pelo vento, e da escuridão e da morte nasceu o Amor,e com ele a ordem e a beleza, que começaram a abolir a confusão cega.

O Amor deu origem à Luz e ao seu companheiro, o Dia radioso – e então surgiu a Terra e logo também o Céu. Os primeiros seres com uma certa aparência de vida foram os monstros filhos da Mãe Terra (Gea) e do Pai Céu (Urano). Tinham a força avassaladora do sismo, do furacão e do vulcão. Três deles tinham uma força descomunal, cada um com cem mãos e cinquenta cabeças. A outros três foi dado o nome de Cíclopes (olhos-rodas) porque cada um tinha no meio da testa um enorme olho redondo, como uma roda. Por fim surgiram os Titãs, em número considerável; não eram porém inferiores aos seres que os tinham precedido, nem em dimensões nem em força, apenas não se dedicavam à destruição por prazer e alguns até eram benéficos: na verdade, um deles salvaria a humanidade da destruição que a ameaçava.

O Céu odiava os seres que tinham cem mãos e cinquenta cabeças, embora fossem seus filhos, e quando eles nasceram prendeu-os num lugar secreto, no interior da terra. Aos Cíclopes e aos Titãs, porém, deixou-os em liberdade. A Terra enraivecida com os maus tratos que ele dava aos outros filhos apelou para que estes a ajudassem. Só um deles, o titã Crono, teve a audácia de o fazer. Esperou que o pai aparecesse e feriu-o terrivelmente. Os Gigantes, a quarta raça  de monstros, brotaram do seu sangue, bem como as Erínias, que estavam encarregadas de perseguir e punir os pecadores. Chamavam-lhes “aquelas que caminham na escuridão”; tinham um aspeto horrível: em vez de cabelo serpentes contorcidas e os olhos derramavam lágrimas de sangue. Todos os monstros acabaram por ser afastados da Terra, com exceção das Erínias – enquanto houvesse pecado no mundo elas não poderiam ser banidas da Terra.

Desde esses tempos imemoriais e durante eras incontáveis, Crono (Saturno, para os romanos) foi senhor do Universo, com a rainha-irmã Reia (Ops, em latim). Um dos seus filhos, porém, o futuro senhor dos céus e da Terra –  Zeus – revoltou-se também contra a autoridade paterna; tinha boas razões para o fazer, pois Crono, sabendo que um dos filhos o havia de destronar, pensou opor-se ao destino, engolindo-os a todos à medida que iam nascendo. Mas quando Zeus nasceu, o sexto filho de Reia, ela conseguiu levá-lo em segredo para Creta e dar ao marido um pedregulho enorme, envolto em faixas e em cueiros, que ele engoliu imediatamente, supondo tratar-se do filho. Mais tarde Zeus, com a ajuda da avó, a Terra, forçou o pai a vomitar a pedra juntamente com os outros cinco filhos.

Seguiu-se uma guerra terrível entre Crono, auxiliado pelos seus irmão titãs, e Zeus, secundado pelos seus cinco irmãos e irmãs – uma guerra que quase aniquilou o Universo. Os Titãs foram vencidos, em parte porque Zeus libertou da prisão os monstros de cem mãos, que lutaram a seu lado com as suas armas irresistíveis – o trovão, o raio e o sismo – e, por outro lado, porque um dos filhos do titã Japeto, que se chamava Prometeu e era muito sábio, tomou o seu partido. Zeus castigou terrivelmente seus inimigos, amarrando-os com duros grilhões sob a Terra, no Tártaro. Atlas, irmão de Prometeu, teve ainda pior castigo. Foi condenado a suportar às costas para sempre o peso do mundo e a abóbada do Céu.

Mas a vitória de Zeus não fora ainda definitiva. A Terra gerou ainda o seu último rebento e também o mais terrível – Tífon, um monstro chamejante de cem cabeças. Mas Zeus já tinha por essa altura, sob seu domínio o trovão e o raio, que se tornaram as suas armas, pois ninguém mais se servia delas, e derrotou Tífon. Posteriormente, foi efetuada ainda outra tentativa para derrubar Zeus – a revolta dos Gigantes. Mas os deuses eram já muito fortes e além disso contavam com a ajuda de Hércules, um dos filhos de Zeus. Os Gigantes foram derrotados, resvalaram ululantes para o Tártaro e a vitória dos poderes radiosos do Céu sobre as forças brutais da Terra foi total e definitiva. Zeus e seus irmãos e irmãs ficaram a governar, senhores de tudo e de todos.

O mundo, liberto de monstros, estava pronto a acolher a humanidade. A Terra era agora um local pacífico. Em seu redor corria o grande rio Oceano, nunca perturbado por qualquer vento ou tempestade. Nas margens do Oceano ficava também a morada dos mortos bem-aventurados. Aqueles que em vida se mantivessem puros de todos os pecados viriam para esta região quando deixassem a Terra. Tudo estava determinado. Era tempo de o homem ser criado.

A tarefa foi confiada pelos deuses a Prometeu, o titã que tomara o partido de Zeus, durante a guerra com os Titãs, e a seu irmão Epimeteu. Prometeu, cujo nome significa “previsão”, era muito prudente, mais ainda que os próprios deuses, mas Epimeteu, que significa “ideia que surge depois da ação”, era um cabeça no ar, que seguia invariavelmente o primeiro impulso e só depois mudava de ideias. Assim aconteceu neste caso. Antes de criar o homem, concedeu aos animais todos os melhores dons – a força e a rapidez, a coragem e a astúcia arguta, os pelos e as penas, as asas e as conchas, entre outros – de tal modo que nada restou para o ser humano, que se viu assim sem quaisquer meios de proteção ou atributos que os equiparassem aos irracionais. Só mais tarde, como sempre, Epimeteu se arrependeu e foi pedir auxílio ao irmão. Prometeu, então, ponderou com cuidado como tornar a humanidade superior. Dotou o homem com forma mais nobre que os outros animais, com a verticalidade própria dos deuses; depois, foi ao Céu, junto do Sol, onde acendeu uma tocha que trouxe para a Terra, ficando o fogo a ser para o homem um meio de proteção incomparavelmente melhor, relativamente aos outros animais.

Durante um longo período, por toda a feliz idade de Oiro, com certeza, só existiram homens à superfície da Terra, não havia mulheres. Zeus criou-as apenas respondendo com o seu rancor a todos os cuidados que Prometeu tivera para com o homem. Prometeu não se limitara a roubar o fogo para o dar ao homem; proporcionara-lhe também o modo de ele ficar sempre com a melhor parte de todo o animal sacrificado, deixando a pior para os deuses. Matara e desmanchara um boi enorme e metera dentro da pele a melhor carne, disfarçando tudo, depois, com um montão de tripas por cima. Ao lado desse colocara outro volume com todos os ossos empilhados astutamente e cobertos de gordura reluzente e pediu, então, a Zeus que escolhesse um deles. Zeus preferiu o segundo, mas ao ver os ossos dispostos ardilosamente, enfureceu-se. A verdade é que já fizera a sua escolha e não podia voltar atrás.

O Pai dos homens e dos deuses não se podia conformar com tamanha desconsideração e jurou vingar-se, primeiro na humanidade e depois em Prometeu. Zeus criou então algo de muito perigoso, algo que deleitava os olhos pela suavidade e pela beleza, com o aspeto de uma donzela tímida a quem todos os deuses concederam dons: vestes prateadas e um véu todo bordado, uma autêntica maravilha, belas grinaldas de frescas flores e uma coroa de oiro. A donzela irradiava beleza. Chamaram-na Pandora, que significa “a dávida de todos”; depois de terminada esta bela calamidade, Zeus mostrou-a a todos e, ao contemplarem-na, tanto os deuses como os homens ficaram extasiados. É dela – a primeira mulher – que descendem todas as mulheres, que são a desgraça dos homens e têm a tendência para praticar o mal.

Uma outra versão sobre o aparecimento de Pandora diz-nos que a fonte originária de todas as desgraças não foi propriamente a sua natureza perversa, mas apenas a sua curiosidade. Os deuses ter-lhe-iam oferecido também uma caixa em que haviam guardado algo de altamente nocivo, proibindo-a de a abrir. Depois mandaram Pandora para junto de Epitemeu, que a aceitou de bom grado, embora Prometeu o tivesse prevenido para que nunca aceitasse nada da parte de Zeus. Só depois de a ter recebido, porém, quando esse ser perigoso, a mulher, já lhe pertencia, é que ele compreendeu o conselho do irmão, pois Pandora, como todas as mulheres, tinha uma curiosidade incontível – tinha de saber o que estava dentro da caixa e, um dia, levantou a tampa. Da caixa brotaram, em torrentes, inúmeras pragas, tristezas e males para a humanidade. Aterrorizada, Pandora apressou-se a fechar a caixa – mas infelizmente já era tarde de mais. Apesar de tudo, algo de bom lá ficou dentro – a Esperança – o único bem que o cofre continha entre tantos males, e esse  ainda hoje continua a ser o único conforto da humanidade nos momentos de infortúnio.

Depois de ter castigado os homens com essa dávida, a atenção de Zeus concentrou-se sobre o grande pecador. O novo senhor dos deuses tinha uma grande dívida de gratidão para com Prometeu, por este o ter auxiliado na luta contra os Titãs, mas Zeus tinha-se esquecido por completo. Mandou os seus criados Força e Violência capturar Prometeu e levá-lo para o Cáucaso. Prenderam-no a uma rocha proeminente e escarpada com cadeado adamantino que ninguém podia quebrar, longe de tudo e todos.

Não era apenas para o castigar que Zeus o submetia a essa tortura; a verdade é que tencionava também coagi-lo a desvendar um segredo da máxima importância para o senhor do Olimpo – Zeus sabia que o Destino, que preside à origem de tudo o que acontece, determinara que um dia ele havia de ter um filho que o destronaria e desalojaria os deuses do céu. Só Prometeu, contudo, estava de posse do nome da mulher que o daria à luz. Por isso, o Deus dos Deuses aproveitou esse momento em que sua vítima ali amarrada à rocha atingira o auge da agonia e mandou que o seu mensageiro Hermes fosse junto dele para o obrigar a falar. Mas Prometeu não cedeu. O seu corpo continuava amarrado mas seu espírito era livre. Todo aquele sofrimento era injusto, pois tinha consciência de que cumprira seu dever em relação a Zeus e que fizera bem em apiedar-se dos pobres mortais desamparados. Hermes voltou várias vezes, mas Prometeu manteve-se firme.

Passaram várias gerações até que, não se sabe bem como (isso não é explicado em lado nenhum) Prometeu foi libertado. Há uma estranha história sobre um centauro, Quíron, que embora imortal se dispôs a morrer por ele, desejo que lhe foi permitido realizar. Zeus parece que aceitou de bom grado a substituição da vítima. Outra narrativa conta que Hércules libertou Prometeu dos seus grilhões, com o consentimento de Zeus, embora não saibamos por que razão este terá mudado de ideias nem tão pouco se Prometeu, uma vez em liberdade, revelou ou não o segredo. No entanto, uma coisa é certa: fosse qual fosse o meio por que se reconciliaram, não foi Prometeu, com certeza, quem cedeu – o seu nome tem-se mantido, através dos tempos, desde a Grécia antiga aos nosso dias, como o símbolo de rebelde por excelência, que se insurge contra a injustiça e a autoridade do Poder.

******************************

Foto retirada de avidreader25.blogspot.pt

******************************

A nossa edição:

Edith Hamilton, A Mitologia, Dom Quixote, 3ª edição, Lisboa, 1983.

******************************

Gene Egoísta

Dawkins (1)
Richard Dawkins

A sociobiologia é uma ciência com cada vez mais adeptos, embora também com muitos detratores. Foi fundada por Edward Osborne Wilson, mas a sua popularidade cresceu imenso com a publicação do livro “O Gene Egoísta”, de Richard Dawkins, em 1976. Lemos esse livro há uns longos anos, mas como o seu conteúdo é bastante polémico e, para muito boa gente, chocante, aqui ficam umas notas muito simples que descobrimos recentemente num caderninho.

Tese Fundamental de Dawkins: Toda a evolução tem por base um comportamento egoísta por parte do gene – a unidade básica de seleção natural ou “unidade de hereditariedade”. Assim, o indivíduo (qualquer organismo) deixa de ser a unidade de seleção natural, dado que os organismos nascem, vivem e morrem, e passa a ser o gene essa unidade, uma vez que o gene se perpetua, construindo organismos, que “usa” para passar de geração em geração.

1ª sub-tese: Todos os organismos vivos foram criados pelos genes. São autênticas “máquinas de sobrevivência”. Nesse sentido, nós, seres humanos, não passamos de “robots desajeitados”, se não pré-determinados, pelo menos pré-programados. Só existimos para preservação dos genes.

2ª sub-tese: Como já vimos da tese fundamental, a unidade básica (e prática) de seleção natural é o gene – “um fragmento de cromossoma suficientemente pequeno para durar muito tempo” – isto porque o gene reúne três condições essenciais: longevidade, fecundidade e fidelidade da cópia.

3ª sub-tese: O comportamento humano é comandado remotamente pelos genes. São estes que ditam a forma pela qual são construídas as “máquinas de sobrevivência” e os seus cérebros.

4ª sub-tese: Compartilhamos os nossos genes com os parentes mais próximos. Quanto maior for a proximidade, maior será a partilha. Comportamentos supostamente altruístas mais não são que comportamentos (egoístas) programados para a sobrevivência dos genes dentro de um certo grupo. Chama-se a isto “seleção de parentesco”. A própria dedicação aos filhos está aqui incluída.

5ª sub-tese: Para além da tentativa de perpetuação do gene egoísta, este tenta também diminuir as hipóteses dos genes rivais sobreviverem. Há uma verdadeira competição entre os genes. De acordo com Dawkins, isto pode observar-se abundantemente através do comportamento animal.

******************************

A nossa edição:

Richard Dawkins, O Gene Egoísta, Editora Gradiva, 1ª edição, Lisboa. 1989.

******************************