Uma viagem pode ser mais ou menos interessante, sendo que o mais ou menos, depende em larga medida de ti. Indaga, observa, busca, reflete.

- Embora já tivéssemos estado várias vezes em Roma, nunca tínhamos entrado na belíssima igreja de Santa Maria da Vitória. Em trânsito para Civitavecchia, pouco mais deu para ver. O objetivo era admirar a escultura de Bernini, O Êxtase de Santa Teresa, que é, de facto, sublime. Esta zona, bem próxima da Praça da República e da estação ferroviária Termini, contém várias igrejas e basílicas, pelo que, nas curtas duas horas que estivemos na cidade, pudemos ainda visitar a igreja de São Bernardo (San Bernardo Alle Terme) e a Basílica de Santa Maria dos Anjos e dos Mártires (Santa Maria degli Angeli e dei Martiri), ambas arquitetonicamente grandiosas.
- Em Civitavecchia comemos uma pizza simples (Margheritta), mas excelente. Vinha a ferver e, a acompanhá-la, uma cerveja gelada. Era sexta-feira à noite, e as praças e bares da cidade estavam bastante movimentados. Civitavecchia é uma cidade interessante, com boa qualidade de vida e muito turismo. No dia seguinte, sábado, embarcámos no MSC Orchestra, que nos acolheria na longa viagem até Durban, na África do Sul.
- Chania, em Creta, não frustrou as nossas expectativas. A zona do porto veneziano é a mais charmosa da cidade: uma baía onde o mar praticamente beija as casas — quase todas restaurantes com esplanadas, onde se come bons peixe e marisco — e, por trás, ruelas coloridas e casas com sacadas floridas (vimos umas, de madeira, muito interessantes), onde uma mesa e duas cadeiras convidam a desfrutar… a dois. Claro que Chania vive sobretudo do turismo que, mesmo nesta altura do ano, face ao clima favorável, é intenso. Mas, se aqui a temperatura estava muito agradável, ela iria subir ainda, à medida que nos deslocávamos para sudeste, em direção ao Canal do Suez.
- Agora mesmo vi passar uma ave, um passarinho isolado, que cruzou o navio de bombordo para estibordo. Não era uma gaivota, nem um atobá ou um albatroz; era muito mais pequeno. Haverá alguma espécie de aves que possa viver saltitando de navio em navio? Talvez pudesse haver. Num navio sempre há comida, espaço para dormir e provavelmente algum lugar seguro para construir um ninho.

- Mediterrâneo, o centro da Terra, foi aqui que tudo começou. Devido ao seu posicionamento, o clima, aqui, é excecional, com pequenas amostras espalhadas um pouco pelo globo: pequenas partes da Austrália, da Califórnia, da África do Sul e do Chile. O clima, naturalmente, está ligado ao que o solo dá, ou, melhor dizendo, é o solo que se liga ao clima. Por isso a região mediterrânica é tão privilegiada. Aqui encontramos os cereais indicados para produzir o melhor pão, as videiras e oliveiras que originam os melhores vinhos e óleos; e muitos outros frutos típicos, como o figo, o limão e a laranja, a romã, a alfarroba e o tomate. Da melhor agricultura nasce a melhor gastronomia, mas este clima também influencia os animais que habitam terra e mar. Entre eles, homens e mulheres do mais belo que podemos encontrar e que construíram aqui, no Mediterrâneo, as formas mais elevadas de cultura. A propósito: Daniel Zafrani, um artista-mimo israelita, cria sketches plenos de humor, originalidade e beleza. Vimo-lo atuar no navio e tivemos o privilégio de falar com ele, e observar que, além de criativo, é também muito simpático e humilde. Uma pessoa luminosa.
- O Canal do Suez é daquelas obras de engenharia universais (Agostinho da Silva escreveu um artigo interessante sobreo construtor francês do canal). Os navios seguem em comboio num único sentido de cada vez, por isso é normal esperar-se horas pelo comboio que vem em sentido contrário ao nosso. Rebocadores e pilotos são necessários em todo o percurso e a velocidade é forçosamente lenta. A meio-caminho há um largo enorme, onde se espera de novo por outro comboio. Normalmente não se consegur percorrer o canal em menos de 24 horas. Do navio podemos ver muitas obras, barcos que cruzam o canal transportando viaturas e pessoas, uma ou outra ponte, linhas de caminhos de ferro, postos de controlo, campos e cidades inteiras.

Saindo do canal, entramos diretamente no Mar Vermelho. O nosso navio não continuou para sul, antes virou à esquerda e subiu pelo Golfo de Aqaba, fazendo um “V”. O golfo é estreito, sendo visíveis, de qualquer ponto, as duas margens — à esquerda o Egito, à direita a Arábia Saudita — até chegarmos ao fim, ou um pouco antes, onde já avistamos lá ao fundo as duas cidades lado-a-lado — Eilat e Aqaba. Agora já é Israel em vez de Egito e Jordânia em vez de Arábia Saudita. As duas cidades estão rodeadas de montanhas de calhaus e areia, onde não há vegetação. Dá para perceber que não chove. O próprio ar é quente e seco, dificilmente aqui haverá um inverno verdadeiro. De facto, a uma semana de novembro, ainda é verão. Nas praias veem-se pessoas a desfrutar da água morna, a 26 graus. Ambas as cidades vivem do turismo associado às atividades náuticas, sobretudo Eilat, uma vez que Aqaba é, além de destino de mar, um excelente ponto de acesso a Petra, Património Mundial pela UNESCO. Há uma notória diferença entre as praias de Eilat e as de Aqaba, as primeiras com excelentes infraestruturas, com pessoas de fatos de banho como se vê nos nossos países, enquanto em Aqaba as mulheres ficam na areia da praia todas cobertas a ver os filhos e os maridos desfrutando na água. Muitos dos homens têm o tronco coberto enquanto tomam banhos de mar.
- Apesar das diferenças culturais, Aqaba e Eilat são praticamente iguais do ponto de vista natural, verdadeiras cidades gémeas. Como vimos, ambas se situam na enorme baía formada no final do golfo de Aqaba e, além disso, ambas estão rodeadas por desertos; ambas dão acesso ao Mar Morto, partilhado por Jordânia e Israel; e, claro, ambas estão sujeitas ao mesmo tipo de clima. Estas semelhanças naturais deverão ter alguma influência sobre a boa convivência que parece existir, mas o fator decisivo é o acordo de paz celebrado nos anos 90 entre os dois países, que vem sendo escrupulosamente cumprido até os dias de hoje. A Jordânia tem-se mostrado, inequivocamente, o vizinho mais fiável de Israel.

- Que a Jordânia é, entre os países árabes, um estado tolerante, nós já tínhamos constatado numa anterior visita. Mas que os países árabes fossem, em geral, tolerantes e os melhores onde se viver, isso nunca nos passou pela cabeça. Pois foi o que nos disse o chefe da Igreja Ortodoxa de Aqaba (Igreja de São Nicolau), Samih “Basilious” Al-Marji, uma igreja que, segundo Samih, acolhe quinze fiéis. Encontrámos este padre almoçando numa rua de Aqaba. Reparando que o observávamos, ele próprio encetou uma conversa connosco, perguntando de onde éramos. Quando soube que eu era português referiu-se a Fátima com grande simpatia. Disse-nos que tinha um filho que vivia nos Estados Unidos e que ele próprio poderia lá viver, mas que a Jordânia era um país melhor para se morar e que os países árabes eram os mais tolerantes. Disse que a sua igreja estava sempre aberta, jamais a fechava. Ficou visivelmente satisfeito quando lhe pedimos para tirar uma foto com a Fla, dizendo que ela era muito bonita e tanto eu quanto ele tínhamos muita sorte em estar ali com ela. Antes de nos despedirmos fez questão de nos abençoar com o sinal da cruz.
- Um dos livros que trouxe para a viagem foi Astrofísica para Gente com Pressa, de Neil de Grasse Tyson, um autor que desconhecia. O livro está dividido em 12 capítulos, adaptados (2017) de ensaios publicados na revista Natural History. É um livro com poucas páginas, sintético, que se lê muito bem. Há uns tempos que não lia um livro sobre astrofísica e foi bom retomar o tema. É notória a admiração do autor por Einstein. Embora isto seja tudo menos invulgar, não deixou de ser um motivo de simpatia para quem, como eu, é igualmente um admirador confesso do grande físico alemão. Apesar da incrível intuição, ou imaginação (o autor deste livro vai mais por aqui), ou inteligência, ou de tudo isso junto, que caracterizava Einstein, este nunca achou, ou sequer sugeriu, que a sua teoria da relatividade fosse a palavra final. Popper admirava muitíssimo a humildade de Einstein. Ambos estavam convencidos de que Einstein tinha razão no confronto que manteve durante grande parte da sua vida com os cientistas aderentes à chamada “interpretação de Copenhaga”, segundo a qual a realidade quântica depende do ponto de vista do observador, ou seja, não é independente de quem a observa. Deus não joga aos dados, a célebre frase de Einstein foi dita em reação a essa interpretação de Copenhaga, Popper foi dos poucos que sempre concordou com Einstein, mas a mecânica quântica funciona e Einstein é geralmente considerado perdedor nesse confronto com Bohr e seus seguidores.

Isto não é dito no livro, mas é algo bem conhecido e considerado pela quase totalidade dos cientistas como ponto assente. Mas talvez a história ainda venha a dar razão a Einstein e a quem com ele concorda, como Popper e eu. A principal objeção de Popper à mecânica quântica, no que toca ao aspeto conceptual e teórico, é a pretensão dos seus autores de que ela é uma teoria definitiva e inquestionável — atitude contrária à de Popper em relação à ciência. Mas se a história nesta questão específica ainda não abonou em favor de Einstein, já o fez em relação a outra questão específica em que se pensava que Einstein se teria enganado (ele próprio, com a sua proverbial humildade, admitiu que errara), mas que agora, com novos dados proporcionados pela tecnologia, tudo indica, veio a verificar-se que Einstein tinha razão.
Esta questão tem a ver com a “constante cosmológica”, ou lambda, uma força oposta à da gravidade que preservava aquilo em que Einstein e a maioria dos físicos da sua época acreditavam — um universo estático. E voltamos ao livro. Tyson faz uma cronologia dos acontecimentos. Em 1916, Einstein publica a Relatividade Geral (RG), incluindo nas suas equações um termo, que apelidou de “constante cosmológica”, representado pela letra maiúscula grega “Λ” — o lambda. Em 1929, treze anos depois, Edwin P. Hubble, um astrofísico norte-americano, descobriu que o universo não era estático, tendo reunido provas convincentes de que as galáxias mais distantes da Via Láctea se afastam desta mais rapidamente (para tentarmos perceber como isto acontece podemos imaginar a expansão de um balão) do que as que lhe estão próximas.
Quando Einstein tomou conhecimento de que o universo estaria em expansão, descartou o lambda, presumindo o seu valor como zero, e chamou à “constante cosmológica” o “maior erro” da sua vida. No entanto, o lambda nunca foi completamente esquecido, ciclicamente voltava à baila. Até que, em 2011, três cientistas foram galardoados com o Prémio Nobel da Física por um trabalho que remonta a 1998 e reabilita o lambda de Einstein. Estes cientistas — Saul Perlmutter, de Berkeley, Brian Schmidt, de Camberra, e Adam Riess, de Maryland — descobriram que o Universo se expande mais rapidamente do que se pensava e que essa “força”, que supera o indicado pela velocidade de recessão, só faz sentido se regressarmos à “constante cosmológica” de Einstein, que prevê uma energia escura responsável por 68% de toda a massa-energia do Universo. Como? Vejamos o que nos diz Tyson.

A forma do nosso Universo a quatro dimensões provém da relação entre a quantidade de matéria e energia que existe no Cosmos e a velocidade a que o Cosmos se está a expandir. Uma medida matemática conveniente para isso é o ómega: Ω, mais uma letra maiúscula grega com um papel bem importante no Cosmos. Se tomarmos a densidade de matéria-energia do Universo e a dividirmos pela densidade matéria-energia necessária para quase travar a expansão (conhecida por “densidade crítica”), obtemos ómega. Uma vez que tanto a massa quanto a energia fazem distorcer, ou curvar, o espaço-tempo, ómega revela-nos a forma do Cosmos. Se ómega é menor do que 1, a massa-energia real situa-se abaixo do valor crítico e o Universo expande-se para sempre em todos os sentidos, tomando a forma de uma sela, onde divergem linhas inicialmente paralelas. Se ómega for igual a 1, o Universo expande-se para sempre, mas não completamente. Nesse caso, a forma é plana, preservando todas as formas geométricas que aprendemos na escola sobre linhas paralelas. Se ómega exceder 1, as linhas paralelas convergem e o Universo curva sobre si próprio, acabando por voltar a entrar em colapso na bola de fogo de onde veio (…)
Entretanto, a partir de 1979, o físico norte-americano do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, Alan H. Guth, juntamente com outos colegas, avançou um ajustamento para a teoria do Big Bang que esclarecia alguns problemas de um universo tão suavemente cheio de matéria e energia como o nosso. Um subproduto fundamental desta atualização do Big Bang foi o facto de considerar o valor de 1 para ómega. Não metade. Não dois. não um milhão. Um. (…)
Havia, no entanto, um outro pequeno problema: a atualização previa três vezes mais massa-energia do que a encontrada pelos observadores. Teimosamente, os teóricos afirmaram que os observadores simplesmente não estavam procurando como deve ser. No final das contas, só a matéria visível não representava mais do que 5% da densidade crítica. E a misteriosa matéria escura? Também a acrescentaram. Ninguém sabia o que era e ainda não sabemos o que é, mas contribuiu seguramente para os totais. Daí, obtemos cinco ou seis vezes mais matéria escura do que matéria visível. Mas ainda é muito pouco. Os observadores estavam perdidos e os teóricos respondiam: “continuem a procurar”. Ambos os campos tinham a certeza de que o outro estava errado — até à descoberta da energia escura. Esse componente único, quando adicionado à matéria comum, à energia comum e à matéria escura, fez subir a densidade de massa-energia do Universo para o nível crítico. Satisfazendo quer observadores quer teóricos (…)
Então, que coisa era aquela? Ninguém sabe. A resposta mais próxima que alguém conseguiu foi presumir que a energia escura é um efeito quântico — onde o vácuo do espaço, em vez de ser vazio, na verdade fervilha de partículas e das suas parceiras de antimatéria. Aparecem e desaparecem em pares e não duram tempo suficiente para serem medidas (…) Sim, estamos um bocadinho perdidos. Mas não abjetamente perdidos. A energia escura não anda à deriva, sem uma única teoria em que se ancorar. A energia escura habita um dos portos mais seguros que podemos imaginar: as equações da relatividade geral de Einstein. É a constante cosmológica. É o lambda. O que quer que seja a energia escura, já sabemos como a medir e como calcular os seus efeitos sobre o passado, o presente e o futuro do Cosmos. Sem dúvida que a maior asneira de Einstein foi ter declarado que o lambda fora a sua maior asneira.1

- Pois bem, para um grande admirador de Popper, como eu, é gratificante constatar a atualidade do génio de Einstein e do seu espantoso legado. Popper e Einstein são dois dos maiores pensadores do século XX e de toda a história da humanidade, e viam a realidade de ângulos diferentes, mas complementares. Popper estudou (sobre) as implicações filosóficas da relatividade geral de EInstein e procurou, inclusive, que a sua filosofia influenciasse a física einsteiniana nos dois breves encontros que aconteceram entre ambos nos Estados unidos. A admiração de Popper por Einstein era evidente. E tudo indica que Einstein também admirasse Popper. Pela minha parte, admiro ambos.
- A maioria da matéria-energia não é, portanto, diretamente visível, mas apenas detetável, pois está abaixo ou acima do espetro visível, nos espetro dos infravermelhos ou ultravioletas.2 Tudo tem que ver com ondas que preenchem o espetro eletromagnético e as suas frequências (descobertas por Hertz), no fundo, com tudo o que vibre, incluindo o som. Quem fala em frequência pode falar igualmente em comprimento de onda, uma vez que são interdependentes, ou seja, para a mesma velocidade, se aumentarmos a frequência diminui o comprimento e vice-versa. A fórmula é simples: velocidade = comprimento x frequência.
- Só no século XIX, muito depois dos primeiros telescópios, é que se começaram a construir equipamentos para detetar a luz invisível ao olho nu. Os primeiros foram os radiotelescópios, que têm de ser muito grandes, uma vez que detetam comprimentos de onda igualmente grandes. O maior radiotelescópio do mundo foi construído na China, na província de Guizhou, e tem uma superfície superior a trinta campos de futebol. Outra classe de radiotelescópios são os interferómetros, constituídos por conjuntos idênticos de antenas de prato ligados eletronicamente, cobrindo grandes áreas. O que tem a resolução mais elevada estende-se por oito mil quilómetros, entre o Havai e as Ilhas Virgens, com antenas de 25 metros. Chama-se Very Long Baseline Array.
Por seu turno, na banda das microondas temos on ALMA (Atacama Large Millimeter Array), com 66 antenas, instalado nas montanhas dos Andes, no norte do Chile. Já na outra onda do espetro eletromagnético, temos as ondas ultracurtas e de alta frequência dos raios gama, medidas por picómetros. Estes são instrumentos sofisticadíssimos de um metro de comprimento. Assim, hoje me dia há telescópios (nome genérico dado a todos estes aparelhos) de todos os tipos, que nos permitem detetar os comprimentos e frequência de ondas que cobrem todo o espetro eletromgnético. Uns estão localizados na Terra, mas a maioria no espaço, permitindo aos astrofísicos explorar o Universo.
- Entretanto, enquanto decorria esta incursão pela Astrofísica, fomos nos deslocando para Sul. Descemos rapidamente pelo golfo de Aqaba, mas demorámos dois dias a percorrer o Mar Vermelho. Que mar curioso, estreito e comprido. Não fui pesquisar, mas palpita-me que tenha bem mais de mil quilómetros de comprimento. As águas estão calmíssimas e a temperatura do ar é cálida à noite e inclemente durante o dia. No entanto, é nesta zona de calmaria que atuam grupos de piratas, sobretudo somalis. Há precauções que foram tomadas no nosso navio. Alertas azul, amarelo e vermelho. Pessoal de segurança especializado segue a bordo. As luzes são reduzidas à noite.

- Mas já saímos do Mar Vermelho e nada aconteceu. A probabilidade de algo acontecer é, aliás, muito baixa. O nosso navio não é fácil de assaltar e os piratas não são parvos. Claro que a zona de pirataria não se resume ao Mar Vermelho, é muito maior, e aqui no golfo de Aden ainda estamos dentro dela. E o mesmo quando entrarmos no Oceano Índico. A pirataria, aliás, pode ocorrer em qualquer mar do mundo, é uma daquelas práticas antigas que persistem. Mas ninguém aqui dentro parece preocupado, e nós também não.
- Quem nunca fez um cruzeiro não faz ideia, ou faz uma ideia errada, do que se passa dentro de um navio Para começar, dentro de um navio de cruzeiro coexistem pessoas de múltiplas nacionalidades. Isso é a primeira coisa boa. Conviver com gente de diferentes raças e culturas torna-nos mais abertos e tolerantes. Depois, é preciso perceber que há sempre coisas a acontecerem no navio que, tal como uma cidade famosa, nunca dorme. Há sempre alguém da tripulação, a todo o momento, a trabalhar para nós, passageiros. A nossa vida a bordo está, por isso, muito facilitada. Na nossa cabina, a cama é grande, o colchão confortável; os lençóis são de algodão de excelente qualidade; as toalhas de banho são trocadas todos os dias; a cabina é limpa, aspirada e arrumada duas vezes por dia, de manhã e à noite. Quanto à comida a bordo, bom, é difícil até falar. O buffet está aberto 20 horas por dia, só encerra entre as 2 e as 6 am. Os horários das refeições são alargados, há sempre algo para comer. Quem quiser comida menos saudável — como cachorros, pizzas, hamburgueres, battatas fritas e uma panóplia enorme de doces — tem tudo isso disponível; e quem quiser algo mais saudável — como todo o tipo de saladas, frutas, ovos de todas as formas e feitios, sopas diferentes a cada 12 horas, arroz integral, leguminosas, etc — também o encontra em abundância. E todos os tipos de pastas, charcutaria, queijos, carnes e peixes. Uma fartura. Come o que quiser, quando quiser, e já está tudo pago à partida. Tem ainda direito a café e chás e, se comprar o cruzeiro nos Estados Unidos (ou através de uma agência online sediada nos Estados Unidos, como foi o nosso caso), tem direito também a água engarrafada, sem pagar mais nada por isso. Apenas se pagam bebidas alcoólicas, refrigerantes e outras bebidas que não água.
Em geral todos os navios de cruzeiro têm vários restaurantes,3 havendo lugar marcado num deles para o jantar, e o passageiro opta por tomar a sua refeição no restaurante ou no buffet. Estão também disponíveis vários bares, alguns temáticos, a maioria com música ao vivo, onde se pode “beber um copo”, dançar, participar em eventos organizados pela equipa de animação, etc. Há espaços dedicados aos adolescentes — salão de jogos, salas de convívio, discotecas — e às crianças, havendo a possibilidade dos pais a deixarem ao cuidado da equipa especializada para o efeito durante várias horas por dia. Há piscinas e jacuzzis (embora não sejam a nossa praia). Há o ginásio, modernamente equipado, spa, salão de massagens, sauna, cabeleireiro, etc, etc. Há boutiques de roupa e lojas onde se podem comprar óculos, relógios, perfumes, jóias, entre vários outros produtos. Há atividades diversas para se participar todos os dias, algumas bem interessantes. Todos os dias há dois espetáculos no Teatro — uma enorme sala com capacidade para muitas centenas de pessoas — com equipas residentes ou artistas convidados. Nós também não sabíamos, nem sequer imaginávamos: alguns destes espetáculos são de grande qualidade, mesmo! Tudo é realizado com extremo profissionalismo. É verdade que nem todos os cruzeiros são propriamente espetaculares, mas se se souber escolher,4 uma viagem de cruzeiro pode ser uma experiência fantástica.

- Fim da manhã e eis que uma voz anuncia em várias línguas: ” Bom dia senhores passageiros, vamos dar-lhes algumas informações sobre as condições de navegação. Hoje é o dia 28 de outubro de 2019 e são, neste momento e neste local, 11 horas e 35 minutos. O céu está limpo e a temperatura do ar é de 31 graus celsius, a mesma da água do mar que neste local tem cerca de 500 metros de profundidade. A humidade é de 71% e a pressão atmosférica de 1012 milibares. As ondas são de Leste com força 3 e o vento de força 4. Navegamos a uma velocidade de 19 nós e estamos a 647 milhas de Salalah”.
- Hoje faz anos a minha filha, Rita, e não posso dar-lhe os parabéns. Espero fazê-lo amanhã em Salalah. E hoje, também, acordámos com um mar cavado, de ondas largas — o equivalente às ondas de rádio no espetro eletromagnético. Descobrimos um espaço no último deck (superior) do navio, à popa, que funciona como discoteca à noite, mas que durante o dia tem muitos lugares disponíveis onde podemos sentar-nos, colocar as pernas em cima das mesas baixas, ler e apreciar o mar. E hoje vou começar a ler um novo livro, de um autor igualmente novo para mim, mas de quem a Fla gosta muito, Andrew Solomon. Este livro tem o título em português de Longe da Árvore. Vamos a isso.
- O funcionário mais simpático do MSC Orchestra é do Zimbabwé, tem 28 anos e chama-se Jabulani (palavra que, segundo o próprio, quer dizer “felicidade”).
- Ainda o navio não tinha acostado a Salalah e já tínhamos observado uma coisa: o seu porto é moderno e movimentado, plenamente marítimo, pelo que deve ser de águas profundas. Foram levadas a cabo intervenções de relevo e outras estão em curso, como se pode ver pela imensa maquinaria em laboração. Um enorme quebra-mar foi construído, permitindo a estabilização dos navios. O terminal de contentores é bastante grande — um retângulo comprido perpendicular ao mar, construído de raíz, o que permite a acostagem de navios de um lado e do outro. Quando chegámos estavam três grandes navios carregados de contentores neste cais, mas reparámos que havia, pelo menos, espaço para outros três. Havia também um terminal de granéis com navios a laborar. Noutro cais estava um navio de cruzeiros da Aida Cruises, mas podiam estar dois ou três. O porto faz um grande círculo com uma única saída e está a ser objeto de obras de vulto no seu interior. Esta é outra vantagem de andar de navio — podemos perceber o que se passa num porto. E, uma vez que mais de 80% do comércio mundial se faz por via marítima, isso permite-nos ter uma ideia do que se passa numa dada região (o hinterland do porto), se tivermos olhos suficientemente experimentados. Uma vez que já estivemos na capital de Omã, Muscate, e no porto vizinho de Muttrah, podemos dizer, sem grande margem de erro, que o grande porto de entrada de mercadorias é Salalah, o qual fica fora da cidade, uns 10 quilómetros para Oeste.

Sobre a cidade propriamente dita não haverá muito a dizer. Prevalece a cor creme dos edifícios sem telhado, calor abrasador (um paquistanês do Punjab disse-nos que Agosto é o melhor mês, quando chove e fica tudo verde), muito comércio no Centro e as omnipresentes mesquitas. À semelhança dos Emirados Árabes ou do Qatar, também em Omã o mais interessante para ver fica fora das cidades.
- Dr. Steven Kopits, do hospital Johns Hopkins. Quero ver o rosto dele, preciso ver o rosto dele. E gostava também de conhecer o rosto de Betty Adelson. As redes sociais, tantas vezes diabolizadas (e muitas delas com razão), são uma ajuda tremenda para pessoas que se afastam dos padrões comuns, com identidade horizontal. Tudo isto vem a propósito do livro que comecei a ler — Longe da Árvore — e será retomada mais à frente.
- Hoje é 31 de outubro e vai haver, logo à noite, a festa do Halloween. Vamos a caminho de Malé, numa rota sudeste e, pela primeira vez, apanhámos um mar ligeiramente picado. (Os termos que uso aqui para caracterizar o estado do mar são meus e só em alguns casos coincidirão com os termos técnicos). Lá fora está vento, mas nós estamos confortavelmente instalados no local do costume, no último deck do navio, desfrutando de uma vista invejável sobre o mar. As ondas e o vento vêm de sudoeste.
Antes que me esqueça, quero registar algo, ainda a propósito do livro que estou a ler, Longe da Árvore. Sou daqueles que acham que o mundo está melhor e que nunca existiu uma sociedade tão justa quanto a nossa, apesar dos inúmeros problemas. (É claro que me refiro às sociedades democráticas do tipo “ocidental”). Dada a longevidade (considerável, em muitos casos) das democracias, pode parecer que já quase tudo foi alcançado e que nos últimos anos praticamente não se avançou. Ora, isto não é verdade, bem pelo contrário, e Longe da Árvore comprova-o. A integração de crianças com deficiências pela sociedade, particularmente pelos pais, bem como a denúncia de instituições onde muitas dessas crianças eram simplesmente despejadas e maltratadas, tem sido muitíssimo maior nos últimos anos. Este é um dado incontornável que, só por si, mostra como, para uma parte significativa da humanidade, o mundo está muito melhor.
- A palavra “deficiência” quer apenas dizer que não se é eficiente.
- O behaviorismo — ao colocar um ênfase extremo na educação — ajudou à integração das crianças deficientes, em oposição ao eugenismo.
- Relativamente ao autismo, há uma luta feroz entre os defensores da neurodiversidade e os que são antivacinas.
- Jae Davis. Kit Armstrong.

- A República das Maldivas é um arquipélago constituído por 1190 pequenas ilhas, agrupadas em 28 atóis naturais. Destas ilhas, duzentas são permanentemente habitadas, e apenas umas poucas têm um comprimento superior a dois quilómetros. O território atinge quase 750 kms de norte a sul e cobre uma área total de cerca de 90.000 kms2 . As grandes massas de terra mais próximas são a Índia, a 480 kms e o Sri Lanka, a 650 kms. As Maldivas já eram habitadas quando, no século XVI, foram governadas pelos portugueses, a partir de Goa. Em 1752, houve um período de influência “malabari” (muçulmanos vindos da Índia) de apenas três meses. E em 1887 as Maldivas tornaram-se um Protetorado Britânico. No entanto, durante este período, não se registou presença britânica em Malé e o governo das Maldivas pelos seus sultões continuou até ao final de 1952. A primeira república foi implantada em 1 de janeiro de 1953. Esta administração, no entanto, teve vida curta e o sultanato regressou em 1954, acabando por ser abolido em 1968 com a formação da segunda república. A independência face aos britânicos ocorrera entretanto em 1965. Embora sem qualquer subordinação constitucional à rainha, as Maldivas tornaram-se membro da Commonwealth em 1984.5
O que impressiona quando se chega a Malé e se entra em contacto com a população local — um dos aglomerados mais concentrados do mundo, com 400.000 habitantes — é a sua consistência cultural. A população é 100% muçulmana; não se encontra uma bebida alcoólica em nenhum restaurante (embora nos tivessem dito que se arranja álcool e outras substâncias clandestinamente); mulheres, homens e crianças tomam banho de mar com o corpo coberto, mesmo aos estrangeiros não é permitido tomar banho em biquini ou em tronco nu, em Malé. Claro que nos resorts espalhados pelas outras ilhas os estrangeiros podem banhar-se como fazem nos seus países, caso contrário os maldivianos perderiam as indispensáveis receitas do turismo.
Apesar da rigidez cultural, imposta pela religião, os habitantes são, em geral, extremamente simpáticos e solícitos. Alguns falam inglês, mas a maioria não. Visitámos os mercados de peixe e de fruta, bem como toda uma secção de peixes secos, conservados em sal, dispostos em prateleiras como se fossem tábuas de madeira. Há uma abundância enorme de um tipo de atum, pequeno, que pode ser vendido inteiro ou em filé, depois de lhe retirarem a pele, a cabeça e a espinha central com uma destreza impressionante, em segundos.

As mulheres andam cobertas da cabeça aos pés sob o intenso calor. A cultura cria uma barreira entre a natureza e as pessoas. Mas ninguém parece incomodar-se com isso. São os estrangeiros (e, bom, claro, alguns habitantes locais privilegiados) que vêm desfrutar destas águas maravilhosas, límpidas e cálidas,6 das areias finíssimas, dos passeios marítimos e aéreos. As Maldivas são, de facto, um dos paraísos terrestres e, a avaliar pelo movimento dos aviões no aeroporto de Malé, há muitas pessoas a descobri-lo, incluindo chineses, com o seu faro natural e o seu capital financeiro. A novíssima ponte — inaugurada há um ano — construída entre a ilha de Hulhumale, onde fica o aeroporto internacional, e a capital Malé, foi financiada pelos chineses: 50% a fundo perdido e 50% para amortizar em suaves prestações anuais.
- Oceano Índico. Há vários dias que navegamos nestas águas tão familiares aos portugueses seiscentistas. Ao que parece, eles foram os primeiros europeus a definir rotas e a assentar praças no Índico. Os adversários mais temíveis, no que toca ao domínio comercial da região, eram os árabes.
- À meia-noite, entre 4 e 5 de novembro, cruzámos a linha do Equador e já estamos no Hemisfério Sul. Temos visto muitos peixes voadores pelo caminho. E terminei o livro que comecei a ler há seis dias, Longe da Árvore (mais de mil páginas). O título remete para um provérbio alemão que diz “a maçã nunca cai longe da árvore”, o que quer dizer que os filhos nunca se afastam muito do que são os pais. Esta ligação entre pais e filhos transmite aos últimos a chamada “identidade vertical”, embora haja casos excecionais em que prevalece a identidade de grupo, a chamada “identidade horizontal” — longe da árvore, portanto.
Claro que nada disto é a preto e branco, e algumas vezes as duas identidades podem coincidir; por outro lado, todas as identidades são diferentes (como o próprio conceito indica, obviamente), pois dependem de múltiplos fatores, também diferentes. Andrew Solomon estudou dez grupos, que destacou em cada um dos dez capítulos do livro: surdos, anões, síndrome de Down, deficiências, autismo, esquizofrenia, prodígios, violação, crime, transgéneros — aos quais acrescentou um primeiro capítulo sobre “Filhos” e um último intitulado “Pais”.

Eu diria que há três dimensões, interligadas, neste livro: informativa, formativa e ética. A primeira faz, digamos assim, um ponto da situação sobre os desenvolvimentos que ocorrem dentro de cada grupo — o antes, o agora e o que se pode esperar no futuro — ilustrados com casos reais (centenas deles) que Solomon pesquisou, às vezes in loco, durante mais de uma década. A segunda mostra-nos como, mesmo em casos em que os próprios pais, à partida, pensam não suportar (sobretudo deficiências graves, autismo, esquizofrenia, violação e crime), o amor quase sempre acaba por vencer, através da aceitação da pessoa (filho ou filha) tal como ela é. A terceira coloca a questão dos limites. Passou-se rapidamente, e ainda bem, de uma época em que muitas destas pessoas excecionais eram descartadas pela sociedade (colocadas em instituições ou mesmo mortas), há uns meros trinta anos, para a época atual, em que as crianças que nascem com futuras identidades horizontais, veem reconhecido o seu direito a uma vida digna por parte do Estado e das famílias, perspetivando-se já um futuro em que os filhos poderão ter características de alguns destes grupos, escolhidas pelos pais. Surdos podem querer ter filhos surdos, anões podem querer ter filhos anões, rejeitando qualquer tipo de tratamento.
Alguns destes grupos constituem-se já como subculturas, como é o caso das comunidades surdas e gay, por exemplo, e o mesmo pode acontecer com portadores do síndrome de Down e outros, cujos pais, por razões diversas, não consideram que os seus filhos tenham qualquer patologia. Daí não estarem interessados numa cura, assumindo para os filhos uma identidade própria, que em nome da diversidade, se deve perpetuar. Até que ponto isto é legítimo e saudável constitui apenas uma questão entre muitas controversas que os desenvolvimentos científicos, técnicos e sociais vieram colocar na ordem do dia. No último capítulo, “Pais”, Solomon aborda a sua própria experiência enquanto progenitor, descrevendo o seu trajeto de pai homossexual, mostrando-nos o quanto o exemplo de tantos outros pais, que aceitaram as identidades horizontais dos filhos, foi importante para ele, inspirando-o e mostrando-lhe que só há um caminho justo, entre a rejeição e a idolatria — a via do amor.

- Seychelles. Só o nome já faz sonhar. As diferenças com as Maldivas são significativas, mesmo que as magníficas águas sejam semelhantes. Enquanto as Maldivas são constituídas por muitas ilhas pequenas, as Seychelles são constituídas por quatro ilhas grandes — Mahé, La Digue, Silhouette e Traslin — e umas cem ilhas pequenas; enquanto as Maldivas são planas (e correm um risco enorme de inundação se as águas do mar subirem devido ao aquecimento global), as Seychelles são montanhosas, com vegetação densa; enquanto as Maldivas são 100% muçulmanas, as Seychelles têm diversidade religiosa; enquanto nas Maldivas muitas pessoas não falavam inglês, nas Seychelles toda a gente fala inglês, além do crioulo. Tudo faz muita diferença em desfavor das Maldivas.
Estivemos dois dias nas Seychelles e a nossa estadia resumiu-se à ilha principal, Mahé, onde se situa a capital, Port Victoria. Alugámos um carro e percorremos toda a ilha. No primeiro dia fomos para Norte, até à praia mais famosa (e, provavelmente a maior) de Mahé, Beau Vallon, muito frequentada por turistas. Às quartas-feiras ocorre aqui uma feira, com música, comidas e bebidas locais e venda de artesanato. Depois do pôr do sol, que observámos de uma praia vizinha, junto a uma aldeia de pescadores, regressámos pela mesma estrada a Port Victoria. As estradas nas Seychelles são estreitas e algumas particularmente perigosas, com curvas apertadas, sem proteção e sem bermas. Acresce que os condutores, sobretudo dos autocarros, também não ajudam. Não estando habituados a estas condições e sendo a primeira vez que conduzíamos com o volante à direita, tivemos alguma dificuldade em adaptar-nos e passámos por alguns calafrios.
No segundo dia em Mahé acordámos às cinco da manhã e apanhámos a estrada que sai de Port Victoria para a costa oeste da ilha, atravessando o maciço central. No topo há um lugar onde se encontram as ruínas de uma antiga missão, chamada Venn’s Town,7 e um lindo miradouro, onde a rainha Isabel II esteve a tomar chá e a apreciar as vistas, em 1972. Depois, percorremos toda a costa oeste, de norte para sul, parando em algumas praias. Já na metade sul da ilha, fizemos um desvio, saindo da estrada principal para visitarmos mais uma praia. Seguimos a indicação da placa que anuncia “Anse du Soleil”. A partir de um certo ponto a descida para a praia é íngreme, mas pode levar-se o carro até lá ao fundo. O estacionamento é que é extremamente reduzido, pelo que, na maioria das vezes o carro terá que ficar um pouco longe da praia. Nós fomos os primeiros a chegar, por isso não tivemos esse problema. Ficámos encantados com a Anse Soleil. A praia é muito bonita, a areia muito branca e fina, o mar transparente. Banhámo-nos, tiramos fotos, e concordámos em como aquela era uma das praias mais belas em que já tínhamos estado.8

Voltámos à estrada, circundando a ilha, até atingirmos a costa leste, menos recortada e mais batida, com algumas boas praias para os surfistas. Seguimos pela estrada paralela ao aeroporto e, pouco depois, estávamos em Port Victoria. Tivemos tempo para entregar o carro e ainda dar uma volta a pé pela cidade. Aqui, os artigos para turistas são caros. A t-shirt mais barata que encontrámos custava o equivalente a 27 euros; um pequeno livro sobre a História da Seychelles, 30 euros. Enfim, nada de surpreendente. Falámos um pouco com um habitante local que conduz pessoas em passeios às outras ilhas e nos forneceu algumas informações interessantes. Perguntámos-lhe se ele sabia quem, antes dos conhecidos períodos francês e britânico, tinha passado pelas ilhas, e ele respondeu: “piratas”. E os portugueses não passaram por aqui? “Sim, sim, o Vasco da Gama também passou por cá mas os portugueses nunca se estabeleceram aqui.”
Estávamos no fim da época das chuvas, que dura até dezembro, e quando o nosso navio largou de Port Victoria, às seis da tarde, não pudemos tirar as fotos da cidade que havíamos planeado fazer ao pôr do sol, como despedida. O poente estava carregado de nuvens escuras. Esse brusco cerrar de pano aliviou de alguma forma a nossa nostalgia.
- Primeiro dia no mar, depois das Seychelles. Acordámos com o mar agitado, picado, e um vento de frente para o navio bastante forte. A tripulação distribuiu sacos para o enjoo. A nossa rota é agora sudeste, em direção às Maurícias. E eu vou começar a ler o meu terceiro livro de viagem,9 uma releitura de Dom Casmurro, de Machado de Assis. Machado é um dos meus dois escritores brasileiros favoritos, em parceria com o grande João Guimarães Rosa.
Hoje é sexta-feira, 8 de novembro de 2019.
- Ainda antes de chegar às Maurícias, em dois dias, portanto, acabei de ler o Dom Casmurro. Será que Machado não esclareceu em vida o que pretendeu mostrar-nos através dos ciúmes de Bentinho? Ou preferiu adensar o mistério? Talvez nem uma coisa nem outra. A mim parece-me evidente que ele quis mostrar como uma mente perturbada pode criar uma realidade paralela. E fá-lo magistralmente, de acordo com o extraordinário escritor que é.

Ficámos dois dias na ilha principal das Maurícias, uma ilha com 1865 km2 e 330 kms de linha costeira, desabitada até 1505, quando aqui chegaram os portugueses. Alugámos um carro, continuámos a conduzir pela esquerda e, em ambos os dias que aqui estivemos, viajámos para Sul. No primeiro, fomos até à praia Flic en Flac, ao Parque Chamarel e terminámos na magnífica praia Le Morne, no sopé do Monte Brabant, Património Mundial pela UNESCO.
No segundo dia fomos até à cratera do extinto vulcão Trou aux Cerfs, de onde se avista praticamente toda a ilha, ao Grand Bassin e às Rochester Falls. Depois de entregarmos o carro, tivemos tempo ainda para passear pela capital, Port Louis. De tudo isto, do que é que gostamos mais? Da praia Le Morne10, sem dúvida. O pôr do sol, ali, foi magnífico.
Pareceu-nos interessante a diversidade cultural da Maurícia, com praticantes de várias religiões a conviverem pacificamente. Quando aqui estivemos, tinham ocorrido há poucos dias eleições legislativas. Uma senhora de uma banca de jornais e um cliente informaram-nos que o rosto que aparecia na capa de todos os jornais era o do primeiro-ministro, reeleito para um segundo mandato. Perguntámos se o partido dele é de esquerda ou de direita e informaram-nos que nas Maurícias só há dois partidos, o do governo e o da oposição, e que nenhum é de esquerda ou de direita. Então são partidos étnicos ou religiosos? Garantiram-nos que “não”. Ficamos sem perceber como se formaram os principais partidos desta república parlamentar e com vontade de esclarecer esta questão.
- A dimensão das ilhas que visitamos vem sempre aumentando ao longo da nossa viagem, reparámos agora. Malé, Mahé, Maurícia e Reunião, aonde chegámos hoje. Considerando a posição geográfica, Malé e Mahé estão à mesma distância do Equador, embora a primeira no Hemisfério Norte e a segunda no Hemisfério Sul. Não resistimos à tentação de fazer uma comparação entre ambas. Pois agora o mesmo acontece em relação às Maurícias e à ilha francesa de Reunião.11

Nesta ilha de dimensão considerável, altas montanhas (a mais alta acima dos 3 mil metros) e vulcões ativos, estivemos apenas dez horas, oito das quais com um carro alugado. Como seria de esperar, dado estarmos numa região de França, o ordenamento do território alterou-se significativamente: melhores estradas, melhores edifícios, melhor sinalização, mais riqueza evidente. Depois, a ilha é de uma beleza natural deslumbrante. Pudemos verificar isso do topo do Maïdo — integrado no Parque Nacional de Reunião, Património Mundial pela UNESCO — a 2100 metros de altitude, observando para leste os “três circos” (assim denominados, suponho, devido à sua forma) — Mafate, Salazie e Cilaos — e, do lado oeste, lá bem no fundo, uma porção enorme de costa, orlada por um risco branco — as ondas a baterem no recife de coral — deixando as praias protegidas da rebentação. (Por cima das praias viam-se algumas nuvens brancas, esparsas, bem abaixo de nós).
Foi numa dessas praias, Saline-les-Bains,12 que nos banhámos depois de descermos do Maïdo, por estradas secundárias e sinuosas, via Trois Bassins, fazendo um pequeno desvio para encontrarmos um caminho de tamarindos que a Fla queria ver. A praia, uma das mais badaladas da ilha, é, de facto, belíssima, com a água incrivelmente transparente e de temperatura excelente. A poucos metros da linha de água, ao longo da praia, árvores altas, que não são coqueiros, fornecem sombra refrescante, natural e gratuita. Não soubemos identificá-las. A parte mais profunda das suas raízes está cravada na areia mas a parte superior está a descoberto, provavelmente pela erosão provocada pelo vento, e serve para acomodar os pertences dos banhistas.
Depois da praia passámos por Saint Paul e fomos aos Egrets Les Bassin, onde très cascatas. Tivemos tempo de ver apenas uma.13 A água no lago onde a cascata cai é limpíssima e convida a um banho, mas, mais uma vez, não tivemos tempo. Quando entregámos o carro em La Possession, onde acostou o navio, a Fla reparou que tínhamos feito 150 quilómetros exatos. Apesar do tempo escasso, estávamos muito satisfeitos com a nossa experiência, e um pouco cansados. Tudo o que vimos superou as expectativas e podemos dizer que, se tivéssemos de escolher entre Maurícia e Reunião, a nossa escolha recaíria, sem hesitação, pela última. Reunião deve ser um local fantástico para se viver.
Os portugueses, ao que parece, foram os primeiros europeus a encontrar estas ilhas. À ilha de Reunião — atualmente o mais remoto território da União Europeia — deram-lhe o nome de Santa Apolónia, mas não a povoaram. Aproveitaram os franceses, que tomaram posse da ilha em 1642. Hoje é mais um départment francês.

- Como já referimos, conhecemos um rapaz no navio, um empregado de mesa, chamado Jabulani Gwamuri. Tem 28 anos, é do Zimbabwé e é muito simpático. Ele adora ir a terra “apanhar ar” e procura sempre turnos de trabalho que lho permitam, mesmo que para isso tenha de trabalhar mais horas. Vimo-lo em Malé e também na Maurícia. Foi aqui que nos anunciou que “hoje à noite” (“hoje” é o dia em que o navio esteve em Reunião) haveria um espetáculo no Teatro em que os protagonistas seriam membros da tripulação, e que ele iria atuar. Prometemos-lhe que iríamos assistir e assim o fizemos. Levámos a câmara fotográfica para registarmos a atuação de Jabulani e fazermos-lhe uma surpresa. Quando chegámos procurámos um lugar apropriado, na segunda fila da plateia, e acabámos também por fotografar a atuação de outros “artistas”. Levei a minha lente 1:8 de 50 mm (eu sei que não é nenhum suprassumo, mas faz-se o que se pode), e as fotos ficaram, realmente, muito boas.
O Teatro encheu e o espetáculo acabou por ser surpreendente, com quatro ou cinco cantores e cantoras a destacarem-se pela excelência das interpretações. Jabulani foi o queinto ou sexto a entrar em palco, interpretou uma canção hip-hop e, apesar de nervoso, não desiludiu. Não conseguimos referir-nos a todos, mas, como dissemos, houve excelentes interpretações. Lembramo-nos de um rapaz do Camboja e outro da Indonésia que estiveram muito bem.
Até que entrou em palco um marinheiro, condutor de lanchas, corpulento, mais largo que o Pavarotti mas com menos barriga, e começou a interpretar New York, New York. Infelizmente, logo na segunda frase, esqueceu-se da letra. A música continuou enquanto ele passava a mão pelo rosto, procurando desesperadamente lembrar-se da letra; baixou a cabeça e voltou as costas ao público, curvado, envergonhado. Depois, enquanto grande parte do público cantava em vez dele, incentivando-o, e a música continuava, olhou para a entrada dos bastidores e abriu os braços, desesperado, implorando socorro. Foi quando um colega que já tinha atuado entrou em palco e começou a cantar, conseguindo que o nosso “Pavarotti” retomasse, quase no final, a canção, terminando-a com o público, carinhoso, a aplaudi-lo fortemente. Ainda isto acontecia e eis que se ouvem os primeiros acordes de Nessun Dorma. O condutor de lanchas encetou a interpretação com uma belíssima voz de tenor e arrancou aplausos entusiásticos do público, que continuava a animá-lo; a meio da atuação notámos que se enganou na letra e teve uma ligeiríssima hesitação, mas conseguiu superar rapidamente e seguir em frente; depois, já na parte final, arrancou da caixa torácica um vozeirão incrível, arrebatador, que fez todo o teatro erguer-se em apoteose. Ouviam-se gritos enquanto toda a gente aplaudia, de pé; e o gigante Pavarotti parecia um menino.

A penúltima atuação foi de uma jovem sul-africana que trabalhava no balcão da Receção do navio, com uma voz incrível. Como, logo desde o início, percebemos que a sua atuação era extraordinária, destámos a fotografá-la. Tudo se conjugou para que as fotos ficassem belíssimas — os movimentos, a roupa, a expressão — e ficaram. Foi, sem dúvida, uma das melhores atuações da noite, a par da do Pavarotti. Houve ainda tempo para ver e ouvir uma excelente cantora e entertainer peruana, após o que subiram ao palco todos os intérpretes da noite para um último aplauso. Foi realmente emocionante.
- No dia seguinte, editamos as fotos de Jabulani e da cantora sul-africana, e decidimos levá-as no computador para que ambos as vissem. Fomos à receção e Nomonde Mdalose estava lá a trabalhar. Enquanto pedíamos uma impressão da fatura das nossas despesas no navio, demos-lhe os parabéns pela atuação do dia anterior e, virando o ecrã do computador, que pousáramos em cima do balcão, para ela dissemos-lhe que tínhamos tirado umas fotos — e mostrámos-lhas em tela grande. A minha capacidade descritiva é insuficiente para transcrever em palavras a sua alegria. Disse-nos que não tinha uma única foto cantando, e agradeceu-nos muitíssimo. Entregámos-lhe um cartão SD com 18 fotos que ela depois copiou e guardou.
À noite, após o jantar, pegámos no computador e fomos procurar Jabulani. Encontrámo-lo trabalhando nos bares exteriores do deck 13 e, quando antevimos uma oportunidade, chamámo-lo e começámos a mostrar-lhe as fotos. Ficou louco. That’s me!?, perguntava, Ohohoh! Amazing! Perguntou se podia mostrar as fotos aos colegas e, perante o nosso óbvio assentimento, chamou-os. Estava visivelmente feliz e orgulhoso, e isso deixou-nos também radiantes. Quando o deixámos, ainda se desfazia em mil agradecimentos…

Ficámos muito contentes por termos proporcionado estes momentos de felicidade a estas pessoas. A apresentadora do espetáculo de ontem — uma jovem poliglota que está à frente do departamento de excursões — referiu, antes de chamar todos ao palco para a ovação final, que é preciso coragem para sair da zona de conforto e enfrentar uma audiência de milhares de pessoas; que isso é ainda mais difícil quando se está longe de casa, da família e dos amigos; e que a única coisa que compensava essa ausência era todos os que trabalhavam a bordo serem eles próprios membros de uma outra família, não menos verdadeira, porque real, a “família-tripulação”. Lembrei-me da “identidade horizontal” de Solomon. E pensei que, assim como o talento que vemos em todo o lado, e bem expresso neste espetáculo, também os sentimentos, anseios e esperanças humanos não têm nacionalidade, são universais. Um navio, com a sua diversidade identitária, tal como, em menor escala, uma grande orquestra sinfónica, mostra-nos como o ser humano é um só, independentemente do local onde nasceu ou vive.
- E cá estamos a dois dias de navegação do destino final deste cruzeiro, Durban. Ontem e hoje choveu o tempo todo, o mar esteve agitado, o vento forte. Passámos muito perto do extremo sul de Madagáscar.
- Último dia de navegação. De manhã passámos abaixo do canal de Moçambique, e o tempo melhorou gradualmente. Entretanto, disseram-nos que a SAA (Southern African Airways) está em greve, pelo que muitos voos foram cancelados. Embora os nossos voos não sejam através dessa companhia, estamos um pouco apreensivos, com receio de sermos afetados. Mas não adianta stressar.

- Quando chegámos a Durban o tempo estava nublado. Depois de uma enorme fila para o controlo de passaportes, apanhámos um shutlle para o aeroporto por 10€/pessoa. Talvez por ser sábado, não tivemos dificuldade em atravessar a cidade. O nosso cruzeiro terminara, mas ainda não a nossa viagem. Antes do regresso a casa, ainda havia Moçambique e Eswatini. Saímos de Civitavecchia no dia 19 de outubro; hoje é o dia 16 de novembro. A nossa viagem por mar durou 29 dias. Daqui a uma semana estaremos em casa.

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Notas:
1 “Astrofísica para Gente com Pressa”, Neil deGrasse Tyson, Gradiva, Lisboa, 2017, 1ª ed., pp. 77-81.
2 Para lá dos infravermelhos, as microondas e as ondas de rádio; e para lá dos ultravioletas, os raios-x e os raios gama.
3 Alguns com cozinheiros premiados com estrelas Michelin, como são os casos de Harald Hohlfarht, alemão, com três estrelas e Ramón Freixa, espanhol, com duas estrelas.
4 Há que ter em conta preço, navio, companhia, itinerário e vendedor.
5 Fonte: “Mysticism in the Maldives”, Ali Hussein, Novelty Printers, Malé, 1991.
6 Águas plenas de golfinhos alegres que nos dão as boas-vindas, como aconteceu aquando da chegada do nosso navio.
7 Em tributo a Henry Venn, secretário da Missão entre 1841 e 1873.
8 A Anse Soleil faz parte da nossa lista de praias mais belas do mundo (aqui).
9 Também trouxe na bagagem dois livros sobre fotografia, mas não posso dizer que os li, pois são sobretudo livros de “consulta”, não propriamente de leitura.
10 Também a Le Morne faz parte da nossa lista de praias mais belas do mundo (ver nota 8).
11 Até porque as ilhas Reunião, Maurícias e Rodrigues pertencem ao mesmo arquipélago — o Arquipélago de Mascarenhas. (Os nomes denunciam a presença portuguesa).
12 Mais uma da nossa lista (nota 8).
13 A mais bela e espetacular cascata de Reunião é a do Vale de Langevin.
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