A maldição da ideologia

Dois livros recentes onde se realça a perigosidade das ideologias.

As ideologias e as religiões são duas faces da mesma moeda. Ambas torcem e distorcem a realidade para que esta caiba nas suas narrativas. E o pior é que o cérebro humano adora narrativas ideológicas e religiosas. Pode parecer estranho, mas as pessoas com espírito científico, que amam a verdade, constituem-se como uma minoria entre os indivíduos predispostos a acolher todo o tipo de profecias, muito mais apelativas para o nosso cérebro tribal habituado a mitos, realidades paralelas e rituais iniciáticos.

Temos uma razão etimológica, desenvolvida em alguns de nós, mas a razão social — aquela que faz com que desejemos ser aceites pelos outros e integrar-nos no grupo — prevalece na esmagadora maioria dos casos. É por isso que é preciso ser resiliente para se apegar à verdade, tantas vezes incómoda. É muito mais fácil acreditar em promessas de prosperidade, fecilidade e, até, imortalidade.

Mas as promessas são levadas pelo vento, e o que resta dos dogmas ideológicos são guerras, miséria e sofrimento. Será impossível acabar com as ideologias, pois o homem é (ainda?) um animal idelógico, mas há uma questão que se impõe: seremos capazes de as controlarmos?

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As nossas edições:

  • Leor Zmigrod, O Cérebro Ideológico, D. Quixote, Lisboa, 2025.
  • Samuel Fitoussi, Porque se Enganam os Intelectuais, Bertrand, Lisboa, 2025.
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Migrações

A imigração é um tema atual nas sociedades mais desenvolvidas, sobretudo nos Estados Unidos e na União Europeia. Líderes populistas, como Trump, Le Pen ou Ventura, insurgem-se contra os imigrantes, acusando-os de sobrecarregarem os serviços públicos, receberem subsídios indevidos e contribuirem para o aumento da criminalidade. Tudo falso, como mostra Hein de Haas, através dos dados estatísticos publicados no seu livro Como Funciona Realmente a Migração.

De Haas baseia-se em dados quantitativos para desmontar aquilo a que chama de mitos — que políticos e comunicação social propagam sobre as migrações. Já Douglas Murray analisa o problema de um ponto de vista muito mais qualitativo. A questão que se coloca é a da identidade europeia: manterá a Europa as suas matrizes religiosa, cultural, civilizacional? Ou a presença muçulmana — com as suas misoginia e homofobia, o seu aproveitamento do liberalismo europeu — acabará por prevalecer?

Alarmismo injustificado, dirão alguns. Mas muitos muçulmanos atuais encontram-se, de facto, num mundo semelhante ao dos cristãos de outrora, quando lutar contra os infiéis era a mais importante ocupação de um homem de honra. (Cliff, 2011). E tal como acontecia com o cristianismo medieval, no mundo islâmico da atualidade a independência e a capacidade de iniciativa da sociedade civil podem ser medidas de forma mais adequada, não pela sua relação com o estado, mas pela sua relação com a religião, da qual, na percepção dos muçulmanos, o próprio estado é manifestação e instrumento. (Lewis, 2002).

A análise qualitativa de Murray, mostra-nos que as migrações não são todas iguais. É este o grande contraste com o livro de De Haas. Não faz sentido falar em guerra santa, quando as sociedades liberais em que vivemos desistiram de evangelizar o mundo. Mas o que devemos fazer quando o outro lado não desistiu de lutar e insiste num proselitismo por meios violentos? A resposta a esta importante questão não é unívoca, pelo contrário, é marcadamente ideológica, e é por isso que o livro de Murray é tão polémico. No entanto, ele alerta-nos para um problema que, ao contrário de De Haas, não deveríamos ignorar.

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Referências:

  • Cliff, Nigel, Guerra SantaComo as Viagens de Vasco da Gama Transformaram o Mundo, Globo Livros, São Paulo, 2012 (ed. orig. 2011).
  • De Haas, Hein, Como Funciona Realmente a Migração, Temas e Debates, Lisboa, 2024 (ed. orig. 2023).
  • Lewis, Bernard, O Médio Oriente e o Ocidente — O que Correu Mal?, Gradiva, Lisboa, 2003 (ed. orig. 2002).
  • Murray, Douglas, A Estranha Morte da Europa, Desassossego, Porto Salvo, 2018 (ed. orig. 2017).

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Galopim

Foto retirada de: https://www.ulisboa.pt/evento/vamos-falar-de-geologia

É o pai da geologia em Portugal, uma ciência não muito popular, mas um ramo do saber abrangente, em que os estudiosos mais competentes necessitam de substanciais noções de física, química e biologia entre outras disciplinas. Galopim de Carvalho é um desses geólogos, professor jubilado, que mantém ainda hoje, aos 93 anos, a curiosidade da juventude. E é essa curiosidade e esse gosto pela aprendizagem que procurava transmitir aos seus alunos e agora transmite aos seus leitores — sejam aqueles que leem os seus livros ou os que o seguem no facebook (espaço que usa também para apresentar receitas de pratos típicos do seu Alentejo natal). A curiosidade é o motor do conhecimento, e Galopim é um eterno curioso.

O livro que melhor caracteriza a faceta didática de Galopim de Carvalho talvez seja Como Bola Colorida, cujo título foi adotado de um célebre poema do, igualmente cientista, Rómulo de Carvalho, conhecido pelo pseudónimo de António Gedeão, a quem Galopim dedica o livro. Trata-se de uma obra para um público alargado: para os curiosos, em geral, mas também para os estudantes e professores de biologia, em particular.

Inicialmente publicado em 2007 (houve uma edição posterior, em 2024), o livro contempla resumidamente todas as áreas da geologia, sendo por isso bastante abrangente. O leitor curioso não vai lembrar-se de todos os inúmeros vocábulos que identificam minerais, pedras preciosas e semi-preciosas quando terminar o livro. Mas vai ficar a conhecer quase tudo sobre a Terra: como se formou, de que partes é constituída (como um cereja), porque os continentes se movem e existem montanhas e abismos, como se formam as rochas magmáticas, sedimentares e metamórficas, de que são constituídos os solos, e muito mais.

É tudo uma questão de tempo, muito tempo. Pouco se consegue ver à escala humana, porque o tempo geológico mede-se em milhões, centenas de milhões, milhares de milhões de anos.

António Galopim de Carvalho defende que se deve atribuir uma maior importância à disciplina de Geologia no ensino básico e no secundário. Deveriam ouvi-lo. Ele é um ilustre cidadão do mundo, e o brilho do seu olhar é o mesmo do da criança que brinca dentro dele com uma bola colorida.

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A nossa edição:

A. M. Galopim de Carvalho, Como Bola Colorida, Âncora, Lisboa, 2024.

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Viagem de Lisboa à Cidade do Cabo

Sou essencialmente um otimista. Se isso

provém da minha natureza ou da educação

que recebi, não faço ideia. Um otimista

tem sempre o rosto virado para o sol e

um pé em movimento para diante. Houve

muitos momentos negros em que a minha

fé nos seres humanos foi duramente posta

à prova, mas nunca me entreguei ao desespero.

Desse lado só estavam a derrota e a morte.

Nelson Mandela.

Alfama e o Norwegian Sky, antes da partida.

Esta viagem foi programada com bastante antecedência, logo quando a companhia americana de navios de cruzeiro, Norwegian Sky, começou a vender os primeiros bilhetes, com 50% de desconto, há cerca de oito meses. Atendendo a essa oportunidade e também ao itinerário — apresentado na tabela incluída no final deste artigo — que seguia, grosso modo, a descida progressiva da costa ocidental de África, iniciada pelos portugueses há mais de cinco séculos, concordámos em como seria uma viagem que valeria muito a pena realizar.

Pesquisámos sobre os voos de regresso e também sobre o alojamento na Cidade do Cabo, e só depois fizemos a reserva do cruzeiro. Decidimos que ainda ficaríamos mais três dias na região da Cidade do Cabo, na África do Sul, depois de terminado o cruzeiro. No total, estaríamos fora 25 dias. Aqui fica o relatório da viagem.

16 de novembro de 2024

Entrámos no Norwegian Sky por volta das três da tarde. É o navio de cruzeiro mais pequeno entre todos em que viajámos, com uma capacidade máxima de 1944 passageiros. É também bastante antigo, digamos, mesmo velho, remontando o seu lançamento a 1996. Nitidamente, está a precisar de remodelação ou de ser reconvertido para outra atividade, talvez até de ser desmantelado, atendendo à idade útil das embarcações de cruzeiro. Como o que nos importa são as atividades fora do navio — sendo que este, para nós, apenas serve para comer e dormir — isso não nos incomoda por aí além, desde que a comida seja razoável e encontremos um espaço sossegado para ler. Veremos.

O salão Spinnaker é um local abrigado e confortável, situado à proa, no deck 11 do Norwegian Sky.

17 de novembro

Hoje vamos a navegar rumo ao Funchal, em pleno Atlântico Norte. O tempo está fresco e ventoso. Há uma ondulação moderada que faz com que o navio oscile um pouco — e há ruídos estranhos na nossa cabine, vindos não se sabe bem de onde. A comida, já deu para perceber, é pouco variada. Mas nem tudo é mau. Agrada-me a liberdade que se dá aos passageiros: ninguém anda atrás de nós para consumirmos seja o que for, ao contrário do que acontece noutras companhias; e a taxa de serviço diária é facultativa, só pagamos se quisermos. Além disso, descobrimos um salão no deck 11, à proa, onde podemos sentar-nos a ler e a escrever. É bastante agradável. Ninguém vem incomodar-nos a perguntar se queremos tomar algo — e temos chá e café à disposição.

Gosto de estar neste espaço, tranquilamente, com a pessoa que amo e me ampara. Ela torna a minha vida mais doce e mais pacífica… e la nave va!

Agora são 18:07 e já percorremos mais de dois terços do percurso entre Lisboa e Funchal. Em Portugal continental já anoiteceu, seguramente, mas no ponto onde nos encontramos — 34º 16,06’N e 014º 44,86’W — ainda é de dia. O navio segue a uma velocidade de cruzeiro de 13,7 nós.

Praia do Porto do Seixal.

18 de novembro

Tanto na Madeira como nas quatro ilhas das Canárias aonde acostará o nosso navio, reservámos carro. Na Madeira viajámos num carro da classe “B” pelo preço de 51€ (mais 16€ de combustível). A empresa é a Auto Rent a Car e situa-se na Rua da Casa Branca, 33. O serviço é decente. Quando chegámos ao Funchal não pude deixar de recordar-me das outras duas vezes em que estivera na Madeira, a primeira há uns 25 anos, e a segunda uns 4 anos depois. Nessa altura já se notava um desenvolvimento muito razoável na ilha, nomeadamente ao nível das infraestruturas, com boas estradas e uma quantidade impressionante de túneis. Tudo confirmado agora.

Dado que tínhamos poucas horas, o nosso tour foi pequeno. Começámos por ir ver a Cascata dos Anjos, uma queda de água sobre uma estrada, perto da Ponta do Sol. A estrada está cortada mas pode-se chegar perto da cascata de carro, bastando depois fazer uns 100 metros a pé. Quando chegámos estava um casal debaixo daquele imenso chuveiro, visivelmente, a divertir-se, e nós pensámos que poderíamos fazer o mesmo… se não nos tivéssemos esquecido dos fatos de banho. Sentimos uma certa inveja. E para afastar esse sentimento negativo, não nos demorámos muito por ali e rumámos a São Vicente, onde acabámos por almoçar num restaurante que o funcionário da empresa que nos alugou o carro havia indicado — Panoramic Ocean. O serviço de buffet é muito aceitável, dá para comer o que se quiser e repetir pelo preço simpático de 8€. Com bebidas, sobremesa e café pagámos, para os dois, 25€, já com gorjeta.

Câmara de Lobos, a vila de Churchil, dos pescadores e das castanholas.

Seguimos para o Porto de Seixal. A praia é fixe, abrigada, dentro de um quadrado que tem, no lado direito, uma enorme encosta verde; no lado esquerdo, um molhe de pedra e cimento; no lado da praia, por trás, sucessivamente, um paredão, a estrada e o casario da vila; e do quadrante em frente à praia, o imenso oceano. A areia é preta, vulcânica, mas a água é clara, límpida. Mas não nos banhámos.

Continuámos o nosso trajeto, em direção a Porto Moniz. As piscinas naturais são bonitinhas e perfeitamente adequadas para crianças. As vistas são espetaculares e o mar é intenso, com cambiantes que vão do azul profundo ao turquesa. Uma senhora, funcionária do parque de estacionamento, disse-nos que Porto Moniz era o melhor lugar do mundo para se viver… — e quem somos nós para duvidar? Regressámos praticamente pelas mesmas estradas, até fazermos um pequeno desvio para Câmara de Lobos, uma simpática povoação de pescadores. Os pequenos barcos amontoam-se na exígua praia de calhaus. Quando as ondas desfeitas regressam ao mar, enrolam os calhaus que emitem um som característico, semelhante a milhares de castanholas trinando em conjunto. De tanto rolarem, os calhaus mais parecem seixos, cada dia mais redondinhos.

Reparámos que há alojamentos e bares que adotaram o nome de Churchill. Só depois soubemos que Winston Churchill pintou um quadro em Câmara de Lobos, e isso bastou para que aqui lhe erguessem uma estátua, à porta de um hotel. Churchill apresenta-se sentado com um pincel numa mão, o charuto ao canto da boca e a tela em frente. Câmara de Lobos é realmente uma terra simpática onde os turistas se misturam com os pescadores locais (alguns no ativo e outros reformados). A atmosfera é amena, mesmo em novembro, e convida ao langor.

Foi uma boa maneira de nos despedirmos da Madeira — ao som das castanholas.

À chegada a Santa Cruz de la Palma.

19 de novembro

Desde o início que La Palma nos encantou. Vista do mar, ao longe, Santa Cruz de La Palma, a capital, parece prestes a ser engolida pelas eminentes montanhas que a ameaçam pelas costas. Mais de perto, porém, começamos a vislumbrar belos edifícios, com sacadas de madeira, de cores diversas. Sob uma delas, na Avenida Marítima, fica a empresa Autos Dirpalma, onde alugámos uma viatura pelo preço de 45€.

Depois de recebermos o nosso Hyundai alugado, subimos pela costa oriental rumo à praia de Nogales. Não chegámos propriamente à praia, porque da estrada onde estacionámos o carro teríamos de descer a pique por um caminho de cerca de 1 quilómetro — e depois subir, claro. Tendo em conta o tempo disponível e os lugares que ainda queríamos visitar, não era sensato metermo-nos numa aventura que nos tomaria, no mínimo dos mínimos, duas horas. Mas ficámos com pena, pois, vista cá de cima, a praia de Nogales é mesmo muito bonita. Continuámos a nossa viagem, e a paragem seguinte foi no Charco Azul, umas piscinas naturais muito atrativas, à semelhança das congéneres que visitámos meia dúzia de quilómetros depois — La Fajana. Aqui não resistimos e demos uns mergulhos. Durante o trajeto até este ponto, vimos, por todo o lado, dominando em absoluto a paisagem, uma imensidão de bananeiras. Bonitas, ordenadas, cuidadas. Toneladas e toneladas de bananas.

Nadando nas piscinas de La Fajana.

O nosso próximo destino não ficava muito longe, uns 40 quilómetros, mas demorámos quase duas horas a lá chegar. Estávamos a contornar a ilha no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, e a paisagem ia cambiando. Depois das bananeiras, pinheiros altíssimos, eretos, e, a partir de certo ponto, vinhas. Estávamos na região de Las Tricias. As folhas das videiras ainda não tinham caído e apresentavam aqueles tons ocres de outono, muito bonitos. Parámos várias vezes para fotografar.

Finalmente, quando saímos da estrada principal para descermos até Poris de Candelaria, que era o nosso destino, começámos a ficar um pouco apreensivos. Os cinco quilómetros que ainda tínhamos de percorrer não estavam à nossa frente, estavam literalmente abaixo de nós. Uma placa no local indica uma inclinação de 23%. Além disso, a estrada não é a melhor, com muita gravilha, o que não facilita a aderência. Mas lá fomos, bem devagar, um pouco receosos de tamanho declive.

Entre as vinhas de Las Tricias, no noroeste de La Palma.

Após estacionarmos o carro ainda tivemos de descer a pé mais uns 600 metros. Lá em baixo, uma minúscula enseada que o mar escavou nas rochas de lava e, sob estas, umas casinhas cravadas, algumas habitadas, ainda que ocasionalmente. Não sabemos como tudo isto começou, mas é impressionante: é difícil entender porque alguém quereria habitar num lugar tão inóspito e tão pouco acessível — por terra e por mar.

Já se sabe, o caminho que se desce tem de se subir, e lá fomos nós, vislumbrando mais céu do que estrada. O Hyundai portou-se bem, esteve à altura do desafio. Antes de completarmos o círculo que fizemos em La Palma, com o retorno a Santa Cruz, parámos ainda no mirador El Time, apenas para vermos a imensa área de lava solidificada, proveniente da erupção de 2021, e tirarmos algumas fotos.

Nas Canárias, o pessoal das empresas que alugam carros não se preocupa muito com o estado dos veículos. Não precisamos de verificar os riscos e os “toques” que os carros apresentam quando vamos recebê-los, e também ninguém vem verificar se há mais algum dano nos veículos quando os entregamos. Em Santa Cruz de La Palma há um parque de estacionamento junto à entrada para o terminal de cruzeiros, e disseram-nos para deixarmos aí o carro, metermos as chaves dentro do porta-luvas, e irmos com Deus.

Poris de Candelaria, La Palma. (Foto da Fla).

Chegámos a esse parque de estacionamento uns 20 minutos antes do horário de todos a bordo, mas o percurso a pé até ao navio é de cerca de mil metros, e parámos ainda numa loja de conveniência para comprar um souvenir, de modo que faltavam uns 5 minutos para o horário limite ser atingido e uns 300 metros para chegarmos ao navio. Nesse momento, a Fla exclamou:

— Esquecemos do seu fato de banho no carro!

E desatou a correr. Fiquei ali petrificado, sem reação, olhando alternadamente para ela a afastar-se e para o portaló do navio. A partir de certa altura, cada minuto que passava parecia uma eternidade. Já ultrapassáramos o limite de todos a bordo em cinco minutos. Um tripulante veio ter comigo para perguntar-me o que se passava. Expliquei. Através de um walkie-talkie ele comunicava com alguém no navio. Finalmente, vi a Fla lá ao fundo. Corria e andava, corria e andava. O marinheiro percebeu e informou pelo walkie-talkie:

— Ela já está no cais.

A Fla chegou quase a rebentar e lá entrámos no Sky, com mais de dez minutos de atraso. Um pequeno susto, mas correu tudo bem. Ainda comentámos que não seria tão mau assim perdermos o navio e ficarmos na Isla Bonita

20 de novembro

Em Lanzarote a Cicar (empresa de aluguer de automóveis) atribuiu-nos um Fiat 500. O escritório da empresa ainda é longe do cais onde o navio atracou, mas uma carrinha estava à nossa espera para nos conduzir até lá, o que facilitou a nossa vida. Cumpridas as formalidades, seguimos no sentido sul. O tempo estava encoberto, pelo que optámos por não nos banharmos em nenhuma das praias que visitámos, ao contrário do que prevíramos. Para chegarmos às praias mais conhecidas de Lanzarote temos de seguir até Playa Blanca e depois percorrer uns cinco ou seis quilómetros de estrada de terra batida, já dentro do Parque Natural de Los Ajaches. À entrada do parque cobraram-nos uma taxa de 3€ pela viatura.

Playa Mujeres, em Lanzarote.

Tínhamos algumas expectativas sobre as praias de Lanzarote, mas, in loco, estas não são, sob nenhum aspeto, tão interessantes como estávamos à espera. A praia do Papagaio é muito pequena, tem um areal pouco atraente, e com a maré vazia parece mais um charco… Ainda assim, a praia mais bonita é a Playa Mujeres, ocupada na sua maior parte por nudistas.

Playa Blanca, que é a localidade mais perto do parque, não apresenta nenhum motivo de interesse. Está nitidamente virada para o turismo, mas o turismo, aqui, é dos mais fracos das Canárias.

Apesar disso, Lanzarote tem, sem dúvida, os seus encantos. A paisagem, praticamente desértica, é exótica e inigualável, embora se torne bastante monótona quando comparada com a diversidade das outras ilhas canárias. O homem, porém, vai-se encarregando de transformar a paisagem e isso aconteceu não só em La Geria, uma adega que visitámos após sairmos do Parque de Los Ajaches, com suas videiras protegidas por pedras vulcânicas dispostas em círculo, mas também em Tías — onde José Saramago e Pilar del Río viveram durante 18 anos — que visitámos depois.

Vinhas de La Geria.

Para entrar na Casa-Museu José Saramago, e aí permanecer durante cerca de uma hora (o tempo que demora a visita), paga-se a quantia de 12€/pessoa. O nosso grupo fez a visita das 12:00 às 13:00 e era composto por umas 15 pessoas, incluindo um casal português que viajava connosco no navio, Jorge Camarneiro e Piedade. Depois desta visita passámos a conviver com eles durante o resto da viagem. A casa onde viveram Pilar e José é bonita, construída, equipada e decorada com muito bom gosto. Está recheada de pinturas, esculturas e outros objetos, com muitas obras de artistas renomados. Além das fotografias, onde aparece por vezes acompanhada por Saramago, a presença de Pilar del Río resume-se a um canto da biblioteca, onde se reúnem, por sua vontade, obras literárias exclusivamente femininas. Talvez o desenho da casa tenha alguma coisa a ver com ela. Não sabemos.

No exterior do edifício, no jardim, há algumas oliveiras — as árvores de que Saramago mais gostava — umas trazidas de Portugal outras da Andaluzia, um olmo, um sobreiro, marmeleiros, palmeiras, pinheiros canários e uma romãzeira; e também uma piscina coberta onde o ganhador do Nobel da Literatura de 1998 nadava para manter a forma. A biblioteca reúne cerca de 13.000 volumes de obras adquiridas por Saramago e Pilar, na sua esmagadora maioria, obras de ficção.

Na Casa-Museu José Saramago.

Goste-se ou não de Saramago, é quase impossível não sentir alguma emoção ao estar num espaço por onde passaram tantos artistas, políticos e muitas personalidades ilustres, e onde o escritor português, auto-exilado em Lanzarote, produziu várias das suas obras.

Por outro lado, não podemos deixar de refletir sobre como este grande defensor de camponeses e operários soube apreciar a vida boa — física e espiritual — que a produção literária lhe proporcionou. Na verdade, ainda não conhecemos nenhum ilustre defensor dos camponeses e operários que decida abdicar do conforto material que os detestáveis dinheiro, lucro e, em geral, o capitalismo proporcionam. E a fundação, sediada em Lisboa, bem como a casa-museu, em Pías, continuam a dar lucro, com apetecíveis benefícios fiscais, em prol de ideias velhas que supostamente trarão um mundo novo… A vida é plena de ironia.

Após a visita à Casa-Museu José Saramago, fomos almoçar ao navio. Depois, ainda houve tempo para darmos uma voltinha por algumas ruas de Arrecife, antes de deixarmos o Fiat 500. Estacionámos no local combinado, num parque mesmo à entrada do porto, deixámos as chaves do carro debaixo do banco do condutor, tal como nos haviam instruído, e percorremos tranquilamente os 400 ou 500 metros que nos separavam do Norwegian Sky.

21 de novembro

Já tínhamos estado em Tenerife (bem como em Lanzarote), mas não tínhamos ido além da capital e de La Laguna. Fora quando fizéramos o nosso primeiro cruzeiro, em 2013, entre Lisboa e Santos (no Brasil), e desde então, até hoje, há toda uma experiência acumulada. Agora, sobretudo em ilhas, sempre alugamos um carro. Desta feita escolhemos a empresa Jocar, na Rua Miraflores, e alugámos um Renault Megane, um compacto da classe “C”, pelo módico preço de 32€. Tratou-se de um veículo com alguma potência, pois subia as íngremes estradas de montanha com relativa facilidade. O aluguer de carros nas Canárias (provavelmente, em toda a Espanha) é muito facilitado e os preços são realmente competitivos. É uma excelente opção para o visitante em férias, sem stress, pois ninguém liga a pormenores, não se faz sequer, como já dissemos, qualquer inspeção ao veículo.

Vista sob o Teide, em Orotava.

E lá saímos, então, de Santa Cruz, por volta das 9:00, em direção a Puerto de La Cruz. Não encontrámos nada de especial nesta localidade, pelo que infletimos para o interior da ilha e entrámos em Orotava. Esta, sim, é sem dúvida uma cidade interessante, com a Igreja de Nossa Senhora da Conceição (Señora de la Concepcíon), muito bonita e bem preservada, as paredes interiores ornadas com cruzes páteas dos Templários (adotadas depois pela Ordem de Cristo); casas senhoriais imponentes, com as tradicionais sacadas de madeira avançando dos edifícios; museus, praças, jardins e parques públicos bem cuidados. Percorremo-la demoradamente, tendo deixado o carro num parque subterrâneo, pois o estacionamento à superfície é simplesmente impossível. Pagámos €2,50 pelo estacionamento, mas esta é sempre a melhor opção porque poupa tempo, algo que para o visitante é sempre precioso. Antes de sairmos da cidade comprámos uvas, mirtilos e água para, juntando às sandes que trazíamos do navio, mais tarde almoçarmos.

De Orotava seguimos para Garachico, uma vila junto ao mar, com edifícios religiosos — igrejas e seminário — cercando a bela praça central, e uma excelente praia de areia vulcânica, abrigada e convidativa para banhos. O clima é, na maior parte do tempo, amigo e tudo parece decorrer dessa languidez, que cai do céu, nestas localidades junto ao mar. O nosso próximo destino era Masca, e para lá chegarmos tivemos de subir, subir, subir. A única estrada de acesso (TF-436) é estreita, e quando dois carros passam um pelo outro é preciso abrandar bastante. No entanto, tal como todas as outras em Tenerife, a rodovia está em bom estado. O principal problema prende-se com alguns condutores ou condutoras que sentem mais dificuldade em medir as distâncias. Isto é natural: a maioria das pessoas que circulam por aqui são turistas com carros alugados, tal como nós.

Masca — cravada na montanha.

Mas por falar em problemas, no que toca a Masca, o maior de todos é o estacionamento. Masca é uma aldeia cravada na montanha, que só tem a estrada referida a passar-lhe por cima. Não há mais nada, nem sequer parques de estacionamento de superfície. De modo que os carros têm de ficar em certos pontos da estrada um pouco mais largos, desenhados para algum tipo de imprevisto (estão espalhados regularmente ao longo da rodovia para facilitar a trafegabilidade), mas que ali servem de estacionamento. Assim, é preciso alguma sorte e muita paciência para conseguir um lugar para o carro. Mas lá conseguimos. Masca não tem muitos atrativos para além da envolvente natural onde se insere, o que lhe confere um certo exotismo, derivado do seu isolamento. Um lugar bom para comer ao ar livre, tal como comprovámos, degustando as sanduíches, os mirtilos e as uvas que transportávamos.

Daqui seguimos para o extenso planalto central que serve de base ao Teide, em pleno Parque Nacional del Teide, Património Mundial. Vistas amplas, rochas de formatos exóticos, paisagem vulcânica, quase sem vegetação. Estávamos a mais de 2 mil metros de altura e mesmo assim o pico do Teide encontrava-se lá em cima, imponente, no alto dos seus 3715 metros — o ponto mais alto de Espanha. Seguindo pela TF-21, chegámos ao Parador de Cañadas del Teide, um hotel, com restaurante, loja comercial e instalações sanitárias. Aproveitámos para fazer algumas compras. Como não vínhamos preparados para o frio (estávamos de calções e t-shirts), não nos detivemos por muito tempo ao ar livre, apenas o suficiente para tirarmos umas fotos.

Parque Natural do Teide.

Depois de cruzarmos todo o planalto, começámos a descer para San Cristóbal de La Laguna. Aqui, estacionámos o carro num parque subterrâneo e passeámos um pouco pela cidade. Depois, descemos para Santa Cruz de Tenerife e devolvemos a viatura. Passavam poucos minutos das seis da tarde. Pelo caminho, que fizemos a pé até ao navio, vimos imensa gente. Santa Cruz, como todas as cidades espanholas, é animada e as pessoas gostam de andar na rua. Depois de jantarmos no navio voltámos a sair (o navio só partiria às 23:00 horas). Era noite já, mas a temperatura estava surpreendentemente quente, tendo em conta o período do ano. Visitámos o auditório Adán Martin, um edifício icónico situado na zona portuária; vagueámos mais um pouco pelas ruas apinhadas de gente. Finalmente, despedimo-nos de Santa Cruz e de Tenerife.

22 de novembro

Hoje chegámos a Gran Canária. Tivemos de acordar ainda mais cedo, pois tínhamos combinado que um funcionário da Auto Sansu estaria à nossa espera à saída do porto com a viatura que tínhamos reservado. Calhou-nos em sorte um Seat Ibiza novo em folha, acabado de sair do stand, marcando 5 quilómetros no contador, por €52. E lá fomos fazer a rodagem da viatura.

Partimos em direção a Teror, onde visitámos o centro histórico, muito bonito, com as sacadas de madeira a sobressaírem dos edifícios, como já observáramos em outras cidades canárias. Vagueámos um pouco pela vila, e depois tivemos de regressar à auto-estrada que liga Las Palmas ao Sul, para seguirmos rumo ao nosso próximo destino, Maspalomas.

Maspalomas, uma miniatura do que haveríamos de encontrar na Namíbia.

Aqui visitámos as dunas, visualmente belas, mas desconfortáveis, pela quantidade de areia que entra no calçado e, mesmo que se esteja descalço, pela areia que entra por todos os orifícios da roupa e do corpo, sobretudo se estiver vento. As dunas devem ser muitíssimo interessantes de visitar ao nascer do sol quando a temperatura de cor é melhor para fotografar e, normalmente, há menos vento. Por causa dele, não nos demorámos muito.

Continuámos a nossa viagem, agora em direção à praia de Mogán. O pequeno povoado em torno da praia é incrivelmente movimentado e torna-se quase impossível estacionar à superfície. Por isso tomámos aquela que é sempre a melhor opção em lugares hiper movimentados: estacionámos num parque subterrâneo. Esta zona sul-sudeste da Gran Canaria é aquela onde ficam as melhores praias de todo o arquipélago e, consequentemente, é também uma zona turística por excelência. Os alojamentos turísticos são demasiados para tão pouco espaço, por isso vão subindo as encostas, montados uns em cima dos outros como peças de lego. A praia de Mogán, como todas as outras que visitámos, estavam cheias de gente, e os restaurantes estavam igualmente apinhados. Se isto é assim em novembro, imagine-se em julho!

Praia de Anfí del Mar: fomos ao banho.

Seguimos, desta feita para Anfí del Mar. O ar estava quente, talvez uns 27, 28 graus, pelo que decidimos provar as águas da Gran Canaria. A temperatura do mar pareceu-nos um pouco fresca, mas não excessivamente: depois de todo o corpo submergir, até que estava bastante agradável. Água, diga-se, impecavelmente limpa e transparente. Demorámo-nos pouco mais de uma hora em Anfí del Mar, e depois encetámos o nosso percurso de regresso a Las Palmas. A auto-estrada, com três faixas de rodagem em cada sentido, estava incrivelmente movimentada, com alguns troços de trânsito lento. Ficámos com a clara noção de que esta é a ilha mais turística das Canárias.

O porto de Las Palmas fica um pouco afastado do centro histórico, pelo que não conseguimos visitar o casco viejo e optámos, em alternativa, por um passeio a pé até à praia de Las Canteras depois de devolvermos o carro, agora com mais de 200 quilómetros registados no contador. Las Canteras, uma praia extensa, estava igualmente repleta de gente, enquanto o sol poente a inundava com a sua luz de fogo…

Não surpreende que a Gran Canaria seja a ilha mais procurada do arquipélago. Nós também gostámos dela.

23 de novembro

Depois de quatro dias nas Ilhas Afortunadas, hoje passámos mais um dia no mar, por isso acordámos mais tarde. “Tarde”, quando se viaja num navio, quer dizer 8:30, um horário que, em terra, quando se está de férias, significa “cedo”. Após o pequeno-almoço viemos para o nosso salão da proa, no décimo primeiro deck, o Spinnaker. Aqui temos poltronas confortáveis, mesas, chá e café, música ambiente, vista privilegiada sobre o oceano — tudo o que precisamos para ler ou escrever. Nesta viagem, a Fla trouxe cinco livros, e eu três. Espero poder falar um pouco mais sobre eles à medida que vamos descendo ao longo da costa africana, “descida” que os marinheiros portugueses iniciaram há mais de 500 anos e completaram em várias viagens, e nós vamos fazer agora em uma viagem só.

Navegamos em águas calmas, apesar do vento. De acordo com informação prestada pelo comandante, que sempre acontece às 11:00 em ponto, quando estamos no mar, encontramo-nos a esta hora na posição 24º 44’N e 16º 27’W, e navegavamos a uma velocidade de 14 nós; a temperatura é de 22º C.

O dia decorreu tranquilamente. À noite, ainda durante o jantar, estivemos um longo tempo à conversa com o amigo de José Saramago, Jorge Camarneiro, e com sua mulher, Piedade.

Na cabine 9336 do Norwegian Sky.

24 de novembro

Mais um dia no mar. Depois do pequeno-almoço, fomos fazer uma caminhada no deck 6. É possível fazer jogging ou uma caminhada em torno do deck 6, sem interrupções, e uma volta completa são 460 metros. Demos apenas cinco voltas, porque havia um exercício só para a tripulação e a “pista” esteve inoperacional por alguns minutos. Entretanto, tivemos de ir à receção porque, supostamente, houve um problema com o meu cartão de crédito: o banco não autorizou a companhia a retirar da minha conta, numa primeira tentativa, 200 dólares e, numa segunda tentativa, 100 dólares. Ridículo. Hoje é domingo e estamos no mar, onde as comunicações através da MEO são proibitivas, por isso tenho de contactar o banco quando chegarmos a Dakar, amanhã, segunda-feira — vejamos o SMS que a MEO me remeterá com as tarifas aplicáveis no Senegal para ter uma ideia de quanto me custará uma chamada para o banco. Fiquei irritado com isto.

De modo que o melhor é distrair-me. Viemos até ao Spinnaker, onde escrevo este “diário de bordo” e irei ler de seguida O Manifesto Capitalista, do sueco Johan Norberg. O comandante acabou de informar (por isso já sabemos que estamos perto das 11:00) que já percorremos 562 milhas náuticas desde que deixámos Las Palmas e estamos a 320 milhas náuticas de Dakar, aonde aportaremos amanhã, segunda-feira, por volta das 7 da manhã.

A caminho de Gorée.

25 de novembro

Hoje levantámo-nos bem cedo. O relógio atrasou uma hora mas nós não tomámos a devida nota, de modo que nos levantámos às 5 da manhã. Só nos apercebemos da mudança horária quando saímos da cabine, e então, face ao muito tempo disponível, fomos à receção (aberta 24 horas por dia) para tentarmos resolver o problema com o banco. Só estava uma funcionária columbiana muito simpática a atender, e nós éramos os únicos clientes. Prontamente disponibilizou-se a partilhar o sinal de internet do telemóvel dela connosco, e assim pude entrar na aplicação do meu banco e verificar que não havia qualquer problema, pelo que fiquei descansado (muito provavelmente, o problema tem que ver com a companhia e não com o banco) e fomos tomar o pequeno-almoço satisfeitos . E assim continuámos, mesmo quando soubemos que o desembarque estava atrasado um hora e, por isso, não teríamos hipóteses de apanhar o barco das 7:30 para a ilha Gorée, tal como havíamos planeado.

A ilha de Gorée é um pedaço de terra minúsculo com cerca de 600 metros de comprimento que vive quase exclusivamente do turismo e, suplementarmente, da pesca. A curta ligação ao continente é feita por embarcações regulares, normalmente carregadas de turistas.

Apesar de termos chegado a horas, acabámos também por perder o barco das 10:00, devido ao enorme fluxo de passageiros, mas lá conseguimos apanhar o das 11:00. Havia muita gente a querer visitar Gorée, entre elas um jovem brasileiro que trabalha para a ONG Save the Children e que estava na fila mesmo à nossa frente. Agora no Senegal, ele já tinha trabalhado em vários países africanos. Explicou-nos como é difícil o seu trabalho em regiões em guerra, com governos autoritários, corruptos, e onde existe imensa pobreza. Falámos sobre vários países, entre eles Cabo Verde — que fica mesmo em frente a Dakar, praticamente à mesma latitude — uma democracia que, a par de poucas outras, é um exemplo para África e, infelizmente, pouco seguido. Maurício, assim se chamava o jovem, concordou. Cabo Verde é, de facto, um exemplo, apesar da vida ser tão difícil naquele arquipélago, com problemas naturais muito sérios, como seja a falta de água, e onde mais de 2/3 da população emigrou. E eu fiquei a pensar que talvez seja por isso mesmo — por haver tantos cabo-verdianos a viverem em democracias ocidentais — que a pressão sobre os políticos, para que ali se tivesse instituído uma verdadeira democracia liberal, tivesse sido mais efetiva.

Porta do Não Retorno na Casa dos Escravos (ilha de Gorée).

Às 11:00 lá embarcámos para Gorée. Esta pequena ilha foi descoberta em 1444 pelo português Dinis Dias, que lhe atribuiu o nome de Ilha de Palma. Trata-se de uma ilha bonitinha, rendilhada com casinhas coloniais coloridas, com a cor ocre prevalecendo nas fachadas. Mal desembarcámos, encontrámos à esquerda do pequeno terreiro, que faz de praça do povoado, o edifício da Polícia, no preciso local onde os portugueses ergueram, em 1482, uma capela. É difícil imaginar que seja preciso, num lugar tranquilo e pacato como este, um posto da Polícia.

O motivo pelo qual Gorée — Património Mundial da UNESCO desde 1978 — tem tantos visitantes, prende-se sobretudo com a Casa dos Escravos, de onde muitos partiram para as Américas. Encontramo-nos em face de uma história pesada, que contrasta com a paz que se sente no local — ou se sentiria se não soubéssemos desta triste história. É significativo que “gorée” signifique “dignidade”, algo que só foi possível alcançar após o longo e sinistro período da escravatura.

O ponto mais simbólico da Casa dos Escravos é sem dúvida a Porta do Não Retorno, o preciso local de onde os escravos partiam para uma travessia do Atlântico plena de sofrimento. É impossível não pensarmos na dor que sentiram os inúmeros escravos carregados à força para os navios negreiros quando olhamos o mar através desta porta. Cyril James, um escritor e historiador negro de Trinidade e Tobago, descreve assim a travessia, no seu livro, Os Jacobinos Negros:

Fla com uma simpática habitante de Gorée.

Nos navios, os escravos eram amontoados no porão em galerias umas sobre as outras. A cada um era dado um máximo de metro e meio de arrumação de largo por menos de um metro de altura, de modo que não pudessem deitar-se nem sentar-se totalmente. Contrariamente às falsidades tão perniciosamente espalhadas acerca da docilidade dos negros, as revoltas no embarcadouro e a bordo eram intermináveis, de tal maneira que era preciso agrilhoar os escravos, mão direita com perna direita, mão esquerda com perna esquerda, acorrentando-os em falanges a grandes barras de ferro. Enfrentavam nesta posição a viagem, subindo uma vez por dia para se exercitarem e permitir aos marinheiros “limpar os baldes”. Mas, quando o carregamento se mostrava rebelde ou o estado do tempo agreste, lá em baixo permaneceriam semanas a fio. A proximidade de tantos corpos humanos despidos, a sua carne ferida e ulcerosa, faziam destes porões um inferno. Durante as tempestades, reforçavam-se as escotilhas com travessas, e nas trevas inclementes e repugnantes eram arremessados de um lado para o outro da embarcação agitada, mantidos no lugar por correntes sobre as suas feridas abertas. Nenhum lugar na terra, observou um cronista um dia, concentrava tanta miséria como o porão de um navio negreiro. (James, 1938).

Foi a única coisa que fizemos em Dakar: visitar a mimosa ilha Gorée, com a sua história trágica. Custou-nos €20, contando com os dois bilhetes de barco e as duas taxas camarárias. (As centenas de pessoas que compraram uma excursão no navio para visitarem a ilha pagaram 139 dólares, cada uma delas, e viram o mesmo que nós, ou talvez menos — e com menos liberdade). A viagem para a ilha (que está muito próxima do continente) demora cerca de 20 minutos.

Quando o nosso navio partiu, ao fim da tarde, passámos junto a Gorée e acenámos na direção da ilha, em jeito de despedida. Os próximos dois dias iriam ser, de novo, passados no mar.

Rua típica de Gorée.

26 de novembro

Hoje acordámos às 10:00. Notámos que o navio navega mais rapidamente e o comandante confirmou isso mesmo na sua comunicação habitual das 11:00. Seguimos a uma velocidade de 20 nós. Gostamos da voz tranquila deste comandante que comunica num inglês com sotaque… grego ou italiano?

Está calor. Ainda de acordo com o comandante, 28 graus. Aproximamo-nos da linha do Equador e continuamos ao longo da costa ocidental africana, seguindo muito provavelmente a rota de muitas caravelas e naus portuguesas. O nosso navio inflete agora ligeiramente para leste, cortornando a enorme curvatura da costa, e entra no Golfo da Guiné. Neste momento são 21:04 e estamos 7º 12.33N e 13º 25.31W. O navio segue a uma velocidade de 19,5 nós.

27 de novembro

Já nos encontramos em pleno Golfo da Guiné e aproximamo-nos cada vez mais de Abidjan, onde atracaremos amanhã às 7:30. Hoje acabei de ler O Manifesto Capitalista, um livro muito bem escrito, apelativo, convincente, e muito bem fundamentado. O título sugere um livro altamente ideológico, mas parece-me, acima de tudo, um livro pragmático: baseia-se na demonstração — com factos mensuráveis — de que as sociedades abertas, democráticas e liberais são mais ricas, mais felizes, mais justas e mais sustentáveis do que todas as outras. Irei compará-lo daqui a dois ou três dias com o Futuro do Capitalismo, de Paul Collier, que comecei agora a ler.

Diz-se muitas vezes que ler é importante, e eu concordo, mas tão importante ou mais do que ler, é ler os livros certos. No campo da filosofia política, podemos só comprar livros que reforcem as nossas convicções — e certamente haverá milhares que o fazem — mas essa é uma estratégia pouco produtiva, pois se queremos aprender algo temos, precisamente, de pôr em causa e de testar o nosso convencimento; para além de ler os grandes teóricos clássicos (pelo menos alguns), temos de insistir, persistir e continuar sempre testando as nossas convicções mais profundas. Ou seja, podemos e devemos ler livros que reforcem as nossas ideias, desde que conheçamos em profundidade as posições contrárias. Isto implica uma multiplicidade de leituras.

À chegada a Abidjan.

28 de novembro

Dizem que Abidjan é a Paris de África, mas, sinceramente, de Paris não vimos nada. Ainda na aproximação ao cais, pudemos observar uma água poluída, suja, cheia de lixo; e a qualidade do ar, como viemos a comprovar, não é melhor do que a da água, há demasiado fumo flutuando.

Tivemos algum tempo à espera para desembarcarmos. Começámos a ver muitos autocarros no cais, uns maiores outros mais pequenos, e percebemos que uns eram para transportar o pessoal das excursões e outros eram os shuttles para levar as pessoas até ao centro da cidade. Só não percebemos para que seriam aquelas motos da polícia, alinhadas a um canto do cais, seguramente, mais de uma dúzia. Fomos dos primeiros a sair do navio e a entrar num dos pequenos autocarros que formavam fila no cais; uns quatro ou cinco à nossa frente já estavam cheios.

Passado pouco tempo, o nosso autocarro arrancou, integrado num comboio de sete ou oito. Qual o nosso espanto quando nos demos conta de que, à frente do comboio ia um batedor da polícia desviando o trânsito. Por vezes, colocava-se em pé na moto e fazia gestos para os condutores se desviarem para a esquerda ou para a direita, ou ordenando que parassem. Finalmente constatámos que os batedores não estavam no cais ao serviço de alguma autoridade que tivesse vindo visitar o navio ou fazer qualquer outra coisa ao cais, como pensáramos, mas sim para abrir caminho aos veículos que nos transportavam. Nunca tínhamos visto nada assim!

Conferência de imprensa no estádio Félix Houphouët-Boigny, em Abidjan.

Após sairmos do autocarro, quatro brasileiros (um casal e duas amigas), ao se aperceberem que falávamos francês, e de que tínhamos o mesmo objetivo de visitarmos a pé os principais pontos da cidade, juntou-se-nos — e lá fomos os seis, caminhando, através da poluidíssima Abidjan, em direção ao Plateau, o bairro mais desenvolvido da cidade. Durante grande parte do percurso não havia passeios seguros para caminharmos, pelo que tínhamos de pisar o asfalto da estrada.

Já no Plateau, quase uma hora de caminhada depois, chegámos a um local onde se situa o estádio de futebol Félix Houphouët-Boigny. O casal de Santarém do Pará tinha ficado um pouco para trás e fez-nos sinal para seguirmos. O grupo reduziu-se para quatro pessoas: um português e três brasileiras. Entretanto, a Fla encontrou um grupo de oito miúdos e pediu para tirar uma foto com eles. Depois disto, os miúdos entraram por um portão do estádio e nós perguntámos se este estava aberto e se podíamos visitá-lo. Os miúdos foram chamar um segurança e este pediu para esperarmos um pouco. Passados uns minutos voltou, disse-nos para o acompanharmos e encaminhou-nos a um gabinete do estádio onde estavam alguns funcionários. Atrás de uma grande secretária estava o membro do staff responsável pela gestão e manutenção do estádio, de seu nome, Esmel Joel.

Fla e as meninas da escola.

Juntaram quatro cadeiras para que nos sentássemos, e o senhor Joel disse-nos que sim, era possível visitar o interior do estádio, mas isso tinha um custo. Respondi que tudo bem, mas nós não tínhamos francos costa-marfinenses, só tínhamos euros. Perguntei em quanto é que ficaria o valor da visita em euros (se eles aceitassem) para quatro pessoas. Joel pediu uma máquina de calcular que prontamente lhe trouxeram. Após uns minutos de muitos cálculos que não percebemos, disse: são 34 euros. Informei as duas amigas brasileiras e estas disseram que não estavam interessadas. Traduzi para o francês. Então perguntaram-nos quanto poderíamos pagar. Tentei um desconto de €10 que foi aceite. Dei €30 para pagar os €24 acordados e recebi o troco em francos da Costa do Marfim: 4.500.

A visita foi exaustiva e começou com uma breve introdução sobre a remodelação e ampliação do estádio, concluídas a tempo deste ser um dos palcos da Taça Africana das Nações (CAN 2023), inclusive da final, conquistada pela Costa do Marfim. E quem foi a construtora que fez as obras? A Mota Engil. Quando Joel nos deu esta informação, dissemos a brincar — “então, enquanto portugueses (generalizei abusivamente), não deveríamos pagar visita nenhuma” — ao que ele retorquiu — “vocês realizaram a reconstrução, mas nós pagámo-la até ao último cêntimo!”

A catedral de São Paulo, em Abidjan. Arrojada.

Dito isto, subimos por um elevador e saímos diretamente num salão que dá acesso ao camarote central do estádio, onde ficam os VIPs. A vista sobre o relvado é, de facto, magnífica. Tirámos várias fotos, não apenas ali, mas também nos outros pontos mais importantes que visitámos a seguir: balneários, vestiários, salas de massagens, gabinetes dos técnicos, bancos de suplentes, relvado, parque de estacionamente reservado aos jogadores e, finalmente, a sala de imprensa. Aqui foi ligada a instalação sonora e pudemos brincar fazendo de treinadores e treinadoras, respondendo às perguntas dos “jornalistas”. Foi bastante divertido e as amigas brasileiras adoraram.

Terminada a visita, agradecemos e seguimos para a Catedral de São Paulo, que tem, de facto, uma arquitetura arrojada. O bilhete de entrada custa 1000 francos por pessoa. A par da Pirâmide, um edifício projetado pelo arquiteto italiano Rinaldo Olivieri, que visitamos de seguida, são os imóveis mais atrativos de Abidjan, uma cidade sob todos os pontos de vista, e também este, bastante pobre. Após estas visitas continuámos a pé em direção ao porto, e encontrámos um arrumador de rua com uma camisola do Sporting.

Começou a cair uma chuva miúda, que em breve engrossou. As amigas brasileiras traziam uma sombrinha cada uma, mas manifestamente, para aquela carga de água, nenhuma das sombrinhas dava para uma, quanto mais para duas pessoas. Abrigámo-nos um pouco debaixo de um viaduto, mas algum tempo depois, vendo que a chuva não parava, decidimos continuar. Já estávamos bastante molhados, mas também já perto do porto, quando um shuttle, que vinha vazio em sentido contrário (certamente para ir buscar passageiros aos pontos combinados), parou, recolheu-nos, deu meia-volta e foi levar-nos ao navio. Agradecemos muito e dei mil francos ao jovem motorista. Mal chegámos à cabine tomámos um duche morno e, assim, não houve tempo para os nossos corpos arrefecerem demasiado e apanharem um resfriado. Ao fim e ao cabo, correu tudo bem.

A “Pirâmide”.

Só resta dizer que os costa-marfinenses são muito simpáticos e educados. Além disso, sentimo-nos sempre seguros. Um rapaz que envergava um colete refletor onde, nas costas, se lia “Mota Engil África”, e com quem conversámos quando passámos de novo à porta do estádio Félix Houphouët-Boigny, apontou na direção de duas mulheres que conversavam uns 20 metros à nossa frente, no passeio, e disse “aquela é a minha patroa”. Quando chegámos junto das senhoras percebemos que eram ambas portuguesas e responsáveis da Mota Engil, e tivemos uns minutos à conversa. À despedida, disse-nos a “patroa”: “Como veem, os portugueses estão em todo o lado”.

29 de novembro

Depois da Costa do Marfim passámos mais um dia a navegar. Mas ainda antes de ser dia, de madrugada, por volta das 3:30, ouvimos pelos altifalantes do navio a comunicação BRAVO e um código qualquer de que não lembramos o conteúdo. Passados poucos minutos repetiram a mensagem, e eis que ouvimos no corredor passos pesados e acelerados, e vozes agitadas. Abrimos a porta e vimos vários bombeiros e dois deles a empurrarem o que nos parecia ser uma maca com rodas, tipo aquelas que se usam para colocar os doentes nas ambulâncias, em cima da qual estava estava um volume tapado com um oleado e preso com cordas. De repente, pensámos que fosse um cadáver, mas quando passaram pela porta da nossa cabine, verificámos que o volume era demasiado pequeno e não tinha a forma de um corpo. Deveria ser material de combate a incêndio, mas não faço ideia do quê.

Havia várias pessoas, tal como nós, à porta das cabines. Perguntei a um dos bombeiros que passou se havia fogo e ele respondeu que “não”, era só fumo. Disse isto mesmo a um “vizinho” de outra cabine que me perguntou se eu sabia o que se passava e ele respondeu: “mas, onde há fumo, há fogo!” Pois. Só que parece que não houve mesmo fogo… Entretanto, apareceram várias pessoas da tripulação a tentar acalmar as pessoas, a dizer que estava tudo bem e que poderíamos ir dormir descansados. Alguns minutos depois ouvimos nos altifalantes alguém dizer que a operação BRAVO estava concluída. Tivemos dificuldade em voltar a dormir.

Na habitual comunicação das 11:00, o comandante informou que o incidente desta madrugada se devera ao sobre-aquecimento dos aparelhos que alimentam o ar condicionado, o que provocou algum fumo, fez acionar os sensores de incêndio e despoletou todo um procedimento que tem de ser cumprido. Daí o aparato, mas nada de especial, portanto. Ainda assim este era o tema de várias conversas, a par da perda do navio por parte de quatro passageiros no dia anterior, em Abidjan.

Um italiano que estava numa mesa ao lado da nossa, no Spinnaker, falava ao telefone com algum familiar ou amigo, e resumia bem a nossa vida a bordo: si dorme, si mangia, si legge.

A foto desta viagem de que mais gostamos. Meninas da aldeia piscatória do Pantufo, São Tomé.

30 de novembro

Hoje chegámos a São Tomé. É a única cidade nesta viagem onde o navio não acosta. Ficámos, portanto, ao largo e viajámos até ao cais de lancha. Este processo foi caótico, com pessoas a esperarem mais de três horas. Nós não esperámos tanto porque fomos à receção reclamar, dizendo que tínhamos reservado um carro e precisávamos de estar na cidade até às 11:00, sob o risco de, se isso não acontecesse, perdermos não apenas o carro, mas também o dinheiro que fora pago previamente. Fomos encaminhados por um atalho até uma das lanchas e esta foi a forma de sairmos ainda com possibilidade de vermos o que tínhamos planeado, em São Tomé.

À saída do porto encontrámos o responsável da empresa de aluguer de viaturas à nossa espera. Os nosso amigos Jorge e Piedade acompanharam-nos, de forma que entrámos os quatro num Suzuki Jimny preto, já com alguns anos. A primeira coisa que fizemos foi meter gasolina, e foi também a primeira estupidez do dia. O depósito do carro estava quase vazio e eu quis atestá-lo com €50 de combustível, sendo que, quando devolvemos o veículo, nem €15, muito provavelmente, teríamos consumido. Mas, tudo bem. Lá fomos com o carro atestado em direção à cascata de São Nicolau. Desde a cidade de São Tomé até lá, é sempre a subir. O Jimny era velhote, mas aguentou-se bem.

No interior da casa-museu Almada Negreiros.

Ao contrário do que pensáramos, a estrada está em boas condições, excetuando o último quilómetro e meio, já fora da estrada principal, um caminho muito esburacado. A cascata é profusa e vigorosa, mas perde um pouco do encanto devido ao elevado número de visitantes. A floresta circundante, sim, é magnífica.

Para regressarmos à cidade de São Tomé tivemos de fazer o percurso inverso. No entanto, fizemos dois pequenos desvios: o primeiro para visitarmos a Casa-Museu Almada Negreiros, e o segundo para visitarmos a roça Monte Café. Na verdade, a casa onde nasceu e viveu até aos 3 anos de idade Almada Negreiros, também está inserida numa roça — a roça da Saudade. A associação privada, sem apoio público, que gere o espaço, parece estar a fazer um bom trabalho. As instalações em madeira, assentes em pilares de betão, foram construídas com critérios estético e funcional de qualidade, e deve valer muito a pena almoçar no restaurante, cercado por uma vegetação exuberante. A Casa-Museu Almada Negreiros, que inclui terrenos à volta de mais de cinco hectares, é gerida por jovens entusiastas. O que nos recebeu e acompanhou na nossa visita, chama-se Joaquim. Eu e Jorge contribuímos com algum valor pecuniário para ajudar a associação.

Saboreando um cafezinho na roça Monte Café.

Voltando à estrada principal, descemos mais um pouco até fazermos o segundo, e igualmente curto, desvio para visitarmos a Roça Monte Café. A visita custa apenas €3 por pessoa e é deveras interessante. A nossa guia chamava-se Marlene, uma jovem tímida mas muito simpática e competente. Ela explicou-nos detalhadamente todo o processo que envolve a produção do café, ou melhor, dos cafés. No final da visita provámos o arábica e o robusta, diferentes, mas ambos bons. Três euros por tudo isto é um preço muito barato, e o meu conselho aos responsáveis do Monte Café é que estabeleçam como preço um valor mais “redondo”: pelo menos €5.

Em todos os lugares turísticos de África há sempre alguém à espera de alguma gorjeta, sobretudo os jovens e as crianças. E pelo que observámos, a taxa de natalidade em São Tomé é muito elevada, de modo que, em todo o lado, fomos rodeados por muitas crianças. Apesar de a pobreza ser evidente, sentimo-nos absolutamente seguros, e as pessoas, em geral, são muito afáveis e educadas. A esmagadora maioria dos adultos e jovens masculinos são adeptos do Benfica, seguramente muitos mais do que os do Sporting e do Porto juntos.

É pena que São Tomé e Príncipe, um país lindíssimo e com um potencial turístico enorme, seja economicamente tão pobre, com uma taxa de desemprego bastante elevada (cerca de 15%). A falta de infraestruturas é gritante: no que toca a instalações portuárias, foram construídos até agora dois pequeníssimos portos (o comércio marítimo é muito reduzido); e quanto às estradas, não chega a 500 quilómetros a extensão das rodovias asfaltadas. Isto prejudica o turismo, setor que poderia impulsionar um maior crescimento económico e aumentar o emprego, mas que padece ainda da falta de alojamentos de qualidade, bem como do elevado preço das passagens aéreas, sobrecarregado pelo aumento exponencial das taxas aeroportuárias, decretado pelo governo.

Fla e Marlene na Roça Monte Café.

Em resultado da má gestão e da falta de investimento, mais de metade da população (55%) vive abaixo da linha-padrão de pobreza e a inflação é elevada. A indústria é praticamente inexistente. E depois, claro, há a doença endémica africana chamada corrupção. A percepção da corrupção tem aumentado em São Tomé e Príncipe nos últimos anos. Entretanto, em abril de 2024, o governo fez um acordo técnico-militar com a Federação Russa, por tempo indeterminado, que prevê formação, “utilização de armas e equipamentos militar, e visitas de aviões, navios de guerra e embarcações russas ao arquipélago”.

A Rússia estende os seus tentáculos em África. Vários países africanos firmaram acordos com Moscovo — entre eles Mali, Níger e Burkina Faso, que cancelaram os acordos de defesa que tinham com a França. A Guiné-Bissau é mais um exemplo de um país lusófono com acordos militares com a Rússia, ao contrário de Cabo Verde — como referimos acima, um dos poucos países verdadeiramente democráticos em África — que tem uma posição de princípio de apoio à Ucrânia na guerra contra a Federação Russa.

Continuámos a nossa descida para a capital, após a despedida da roça Monte Café, mas, já na orla marítima, fizemos ainda um último desvio para visitarmos a aldeia piscatória do Pantufo, apenas 3 quilómetros ao lado da cidade de São Tomé. É quase impossível circular incógnito pela aldeia, pelo que não pudemos passear sem entraves, como desejaríamos. Por todo o lado, mais do que em qualquer outro lugar, havia miúdos pedindo-nos “erro, erro” (euro), o que se compreende mas se torna difícil, pois não podemos contemplar todos.

Não é preciso andar muito para dar um bom mergulho em São Tomé e Príncipe.

Voltámos à cidade de São Tomé, onde deixámos Jorge e Piedade, que queriam dar uma volta a pé. Nós continuámos em direção à praia do Tamarindo, mas a meio do caminho achámos que talvez não desse tempo, e voltámos para trás, mas por outro trajeto, mais próximo da costa. Passámos por uma pequena baía, onde fica a praia Emília e, depois, por outra baía que, afinal, tem o mesmo nome da anterior — ambas se incluem na baía Ana Chaves. Esta segunda baía já se encontra em frente ao centro da cidade. Nesta, visitámos a catedral e depois dirigimo-nos ao forte onde se situa o Museu Nacional. Aqui estacionámos o carro.

Mesmo ao lado há uma pequenina praia abrigada, conhecida simplesmente por PM, e a Fla decidiu ir ao banho. Foi a forma de nos despedirmos de São Tomé, uma ilha que nos surpreendeu positivamente. O destaque vai todo para a deslumbrante Natureza, aqui quase pura, e para a afetuosidade do Povo, que também faz parte dela.

1 de dezembro

Em que é que a ciência contrasta com a ideologia? A resposta é que, enquanto a ideologia brota do cérebro de um único homem, a ciência é o produto de um número enorme de cabeças. É por isso que muitos cérebros tentam constantemente ultrapassar a produção científica conhecida e muitas outras cabeças tentam constantemente confirmar a ideologia estabelecida.

Navegamos em direção a Luanda, aonde chegaremos amanhã.

Bailarina angolana.

2 de dezembro

Hoje chegámos a Luanda, Angola. O desembarque foi difícil devido ao reduzido número dos autocarros, já de si pequenos, que transportavam as pessoas até o exterior do porto. A espera de quase uma hora em pleno cais, ao calor, com insetos rondando, sob um cheiro desagradável (para dizer o mínimo), que provavelmente era devido à proximidade de uns silos de cereais, foi exasperante. Um grupo folclórico local e o pessoal do navio esforçavam-se por minimizar o evidente desconforto, o primeiro cantando e dançando, e o segundo distribuindo água. Desta vez, a responsabilidade não pode ser assacada à Norwegian, mas antes à resposta inadequada dos meios em terra, manifestamente ineficientes. A distância até a saída do porto era relativamente curta; se os responsáveis tivessem estabelecido um corredor pedonal controlado, poderiam ter poupado imenso tempo aos passageiros e facilitado a vida a si próprios.

Enfim, lá chegámos à cidade, propriamente dita. Quisemos levantar algum dinheiro num ATM, mas o primeiro que encontrámos tinha uma fila grande e decidimos seguir. Logo depois, perguntámos a um senhor que saía de um edifício se havia outros ATMs por perto, ao que ele respondeu sugerindo que o seguíssemos, pois ia na mesma direção que nós e poderia ajudar-nos. É sempre bom conversar com as pessoas locais e este senhor revelou-se um “guia” excelente. Explicou-nos que o tratamento por “tu” ou “você”, usado pelos portugueses, é desrespeitoso entre os angolanos. Mesmo os mais velhos devem ser tratados por “senhor” ou “mano”. Assim, passei a tratá-lo por mano Galvão e ele, por ter tido um bisavô chamado Jorge, passou a tratar-me por avô Jorge.

Luanda, um musseque.

Mano Galvão trabalha no Ministério do Interior e faz ação social nas prisões angolanas. Pertenceu às FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola), onde foi oficial do exército (mostrou-nos o cartão com a sua foto, fardado). Apesar do seu cargo de alguma relevância no ministério, mano Galvão vive num musseque, e o seu vencimento mal chega para alimentar a família. Nota-se muito desencanto na avaliação política que faz sobre o seu país. Ele até compreende que haja um certo grau de corrupção dentro do poder estabelecido (as expectativas são, à partida, muito baixas), mas não consegue entender porquê tanta! Não aceita esse abismo tão grande que separa o imenso povo da pequena elite constituída por membros do Partido e das Forças Armadas.

“Então e João Lourenço, ele não veio trazer alguma esperança à sociedade?” — perguntámos. Mano Galvão considera que a vida do povo não melhorou em nada, antes pelo contrário. Algumas reformas foram realizadas, mas são manifestamente insuficientes; até porque, queiramos ou não, João Lourenço está condicionado pela pertença ao Partido, tem de manter privilégios para manter lealdades, e com isso manter a sua própria sobrevivência política e a sua liderança. A situação angolana transparece nas principais ruas e avenidas da capital. Imagine-se como será nos bairros pobres. A própria Marginal de Luanda está esburacada, com edifícios degradados, cheia de pedintes, e com um forte cheiro a urina, um pouco por todo o lado. É por isso que gostamos de circular a pé — ficamos com uma noção mais precisa dos locais que visitamos.

Fortaleza de São Miguel, Luanda.

Mano Galvão encaminhou-nos a um edifício espelhado, governamental, onde no interior havia um ATM exclusivo para os funcionários. Mal entrámos apareceu um segurança, e percebemos que não podíamos estar ali. O nosso amigo puxou da carteira e sacou um cartão com duas listras oblíquas, que era a sua identificação como funcionário do Ministério do Interior. O segurança foi irredutível, não podíamos estar ali, vestidos daquela maneira. Mano Galvão ficou desolado. Percebemos o quanto seria gratificante para ele proporcionar-nos o acesso a um ATM sem filas, num ambiente refrescante, com ar condicionado. Tentámos tranquilizá-lo: dissemos-lhe que a culpa não era dele, nem sequer do segurança que estava a cumprir a sua tarefa, e que, no fundo, o que contava era a sua boa intenção e que lhe agradecíamos por isso. Levou uns segundos a recompor-se da desilusão, mas lá seguimos caminho.

Continuámos para a Igreja da Nazaré, onde entrámos por breves minutos, e depois para o Palácio de Ferro, que observámos apenas do exterior, pois não tínhamos kuanzas (a moeda local). Mano Galvão queria pagar os mil kuanzas dos dois bilhetes (o equivalente a mais ou menos €1), mas rejeitámos, dissemos que voltaríamos mais tarde. Depois disso, dissemos-lhe delicadamente que precisávamos de nos separar; ele tinha de regressar ao trabalho e nós tínhamos de andar mais depressa, porque o nosso tempo era bastante limitado. Mano Galvão disse-nos que, se não tivesse que trabalhar, teria todo o prazer em ir connosco. Agradecemos e despedimo-nos com uma foto dos três no Largo Saydi Mingas, e trocámos números de telefone.

Praia Miami, na ilha de Luanda.

Galvão não estivera connosco por interesse. Ele não procurava nenhuma compensação pela sua ajuda, a não ser, talvez, reconhecimento, consubstanciado em simpatia e admiração. Talvez por isso esquecemo-nos completamente de lhe dar algum dinheiro em euros, que certamente lhe daria muito jeito. Recriminámo-nos por isso, quando demos conta. Em parte, isto aconteceu porque um outro funcionário público, que também nos mostrou um cartão, nos interpelou por causa da câmara fotográfica que colocáramos em cima de um pequeno muro para tirarmos a foto com o temporizador. Avisou-nos para nunca fazermos isso, nunca largarmos a câmara.

O novo funcionário foi-nos acompanhando e dando recomendações, e tivemos de pedir-lhe que nos deixasse continuar sozinhos porque queríamos andar mais depressa e já estávamos cientes de todas as precauções a tomar. Mesmo assim, ele ainda nos seguiu à distância durante alguns minutos. Seguimos pela Marginal e apercebemo-nos de alguns jovens suspeitos que observavam as nossa câmaras fotográficas e mochilas; mas já temos alguma experiência destas coisas e desenvencilhámo-nos bem. Entrámos no Centro Comercial Fortaleza, e apesar de esperarmos uns 15 minutos na fila, conseguimos levantar dinheiro num ATM situado no 4º andar. Todos os ATMs têm filas. Não há dinheiro suficiente disponível e os locais de levantamente são poucos. Levantámos apenas 15.000 kuanzas (cerca de €15).

Ilha do Cabo, mais conhecida por Ilha de Luanda.

De seguida visitámos a Fortaleza de São Miguel, onde se situa o Museu Militar. As armas não são o nosso forte, por isso dispensámos o museu. Circundámos apenas a fortaleza pelo exterior. Vários símbolos exaltam o povo angolano armado. Cá de cima tem-se uma vista privilegiada sobre a baía de Luanda. Descemos. Continuámos a pé e entrámos na Ilha do Cabo, mais conhecida por Ilha de Luanda, passando mesmo ao lado de um musseque. Estávamos preparados para darmos um mergulho, mas reparámos que a água no início da ilha continha alguns detritos — sacos, recipientes e garrafas de plástico, entre outros objetos flutuantes — pelo que decidimos mudar de estratégia.

A Fla teve a ideia de apanharmos um candongueiro (vans azuis e brancas de transporte de passageiros), apanhámos um, sentámo-nos ao lado do motorista, que se chamava Valdemar, e fomos ilha adentro até a paragem final. Valdemar era muito prestável e respondeu com disponibilidade a todas as nossas perguntas de turistas novatos ali; e quando alguém atrás de nós nos pediu dinheiro, impôs-se dizendo: “Então, que é isso!?” Poucos minutos depois parámos num local aprazível, com zonas verdes e restaurantes, muito diferente do início da ilha. Para aceder à praia tivemos de entrar num restaurante, e um funcionário disse-nos que não havia problema podíamos ir para a praia e tomarmos banho à vontade.

Palácio de Ferro, o edifício mais bonito de Luanda.

Foi precisamento o que fizemos, e em boa hora, no pico do calor, quando as nuvens se tinham dispersado, permitindo que o sol brilhasse livremente. Se não nos tivessemos banhado em Angola, não saberíamos o que tínhamos perdido! A temperatura da água é perfeita (apostaria nos 24º), o mar tem aquela textura macia e é limpo, transparente, com umas ondinhas suaves, sem correntes perigosas. Que maravilha! Depois do banho, dois simpáticos rapazes vieram informar-nos de que podíamos tomar um duche de água doce, mas nós já estávamos nos vestindo, pelo que apenas agradecemos o convite. A Fla sempre usa a sua técnica de levar uma garrafa para encher com água do mar e assim lavarmos os pés… São muitos anos disto!

De volta à paragem do candongueiro, vimos muitas pessoas à espera. Disseram-nos que, devido à visita do presidente Biden (que, no entanto, só chegaria ao aeroporto às 5:00 da tarde e ainda eram 3:00), estavam a cortar a Marginal de Luanda ao trânsito. Candongueiros, nem vê-los! Em contrapartida, havia carros particulares a fazer o transporte: carros pequenos e velhos, onde cinco pessoas viajam bastante apertadas. Deveria ser horrível com aquele calor, mas começámos a habituar-nos à ideia. O último shuttle para o navio era às 17:15… Nisto, pára um veículo completamente diferente dos anteriores, um SUV da marca Kia, de onde saem algumas pessoas. Entre os que esperavam, alguns pediram transporte ao condutor, mas este acenava que “não”, que não levava ninguém.

Despedida.

A Fla reagiu com rapidez, quando o carro já circulava, precipitou-se a correr e bateu no vidro da janela. O motorista parou o carro e eu corri também e expliquei-lhe a nossa situação; pedi, por favor, se ele não nos poderia levar até à Marginal (o nome que dão à estrada que circunda a baía de Luanda). O motorista disse para entrarmos. O carro era excelente, com ar condicionado e bancos confortáveis. Pelo caminho soubemos que o proprietário e condutor tem um emprego diferente, mas já tinha terminado a jornada de trabalho e, depois do almoço, veio fazer este biscate para ganhar mais alguma coisa. Pelos vistos não é o único, pois a vida em Angola é difícil, tal como nos confirmou. O salário mínimo em 2024 não chega a €70 e, no entanto, Luanda é, em vários itens, a cidade mais cara do mundo. Foi-nos dito que muita gente não tem que comer e cata o que pode no lixo.

A economia angolana está enormemente dependente do petróleo, embora o país também possua gás natural, diamantes, minério de ferro, fosfatos, feldspato, bauxite, urânio e ouro. Apesar das riquezas naturais, a pobreza é generalizada entre a população (mais de um terço abaixo do limiar); a inflação é alta e a moeda desvaloriza; as instituições públicas são altamente corruptas; o nível de desigualdade é o décimo maior do mundo (coeficiente de Gini) e a esperança de vida à nascença é das mais baixas do planeta — Angola ocupa a 214ª posição.

Esta realidade é dura de aceitar, mesmo para quem, como nós, é turista, mas é infelizmente uma situação comum e maioritária em África, de onde fogem 200 mil milhões de dólares em capitais todos os anos (Collier, 2019). Torna-se um pouco incompreensível como algumas pessoas podem apoiar estes regimes despóticos. (As exceções são talvez o Botswana, as Seychelles, as Maurícias e Cabo Verde). As ideologias são resquícios do tribalismo e são, a par das religiões (é por demais conhecido o caráter religioso das ideologias) as principais responsáveis pela maior tragédia da humanidade — o sofrimento evitável.

Saímos do carro no início da Marginal e fizemos o restante percurso a pé. Fomos ainda visitar o Palácio de Ferro, o edifício mais bonito de Luanda, sem margem para dúvidas, e provavelmente o imóvel antigo mais bem preservado. A tendência é fotografá-lo de todos os ângulos possíveis. Quando nos cansámos, completámos o curto percurso que nos separava da entrada do porto em poucos minutos. Ainda comprámos umas lembranças na feira de artesanato que decorria numa praça em frente ao porto, antes de apanharmos o shuttle. Chegámos ao navio por volta das 17:00. A visita a Luanda foi curta e intensa, alegre e triste, quente mas também refrescante.

A caminho de Sandwich Harbour, Namíbia.

3 de dezembro

Hoje foi mais um dia passado no mar. Às 6 da manhã o telemóvel tocou. Acordei e vi que era o mano Galvão a ligar-me pelo whatsapp. Rejeitei a chamada e tentei dormir de novo, o que me custou algum tempo. Mais tarde vi que tinha várias mensagens dele, incluindo um vídeo em que aparece com a mulher a tomar o pequeno-almoço (mata-bicho, assim lhe chamam). Há pessoas naturalmente boas, e mano Galvão é uma delas.

Hoje terminei o segundo livro desta viagem, O Futuro do Capitalismo, de Paul Collier. Antes lera o Manifesto Capitalista, de Johan Norberg. Como se pode deduzir dos títulos, ambos tratam do mesmo assunto, o capitalismo, e ambos concordam que o sistema capitalista é o único capaz de criar riqueza; no entanto, discordam quanto à melhor forma desse sistema se desenvolver e ser gerador de bem estar social para o maior número possível de indivíduos. Tudo tem que ver com maior ou menor intervenção do Estado. Face à crise política mundial e local (em muitos países), em relação à qual as respostas populistas (ideológicas e nativistas, como lhes chama Collier), atraem mais e mais pessoas. Paul Collier reclama correções estatais para as assimetrias sociais contemporâneas, enquanto Norberg deseja mais liberdade e menos Estado.

Uma imensidão de areia.

No fundo, Collier é um social-democrata e Norberg um liberal. Suspeito que nem um nem outro obterão definitivamente aquilo que querem. A democracia é como uma navegação à bolina — temos de bordejar para a esquerda e para a direita rumo ao nosso objetivo. Desde que este se enquadre dentro dos princípios do estado de direito democrático, está tudo bem. Nada a temer, portanto, das diversas visões democráticas, quando estas concordam na identificação dos principais inimigos — os populistas ideólogos e os nativistas — embora discordem na forma de os combater. O espírito crítico é parte fundamental da democracia.

4 de dezembro

Mais um dia a navegar. Estamos em pleno Atlântico Sul e, desde ontem à tarde, o tempo arrefeceu bastante. Se, por um lado, é natural, pois vamos nos afastando do Equador, por outro, não esperávamos uma descida de temperatura tão abrupta. Além disso, as temperaturas nos próximos portos que visitaremos — Walvis Bay e Cidade do Cabo — estão igualmente baixas, tendo em conta que estamos a três semanas do início do Verão no hemisfério sul.

O vento também não ajuda — frio e forte. Fazemos todas as refeições no Garden Cafe, no deck 11, e o vento gelado entra de rompante sempre que as portas automáticas se abrem, provocando correntes de ar desagradáveis. Já por mais de uma vez tivemos de vestir uma camisola mais quentinha.

“Animais” adaptados ao deserto.

Talvez por causa deste tempo, o salão Spinnaker estava hoje lotado. Em contrapartida descobrimos um cantinho confortável no Sugarcane, um bar no deck 5, de onde escrevo estas linhas, e onde vou a seguir iniciar a leitura do terceiro livro que trouxe para esta viagem, uma autobiografia de Nelson Mandela, Um Longo Caminho para a Liberdade. Amanhã chegaremos a Walvis Bay, sendo que prefazem hoje, precisamente, 537 anos, desde que Bartolomeu Dias e seus companheiros lá desembarcaram, em 1487.

5 de dezembro

Walvis Bay, cujo nome significa “baía das baleias”, é uma cidade cercada pelo deserto e o mar. Tendo em conta que a cidade em si não tem muito interesse, as principais atrações turísticas são mesmo o deserto e o mar. Nós fomos visitar um local onde, precisamente, o deserto se encontra com o mar — Sandwich Harbour. Os passeios a Sandwich Harbour, local situado a cerca de 50 quilómetros, para sul, de Walvis Bay, são provavelmente o melhor a fazer para alguém que, como aconteceu connosco e com o casal Jorge e Piedade (viajámos no mesmo 4×4), tem apenas algumas horas para passar na região. E foi o que fizemos, através da empresa Way Way Safaris and Tours.

Vários veículos Toyota, de empresas diversas, estavam à espera de passageiros que saíam do navio. Os motoristas comunicam uns com os outros por walkietalkies. Iniciado o passeio, cedo começámos a ver grandes “montanhas” de sal, uma das principais produções locais. Passámos junto a rias e lagoas onde nos deparámos com milhares e milhares de flamingos, de duas espécies diferentes, e, pouco depois, nas praias, impróprias para banhos (devido à corrente fria de Benguela, mas também às correntes marítimas e ventos muito fortes), milhares e milhares de corvos marinhos, em formação, focas, patos bravos, gaivotas, andorinhas do mar e muitas aves migratórias. O nosso amigo Jorge Camarneiro, que trabalha na área da aquacultura, referiu que os corvos marinhos são uma verdadeira praga, devorando, só na Europa, mais de 300 mil toneladas de peixe por ano.

Descer a duna é muito mais fácil que subi-la.

Sandwich Harbour é um local único no mundo. Vimos ao longo da viagem alguns animais adaptados a este rigoroso clima desértico: chacais, órixes e uma minúscula espécie de lagarto. Os seres vivos adaptados a este deserto conseguem sobreviver graças aos nevoeiros característicos desta região, causados pelo afloramento da corrente de Benguela, que transporta as águas frias do fundo do mar para a superfície, e que são a única fonte de água disponível. Além destes seres vivos, nós andámos também num dos modernos “animais”, também eles perfeitamente adaptados a este clima e terreno peculiares — os veículos 4×4 que sobem e descem as enormes dunas com espantosa facilidade, além de as percorrerem lateralmente em ângulos incríveis, exponenciando a adrenalina dos passageiros.

Num ponto a meio do percurso, os veículos pararam e experimentámos subir a pé uma duna, que até nem parecia muito alta — uns 15,20 metros. Superámo-la com dificuldade, devido, sobretudo, à forma como os pés (descalçámo-nos para facilitar a tarefa) se enterravam na areia. Imagine-se a dificuldade de caminhar um quilómetro neste terreno arenoso!

O deserto do Namibe tem pelo menos 55 milhões de anos, sendo um dos mais antigos do mundo (se não o mais antigo — não há consenso científico sobre isso) e o único fronteiro ao mar. Com uma área de mais de 30.000 kms2 , este mar de areia do Namibe foi reconhecido como Património Natural pela UNESCO, em 2013.

Almoço no deserto. Jorge e Piedade.

O nosso tour custou 110 dólares (americanos) por pessoa e incluiu um almoço-volante em pleno deserto. Valeu cada cêntimo que pagámos. Quando regressámos, o nosso motorista, Michael, percorreu ainda algumas ruas da cidade de Walvis Bay, completamente plana, e deixou-nos numa pequena zona comercial junto ao porto, onde fizemos algumas compras. Regressámos ao navio muito contentes com tudo o que passámos nesta região da Namíbia.

6 de dezembro

O livro de Mandela é muito bom e lê-se como um romance. Está escrito de uma forma clara, simples, atraente, sedutora, empolgante. É muito interessante constatar como a formação do jovem Mandela influenciou de sobremaneira o seu pensamento político: a forma democrática como se vivia no seio da sociedade xossa, com grande debate interno; e a educação formal em escolas inglesas de índole liberal. Talvez devido à sua educação, e embora seduzido pelo marxismo, Mandela nunca se reconheceu marxista. Ele acabou por aceitar e defender as regras do jogo democrático e liberal, não escondendo a sua admiração pelo parlamentarismo britânico.

A hesitação de Mandela em relação ao marxismo pode, talvez, tornar-se mais clara, através das palavras de James Baldwin, expressas num dos livros (Notas de um Filho Nativo) que trouxemos:

A relação entre Negro e Trabalhador não pode ser resumida, nem mesmo explicada, de modo suficiente dizendo-se que seus objetivos são os mesmos. Isso só é verdade na medida em que ambos desejam melhores condições de trabalho, e só é relevante na medida em que eles juntas forças como trabalhadores para alcançar esses fins. Se formos honestos, não podemos ir além disso.

Num trilho do Cabo da Boa Esperança.

A maior luta de Nelson Mandela, no entanto, foi pela libertação do povo negro sul-africano do jugo do apartheid, a qual viria a conseguir com enorme sacrifício. Tal como o título indica — Um Longo Caminho para a Liberdade — esse é o tema fundamental do livro. Hoje concluí 2/3 das 600 páginas desta magnífica obra, que conto terminar antes do final da viagem. Continuamos a aproveitar todos os locais possíveis do navio onde é possível lermos sossegados, inclusive, em última instância, a nossa cabine.

Para além dos livros que eu transportei nesta viagem, a Fla também trouxe cinco livros, e já os leu todos. Aqui fica a lista dos livros dela.

  • Mishima, Yukio, Confissões de uma Máscara, Companhia das Letras, S. Paulo, 2022.
  • Nguyen, Viet Thanh, O Simpatizante, Alfaguara, Rio de Janeiro, 2017.
  • Gary, Romain, As Pipas, Todavia, S. Paulo, 2021
  • Gurnah, Abdulrazak, Sobrevidas, Companhia das Letras, S. Paulo, 2022.
  • Baldwin, James, Notas de um Filho Nativo, Companhia das Letras, S. Paulo, 2020.

Depois deste dia de navegação, chegaremos amanhã à Cidade do Cabo, onde termina o nosso cruzeiro mas não, ainda, a nossa viagem.

Padrão de Vasco da Gama.

7 de dezembro

Fomos dos primeiros a sair do navio na Cidade do Cabo. Tínhamos reservado um carro a levantar no aeroporto, e apanhámos o shutlle que a Norwegian disponibilizou (37,5 dólares/pessoa) para lá chegarmos. Alugámos o carro no aeroporto para que depois, quando iniciássemos o regresso a Portugal, fosse facilitada a entrega do carro num local onde não tivéssemos, depois disso, de carregar a bagagem durante muito tempo.

O carro foi alugado por três dias: das 11:00 do dia 7 de dezembro às 11:00 do dia 10 de dezembro. Atribuíram-nos um Suzuki automático, praticamente novo, com menos de 500 kms. Uma vez instalados no seu interior, seguimos para Fish Hoek, a cerca de 40 kms, onde fica o pequeno apartamento que alugámos. Chegámos umas duas horas antes do horário do check-in, que era às 14 h., pelo que fomos dar uma volta de reconhecimento pelos arredores. Circulámos na estrada marginal ao mar, passámos por Simon’s Town, fomos à Bolders Beach e regressámos ao apartamento.

Quando David, o anfitrião, abriu a porta, e entrámos no alojamento, ficámos agradavelmente surpreendidos. Embora tivéssemos visto fotos, surpreendeu-nos a limpeza, a luminosidade e a vista espetacular sobre a baía de Fish Hoek e as montanhas, para além do cuidado da decoração e a funcionalidade dos equipamentos. Outra coisa que nos agradou foi o estacionamento para o carro, num espaço privado, com um portão automático que abríamos com um comando que nos foi atribuído. Excelente. Recomendamos vivamente este alojamento para quem passe alguns dias de férias na região do Cabo e, por isso, aqui deixamos o contacto: Room With a View for Two, 1 Marmion Avenue Clovelly, 7975 Cidade Do Cabo, África do Sul (telf: +27 83 434 4034).

Em pleno cabo.

Para aproveitarmos o tempo, fomos ainda nesse dia ao Cabo da Boa Esperança. Uns 15 kms antes do cabo, propriamente dito, fica a entrada do parque, onde tivemos de pagar os respetivos bilhetes de acesso, no valor de 455 rands/pessoa (cerca de 25€). O Parque do Cabo da Boa Esperança é, digamos assim, um parque mais pequeno integrado no Parque Nacional da Montanha da Mesa (Table Mountain National Park), que se estende por toda a península do Cabo e é Património Mundial pela UNESCO. No Parque da Boa Esperança há vários trilhos para percorrer a pé (fizemos alguns deles), dois padrões (Vasco da Gama e Bartolomeu Dias), várias praias, um centro interpretativo e vários pontos de observação. Percorremos os pontos principais e subimos ao topo do cabo através de um trilho íngreme e difícil.

Em frente ao promontório do Cabo da Boa Esperança fica o promontório do Farol do Cabo, aonde também fomos. O mar em redor é violento e não surpreende que Tormentas tenha sido o nome que os portugueses, através de Bartolomeu Dias, primeiramente atribuíram a este local: mais de 650 naufrágios foram registados ao longo dos tempos nas águas verdadeiramente tumultuosas da península do Cabo. Quando saímos do parque, o sol desaparecia no horizonte e chegámos já de noite ao Room for Two with a View, o pequeno apartamento onde estávamos alojados. Tínhamos almoçado no Dixies, em Glencairn, mas jantámos em casa, omelete de frango com batatas e cenouras, e uvas de sobremesa. Desde aí decidimos comer em casa, pois mesmo que as refeições sejam mais simples, ainda é onde se come melhor.

V&A Waterfront.

8 de dezembro

No dia seguinte levantámo-nos cedo pois tínhamos de apanhar o barco das 8:30 que sai de um pequeno cais da V&A Waterfront para a ilha de Robben. Conseguimos dois bilhetes virtuais através da empresa Giraffe Horizons, que deram direito à viagem até à ilha (e volta) e uma visita guiada à mesma, incluindo ao estabelecimento prisional onde Nelson Mandela esteve detido durante 18 anos. (Se considerarmos todos os encarceramentos, Mandela esteve preso mais de 27 anos, em diversos locais). A única forma de conseguir os bilhetes é através da internet, e há várias empresas que os vendem, bastando, para contactá-las, fazer uma pequena pesquisa em qualquer motor de busca.

Quando chegámos à V&A Waterfront estacionámos num parque subterrâneo que nos tinham indicado e tudo decorreu perfeitamente, de modo que saímos do parque com tempo bastante para darmos uma volta pela Waterfront antes de embarcarmos para a ilha. Este pequeno bairro portuário é um exemplo de como uma cidade e o seu porto podem conviver harmoniosamente. O espaço é recente e pleno de equipamentos modernamente recuperados ou construídos: hotéis, restaurantes, centros comerciais, pontes pedonais, lojas, marinas — tudo integrado num conjunto homogéneo, extremamente atrativo e movimentado a qualquer hora do dia.

Pormenor do antigo estabelecimento prisional, onde esteve detido durante 18 anos (dos 27 em que esteve preso) Nelson Mandela.

O trajeto até a ilha de Robben faz-se percorrendo a baía da Mesa (Table Bay) durante uns 12 quilómetros. Há sempre alguma ondulação e, por vezes, devido às condições do tempo, não é possível realizar a travessia. Pelo caminho vimos muitas aves, focas (“Robben” quer dizer “foca” em neerlandês) e golfinhos que brincavam com o barco, saltando da água e cruzando a frente da embarcação com incrível agilidade. Demorámos uns 45 minutos a chegar a Robben — uma ilha que já pertenceu ao continente e é, de facto, nada mais do que o topo de uma montanha, cuja maior parte está submersa. É também um santuário para 132 espécies de aves.

À nossa espera estavam vários guias, cada qual em seu autocarro, num dos quais viajámos até aos pontos mais importantes da ilha — o cemitério dos leprosos, a pedreira de cal onde os presos eram forçados a trabalhar, os bunkers do exército e da marinha, entre outros — que são símbolos atuais de uma história longa, que contrasta com a sua dimensão tão pequena. De facto, já nos séculos XVII e XVIII, os holandeses enviaram prisioneiros políticos das ilhas orientais holandesas para a ilha de Robben; e os ingleses também enviaram prisioneiros para a ilha quando tomaram o controlo do Cabo. Na segunda metade do século XIX, a ilha tornou-se uma colónia de leprosos. De início, os leprosos habitavam aqui de forma voluntária, mas, a partir de uma lei de 1882, foram forçados a viver na ilha sem hipótese de retorno. Durante a Segunda Guerra Mundial, Robben foi usada como base militar. Voltaria a albergar prisioneiros políticos até 1991 e reclusos comuns até 1996, ano em que a prisão de alta segurança foi desativada e a ilha passou a ser um lugar de importância histórica e natural, registado na lista de Património Mundial da UNESCO.

A cela onde Nelson Mandela esteve preso.

O último e principal ponto de paragem durante a visita à ilha é junto ao antigo estabelecimento prisional de segurança máxima, onde um novo guia, desta vez um antigo prisioneiro, nos encaminhou pelo seu interior, explicando como era a vida de presos e guardas nos anos sessenta e setenta do século XX, quando Mandela ali esteve detido. (Mandela não foi o único preso político famoso da ilha de Robben. Kgalema Motlanthe e Jacob Zuma, que foram presidentes sul-africanos, também passaram por lá, entre muitos outros ilustres opositores ao apartheid). Visitámos a cela nº4 da Secção B, algo que toda a gente aguarda com expectativa, apesar desta ser rigorosamente igual a todas as outras da mesma secção. Mas dado que foi a cela de Mandela, todos querem vê-la e fotografá-la. E, claro, nós não fugimos à regra.

Devido à distância que a separa do continente (no seu ponto mais próximo, cerca de 7,4 kms), mas sobretudo devido às correntes fortes e às águas frígidas da corrente de Benguela, era quase impossível escapar a nado da ilha. Quase, mas não totalmente: o primeiro episódio de fuga a nado remonta a 1690 e o nome registado é o de Jan Rykman. Em 1909, um homem que não era prisioneiro tentou fazer a travessia: Henry Charteris Hooper nadou durante 7 horas entre a ilha de Robben e o antigo porto da Cidade do Cabo. A partir daí, vários foram os homens e as mulheres que livremente se aventuraram nesta modalidade de águas abertas, desafiando as águas geladas da baía da Mesa. Hoje em dia realizam-se anualmente várias provas entre Robben e o continente, sendo esta travessia considerada uma das mais exigentes do mundo.

Com Ntozelizwe Talakumeni, ex presidiário, em Robben Island.

O vento também é um obstáculo, e sopra quase sempre fortemente na baía da Mesa. Comprovámo-lo quando fizemos a viagem de volta, agora num barco mais rápido que saltava por cima das ondas como um cavalo. É permitido ir à proa, no exterior da embarcação, mas isso só é possível se nos agarrarmos bem. (Vimos um senhor cair, apesar dos esforços dos dois tripulantes que ajudavam as pessoas a se manterem em pé). Como tinha a máquina fotográfica numa mão, só me restava outra para me agarrar, pelo que não tive hipótese de segurar o boné que tinha na cabeça antes deste voar a alta velocidade em direção ao mar, sem felizmente atingir ninguém. Mas mantivemo-nos firmes na frente da embarcação, observando o mar e absorvendo o vento, e tudo à nossa volta, para gravarmos em nós este momento único.

Quando desembarcámos na V&A Waterfront o sol estava a pique e o número de pessoas que circulavam era muito superior ao que tínhamos visto de manhã cedo. Desta vez demos uma volta maior para explorarmos mais a fundo este bairro, fizemos umas pequenas compras (comprei um novo cap) e confirmámos a impressão que já trazíamos desde o primeiro encontro: este é, sem dúvida, um dos locais do mundo onde a cidade e o seu porto se conjugam da forma mais harmoniosa, um exemplo de recuperação de antigas instalações portuárias, colocadas ao serviço da população local e dos visitantes, nos quais nos incluíamos, e que são muitos. Um caso de sucesso. Depois disto, fomos pagar o estacionamento do carro e ficámos deveras surpreendidos: 40 rands (cerca de €2, 13) para 6 horas de estacionamento num parque com excelentes condições de segurança.

Regresso de Robben Island. Ao fundo a montanha da Mesa.

Da V&A Waterfront seguimos para o bairro Ba-Koop, onde se encontram casas coloridas e habitantes, na sua maioria, de origem muçulmana. Vimos muitas bandeiras da Palestina, palavras de ordem escritas nas paredes dos prédios, mesquitas, e pessoas com roupas típicas da religião islâmica. Por cima das nossas cabeças, a imponente Montanha da Mesa. Fotografámos algumas destas casas coloridas em diversas ruas e seguimos em direção à montanha, que pensávamos ser acessível por estrada. Enganámo-nos. A estrada estava cortada e só poderíamos atingir o topo da Table Mountain por teleférico ou a pé. Decidimos dar meia volta e dirigirmo-nos à zona costeira para ver as praias e descermos ao longo da costa até Noordhoek.

Estacionámos o carro na estrada marginal (M6), e visitámos as pequenas praias Clifton (1ª,2ª,3ª,e 4ª). O mar estava picado e as poucas pessoas que tocavam a água tentavam que esta não lhes passasse acima da cintura. No entanto, muitas outras estendiam-se nas toalhas, tomando banhos de sol. Pouco depois, em Camps Bay, uma praia bastante maior do que qualquer uma das quatro Clifton, e muito mais popular, pudemos observar muitos negros fazendo piqueniques, famílias inteiras com muitas crianças. Um nadador-salvador, também negro, apitava frequentemente para manter as pessoas longe de uma formação rochosa e de outras zonas perigosas. Notoriamente, na zona do Cabo, continua a haver uma separação, ditada por condições sócio-económicas, entre brancos e negros. Lembrámo-nos da autobiografia de Mandela, onde ele refere que, nas primeiras eleições livres, o seu partido (ANC) apenas não tinha vencido numa cidade: precisamente, a Cidade do Cabo.

Camps Bay.

A riqueza desta região está bem patente, de facto, em tudo que nos rodeia: boas infraestruturas, casas de elevado padrão, equipamentos, móveis e imóveis, de nível europeu ou norte-americano. É evidente que não é assim em toda a África do Sul, um país onde grande parte da população vive na pobreza. A principal causa do atraso sul-africano deve-se à chegada ao poder de políticos da ala esquerda do ANC, nomeadamente Jacob Zuma, que aumentaram a despesa pública, favorecendo o consumo e a corrupção em detrimento do investimento. Ao contrário do que acontecera com Nelson Mandela e o seu sucessor, Thabo Mbeki, que praticaram políticas de reconciliação, liberalizaram a economia, democratizaram o país, controlaram a inflação, reduziram para metade a dívida pública e conseguiram crescimento económico na ordem dos 5%, estima-se que Zuma e os seus comparsas tenham saqueado o equivalente a 20% do PIB; a divida pública voltou a aumentar, o PIB tornou-se negativo e a pobreza extrema também aumentou (Norberg, 2024). Além disso, a África do Sul é o país mais desigual do mundo.

Em Camps Bay fomos ao supermercado comprar sanduíches, fruta e água, e almoçámos mesmo ali, na praia, juntando-nos às muitas pessoas que ali faziam piqueniques. Continuámos para sul pela M6, sempre junto à costa, subindo, descendo, serpenteando pelas enormes escarpas sobranceiras ao mar. As vistas são magníficas em muitos pontos do percurso. Não demorámos muito a chegar a uma enorme baía — Hout Bay. Parámos, visitámos o porto de pesca, observámos a enorme praia em forma de concha e seguimos o nosso caminho, sempre para Sul. Pouco depois a estrada entra num parque natural, à entrada do qual pagámos uma taxa no valor de 64 rands (€3,40). Continuámos junto à costa e chegámos a Noordhoek, uma vila plena de belas vivendas, numa região vinícola.

Vista do nosso apartamento, junto à baía de Fish Hoek. (Foto da Fla).

A partir daqui infletimos para leste, afastando-nos da costa, rumo ao nosso alojamento. Queríamos chegar ainda a tempo de fazermos compras para o jantar e, com a inestimável ajuda do Google Maps, conseguimos. A Fla fez umas deliciosas sobrecoxas de frango fritas, acompanhadas por esparguete sem glúten, temperado com coentros; de sobremesa comemos mirtilos, uvas e morangos. Hummm — a Fla faz milagres com pouco! Nesta noite decidimos que no dia seguinte não iríamos andar a correr. Queria terminar a leitura da autobiografia do Mandela e também desfrutar do espaço onde estávamos instalados, por isso era necessário reservar algum tempo para tal. Dormimos como uns anjinhos.

9 de dezembro

Acordámos um pouco mais tarde hoje e, depois de um saudável pequeno almoço em casa, fomos até Boulders Beach para vermos os pinguins. Tínhamos passado lá no primeiro dia, apenas para fazermos tempo até o check-in no alojamento, mas não tínhamos entrado no parque. Desta vez fizemo-lo, pagando para o efeito 430 rands (cerca de €23 para duas pessoas). Os pinguins africanos estão em perigo de extinção: estima-se terem existido 1,5 milhões em 1910, e apenas 10% desse número no final do século XX. A colónia de Boulders é, por isso, muito importante na preservação desta espécie: de dois casais reprodutores em 1982, a população cresceu até os atuais 2.200 indivíduos.

Boulders Beach. A praia dos pinguins.

Dedicámos bastante tempo à observação destas curiosas aves que não voam, antes usam as asas para nadarem debaixo de água, como peixes, e fazem os seus ninhos em terra, acasalando com o mesmo parceiro para o resto da vida. A praia onde vivem está protegida, sem acesso aos humanos, havendo apenas dois varandins de madeira, elevados, e uma passadeira entre eles, por onde as pessoas podem circular. Como é óbvio, fartámo-nos de fotografar. No final, passámos pela loja de souvenirs para comprarmos algumas lembranças deste lugar tão especial.

Não queríamos sair da África do Sul sem provarmos a água do mar. Isso seria impensável! Quando saímos de Boulders íamos com a intenção de encontrarmos uma praia onde pudéssemos dar um mergulho. Encontrámo-la em Simon’s Town. Fronteira a esta pequena cidade, há uma praia chamada Long Beach, onde o mar é calmo, a água transparente e, ao contrário do que pensávamos, não tão fria assim. De modo que, apesar do vento, tomámos um banho delicioso em Long Beach.

Ainda em Boulders.

Da parte da tarde fomos para uma zona mais a leste da False Bay, até a praia de Monwabisi, e voltámos percorrendo a estrada junto à costa. As praias nesta zona são mais batidas e, logo, menos propícias a banhos, do que as da zona oeste da baía, mais abrigadas. Isso nota-se nas próprias estradas, fustigadas pela areia transportada pelo vento. Passámos pela praia de Muizenberg, frequentada sobretudo por negros, onde existem umas casinhas coloridas que pedem aos visitantes para serem fotografadas. Continuámos pela estrada costeira, vimos várias localidades bonitas, piscinas naturais, mais casinhas coloridas nas praias. Fizemos compras para o jantar — umas latas de atum e mais fruta — e voltámos ainda cedo para casa, cumprindo o nosso desejo de usufruirmos, sem pressa, do magnífico ambiente e também terminarmos a leitura da autobiografia de Mandela. A fruta nos supermercados é variada, de boa qualidade e relativamente barata. O mesmo se pode dizer da maioria dos produtos. Depois do jantar começámos a fazer as malas. No dia seguinte partiríamos da África do Sul.

10 de dezembro

Hoje acordámos com aquela sensação de despedida. Tomámos banho e o pequeno almoço, retiramos o lixo, verificámos tudo e transportámos as malas para o carro. Por volta das 9 horas despedimo-nos de David (o proprietário do alojamento) e entregámos-lhe as chaves de casa. Partimos. Fomos a uma estação de serviço para nos encherem o depósito de gasolina e lavarem o carro. Antes das onze estávamos a devolvê-lo à Woodford, empresa de aluguer de viaturas. Tinha corrido tudo bem e eles aceitaram o carro sem reparos. Estávamos à porta do aeroporto e seguimos tranquilamente a pé até ao seu interior para cumprirmos as formalidades de embarque.

Long Beach — o nosso primeiro mergulho na África do Sul.

O resto não tem muita história. Voámos pela TAAG até Luanda e depois apanhámos outro avião da mesma companhia aérea até Lisboa. Os aviões são muito fracos, os serviços a bordo também. O aeroporto de Luanda é dececionante. Mas lá chegámos à capital portuguesa, no dia seguinte, às 6:30 da manhã, onde o meu filho Gil nos esperava com o nosso carro.

Ainda nos faltava fazer uma viagem de cerca de 300 quilómetros até casa. Almoçámos em Faro, no restaurante Os Manos, cavalas e salmonetes grelhados, que estavam divinais; e depois conduzimos, muito devagar, até Conceição de Tavira. Chegara ao fim a nossa última grande viagem de 2024.

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Alguns números desta viagem:

5.900milhas náuticasdistância percorrida em navio.
1.150quilómetrosdistância percorrida de carro.
183,57quilómetrosdistância percorrida a pé.
2.654páginasdos 8 livros lidos.
8.611quilómetrosdistância percorrida de avião.

Itinerário do cruzeiro:

DataLocalizaçãoChegadaPartida
16 nov.Lisboa7:00 pm
17 nov.navegação
18 nov.Funchal7:00 am6:00 pm
19 nov.Sª Cruz La Palma9:00 am5:00 pm
20 nov.Arrecife7:00 am5:00 pm
21 nov.Sta. Cruz Tenerife7:00 am11:00 pm
22 nov.Las Palmas7:00 am7:00 pm
23 nov.navegação
24 nov.navegação
25 nov.Dakar7:00 am4:00 pm
26 nov.navegação
27 nov.navegação
28 nov.Abidjan7:30 am4:00 pm
29 nov.navegação
30 nov.São Tomé9:00 am5:00 pm
1 dez.navegação
2 dez.Luanda8:00 am6:00 pm
3 dez.navegação
4 dez.navegação
5 dez.Walvis Bay7:00 am4:00 pm
6 dez.navegação
7 dez.Cidade de Cabo8:00 am
Muizenberg.

Referências:

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A guerra de Putin contra as mulheres

“Os Cossacos de Zaporíjia escrevendo uma Carta ao Sultão Turco”, de Ilya Efimovich Repin (imagem retirada de: https://www.meisterdrucke.pt/).

Transcrevemos abaixo um trecho do livro A Guerra de Putin contra as Mulheres, da escritora estonia-finlandesa Sofi Oksanen. O livro é de 2024, em ambas as edições — a portuguesa e a original.

Quando a minha avó estónia ia às compras na cidade, era atendida por vendedoras que falavam russo. Na União Soviética era uma profissão muito prezada pois dava acesso a bons negócios por baixo da mesa. Nos grandes armazéns, em particular, estes empregos eram exercidos por russófonos. Como o self-service só chegou bastante mais tarde, e apenas em certas lojas, era preciso pedir à vendedora os produtos pretendidos para que ela os fosse buscar à prateleira. A minha avó cresceu na Estónia independente e, por isso, não tinha aprendido russo na escola. Se um cliente falasse estónio era repreendido: “Fala a língua dos humanos!” A humilhação e o rebaixar ao nível animal daqueles que não falavam russo tornava-se assim o dia a dia dos estónios.

Hoje em dia, na Ucrânia, os torturadores dirigem-se às suas vítimas ucranianas em russo: “Não fales a língua dos porcos!”

Na União Soviética e na Rússia, a língua dos humanos é o russo. As outras são as dos animais.

No seu livro Humanity, o filósofo e historiador Jonathan Glover analisou os fatores que conduzem à violência extrema. Quer se trate de Mao, Hitler ou Putin, os mecanismos que propiciam atos de brutalidade são surpreendentemente semelhantes. Tanto na União Soviética como na Alemanha de Hitler, as populações a liquidar foram desumanizadas. Com isto, enfraquecia-se uma atitude de compaixão e respeito reservada à humanidade, aquilo que Glover chama “recursos morais”. A ideia é minar estas qualidades humanas enquanto tudo corre bem no país empenhado na via dos crimes de guerra, remover a barreira moral que existe em relação aos crimes de sangue, construindo e difundindo uma imagem denegrida do inimigo através dos feeds de notícias, de tomadas de posição e de histórias. O grupo visado começa a sofrer medidas opressivas, é desumanizado, reduzido à categoria de animal, depois de inseto e, por fim, de mera abstração. Matar civis não constitui um problema quando não existe a obrigação de tratá-los como seres humanos. O genocídio é a fase final. Nas valas comuns, as pessoas deixam de ter direito ao seu nome e à sua identidade.

Os genocídios, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade partilham um denominador comum: o Estado genocida prepara o terreno antes de passar à ação. O genocídio e os crimes de guerra começam através de palavras que criam uma realidade. A linguagem populista, polarizada, é a principal matéria-prima. Embora o discurso de ódio nem sempre conduza ao genocídio, o genocídio é sempre precedido por um discurso de ódio, que se inflama passo a passo, e que é geralmente misógino. A violência sexual genocida cometida na Ucrânia é um exemplo extremo daquilo que o populismo autoritário é capaz e do seu objetivo: a destruição total de um povo e de um Estado. Neste sentido, a propaganda russa é um fator crucial na viabilização dos crimes de guerra. No Ruanda, uma estação de rádio muito popular desempenhou um papel determinante na preparação do genocídio e na sua execução. Os diretores da Radio Télévision Libre des Mille Collines (RTLM) foram condenados a prisão perpétua por genocídio. A mesma pena foi aplicada a um apresentador e ao editor da revista Kangura, que incitava ao ódio contra os Tutsis.

A propaganda interna russa move-se da mesma forma há décadas. Encontra eco nos velhos estereótipos acerca do inimigo que perduram. As gerações anteriores estavam habituadas a ver os não russos como fascistas, nazis, indivíduos doentes devido ao seu “nacionalismo”. A utilização de termos estigmatizantes era habitual e moralmente aceite há várias gerações. Repetidas pelas autoridades, pelo sistema educativo, pelos meios de comunicação social e pela justiça, estas mentiras tornaram-se uma verdade comummente aceite. Em 2014, quando o ultranacionalista Aleksandr Dugin exortou os seus concidadãos a matarem todos os ucranianos, mesmo na Rússia a sua posição foi considerada demasiado radical, resultando no seu despedimento da Universidade de Moscovo. Em 2022, com a grande ofensiva, muitos políticos retomaram o seu apelo de outras formas. Em menos de dez anos, declarações deste tipo banalizaram-se no discurso político russo.

O vocabulário desumanizante tem uma longa tradição na Rússia, a vários níveis da sociedade. No jargão oficial da URSS, os membros de um grupo humano colonizado eram designados pelo termo genérico “elementos”. Nos vários documentos dos serviços de segurança que tive a oportunidade de ler, o que mais me surpreendeu talvez tenha sido a linguagem utilizada: as construções são quase todas passivas. As ordens, recomendações e comunicados são assinados com nomes, mas o corpo do texto é sempre redigido na voz passiva, o que minimiza a responsabilidade do signatário. Não existe a sensção de que se está a dar ordens ou a executar medidas opressivas. Apenas se obedece a instruções superiores. Não é surpreendente que, aquando do colapso da URSS, os funcionários dos serviços de segurança não tenham publicado memórias nas quais lamentavam os seus atos ou o facto de terem participado na opressão. Não se arrependeram da forma como tinham tratado os “elementos”, pois enquanto “elementos” era como se de blocos de cimento se tratassem.

A pesada burocracia que dilui a responsabilidade individual nas cadeias de comando e nas reorganizações era bem conhecida na Alemanha de Hitler, tal como a progressiva desumanização dos judeus destinada a pôr em marcha o Holocausto. Desde a Segunda Guerra Mundial tem havido um extenso e cuidadoso estudo do percurso que levou ao Holocausto, e as obras que todos os anos são publicadas sobre o tema mostram que as pessoas querem saber mais. Pergunto, porém, quantos livros foram publicados no Ocidente sobre a retórica desumanizadora através da qual a URSS justificava os seus crimes contra os direitos humanos no Bloco de Leste? Será que faz parte do currículo escolar de um único país ocidental?

O KGB comandou os autores do revisionismo histórico soviético, fornecendo todo um léxico, a partir de diretórios e dicionários atualizados com regularidade e onde cosntavam, nomeadamente, epítetos. Os termos associados aos “Estados liquidados” eram altamente estigmatizantes e falaciosos. Em contrapartida, os adjetivos associados à União Soviética serviam para realçar a grandeza, o poder, a invencibilidade e outras características heroicas. Os olhares dos censores era inescapável, e este jargão não surgiu de forma espontânea: as instruções do KGB e o uso repetitivo de atributos eram fundamentais. As reações de caráter emocional eram importantes e induzidas através de epítetos: quando se associam apenas palavras negativas a certas coisas, as pessoas acabam por sentir repugnância por elas. O jargão oficial tornou a linguagem soviética redundante, pesada e difícil de compreender.

O poeta Lev Rubinstein afirmou que a propaganda era “a morte do significado”. Parece-me uma excelente formulação. Uma vez que pensamos através de palavras, só quando forem devolvidos os significados que correspondem à realidade é que a linguagem poderá despertar e, ao mesmo tempo, iluminar o pensamento. Foi por esta razão que os Estados bálticos aboliram as expressões soviéticas após a restauração da independência. A linguagem da URSS era um idioma ideologicamente puro cujos significados não correspondiam à realidade. Descrevia uma utopia na qual certos “elementos” deixavam de existir, tornando-a real.

A linguagem soviética permitia proceder às deportações, interrogatórios e perseguições. Deste modo, todos os russos tinham o direito de tratar os estónios como tratavam a minha avó, que não merecia ser atendida na loja porque não falava “a língua dos humanos”. Este jargão passou para o novo milénio, e através do exército de trolls da Rússia tem silenciado aqueles que denunciaram os crimes da Rússia contra os direitos humanos, durante mais de dez anos, nas redes sociais. A mesma linguagem foi utilizada para justificar o bombardeamento de barragens e hospitais ucranianos, e justificou o massacre de Bucha.

Na Rússia, a linguagem da era soviética nunca foi condenada. Enquanto o debate pós-colonial aboliu o vocabulário pejorativo nas outras antigas potências imperiais, nada disso teve lugar na Federação Russa, apesar da breve recuperação democrática no início da década de 1990, que tornou possível falar do passado e investigar de forma mais livre e menos censurada. Não sei se a retórica fascista que estigmatiza e demoniza o inimigo se teria dissipado espontaneamente sem o governo de Putin, mas o discurso de ódio e a linguagem do Estado totalitário não podem coexistir com os valores democráticos, tal como os retratos de Estaline e a admiração pelos símbolos que personifica não podem coexistir com os ideais democráticos. Não há coexistência possível.

Os teóricos do Partido Comunista compreendiam que a língua era um instrumento do pensamento, por isso o enfraqueciemnto das línguas nacionais era uma missão importante em toda a URSS. Aqueles que dominavam o russo começaram a pensar como os russos, o ponto de partida étnico do Homo sovieticus. Como resultado da russificação iniciada durante a era czarista, o russo era já a língua de ensino em muitas regiões. Na Ucrânia, por exemplo, o ucraniano foi várias vezes proibido. Estaline chegou mesmo a banir os carateres ucranianos que não constavam do alfabeto russo. O fraco conhecimento e implantação da língua russa na região do Báltico incomodava e dava dores de cabeça ao Partido. Era também uma forma de resistência passiva por parte das populações ocupadas.

Embora os Estados bálticos tenham encetado a descolonização na década de 1990, o processo foi mais prolongado na Ucrânia, tendo, contudo, a Revolução da Dignidade conduzido às leis da descomunização. Posteriormente, a grande ofensiva russa levou a uma desrussificação, a ponto de os autores que escreviam em russo terem passado a fazê-lo em ucraniano: a língua russa é um instrumento de opressão e supremacia russa.

Até agora, e ao contrário da antiga URSS, a propaganda da Federação Russa não teve um objetivo ideológico. No entanto, além da construção de estereótipos acerca do inimigo, ambas partilham o hábito de alterar o significado das palavras. A ocupação era chamada “amizade” e “libertação”; a resistência, “loucura”, “doença” ou “crime”. No início da guerra no leste da Ucrânia, a Rússia falava do “genocídio do Donbass”, cometido contra os russos e russófonos da região, o que não era verdade. O nacionalismo russo é descrito como “patriotismo”, quando se trata de nacionalismo. À guerra na Ucrânia chama-se “operação especial”, quando se trata de uma guerra. A escolha das palavras mostra que Moscovo tem consciência da relutância das pessoas em relação à guerra. Putin está, por isso, empenhado em mantê-la fora da Rússia. Assim, a grande ofensiva começou por se chamar “operação especial”, tendo sido criminalizada a utilização de termos diferentes dos oficiais a fim de transmitir a imagem de uma pequena operação, longínqua e circunscrita, que não podia, de forma alguma, dizer respeito a toda a nação. Esta necessidade de manter a guerra à distância dificultou a mobilização, pois as pessoas iriam compreender que se tratava afinal de contas de uma guerra e que todos estavam envolvidos. Na primavera de 2022, os russos estavam longe de imaginar que os seus filhos poderiam ter de matar os primos, pois antes da Ucrânia os combates desenrolaram-se sempre em regiões distantes e a Rússia não levava a cabo uma ofensiva deste género desde a Segunda Guerra Mundial. Uma das missões de Putin é manter a guerra fora da Rússia, física mas também mentalmente, e conseguiu-o manipulando a linguagem.

O Kremlin não esperava que o conflito durasse muito tempo — talvez pelo facto de predominar na Rússia um grande desconhecimento da história da Ucrânia, da qual se conhecia apenas a versão russa, igualmente adotada pelo Ocidente. A forma como a Rússia assimilou a cultura ucraniana alimentou a ideia de que os ucranianos eram “pequenos russos provincianos” sem cultura própria.

Antes da grande ofensiva, uma exposição de Ilya Repin (1884-1930) percorreu a Europa, tendo sido a maior exposição alguma vez apresentada fora da Rússia. No Museu de Arte do Ateneu, na Finlândia, assim como nas notas explicativas no Petit Palais, em Paria, o artista foi a presentado como um pintor da alma russa. Quando eu estava a escrever um artigo sobre este assunto em 2022, o Google também informava que Repin era russo, embora o próprio, nascido na Ucrânia, se considerasse descendente de cossacos ulanos de origem polaca, sendo a expressão da ucranianidade central na sua obra.

A exposição continha um dos seus quadros mais conhecidos, Os Cossacos da Zaporíjia Escrevendo uma Carta ao Sultão da Turquia (1880-1891), emprestado pelo Museu Russo de São Petersburgo. Os visitantes talvez pensassem que estavam a apreciar uma pintura russa, como indicavam as notas explicativas. Na realidade, o quadro refere-se à Ucrânia. Para os zapórogos, a ambição de alcançar independência em relação à Rússia era essencial, e o quadro representa o hetmanato cossaco. A história deste Estado autónomo é importante para o nascimento dos ideais democráticos na Ucrânia porque, ao contrário da Rússia, não existia um regime de servidão e os seus governantes eram eleitos por uma assembleia geral. A Ucrânia de hoje baseia-se nas ideias dos cossacos. Ao longo dos séculos, chegaram ao território ucraniano imigrantes e refugiados provenientes dos vários impérios: austríaco, austro-húngaro, otomano e russo. Rory Finnin, professor de Estudos Ucranianos em Cambridge, descreve a identidade nacional ucraniana como a história de vários indivíduos que se unem em torno de um ideal anti-imperialista. Foi justamente isso que atraiu as pessoas durante séculos, e é isso que faz da Ucrânia a antítese da Rússia.

Na primavera de 2022, circulou na Internet uma fotografia que recria a composição de Repin no campo de batalha: os soldados ucranianos mandavam assim um recado a Moscovo.

Definir Ilya Repin como um pintor russo é um exemplo típico de apropriação cultural por parte da Rússia, segundo a qual a história cultural da Ucrânia não constituiu um todo independente. Note-se que os museus ocidentais têm apoiado esta política colonial. Quando vista através dos olhos do colonizador, a identidade de um povo e a sua luta pela independência tornam-se invisíveis. O racismo russo em relação aos ucranianos e o tratamento inferiorizante de que são alvo reforçaram a imagem que Moscovo tinha dos ucranianos como seres submissos e incapazes de resistir. No imaginário russo, a Ucrânia, mas também a Polónia e os outros países bálticos, são considerados invensões de povos pequenos, emotivos e histéricos. Daí a surpresa perante a resistência ucraniana, também sentida no Ocidente.

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A nossa edição:

Sofi Oksanen, A Guerra de Putin contra as Mulheres, Objetiva, Lisboa, 2024 (pp. 67-73).

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A malagueta

Autor de mais de 250 publicações científicas sobre a fisiologia e o comportamento das plantas, Stefano Mancuso é um neurobiólogo renomado, professor na Universidade de Florença. O artigo que se segue é um extrato do seu livro “A Revolução das Plantas”, publicado, em Portugal, em 2019. (Foto retirada de: wonderground.press).

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O nome “malagueta” designa um determinado número de espécies do género Capsicum, o mesmo a que pertence o pimento, e quase todas elas se caracterizam por produzir quantidades consideráveis de capsaicina, a molécula responsável pela sensação de ardor (são poucas as variedades que não são picantes). As cinco espécies mais cultivadas são: Capsicum annuum, C. frutences, C. pubescens, C. baccatum e C. chinense, arbustos perenes que, contudo, dada a sua breve vida, são normalmente tratados como anuais. Originárias do continente americano, onde já eram cultivadas há quase oito mil anos, estas plantas assumiam uma grande importância do ponto de vista médico, além de culinário, para as civilizações nativas. A malagueta chegou à Europa graças a Colombo, quando este regressou das suas primeiras viagens à América Central. Como muitas outras espécies comestíveis provenientes do Novo Mundo, converteu-se rapidamente numa planta de grande consumo, difundindo-se a nível global. Em menos de um século, a malagueta tornou-se parte da cultura gastronómica de países como a Itália, a Hungria (de onde provém a paprica), a Índia, a China, a África ocidental, a Coreia, etc. Uma investida incomparável e incontrastável, à conquista dos lugares mais remotos da Terra.
E é precisamente o seu princípio picante que torna a malagueta um alimento tão procurado. Para medir a intensidade do picante, um químico americano, Wilbur Scoville, inventou em 1912 uma escala: a escala Scoville, justamente. O método de medição na sua base, designado por teste organoléptico de Scoville, consiste em diluir o extrato de malagueta numa solução de água e açúcar: um grupo de provadores continua a diluir a solução até esta não conter quaisquer traços de picante. O número de diluições — quanto mais elevado for, mais picante é a malagueta — corresponde ao valor em Unidades de Calor Scoville (ou Shu: “Scoville Heat Units”). Um pimentão-doce tem zero Shu, enquanto a capsaicina pura tem um valor equivalente a dezasseis milhões Shu. Este último representa o valor máximo absoluto de picante para uma malagueta, um valor que possui o mesmo fascínio das constantes físicas fundamentais, como a velocidade da luz ou o zero absoluto de temperatura. Trata-se de um limite intransponível que representa o Santo Graal dos capsicófagos.
Todos os anos, recorrendo a uma qualquer técnica — legal ou ilegal — conhecida para o melhoramento da planta, produz-se um vasto número de novas variedades ou seleções com um elevadíssimo grau de picante. O objetivo é ultrapassar sempre o limite e aproximar-se o mais possível do inalcançável número perfeito dos dezasseis milhões Shu.
Em 2013, a “Carolina Reaper” (a ceifeira da Carolina; sim, precisamente aquela ceifeira, que habitualmente representamos com uma grande gadanha na mão e que designa um monstro capaz de produzir frutos que contêm mais de dez por cento do seu peso em capsaicina) superou o valor astronómico de dois milhões de unidades Scoville! E, deste modo, suplantou o “Escorpião de Trinidad” e o “Naga Viper” no invejado primado de
Capsicum mais picante do planeta. Todos os anos a fasquia se eleva, novos recordes de picante são alcançados e milhões de pessoas no mundo fazem de tudo para procurar estes campeões, para os provar e difundir. E quanto mais picantes são, mais difundidos se tornam. Aquilo que os capsicófagos exclusivamente procuram é a capsaicina. Em doses crescentes. Nos Estados Unidos está inclusivamente à venda um molho picante (e “picante” é um eufemismo) designando por “16 Million Reserve”: trata-se de capsaicina pura em cristais, conservada em frascos produzidos em quantidade limitada; o seu preço no mercado pode alcançar milhares de dólares.
Mas o que é exatamente a capsaicina? Trata-se de um alcaloide que, ao entrar em contacto com as terminações nervosas, ativa um recetor conhecido por TRPV1. Este tem a função de sinalizar ao nosso cérebro níveis de calor potencialmente perigosos e costuma ativar-se, com efeito, por volta dos 43º C. Na prática, o TRPV1 foi “projetado” para nos impedir de fazer coisas perigosas, como agarrar com as nossas próprias mãos um ferro de engomar ardente ou engolir um caldo a ferver. Todas essas ações que nos poderiam causar danos corporais. É por isso que a capsaicina provoca dor, e é também por esse motivo que é usada pelas forças policiais de grande parte do mundo como arma, através dos
sprays de gás pimenta. E por causa dessas mesmas características, é igualmente apreciada no papel de condimento. Contudo, pessoas com uma mente saudável não derramam sumo de limão nos olhos, nem batem com as canelas nos cantos dos móveis porque acham agradável a sensação de dor que isso provoca.
Nesse caso, como é possível que um terço da população mundial aprecie colocar sobre a língua — um dos nossos órgãos mais sensíveis — grandes quantidades de um alcaloide que provoca uma terrível sensação de ardência? Nos últimos anos foram elaboradas diversas teorias a esse respeito. A mais conhecida é a que o psicólogo Paul Rozin definiu como “masoquismo benigno”, segundo a qual determinado tipo de pessoas é atraído pelo picante e outras sensações de perigo. Para estas, comer malagueta é uma variante de andar na montanha-russa: em ambos os casos, defende precisamente Rozin, não obstante o corpo se aperceba do risco dessa atividade, a um nível superior sabe que não corre um real perigo e, portanto, não há uma verdadeira necessidade de interromper o estímulo negativo. O mesmo psicólogo conclui que, depois de uma série de exposições ao mesmo estímulo, o mal-estar inicial transforma-se em prazer.
Apesar de valorizar a sua perspicácia, essa teoria nunca me convenceu. Por um lado, porque adoro comida picante mas nunca me senti minimamente atraído por montanhas-russas, pelo “bungee jumping” ou qualquer outra atividade semelhante; por outro lado, porque a minha mulher, que também ama o picante, tapa os olhos com as mãos quando vê filmes de terror e nem sequer anda de baloiço, quanto mais numa montanha-russa; por outro lado ainda, porque muitos dos vorazes capsicófagos que conheci estão entre as pessoas mais tranquilas e menos propensas a procurar sensações perigosas que alguma vez encontrei; e, por fim, porque me pareceu improvável que um terço da população mundial corresponda a essas características que à partida não me parecem assim tão difundidas. Poderei, no entanto, estar enganado. Em defesa da tese de Rozin estão os resultados de uma pesquisa conduzida por dois estudiosos da ciência da alimentação, John Hayes e Nadia Byrnes, junto de noventa e sete indivíduos, a qual estabeleceu uma correlação significativa entre pessoas que “procuravam sensações” e pessoas que gostavam de picante.
Ao invés, a hipótese que coloquei para explicar a razão de tanta gente no mundo adorar o picante da malagueta é a de que a capsaicina provoca uma ação diferente daquela produzida por outros alcaloides que agem diretamente sobre o nosso cérebro (como a cafeína, a nicotina, a morfina, etc.), mas idêntica nos seus fins: induzir dependência. Para esclarecer de uma forma mais precisa o que pretendo dizer, regressemos à sensação de ardência que vai da boca ao cérebro. Quando o corpo perceciona a dor na língua, desencadeia uma miríade de sinais que chegam ao cérebro, o qual, para aliviar o sofrimento, produz endorfinas. Estas últimas pertencem a um grupo de neurotransmissores dotados de propriedades analgésicas e fisiológicas semelhantes às da morfina, mas muito mais poderosas. É através das endorfinas que o nosso corpo alivia a dor; elas são, sobretudo, a chave para compreender o poder arcano que a malagueta exerce sobre as nossas vidas.
A dependência de endorfina é tudo menos um conceito extravagante; é, por exemplo, o mecanismo que está na base do famosos
runner’s high (ou “euforia do corredor”). Se forem amantes de corrida ou tiverem amigos que praticam desportos de resistência, como a maratona, a natação de fundo ou o ciclismo, provavelmente já ouviram falar deste termo: trata-se de um estado particular de euforia que se manifesta a seguir a uma atividade desportiva prolongada e cansativa.
Comparável à euforia induzida por algumas drogas, este estado pode manifestar-se através de uma intensa felicidade ou de uma profunda sensação de bem-estar. Durante muitos anos não houve nenhuma prova científica de que o fenómeno fosse real; considerava-se, aliás, que esta era uma lenda relacionada com a mitologia associada aos amantes da corrida, até que, em 2008, uma investigação realizada na Alemanha em atletas analisados antes e após praticarem uma atividade física intensa demonstrou que havia um fundamento para este mecanismo.
O
runner’s high é, portanto, um fenómeno real e ocorre precisamente na sequência da libertação de endorfina no cérebro. A potência analgésica deste substância permite igualmente explicar a elevada tolerância à dor que se regista com frequência em atletas submetidos a atividades físicas intensas. São numerosos os casos de maratonistas que continuaram a correr não obstante terem sofrido fraturas ou traumas, os quais, noutras condições, teriam provocado dores insuportáveis. É o mesmo mecanismo pelo qual quem ingere elevadas quantidades de malagueta tende a ser menos sensível à dor; com efeito, a capacidade analgésica da capsaicina está bem demonstrada na mais recente literatura científica.
À semelhança de muitas outras plantas produtoras de substâncias que provocam dependência, também a malagueta confiou na química para ligar a si o mais poderoso e versátil dos transportadores animais: o homem. O que na minha opinião torna esta planta ainda mais interessante é o facto de, ao contrário das demais drogas vegetais que também exercem a sua influência no cérebro de outros animais, a capsaicina exercer uma ação exclusiva sobre o homem. Não há registo, efetivamente, de outros mamíferos que gostem de se alimentar dos frutos da pimenta-malagueta.
O inicio da história evolutiva da capsaicina parece estar relacionado com a sua capacidade de promover na planta uma certa resistência às infeções fúngicas. Por conseguinte, nas zonas sujeitas a uma maior quantidade destes ataques, os frutos de
Capsicum começaram a conter de forma natural uma concentração mais elevada deste alcaloide. Em seguida, a feliz coincidência de os pássaros não possuírem o recetor incumbido de desencadear a sensação de ardência nos mamíferos resultou numa ulterior vantagem evolutiva, favorecendo a disseminação das sementes das plantas mais picantes. A capsaicina, com efeito, mantinha à distância os mamíferos, que, através da mastigação, destruíam as sementes contidas nos frutos, não sendo, no entanto, sentida pelas aves, transportadoras muito eficientes porque não mastigavam as sementes e as levavam consigo para locais mais distantes. Contudo, a verdadeira vantagem da capsaicina para a malagueta foi conseguir por intermédio desta ligar a si, através de uma dependência atípica, o homem, ou seja, o transportador perfeito.
Se a minha teoria acerca da condição de escravatura à qual o alcaloide nos reduziu a nós, mamíferos capsicófagos, continua a não vos convencer, é necessário então deslocarem-se a uma dos milhares de “feiras da malagueta” que todos os anos se realizam em qualquer país do mundo. O ambiente no qual se movem os capsicófagos do terceiro milénio é diferente do tradicional com vestes escuras da minha infância; nessas feiras poderão travar conhecimento com os novos acólitos, enquanto estes estudam a molécula da capsaicina — os mais radicais fazem-se tatuar a fórmula da sua estrutura no pescoço — e envergam t-shirts com a expressão “Pain is good” impressa. Se isto não vos parece dependência…
O consumo de malagueta está em contínuo crescimento no mundo. Países tradicionalmente imunes ao dissimulado prazer da cozinha picante consomem-na em quantidades e modos impensáveis até há poucos anos. Enfim, a estratégia que esta espécie implementou para tornar dependente o homem e colocá-lo ao seu serviço já provou ser vitoriosa. Estar associada ao homem permitiu-lhe em poucos séculos propagar-se no planeta inteiro; nenhum outro transportador lhe teria proporcionado algo semelhante em tão pouco tempo. E, futuramente, será sempre melhor: no fim de contas, para se obter uma sensação de euforia proporcionada pela endorfina é mais simples, e muito menos cansativo, entregar-se a um belo prato de piripíri do que a uma corrida de 42,195 quilómetros.

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A nossa edição:

Stefano Mancuso, A Revolução das Plantas, Pergaminho, Lisboa, 2019. pp. 88-94. 

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A Guerra dos Chips

Os circuitos integrados, também conhecidos como semicondutores e, vulgarmente, chips, são a maior inovação tecnológica na transição do século XX para o século XXI, digamos, dos últimos cinquenta anos. Tal como Gordon Moore previu, a capacidade de processamento de cada chip vem duplicando de dois em dois anos — a chamada Lei de Moore. Os chips são utilizados em praticamente tudo, desde a indústria das comunicações — telemóveis, computadores, eletrodomésticos e automóveis — até à indústria da guerra — mísseis, tanques, drones e serviços de espionagem. O nosso modo de vida tornou-se dependente deles, de tal forma que são estrategicamente mais importantes do que qualquer outro produto à escala mundial e a sua produção representa, de longe, a indústria mais valiosa do planeta. Quando falamos em produção englobamos as duas fases fundamentais da mesma: o desenho e o fabrico. O que acontece é que normalmente as empresas (maioritariamente nos Estados Unidos) que desenham os chips são empresas fabless, ou seja, não os fabricam, porque a maquinaria necessária é muito sofisticada e muito cara, requerendo investimentos avultados para que seja mantida válida a Lei de Moore. Taiwan, Japão, Coreia do Sul e Singapura são os países do Leste asiático que fabricam os chips de última geração, com a China a procurar desesperadamente alcançá-los, mas conseguindo apenas — por enquanto — fabricar chips de segunda linha.

A Guerra dos Chips é uma guerra estratégica, com sansões, retaliações, espionagem e querelas comerciais, como comprova o Chips ans Science Act, uma lei assinada em 2022 por Joe Biden com a intenção de proteger a indústria americana. Dado que os circuitos integrados são essenciais na indústria de Defesa, os diferentes estados procuram que a produção se mantenha em mãos amigas. É por isso que os Estados Unidos estão dispostos a defender Taiwan da China — é em Taipé que se localiza a maior fábrica de chips avançados do mundo e onde são fabricados a maior parte dos chips desenhados pelas empresas fabless americanas. A TSMC (Taiwan Semiconductor Manufacturing Company) foi criada por Morris Chang um chinês fugido do regime comunista e anterior diretor executivo da Texas Instruments. É nesta fábrica que se produzem 90% dos chips mais avançados. Além da TSMC, os maiores fabricantes de chips estão igualmente na Ásia Oriental onde se produzem 90% de todos os chips de memória, 75% de todos os microprocessados lógicos e 80% de todas as bolachas de silício.

A indústria dos chips precisa de máquinas especializadas para a sua produção sendo líder mundial neste campo uma empresa dos Países Baixos chamada ASML (Advanced Semiconductor Materials Lithography). Dado a sua reduzidíssima dimensão, os chips só podem ser esculpidos através de uma tecnologia que usa a luz ultravioleta extrema, com comprimentos de onda muito curtos, o único tipo de luz que permite que componentes igualmente minúsculos sejam impressos nos chips. Esta tecnologia é conhecida como EUV (Extreme Ultaviolet Litography) e as máquinas de litografia mais avançadas, usadas para moldar milhões de transístores microscópicos, cada um mais pequeno do que uma célula humana, são maioritariamente fabricadas pela ASML.

Tudo isto e muito mais consta do excelente livro de Chris Miller, “A Guerra dos Chips”. Miller termina o livro interrogando-se se a Lei de Moore continuará válida por muito mais tempo, ou se a capacidade de processamento de um chip vai deixar de duplicar de dois em dois anos. O que parecia impossível tem sido possível até agora, mas ninguém sabe o que vai acontecer no futuro.

Futuro próximo em que — e isto é algo que o livro de Miller não aborda — os chips clássicos vão perder o protagonismo, em favor dos chips quânticos, com uma capacidade de processamento incrivelmente superior.

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A nossa edição:

Christopher Miller, A Guerra dos Chips, Dom Quixote, Lisboa, 2023.

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Olga Tokaczurk

Capas das edições brasileiras de dois excelentes livros de Olga Tocaczurk (Nobel em 2018). É curioso atentar às traduções. “Correntes” (Todavia) foi o título que atribuíram no Brasil a “Flights” — vencedor do Man Booker Prize — que, por sua vez, foi traduzido em Portugal por “Viagens” (Cavalo de Ferro).

Além das boas recordações (praticamente correu tudo bem) trouxemos, desta viagem ao Brasil, 102 livros. Dois deles de Olga Tokaczurk, que não conhecíamos. Embora habitualmente só incluamos ensaios na categoria “livros”, desta feita abrimos uma exceção: é que esta escritora polaca (polonesa, para os amigos brasileiros) está no nível mais alto entre romancistas, ombreando na qualidade literária com autores superlativos, como Fiódor Dostoievsky, Guimarães Rosa ou Thomas Mann, cada qual com seu estilo próprio, evidentemente. Esta afirmação ousada pode ser provocada pelo efeito surpresa, ou talvez não.

Imaginação, ousadia, rasgo, estilo, rigor e conhecimento (inclusive da “alma” humana — Tokaczurk é psicóloga): estes ingredientes fazem parte de um vasto repertório pessoal e literário.

Já vos aconteceu lembrarem-se de sonhos incríveis quando acordam, mas que depois se desvanecem e já não conseguem recordar? Pois Olga Tokarczuk aparentemente consegue. A sua escrita é uma miríade de atalhos entre o caminho do sonho (ou o pesadelo) e o da realidade. Será esta um sonho ou serão os sonhos reais? A única coisa que é possível dizer é que tudo está interligado.

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Ps. Ainda no Brasil, lemos também um excelente livro de Camila Sosa Villada, O Parque das Irmãs Magníficas, que em Portugal recebeu o título As Malditas (Las Malas, em castelhano). Camila não possui todos os recursos literários de Olga, mas sobra-lhe coragem. Na escrita e na vida.

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Como o Mundo Realmente Funciona

Foto retirada de: https://www.christiancourier.ca/are-we-actually-doomed/.

A Terra é a nossa única casa comum. Os cientistas dizem-nos que não existem condições, pelo menos nos tempos mais próximos, de emigrarmos para outro planeta e, portanto, é imperioso cuidarmos do que temos. Os líderes dos países mais desenvolvidos, o secretário-geral da ONU, a maioria das associações ambientalistas e dos cientistas concordam em que é urgente descarbonizar, diminuindo as emissões de CO2 que contribuem para o tão falado efeito de estufa, evitando que a temperatura média da Terra suba mais do que 1,5º C até ao final do século (Acordo de Paris, 2015).

Mas como?

A tarefa é praticamente impossível e quem diz o contrário não tem noção de como o mundo realmente funciona. Porquê? Em primeiro lugar porque o CO2 permanece na atmosfera durante décadas e mesmo que diminuíssemos drasticamente as emissões, a concentração de CO2 na atmosfera continuaria a aumentar. É de realçar que 60% do CO2 permanece na atmosfera 20 anos; entre 30% e 55% do CO2 permanece um século; e ente 15% e 30% do CO2 permanecerá na atmosfera durante um milénio (Koonin, 2021).

Em segundo lugar, e este é o aspeto mais importante, porque a nossa dependência dos combustíveis fósseis é gigantesca, significativamente para a produção de quatro produtos indispensáveis ao funcionamento das nossas sociedades desenvolvidas, considerados por Smil os seus quatro pilares — amoníaco; plásticos; aços; cimento.1 — mas também noutras indústrias e nos transportes (com grande destaque para o rodoviário).

a) O amoníaco é indispensável para a produção de alimentos, graças ao azoto que contém: “sem o seu uso (diretamente ou como matéria-prima para a síntese de outros compostos azotados) seria impossível alimentar pelo menos 40%, e podendo chegar aos 50%, dos atuais oito mil milhões de habitantes do mundo” (p. 99)2. A síntese do amoníaco foi inventada em 1909 por Fritz Haber e, quatro anos depois, começou a funcionar a primeira fábrica de síntese de amoníaco em Oppau, na Alemanha. Na segunda metade do século XX a produção de amoníaco aumentou exponencialmente, com este adubo sintético a proporcionar, ainda na década de 60, o início da Revolução Verde. Sintetizam-se, hoje, cerca de 150 megatoneladas de amoníaco por ano, com cerca de 80% a ser usado como adubo (p. 104). As atividades humanas na agricultura, silvicultura e uso da terra provocam 18,4% do total de emissões dos gases com efeito de estufa.3

b) A síntese dos dos plásticos é realizada a partir de matérias-primas de hidrocarbonetos. A maleabilidade dos plásticos, os seus baixo peso e considerável resistência, permitem a sua aplicabilidade numa miríade de estruturas, aparelhos e instrumentos — desde tubagens nas nossas casas à indústria aeronáutica, passando por materiais hospitalares (sobretudo de PVC), computadores e telemóveis — fazendo com que os plásticos estejam omnipresentes no nosso dia-a-dia. A produção de plásticos tem vindo sempre a crescer, e de uma forma exponencial. Apesar do despejo irresponsável de materiais plásticos que atingem os oceanos, estes materiais sintéticos tão diversificados são amiúde indispensáveis à nossa vida. É interessante constatar que um estudo a amostras de água do mar mostrou que as microfibras encontradas são sobretudo naturais (mais de 90%) e não de origem sintética, como muitos erradamente pressupõem (p. 109). 4

c) As mais de 3500 variedades de aço são ligas dominadas pelo ferro. “A gusa, ou ferro fundido, o metal quente produzido pelos altos-fornos, tem, de um modo geral, 95 a 97% de ferro, 1,8 a 4% de carbono e 0,5 a 3% de silicone, com vestígios de outros elementos” (p. 109-10), o que o torna quebradiço, pouco maleável e resistente. Atualmente, os aços são produzidos reduzindo o carbono a níveis que vão dos 0.08 a 2,1%, o que, para além de obviar aos problemas do excesso de carbono, faz também com que o aço seja altamente resistente ao calor, só derretendo aos 1425º. A composição do aço é muito variável e permite a construção de objetos gigantes, como pontes, gruas, arranha-céus, equipamentos e infraestruturas de transportes (cascos de navios, carris para comboios, oleodutos), e pequenos, como bisturis ou talheres, além de maquinaria adequada ao fabrico das próprias máquinas. O aço é reciclável e grandes quantidades de eletricidade são necessárias para alimentar os fornos de arco voltaico (EAF) onde o aço é derretido para reutilização. Para se ter uma ideia, um EAF moderno necessita de tanta eletricidade como uma cidade norte-americana de cerca de 150 mil pessoas. Os altos-fornos são, aliás, responsáveis por cerca de 75% das necessidades totais de energia para a produção do aço. A produção primária de aço emite 900 megatoneladas de carbono por ano, ou seja, 7 a 9% de emissões diretas da combustão mundial de combustíveis fósseis. O ferro, constituinte do núcleo da Terra, é abundante também na crosta terrestre5 e os recursos mundiais desta matéria-prima ultrapassam os 800 mil milhões de toneladas, suficientes para mais de 300 anos, atendendo à relação recurso/produção (R/P).

d) O cimento é um composto produzido através do aquecimento (pelo menos, a 1450º C) de calcário moído e de argila, xisto ou desperdícios (fontes de silicone, alumínio e ferro) em grandes fornos. Esta sinterização produz clínquer (calcário e silicatos de alumínio fundidos) que é triturado para se obter um pó fino — o cimento. Este material, misturado com inertes de dimensão variável (areia ou cascalho) e água dá origem ao betão, profusamente usado na construção civil. O cimento representa apenas 10% a 15% da massa final de betão, os inertes, 65% a 85% e a água, 15% a 20%. O betão atual é bastante mais forte do que o betão antigo e aguenta bastante a compressão, mas é fraco na tensão, sendo por isso frequentemente reforçado com aço, dando origem ao betão armado. Assim, o betão é amplamente usado na construção de arranha-céus, túneis, pistas de aeroporto, estradas, barragens. O betão pré-esforçado (com o aço a ser tensionado e, em seguida, libertado quando o betão se funde com o metal) veio melhorar a resistência à tração do aço reforçado e permitir a sua utilização em pontes, viadutos e edifícios com estruturas arrojadas como a Ópera de Sidney. O betão não é um material muito durável pois pode ser atacado pela humidade, pelo frio, pelo crescimento de bactérias e algas que causam a sua deterioração. A necessidade de renovação é por isso permanente e as necessidades de cimento para a produção de betão são contínuas.

Finalmente, e em terceiro lugar, a descarbonização é extremamente difícil de concretizar porque, se por um lado, os países desenvolvidos poderiam (e deveriam) poupar combustível — através da redução do desperdício alimentar, comendo menos carne, viajando menos, consumindo menos calorias, produzindo menos SUVs, por exemplo — por outro lado, os habitantes dos países subdesenvolvidos (uma parte muito substancial da humanidade) precisam de consumir mais calorias, comer mais carne, aquecer ou refrigerar as suas casas, ser mais ricos (e, logo, viajar mais, ter mais carros, mais infraestruturas e equipamentos), isto é, precisam de aumentar o consumo de combustíveis.

Dir-se-á: há que acelerar a produção de energia “verde” pois essa é a única forma de diminuir drasticamente as emissões. No entanto, continuamos, aqui, a debater-nos com imensas dificuldades. Uma única torre eólica requer para sua construção, transporte, implantação no terreno e manutenção uma quantidade enorme de energia proveniente dos combustíveis fósseis, além de que acumula grandes quantidades de aço, cimento e plásticos; uma bateria de lítio típica, cerca de 450 quilogramas, contém à volta de 11kg de lítio, quase 14 quilogramas de cobalto, 27 quilogramas de níquel, mais de 40 quilogramas de cobre e 50 quilogramas de grafite — mas também 181 quilogramas de aço, alumínio e plásticos (p. 124). Além disso, como instalar baterias nos aviões a jato se a densidade energética das baterias a lítio é 40 vezes menor do que a densidade energética do combustível consumido pelos atuais aviões? O processo de descarbonização dos transportes de longa distância é ainda desconhecido. Devido à enorme dificuldade de armazenamento de energia, a chamada energia verde está vocacionada essencialmente para a produção de eletricidade, e a eletricidade representa apenas 18% do consumo total da energia final usada no mundo (p.53).

A solução óbvia parece ser a energia nuclear. Além de limpa, tem densidade energética e é (ao contrário do que geralmente se pensa) bastante segura. Porém, os únicos países que estão a expandir a sua capacidade nuclear para produção de energia, são a Índia, a China e a Coreia do Sul. Em parte por pressão dos ambientalistas, em parte devido ao acidente nuclear de Fukushima em março de 2011, em parte pelos grandes investimentos necessários e os atrasos na construção, aliados à disponibilidade de gás natural barato nos EUA, e à aposta nas energias eólica e solar na Europa, em parte por puros preconceito e ignorância, a energia nuclear foi surpreendentemente negligenciada. Isto parece-nos um enorme erro (aqui a opinião é mesmo nossa) e a própria União Europeia considera que não será possível a descarbonização total até 2050 sem que 20% de energia total provenha da fusão nuclear.

A situação é, portanto, difícil, e a recusa de vários países em utilizarem a energia nuclear, só a agrava. A transição energética parece não ser suficiente — será necessária uma mudança no nosso estilo de vida. Mas quem está disposto a viajar menos (a indústria do turismo — as viagens de avião e em navios de cruzeiro — não para de crescer), a comer menos (com tanta gente a passar fome no mundo), a comprar menos automóveis (com tantos países a ansiarem pelo crescimento económico e níveis de consumo do primeiro mundo)? A assimetria entre países ricos e pobres provoca graves problemas, como desigualdade, crises migratórias e também crise climática. Os países ricos têm bastante margem para diminuírem o desperdício, reduzirem o consumo, comprarem carros menos potentes, construírem edifícios mais eficientes e até, eventualmente, fazerem menos viagens de longa distância. Mas isso não é possível nos países em vias de desenvolvimento e nos países mais pobres, e assim a descarbonização e a transição energética serão inevitavelmente mais lentas do que a velocidade reclamada por ambientalistas radicais e esperada por políticos ingénuos e otimistas.

Vaclav Smil não é otimista nem pessimista, é realista. Acredita na Ciência e não em hipóteses extremistas, como o apocalipse climático ou o triunfo avassalador da tecnologia. As previsões historicamente falham e o futuro é aberto — depende de muitas coisas, e também de nós. Uma posição realista implica colocar em cima da mesa dois conceitos muito pouco falados, mas que provavelmente impulsionarão a humanidade para um novo patamar de desenvolvimento científico e tecnológico: mitigação e resiliência.

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A emissões globais de gases com efeito de estufa, por setor. (https://ourworldindata.org/emissions-by-sector#energy-electricity-heat-and-transport-73-2).
O consumo de energia por tipo e região, em 2022. Repare-se na pouca representatividade das energias renováveis e, sobretudo, da energia nuclear. A eletricidade proveniente de barragens tem grande incidência na América do Sul. Em: https://www.energyinst.org/statistical-review

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Notas:

1 “A produção global destes quatro materiais indispensáveis consome cerca de 17% do fornecimento de energia primária do mundo, e é responsável por 25% de todas as emissões de CO2 com origem na combustão de combustíveis fósseis” (p.98).

O silicone, transformado em lâminas finas, é o material indispensável para a produção de microchips — e sabe-se como, num mundo ligado pela internet, os microchips são importantes. No entanto, as pessoas poderiam ter vidas prósperas e boas sem internet e eletrónica. Por isso, o silicone (Si), que é bastante abundante na Natureza — o segundo elemento mais comum na crosta terrestre (28%) depois do oxigénio (49%) — não é um material vital para a civilização contemporânea, e não é considerado por Smil como um dos pilares da mesma (p. 96).

2 “O amoníaco é um composto inorgânico simples, com um azoto e três hidrogénios (NH3), o que significa que o azoto compõe até 82% da sua massa”. (p. 101). “Pode ser aplicado diretamente nos campos, caso se tomem as devidas precauções e se usem equipamentos especiais; mas o composto é usado, sobretudo, como matéria-prima indispensável para a produção de fertilizantes azotados líquidos.” (p. 104).

3 https://ourworldindata.org/emissions-by-sector#energy-electricity-heat-and-transport-73-2.

4 https://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.aay8493.

5 Só o oxigénio, o silicone e o alumínio são mais comuns. O ferro, com quase 6%, está em 4º lugar.

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A nossa edição:

Vaclav Smil, Como o Mundo Realmente Funciona, Planeta de Livros, Lisboa, 2022.

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O Piroceno

Stephen J. Pyne é professor emérito da Universidade do Arizona e um historiador ambiental, dedicado há mais de 50 anos à história do fogo e à sua relação com os humanos. (Foto retirada de: https://www.facebook.com/springcreekproject/photos/a.298781216840275/5135340209850994/).

A relação do homem com o fogo é ancestral. Sem fogo não existiria humanidade. E a forma como o fogo se propaga depende em muito da forma como as sociedades humanas se organizam. Isto é algo que os homens primitivos já sabiam, mas que, com o desenvolvimento científico e tecnológico tendemos a esquecer. Passámos a domar o fogo e a circunscrevê-lo ao interior de máquinas e utensílios — na indústria, nos transportes, nas nossas fábricas e cozinhas.

Com o abandono dos campos e a concentração das populações nas grandes cidades — e a consequente acumulação de combustíveis (sobretudo combustíveis finos) — os fogos florestais tornaram-se incontroláveis. Criámos uma verdadeira idade do fogo — o Piroceno1 . Urge retomar práticas ancestrais (o que já se faz nas sociedades onde o estudo do fogo está mais avançado) como, entre outras, o fogo prescrito ou controlado e “precisamos de recordar que o fogo não é simplesmente uma ferramenta, uma presença ou um processo a ser manipulado, mas sim uma relação”2.

Temos de compreender que não podemos viver sem o fogo e que, apesar do seu poder destruidor, ele não é nosso inimigo.

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Notas:

1 O termo “Piroceno” foi cunhado pelo próprio Pyne no ensaio The Fire Age, publicado em maio de 2015 na revista Aeon.

2 Ob. cit., p. 181.

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A nossa edição:

Stephen J. Pyne, Piroceno — De como a Humanidade criou uma Idade do Fogo e o que virá a seguir, Livros Zigurate, Lisboa, 2023.

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