Amália foi uma cantora de dimensão mundial, ao nível dos melhores intérpretes de todos os géneros musicais.
Muitas músicas foram compostas e interpretadas tendo como referência Alfama – fados, sobretudo. Um deles – “Igreja de Santo Estevão” – interpretado por Fernando Maurício, poderia ser o escolhido por muitos, se tivessem de optar por uma canção para Alfama; os Madredeus lançaram nos anos 90 uma bela canção, precisamente, “Alfama”, digna também de uma representação musical do bairro; “O Barco vai de Saída” (“adeus ó cais d’Alfama”), de Fausto Bordalo Dias, é um tema belíssimo e muito animado que se coaduna com a tradição marítima do bairro, e poderia ser escolhido, também; várias marchas populares poderiam igualmente representar (provavelmente da forma mais bairrista entre todas) a nossa querida Alfama…
Eu, porém, escolhi uma composição, uma letra e uma interpretação que me pareceram as melhores. E um local também. A composição é de Alain Oulman, a letra de Ary dos Santos, a interpretação da grande Amália e o local Tunes, na Tunísia. Não teve influência na minha opção, mas é de realçar o facto de Ary dos Santos ter vivido muitos anos na Rua da Saudade, nos arrabaldes do bairro; e a escolha de um país árabe, como palco desta fabulosa interpretação (como todas) de Amália, é carregada de simbolismo.
Como não podia deixar de ser, o tema em questão intitula-se “Alfama” – e é arrebatador.
Aguarda-se com muita expectativa o documentário Zappa, de Alex Winter.
Todos nós somos influenciados pela música que ouvimos com nossos amigos na adolescência. É muito comum esse ser o tipo de música que acaba por se tornar o nosso preferido pela vida fora. O mesmo se passou comigo, claro, mas não por muito tempo. Cedo percebi que, como outra qualquer expressão artística, a música, quando de qualidade, é intemporal. Hoje ouço alguma música do tempo da minha adolescência, de vez em quando, mas está longe de ser o tipo de música que ouço mais e, sobretudo, o tipo de música de que gosto mais. Na verdade, gosto de tanta coisa, que acaba por ser bastante difícil dizer do que gosto mais — depende muito do humor de cada momento. Há, porém, um músico cujos trabalhos ouvi muitas e muitas vezes durante a minha adolescência e por quem, mais do que gostar, sinto uma espécie de veneração, Francis Vincent Zappa.
A carreira musical de Zappa estende-se por pouco mais de trinta anos. Infelizmente ele morreu ainda bastante novo, aos 52 anos de idade, em dezembro de 1993. Apesar disso, o seu legado é enorme e está registado em mais de noventa álbuns gravados ao vivo ou em estúdio! Não conheço a totalidade da sua obra. A partir de 1976/77, Zappa enveredou paulatinamente por um estilo heterodoxo, explorando novas sonoridades, alargando o leque instrumental, produzindo música para orquestra, formando outro tipo de bandas, já sem o contributo dos músicos carismáticos que o ajudaram a construir os seus maiores êxitos como, por exemplo, George Duke, Napoleon Murphy Brock, Ruth Underwood ou Jean Luc-Ponty. O período de ouro de Frank — aquele em que, como costumo dizer, Zappa esteve em comunicação com os deuses — vai do fim dos anos 60 até 1975. Um período de pouco mais de cinco anos em que ele produziu músicas para uma dúzia de LPs, todos eles geniais1. Assim, é-me difícil ouvir os trabalhos dos anos oitenta, por exemplo, quando Zappa enveredou por um caminho mais experimental ou orquestral, porque sempre os comparo com aquele período de ouro, ao qual regresso sempre.
Penso, por isso, que é preciso dar alguma orientação a quem, pela primeira vez, contacta com a música de Frank Zappa. Muitas vezes as pessoas começam por ouvir as obras dos anos oitenta e não gostam, não estão preparadas, desistem. É preciso encaminhá-las para o “período de ouro”, para a produção clássica de Zappa, que é, sem dúvida, uma melhor introdução. Um trabalho altamente recomendado para o efeito é Overnite Sensation, álbum que contém, provavelmente, o leque de canções mais conhecido e mais comercializado de Frank que, como se sabe, não era um músico comercial, embora, na minha opinião tenha tudo para (ainda) vir a sê-lo, infelizmente, apenas após a sua morte. (Nada que não tenha acontecido com outros génios da música). Um outro trabalho, este gravado ao vivo, que pode ombrear com o atrás referido, idealmente, complementá-lo, embora talvez mais difícil de ouvir numa primeira vez, seria Roxy & Elsewhere — ambos verdadeiras obras-primas.
Obviamente, muito foi dito já sobre a música de Frank e será difícil acrescentar alguma coisa. Ficam apenas quatro pequenas pontos.
A música de Zappa, para além de genial, é originalíssima, incatalogável, não é rock, nem jazz, nem blues, nem música clássica e, simultaneamente, é tudo isso e muito mais. Tudo o que se pode dizer, para não errar, e parafraseando Ruth Underwood, é que é Zappa.
Frank Zappa tocou com inúmeros músicos desconhecidos até então (as suas bandas mudaram frequentemente ao longo do tempo); sob sua orientação, todos se revelariam instrumentistas extraordinários, o que demonstra a grande capacidade de liderança de Frank. Ele conseguia extrair dos músicos aquilo que estes pensavam ser impossível.
Talvez por influência de Edgard Varèse, a percussão tem grande destaque na música de Zappa, que muitas vezes alinha com vários percussionistas, incluindo dois bateristas; uma das características da sua música é que os percussionistas estão sempre em grande atividade.
Para além de criador de génio, Frank era também um exímio guitarrista, um excelente vocalista e um grande maestro, bem como um entertainer muito especial. Sem dúvida, o músico mais extraordinário da segunda metade do século XX e, quiçá, o mais inovador de todo o século.
Por vezes, comparo Frank Zappa a Fernando Pessoa: Pessoa deixou uma arca cheia de poemas, que ainda hoje estão a ser selecionados, e Zappa deixou uma cave cheia de músicas, que ainda hoje estão a ser interpretadas. Ambos eram geniais e prolíficos e, por isso mesmo, os seus trabalhos e biografias são universalmente estudados, apreciados, venerados, discutidos e reinterpretados. Por outras palavras: ganharam o direito a figurar na restrita galeria dos imortais.
No que toca a Zappa, para além dos inúmeros documentários já realizados e a realizar — como o de Alex Winter, que foi autorizado pela família de Frank a vasculhar a célebre cave —, as biografias em livro, os artigos, efemérides e celebrações, destacaríamos as bandas que se dedicam à música de Zappa, desde logo a liderada pelo seu filho Dweezil, a Berklee Frank Zappa Tribute, os Treacherous Cretins, entre muitas outras, incluindo as que, desde 1990, comparecem no Zappanale, um festival exclusivamente dedicado à música de Frank Zappa, que se realiza em Bad Doberan, na Alemanha, onde se reúnem, todos os anos, muitos dos seus inúmeros fãs.
Criada em 2002 por Gail Zappa, A Zappa Family Trust detém os direitos autorais e de imagem de Frank. Em 2015, pouco antes da morte de Gail, o fundo foi doado ao seu filho Ahmet.
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1Álbuns “clássicos” de Zappa:
Uncle Meat (1969)
Hot Rats (1969)
Weasels Ripped My Flesh (1970)
Chunga’s Revenge (1970)
Filmore East (1971)
200 Motels (1971)
Just Another Band from L.A. (1972)
Waka/Jawaka (1972)
The Grand Wazoo (1972)
Over-Nite Sensation (1973)
Apostrophe (1974)
Roxy and Elsewhere (1974)
Montana, uma canção do álbum Overnite Sensation, aqui interpretada ao vivo no Roxy de Hollywood, Califórnia.
Talvez a maioria não saiba, quando ouve Chico Buarque interpretando-a, que esta canção não foi feita por ele. Muitos menos imaginarão que a melodia em causa tem a bonita idade de 65 anos, ou seja, foi composta em 1947! O autor desta valsinha – que foi a sua primeira composição – chamava-se Severino Dias de Oliveira, mas ficou mundialmente conhecido como Sivuca. A letra, sim, é da autoria de Chico Buarque e, segundo o próprio, baseia-se numa conversa de crianças. Chico, na época (1976), compunha algumas canções infantis, e parece ter sido influenciado por esse facto.
Fica o registo desta canção interpretada precisamente por Sivuca e Chico Buarque. Curiosidade: A técnica de Sivuca é tão boa no violão, que, logo após o início, Chico se concentra apenas na interpretação vocal…
Dizem que o triângulo é a figura geométrica perfeita. Está na base das pirâmides, da Santíssima Trindade, do mistério das Bermudas, do fogo, da fertilidade… Mas a prova final do poder simbólico de um triunvirato, embora não necessária, foi-nos dada por Alexandre O’ Neill, Alain Oulman e Amália Rodrigues, em forma de palavras, música e voz.
Alexandre O’ Neill
Não há muito mais a dizer. O poema é lindo, a composição brilhante e a voz de Amália sublime – impossível de imitar ou comparar. Eu costumo dizer que a voz de Amália é como a velocidade da luz – absoluta; e não é preciso ser português ou amante do fado para o constatar.
Se uma gaivota viesse trazer-me o céu de Lisboa no desenho que fizesse, nesse céu onde o olhar é uma asa que não voa, esmorece e cai no mar.
Que perfeito coração no meu peito bateria, meu amor na tua mão, nessa mão onde cabia perfeito o meu coração.
Se um português marinheiro, dos sete mares andarilho, fosse quem sabe o primeiro a contar-me o que inventasse, se um olhar de novo brilho no meu olhar se enlaçasse.
Que perfeito coração no meu peito bateria, meu amor na tua mão, nessa mão onde cabia perfeito o meu coração.
Se ao dizer adeus à vida as aves todas do céu, me dessem na despedida o teu olhar derradeiro, esse olhar que era só teu, amor que foste o primeiro.
Que perfeito coração no meu peito morreria, meu amor na tua mão, nessa mão onde perfeito bateu o meu coração.
Esta canção, originalmente interpretada por Del Shannon, ficou mundialmente conhecida por fazer parte do genérico da série televisiva “Crime Story”.
Criada por Gustave Reininger e Chuck Adamson, a série tinha como produtor executivo Michael Mann e contava com a participação de Dennis Farina, no papel do detetive Mike Torello. Existem várias versões do tema “Runaway”, inclusive uma dos Beach Boys, quase todas com mais de 20, 30 ou 40 anos. Ultimamente saiu uma nova versão (penso que em 2007) interpretada pelos Queen e Paul Rodgers.
Há canções que nasceram para ser recriadas de tempos a tempos. Esta é uma delas.
Kissin é um dos meus pianistas preferidos. Tive a sorte de o ver atuar há tempos na Gulbenkian, num recital memorável, quando ele deveria andar pelos seus 30 anos. Ainda hoje, com 41, Evgeny Kissin, moscovita de origem judaica, mantém a sua expressão de adolescente.
O episódio que quero relatar passou-se em 1988 e trata de um daqueles encontros felizes e raros que acontecem uma vez na vida. Neste caso, na vida de duas pessoas — Evgeny Kissin e Herbert Von Karajan. Se a elas juntarmos, através do seu famoso e arrebatador concerto nº1 para piano e orquestra, Tchaikovsky, teremos o encontro de três génios. Kissin com 17 anos, Karajan no fim da vida (um anos antes) e Tchaikovsky, presente com sua música.
Para nosso deleite, esse episódio foi gravado, e aqui fica o registo do 1º andamento, sendo que podem encontrar, na mesma fonte, todo o concerto e ainda uma reportagem sobre este encontro feliz. Nessa reportagem, Kissin recorda o momento em que, após o concerto, quando sua mãe se aproximou, Karajan afirmou, apontando para ele:
– Genius.
Poderíamos ainda alargar esta onda de felicidade à excecional Filarmónica de Berlim. Como se sabe, esta orquestra foi talhada durante 35 anos pela batuta implacável de Herbert Von Karajan. Depois, seguiram-se Claudio Abbado e o diretor atual, Sir Simon Rattle (eleito pelos membros da própria orquestra), maestros que tive o prazer de ver atuar ao vivo.