Notas sobre Kant

Kant, um dos três desconstrutores de castelos, além de Sócrates (antes) e Popper (depois).
  • A Crítica da Razão Pura é, no fundo, uma autocrítica. Kant não precisa sair de si próprio para fazer a investigação que pretende. Ele constitui para si mesmo o terreno que procura e o laboratório de que precisa.
  • Não podemos conhecer os objetos como coisas-em-si, mas podemos pensá-los.
  • Os outros animais são diferentes de nós porque só têm intuição externa (espaço). Quando passarem a ter intuição interna (tempo) poderão dialogar com os humanos e será possível saber como uns e outros veem o mundo.
  • A matemática aplica os seus conceitos à intuição.
  • 3 fases da História da Filosofia, segundo Kant: a) dogmática; b) cética; c) crítica (dele próprio).
  • Objetivo de Kant na Crítica: elevar a Filosofia ao estatuto alcançado pelas Física e Matemática.
  • Não há intuição intelectual (importante!).
  • Que papel tem a razão pura relativamente ao Entendimento? Isto é muito importante para perceber o sistema kantiano. É necessário saber se a razão só se ocupa dos objetos transcendentes (se só olha para cima) ou não.
  • Para chegar à crítica da razão, Kant vai ter que construir todo o edifício do conhecimento, começando de baixo para cima, pela unidade mais próxima da natureza, a Sensibilidade, subindo para o Entendimento, a unidade que impondo à sensibilidade as suas categorias, se liga a esta e forma com ela uma unidade maior, que poderíamos chamar “Perceptiva”.
  • Todas as ciências teóricas da Razão têm como princípios juízos sintéticos a priori: a) matemáticos; b) da física; c) da metafísica.
  • Mas embora a matemática e a física tivessem trilhado autonomamente os seus caminhos, o mesmo não aconteceu com a metafísica. É a isso que se propõe Kant: conferir à metafísica o estatuto de ciência.
  • Porque Kant idealiza (coloca em nós) o espaço e o tempo? 1) Assim justifica a geometria: uma vez que as proposições geométricas (por ex, os ângulos de um triângulo medem 180º) não podem derivar da experiência, têm que preceder os próprios objetos, logo, só podem ter origem em nós, a priori, na nossa intuição externa; 2) Qualquer grandeza de tempo só é possível dentro de um tempo único e ilimitado que lhe serve de fundamento. Esse fundamento imediato não é mais do que a própria intuição; 3) Porque isso concorda com a sua separação do objeto em fenómeno e númeno. Assim Kant resolve também a questão de se saber porque os fenómenos são percecionados de forma diferente por cada um de nós. Porque o que cada um perceciona é precisamente o fenómeno. Se percecionássemos as coisas-em-si, estas seriam iguais para todos; 4) Porque se espaço e tempo fossem reais como os objetos não poderiam constituir, simultaneamente, as condições a priori, da apreensão imediata dos fenómenos pela nossa sensibilidade; 5) As propriedades das coisas-e-si não podem ser dadas pelos sentidos, logo, “o tempo nada é, se abstrairmos das condições subjetivas da intuição sensível… nem a título de substância nem de acidente”; 6) Existe uma realidade objetiva do espaço e do tempo, enquanto considerarmos os objetos como simples fenómenos. O idealismo kantiano, tantas vezes realçado, é aparente e não efetivo; 7) Porque é impossível conhecer o tempo e o espaço fora de nós. Kant provou-o na primeira antinomia. Não se pode dizer que o universo teve um início ou que é infinito porque ambas as proposições são falsas. Se considerarmos um tempo vazio antes do início do universo, temos de considerar um momento de passagem do nada para o existente, uma ligação que só pode ser concebida se existir um momento (temporal, logicamente) anterior ao início do universo, o que é impossível. Se, por outro lado, considerarmos que o tempo sempre existiu e que é, portanto, infinito, temos de concluir que o tempo que decorreu até o momento presente é igualmente infinito, o que é impossível, porque o conceito de infinito não pode ser limitado. Kant prova, desta maneira, que o tempo e o espaço não tem realidade fora de nós — são as condições essenciais para que os objetos sejam captados pela nossa sensibilidade, isto é, são intuições puras, prévias (a priori), da própria sensibilidade.
  • Kant insiste, inúmeras vezes, na negação dos conceitos da razão especulativa.
  • Quando Galileu fez rolar no plano inclinado as esferas (…), quando Torricelli fez suportar pelo ar um peso, que antecipadamente sabia idêntico ao peso conhecido de uma coluna de água (…), foi uma iluminação para todos os físicos. Compreenderam que a razão só entende aquilo que produz segundo os seus próprios planos; que ela tem que tomar a dianteira com princípios que determinam os seus juízos segundo leis constantes e deve forçar a natureza a responder às suas interrogações em vez de se deixar guiar por esta; de outro modo, as observações feitas ao acaso, realizadas sem plano prévio, não se ordenam segundo a lei necessária, que a razão procura e de que necessita.
  • História da Razão Pura: 1- Quanto ao objeto: a) sensualistas (Epicuro); b) intelectualistas (Platão); 2- Quanto à origem: a) empiristas (Aristóteles, Locke); b) neologistas (Platão, Leibniz); 3- Quanto ao método: a) naturalistas; b) científico: b.1) dogmático (Wolff); b.2) cético (Hume). Kant apresenta uma nova abordagem.
  • sensibilidade — intuição; entendimento — conceito.
  • Conceitos da Razão (ideias transcendentes): 1. Alma (unidade absoluta do ser pensante — teologia racional); 2. Mundo (unidade absoluta da experiência externa — cosmologia, antinomias); 3. Deus (condição de tudo; unidade absoluta de todos os objetos do pensamento — teologia racional — provas: ontológica, cosmológica, físico-teológica.
  • Plano de um novo artigo para o blogue (há já um que pode ser visto aqui):
  1. Introdução
  2. Os objetos dados (empíricos): a) fenómeno; b) númeno
  3. Os objetos pensados (juízos sintéticos a priori)
  4. O edifício do conhecimento kantiano: a) sensibilidade-intuição (espaço, tempo); b) entendimento-categorias; c) razão
  5. Conclusão
  • Crítica à idealidade do espaço e do tempo em Kant — De facto, nem a simultaneidade nem a sucessão derivam da experiência, mas isso não quer dizer que o tempo seja uma intuição apenas nossa. Outros seres que percecionem os fenómenos de outra forma não terão também outra intuição de tempo? Ou seja, há espaço e tempo desde que haja seres vivos que nascem, vivem e morrem. Tem de haver, portanto, um tempo real para lá do tempo ideal de cada ser vivo. Portanto, do nosso ponto de vista, enquanto seres humanos, pode fazer sentido um tempo e um espaço só nossos. Mas do ponto de vista cosmológico, tem de haver um espaço-tempo (como mostra Einstein) real.

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A maldição da ideologia

Dois livros recentes onde se realça a perigosidade das ideologias.

As ideologias e as religiões são duas faces da mesma moeda. Ambas torcem e distorcem a realidade para que esta caiba nas suas narrativas. E o pior é que o cérebro humano adora narrativas ideológicas e religiosas. Pode parecer estranho, mas as pessoas com espírito científico, que amam a verdade, constituem-se como uma minoria entre os indivíduos predispostos a acolher todo o tipo de profecias, muito mais apelativas para o nosso cérebro tribal habituado a mitos, realidades paralelas e rituais iniciáticos.

Temos uma razão etimológica, desenvolvida em alguns de nós, mas a razão social — aquela que faz com que desejemos ser aceites pelos outros e integrar-nos no grupo — prevalece na esmagadora maioria dos casos. É por isso que é preciso ser resiliente para se apegar à verdade, tantas vezes incómoda. É muito mais fácil acreditar em promessas de prosperidade, fecilidade e, até, imortalidade.

Mas as promessas são levadas pelo vento, e o que resta dos dogmas ideológicos são guerras, miséria e sofrimento. Será impossível acabar com as ideologias, pois o homem é (ainda?) um animal idelógico, mas há uma questão que se impõe: seremos capazes de as controlarmos?

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As nossas edições:

  • Leor Zmigrod, O Cérebro Ideológico, D. Quixote, Lisboa, 2025.
  • Samuel Fitoussi, Porque se Enganam os Intelectuais, Bertrand, Lisboa, 2025.
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Grandes espetáculos em casa.

Porque os espetáculos de música clássica, sobretudo os que incluem grandes orquestras — como sinfonias e óperas — são, dentro da música ao vivo, os mais belos? Porque a grande música é em si mesma bela, mas também porque as grandes orquestras mundiais são constituídas por músicos extraordinários e dirigidas por maestros fabulosos; e, finalmente, porque os espaços onde estes espetáculos geralmente ocorrem são igualmente muito belos — teatros que são verdadeiras obras de arte, como os icónicos Teatro Alla Scala, em Milão, a Ópera Nacional de Paris, a Ópera Estatal de Viena, a Royal Opera House, em Londres, a Opera House, em Sydney, e tantos, tantos outros, incluindo o Teatro de S. Carlos, em Lisboa, e o Teatro da Paz, em Belém do Pará.

Ao contrário da música eletrificada, que muitas vezes se ouve melhor em casa do que ao vivo, a música sinfónica e operática, dada a vastíssima amplitude instrumental e sonora, ouve-se muito melhor ao vivo, sendo difícil de reproduzir, na plenitude, mesmo no mais avançado equipamento de som viabilizado pela moderna tecnologia.

Já assistimos a muitos espetáculos de música sinfónica (mais) e óperas (menos) ao vivo. Mas os auditórios e teatros onde se realizam estes espetáculos são pequenos para albergarem tantos amantes deste tipo de música. Por isso, é normal ouvir-se música clássica em casa. E há também algumas vantagens nas gravações que podem ser reproduzidas nas nossas habitações, em disco ou em vídeo. Neste último caso, há a vantagem de observarmos pormenores que não seria possível vislumbrar in loco: grandes planos do maestro, de elementos da orquestra e certos detalhes das salas revelam-nos particularidades fascinantes que não conseguiríamos descortinar nas salas de espetáculo.

Há realizações verdadeiramente fabulosas sobre obras da grande música, algumas levadas a cabo por mestres do cinema que se especializaram neste género de realização, como é o caso paradigmático de Franco Zeffirelli, um conceituado cineasta italiano, que adaptou, para o grande ecrã, óperas, peças de teatro e romances literários.1

Lembrámo-nos disto porque assistimos hoje, no canal Mezzo, à Sinfonia nº 6 de Tchaikovsky, conhecida por Patética, interpretada pela Filarmónica della Scala, em Granada, há dois anos. O maestro é o carismático italiano Riccardo Chailly, que já tivemos a felicidade de ver ao vivo. Tal como dissemos atrás, as filmagens destes espetáculos permitem-nos observar pormenores deliciosos, impossíveis de detetar ao vivo. Chailly é um dos grandes maestros da história da música e a sua expressão corporal e, sobretudo, facial, as suas vitalidade, exuberância e envolvência com a música e a orquestra, são atributos irressistíveis para muitos melómanos, comparáveis na atualidade, apenas, talvez, aos patenteados por Gustavo Dudamel — atributos que só os grandes planos de câmeras estrategicamente colocadas podem sobrelevar.

Quanto a esta obra de Tchaikovsky, é consensual que se trata de uma das mais importantes sinfonias jamais escritas, estreada em 28 de outubro de 1893, poucos dias antes da morte do compositor, que ocorreria em 6 de novembro desse mesmo ano. O termo patétique, foi sugerido pelo irmão de Tchaikovsky, Modest, sendo que o vocábulo que este usou em russo se aproxima mais de paixão e não tanto de patética.

Há quem veja nesta obra uma mensagem de despedida, especialmente pelo seu Finale: Adagio lamentoso, que constitui o quarto e último andamento. Isso sente-se indubitavelmente ao escutar a composição que realmente não termina em apoteose, como costuma acontecer nas demais sinfonias, mas antes decai, definha, extingue-se, como acontece com a própria morte. A Patética — a cuja interpretação já assistimos uma vez ao vivo — é, sem dúvida, uma obra extraordinária, simultaneamente, triste e bela.

Deixamos um excerto desse concerto de Granada, realizado em junho de 2023, no Palácio Carlos V, com Riccardo Chailly dirigindo a Orquestra do Teatro alla Scala.

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Notas:

1 Alguns dos filmes mais conhecidos de Zeffirelli são Romeu e Julieta (1968), Jesus de Nazaré (1977), O Campeão (1979) e Chá com Mussolini (1999).

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