Escapadela a Marrocos

Nadando em Tiguemine Sarah.

Há relativamente pouco tempo descobrimos que há voos diretos entre Faro e Marraquexe, operados pela Ryanair. Quando analisámos os preços, com voos de ida e volta a €30, decidimos de imediato fazer uma escapadela — que acabou por ser de quatro dias e meio — a Marrocos. Além dos preços, os horários dos voos eram também excelentes, o que nos permitiria otimizar o tempo de estadia em terras berberes.

O nosso voo partiu às 12:05, e às 13:20 estávamos a aterrar em Marraquexe.

Estávamos um pouco apreensivos com o aluguer do carro — tanto que fizemos um seguro contra todos os riscos. Era a única coisa que nos preocupava e, por sinal, quando saímos pelo último portão do aeroporto não vimos ninguém à nossa espera com a placa da locadora erguida, tal como estava indicado na página de reserva do booking.com, onde contratáramos o aluguer da viatura. Procurámos, circulámos, esperámos e, uns vinte minutos depois, reparámos num homem com uma placa, mas, em vez de a ter erguida, segurava-a numa mão descaída abaixo da cintura. A nossa intuição levou-nos a espreitar, e verificámos que estava inscrito na placa o nome da locadora — Green Motion — e lá fomos transportados até ao escritório, a uns 4 kms de distância, para tratar das formalidades. Surreal.

No terraço de Tiguemine Sarah.

No escritório da empresa foi-me solicitado um pagamento de 400 dirham (MAD), cerca de €37, por ser um condutor com mais de 65 anos, algo que não tinha verificado aquando da reserva online. Não adiantou reclamar, tive mesmo de desembolsar esse valor e ainda deixar uma caução de 17.000 MAD, cativos no nosso cartão de crédito.

Eram umas duas da tarde, tínhamos muito dia pela frente, e não deixámos que aquilo o estragasse.

Depois de enchermos o depósito, rumámos ao alojamento que tínhamos escolhido e sobre o qual tínhamos as melhores referências. A expectativa era alta e não foi frustrada. Tiguemine Sarah é um empreendimento lindo, um oásis entre terrenos áridos, com as montanhas do Atlas ao fundo. Tudo ali é equilíbrio e harmonia: o verde da vegetação, o ocre do edificado, o azul do céu e da piscina.

Come-se maravilhosamente em Tiguemine Sarah, e as pessoas são igualmente maravilhosas. Além delas, há quatro cães simpáticos e tranquilos, e um majestoso felino, de seu nome Winston Churchill. Os cães bebem água da piscina e o mesmo fazem os pássaros, inúmeros, que pela propriedade circulam. As árvores altas que ladeiam o poente o e o nascente do recinto retangular, talvez do tamanho de um campo de futebol, proporcionam sombra, pelo menos nalgumas espreguiçadeiras, durante a maior parte do dia. Ler um livro, ou simplesmente dormitar numa delas, é um prazer divino.

Negociando nas montanhas do Atlas.

O ambiente todo — desde o ar à água, passando pelo silêncio entrecortado pelo chilrear dos passarinhos, até ao resfolhar suave que uma leve brisa levanta — convida ao langor. O nosso quarto (o nº 1) é espaçoso, bem decorado, limpo, e tem uma enorme varanda debruçada sobre a piscina. Ao fundo, azuladas, as montanhas do Atlas. Dormimos muito bem na nossa primeira noite.

No dia seguinte esperáva-nos um pequeno-almoço soberbo. Não podemos esquecer a sopa berbere (sim, eles tomam-na ao pequeno-almoço), o mel com manteiga e o sumo de frutas, com banana, pêssego e laranja. Os doces, feitos por uma das irmãs — Gigi — são simplesmente maravilhosos. Não apetecia sair, mas já tínhamos programa e tivemos de vencer a preguiça. Saímos, ao meio-dia, na direção das montanhas do Atlas.

Para começar, o google maps mandou-nos por um atalho em terra batida de cerca de 2 kms. Nenhuma viatura se cruzou connosco, felizmente, e lá atingimos a estrada nacional N9, que liga Marraquexe a Ouarzazate. Pouco tempo depois começámos a subir. A certa altura estávamos aflitos para irmos à casa de banho e parámos em Taddarte. Entrámos num café, aliviámo-nos e pedimos um chá de menta. Todos foram simpáticos e respeitosos connosco. Seguimos viagem montanha acima.

Aït-Ben-Haddou ao nascer do sol. Grandes filmes foram rodados aqui.

Passado algum tempo e muitas curvas apertadas, chegámos ao ponto mais alto do nosso percurso — Tizi Tichka. Daqui vê-se a estrada que acabámos de subir, uma cobra pequenina, lá bem no fundo. Este é um ponto de paragem quase obrigatória e vê-se sempre gente circulando, carros e autocarros parados, bancas de vendedores de pedras coloridas, extraídas das montanhas em torno. Estávamos a 2.260 metros de altitude e, claro, a temperatura tinha descido um (ou dois) punhado de graus.

Retomámos viagem e, logo três ou quatro quilómetros depois, em vez de continuarmos pela N9, infletimos à esquerda e entrámos na P1506. Esta estrada segue sempre ao longo de um rio, nesta altura do ano quase seco, mas ainda assim com água suficiente para alimentar uma escolta de vegetação, que segue ao longo de ambas as margens durante quilómetros e contrasta fortemente com a paisagem desértica que se sobrepõe naturalmente em toda esta região. Passámos por Télouet, uma cidade de dimensão significativa, mas também por inúmeras aldeias e vilas antigas, encaixadas nas encostas adjacentes ao leito do rio, aproveitando tudo o que o líquido precioso que ele transporta pode proporcionar.

Cruzando o rio.

Continuámos ao longo do Vale de Ounila até que, finalmente, por volta das 5 da tarde, chegámos a Aït-Ben-Haddou. Fomos diretamente para o alojamento que tínhamos reservado — Dar INNÂ. Aqui iríamos ficar na próxima noite e tomar o pequeno-almoço na manhã seguinte, pelo inacreditável preço de €22,96. Achraf recebeu-nos de braços abertos e deu-nos dicas preciosas relativamente a locais onde poderíamos jantar. Dar INNÂ dista uns 700 metros do centro de Aït-Ben-Haddou, pelo que fomos de carro até lá.

Aït-Ben-Haddou é uma aldeia muito antiga, na margem esquerda do rio, mas na margem direita foi construída uma nova aldeia, onde a maioria das pessoas mora e onde os turistas encontram os serviços de que necessitam. Na aldeia antiga, que é o que toda a gente quer ver, vivem apenas meia-dúzia de famílias.

Ksar (alcácer) muito antigo, fortificado desde o período almorávida e reconstruído várias vezes com os mesmos métodos ancestrais, Aït-Ben-Haddou, por onde passavam as caravanas antigas na sua rota entre o deserto do Saara e Marraquexe, é considerado um exemplo sublime da arquitetura tradicional marroquina e, como tal, foi eleito Património Mundial, pela Unesco, em 1987. Aït-Ben-Haddou acolheu, nos últimos anos, inúmeros realizadores, atores e equipas de rodagem, cujo trabalho contribuiu para um número impressionante de séries e filmes.

O cenário é, de facto, magnífico.

Museu do Cinema em Ouarzazade.

No entanto, a melhor hora para fotografá-lo não é ao pôr do sol, mas antes ao nascer do sol, algo que descobrimos passados alguns minutos de ali chegarmos. Claro que combinámos voltar bem cedo no dia seguinte, mas, depois de hora e meia circulando pelas ruelas estreitas, já anoitecera, a fome atacara e fomos procurar um dos restaurantes que Achraf nos indicara para jantarmos. Comemos um tajine vegetariano e no final bebemos o tradicional chá de hortelã. Voltámos ao alojamento porque estava previsto levantarmo-nos bem cedo no dia seguinte.

Acordámos às 6:30, ainda durante uma noite mal dormida. Estacionámos o carro no centro da vila e atravessámos o rio em direção ao ksar. (O rio tem pouca água e é fácil cruzá-lo pisando uns sacos de areia estrategicamente colocados do lado nascente, embora haja também uma ponte de cimento construída recentemente do lado poente). Em frente ao ksar há um enorme monte de areia, semelhante a uma duna gigante, e é relativamente fácil subir até ao topo e daí desfrutar de uma vista previlegiada sobre Ait-Ben-Haddou. É o que algumas pessoas fazem, sobretudo as mais jovens, e nós fizemo-lo também. Quando o sol nasceu, inundou de luz o ocre das fachadas do ksar, conferindo-lhes um tom de ouro que nós aproveitámos para registar nos nossos cartões de memória.

Um café excelente tomado na estrada.

De seguida regressámos ao alojamento, arrumámos as coisas e preparámo-nos para o pequeno-almoço. Achraf serviu-nos uma refeição simples, mas deliciosa, com pão, queijo, mel, sumo e chá de hortelã. Despedimo-nos e fizemo-nos à estrada. Continuámos no mesmo sentido do dia anterior até apanharmos de novo a N9. Chegámos a Ouarzazate, uma cidade de dimensão considerável, onde existem vários estúdios e um museu de cinema. Demos uma pequena volta por lá, sem grande profundidade, e voltámos pela mesma N9, agora em sentido contrário e sem qualquer desvio.

Já tínhamos reparado, através dos quilómetros percorridos, em vários carros ao longo da estrada onde se serve café. Decidimos experimentar. Pensáramos que fosse café de “saco”, mas qual foi a nossa surpresa quando verificámos que, no porta-bagagens, estava instalada uma enorme máquina de café expresso. Mas não um café qualquer — um café delicioso! Estávamos mesmo a precisar. Mais à frente comprámos fruta (uvas e bananas) num mercadinho. Já tínhamos passado por Tizi Tichka e continuávamos a descer, descer… Não tínhamos muita pressa, o nosso destino era um jardim peculiar que fica muito perto de Tiguemine Sarah, a uns 3 kms, e, quase sem dar por isso, estávamos quase a chegar.

O Anima alberga obras de arte surpreendentes.

Anima é um jardim mágico criado por André Heller, um artista, poeta, cantor, realizador e ator austríaco. Os trabalhos de criação do jardim começaram em 2008 e prolongaram-se por oito anos. O espaço alberga obras de Pablo Picasso, Keith Haring, IgorMitoraj, Monika GilSing e muitos outros. Há também uma exposição permanente, com obras de Hans Werner Geerdts (1925-2013), um artista alemão que viveu em Marrocos e era amigo de André Heller. Há quem considere Anima o mais belo jardim do mundo. A nós fez-nos lembrar, em parte, o Jardim Gulbenkian, mas também o House on Fire, em Eswatini, e o jardim de Claude Monet, em Giverny. Há ainda um bar/restaurante, onde petiscámos antes do regresso a Tiguemine Sarah.

Fomos recebidos com alegria, como se nos estivéssemos ausentado durante muito tempo. Estávamos em casa de novo e aproveitámos para descansar. Às sete da tarde descemos ao jardim para apreciarmos o belo couscous que encomendáramos no dia anterior. O jantar estava delicioso. Não apetece sair deste local tão especial, onde a comida, conjugada com o ambiente, faz baixar a pressão arterial, desacelera o ritmo cardíaco e deixa corpo e espírito em paz um com o outro. Ficámos por ali mais um tempo e pouco depois de subirmos ao quarto estávamos a dormir profundamente.

Uma surpresa em cada curva.

Além de tudo o mais, é ótimo o horário de check-out em Tiguemine Sarah — meio-dia — pois permite usufruir do espaço, nomeadamente da piscina, durante toda a manhã. Laila, a proprietária, perguntou-nos quando era o nosso voo e quando soube que era apenas às 10 da noite, disse que poderíamos ficar mais tempo, tinha o quarto disponível. Recusámos educadamente, pois não queríamos abusar da simpatia daquela família e, afinal, ainda não tínhamos visitado Marraquexe. Quando soube que queríamos ir a Marraquexe, Laila deu-nos duas boas dicas. A primeira foi que deixássemos o carro no parque de estacionamento de um centro comercial (Carre Eden) e a segunda foi que fôssemos ao Grand Café de la Poste, bem pertinho do centro comercial.

Entretanto, passámos uma boa parte da manhã no jardim e na piscina. Pouco depois das onze fomos pela última vez ao quarto, arrumar as nossas coisas, tomar banho e prepararmo-nos para sairmos. Descemos, pagámos a conta (4 jantares, taxas municipais, bebidas) e despedimo-nos. No total, pagámos €87, o que, para a qualidade dos serviços, pode ser considerado uma pechincha. A reserva do quarto por quatro noites, com pequeno-almoço, custara-nos, previamente, €151,20. As três irmãs (uma cozinheira, uma doceira e uma administradora que também dá uma mão na cozinha) vieram despedir-se. Também vieram François, co-proprietário, marido de Laila, e Houcine, mais um irmão das três irmãs (Laila, Jamila e Zahra).

Gostaríamos de voltar, um dia, com mais família. Veremos.

No Grand Café de La Poste.

Fizemos o que Laila recomendou. Estacionámos no centro comercial (5 horas por 20 MAD, cerca de €1,87), e fomos beber um chá tradicional marroquino ao Grand Café de la Poste. Por feliz coincidência, o GCLP comemora este ano um século. Laila dissera-nos que Churchill, Roosevelt e o rei de Marrocos se haviam ali encontrado, mas não conseguimos confirmar essa informação. Porém, parece que Churchill esteve mesmo lá — e também Charles de Gaulle, Antoine de Saint-Exupéry, Joseph Kessel, Jacques Majorelle, Paul Bowles, Jean Genet, Yves Saint Laurent, Pierre Bergé, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Cat Stevens1, entre outras personalidades, nós incluídos.

Não tínhamos grandes planos para Marraquexe. Fomos a pé até à Medina e voltámos. Não vimos grande coisa, portanto, além de um bonito parque, o que, face ao calor intenso, acabou por ser o mais agradável. Pouco depois das 5 da tarde saímos de Marraquexe. Numa pequena estação de serviço perto da agência do aeroporto da Green Motion, mandámos lavar o carro (em Marrocos tem de se entregar o carro lavado ou paga-se uma pesada indemnização) e fomos entregá-lo. O trânsito era muito intenso àquela hora, mas desenrascámo-nos bem. Às 22:10 o avião da Ryanair levantou voo. Antes da meia-noite estávamos ao volante do nosso carro, em Faro. Pouco depois, após quatro dias fora, estávamos de novo em casa. Desta vez, na nossa própria casa.

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1 https://www.lopinion.ma/Retro-Verso-L-Histoire-emblematique-du-Cafe-de-la-Poste-de-Marrakech_a57037.html

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Autor: Jorge Costa

Fez percursos académicos nas áreas das Filosofia, Comunicação Social, Economia, Gestão dos Transportes Marítimos e Gestão Portuária, e estuda outras disciplinas científicas. Interessa-se igualmente por Arte, nas suas diversas manifestações, e também por viagens. Gosta de jogar xadrez. O seu autor preferido, desde que se lembra, é Karl Popper. Viveu em locais diversos, sobretudo em Portugal e no Brasil, pelo que se considera um cidadão do mundo. Atualmente vive em Cabanas, no Sotavento algarvio. Gosta de revisitar, sempre que pode, a bela cidade de Lisboa e, nela, o bairro onde nasceu, Alfama, o mais popular da capital, de traça árabe, debruçado sobre o Tejo — esse rio mítico, imortalizado por Camões e Pessoa, poetas maiores da Língua Portuguesa. Não é, porém, um bairrista, característica que deplora, a par dos clubismo, partidarismo e nacionalismo. Ama a Liberdade.