O paradoxo da bondade

Nem sempre é necessário escrever muitos livros para se reunir uma grande obra, e isto é válido para todos os géneros, quer sejam ficção ou ensaio. Richard Wrangham, um primatologista britânico de 77 anos, escreveu até agora três livros, um primeiro (1997) em parceria com Dale Peterson (Demonic Males), e dois a solo, Catching Fire (2010) e Goodness Paradox (2019). Nós lemos os dois últimos e ambos são fabulosos. Catching Fire foi traduzido para português do Brasil por Pegando Fogo, e a nossa análise sobre essa obra pode ser vista aqui; Goodness Paradox, que lemos no original em inglês, passamos a analisar agora.

A grande questão deste livro é a de saber porque os seres humanos são uma espécie simultaneamente pacífica e violenta, dado que comprovadamente nós somos capazes do melhor e do pior: somos os únicos seres vivos que cometem atos de extremo altruísmo, mas também temos a frieza que nos permite matar por meros prazer ou diversão1. Este é o paradoxo do nosso comportamento, quando comparado com o dos outros primatas: somos relativamente pacíficos no tipo de agressão reativa e incrivelmente violentos no tipo de agressão proativa. É fácil perceber a diferença entre os dois tipos de agressão se considerarmos os conceitos, usados em direito penal, de crime não premeditado (reação espontânea, “a quente”, reativa) e de crime premeditado (ação cometida friamente, com tempo, proativa).

Comecemos pelo relativo pacifismo humano no que toca à agressão reativa. Apesar de todos nós termos conhecimento de crimes reativos, eles ocorrem numa percentagem muito pequena, e os chimpanzés, por exemplo, são muito mais violentos neste tipo de agressividade, caracterizada por respostas a um estímulo inesperado2. A baixa agressão reativa acontece em todos os animais domesticados, que são menos agressivos que os seus ancestrais selvagens. Os cães, por exemplo, são mais dóceis que os lobos, e o mesmo acontece com todos os animais domésticos conhecidos e outros domesticados através de experiências científicas.3

A evidência científica mostra que os animais domesticados apresentam determinadas características, para além da docilidade, relativamente aos seus primos selvagens: maior proximidade nas características físicas de machos e fêmeas, crânios mais pequenos, dentição mais fraca, rosto mais arredondado e, nalgumas espécies, orelhas caídas, caudas enroladas e até manchas brancas na pelagem por cima da cabeça. Além disso, os animais domesticados têm uma tendência maior para a homossexualidade — e esta tendência pode, na verdade, ser um subproduto da domesticação — dado que são expostos a uma dose menor de testosterona quando ainda se encontram no útero materno.

Desde há muito, que vários estudiosos repararam que os seres humanos apresentam algumas destas características físicas e comportamentais, pelo que a ideia de que os humanos são seres domesticados é já antiga, e Wrangham corrobora-a. Mas se existe evidência sobre quem domesticou cães, gatos, porcos e muitos outros animais, quem terá domesticado o próprio homem? A resposta é que os seres humanos são animais autodomesticados. E isso aconteceu porque o desenvolvimento da linguagem veio permitir, entre outras coisas, que elementos dos povos humanos primitivos se associassem para controlar os indivíduos mais agressivos, instituindo, para tal, um implacável instrumento: a pena capital4.

A pena de morte é, pois, a causa principal da nossa autodomesticação e estima-se que a liquidação dos membros mais agressivos das sociedades humanas se tenha iniciado há pelo menos 300 mil anos, dando origem a uma espécie (mais graciosa do que o ancestral homo erectus), da qual somos hoje os únicos descendentes, o homo sapiens. Tendo em conta que qualquer processo de domesticação se completa em cerca de 20 gerações,5 o nosso comportamento agressivo terá sido radicalmente desincentivado há já bastante tempo, até porque os comportamentos que poderiam custar a vida a uma pessoa eram vastos, muitos mais do que hoje, ou seja, os indivíduos tinham um forte incentivo para se comportarem dentro de estritos padrões sociais, respeitando as normas igualitárias dos povos primitivos, sob pena de serem eliminados.6 Esta foi a forma dos nossos antepassados controlarem os indivíduos mais violentos. E o homo sapiens tornou-se, assim, um ser autodomesticado.

Mas as coligações, facilitadas pelo aparecimento da linguagem, que primordialmente se formaram para controlar a violência, acabaram por se transformar — com a concentração humana proporcionada pela agricultura, o crescimento populacional, o desenvolvimento técnico e científico, e a constituição de hierarquias de poder — naquilo que Wrangham chama coligações de agressão proativa, ou seja, um conjunto de pessoas orientadas para atingirem algum tipo de objetivo através da ação violenta. Algumas destas coligações tornaram-se extremamente poderosas, acabando nos dias de hoje por se confundirem com Estados — referimo-nos obviamente aos exércitos cegamente doutrinados e controlados por ditadores modernos que concentram em si todo o poder. As coligações de agressão proativa são, assim, a outra face da moeda da autodomesticação humana provocada pela instauração da pena capital.7

O paradoxo fica assim clarificado: a linguagem humana permitiu que se formassem coligações que impuseram a pena de morte e, com isso, reduziu-se a agressividade reativa tornando os humanos seres autodomesticados, mas, simultaneamente, abriu caminho para que essas coligações se tornassem coligações de agressão proativa, a mais letal entre os seres vivos conhecidos.

O poder avassalador das coligações de agressão proativa expressa-se, na sua forma mais devastadora, nos dias de hoje, através de guerras levadas a cabo por forças armadas com grande poder destrutivo, correspondendo ao grande desenvolvimento científico e tecnológico do mundo contemporâneo. Assim, o paradoxo projeta-se no futuro. Seremos capazes de controlar as coligações de agressão proativa e os seus líderes, impedindo que causem demasiado dano? Não sabemos. Apenas sabemos que a única esperança reside nas instituições democráticas, aquelas que impedem a concentração do poder, permitindo ganhar tempo para a formação democrática — através da educação — das novas gerações.

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A nossa edição:

Richard Wrangham, Goodness Paradox – How Evolution Made Us Both More and Less Violent, Pantheon Books, Croydon, 2020.

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Notas:

1 Há poucos dias veio a lume uma investigação, conduzida pelo jornalista italiano Ezio Gavazzeni, que mostra bem o nível de crueldade que as ações humanas podem atingir. Indivíduos ricos — notários, advogados, empresários — provenientes de vários países (italianos, franceses, suíços, americanos, ingleses), pagaram quantias elevadas às milícias sérvias que cercavam Sarajevo para se posicionarem nas colinas em redor e alvejarem os cidadãos da cidade, participando numa matança a que alguns já chamam, adequadamente, de safari humano. Os preços pagos variavam: por alvejarem uma criança pagavam 100 mil euros, mas a morte de um idoso era gratuita. O cerco a Sarajevo — o mais longo da história moderna — durou de 5 de abril de 1992 a 29 de fevereiro de 1996.

2 Todo o tipo de agressões provocadas por discussões “a quente” podem caracterizar-se por agressividade reativa: um homem que numa discussão no trânsito agride outro, por exemplo, pode considerar-se um caso típico de agressividade reativa.

3 As experiências levadas a cabo pelo geneticista soviético Dmitri Belyaev são consideradas as mais relevantes neste campo. A mais importante delas relacionou-se com raposas. Desde há muitas gerações que agricultores soviéticos criavam raposas prateadas nas suas quintas para negociarem a sua pele. A equipa de Belyaev começou por recolher dessas quintas as raposas mais dóceis. Cerca de uma em dez não rosnava quando os membros da equipa chegavam, e era selecionada. Após apenas quatro gerações as pequenas raposas aproximavam-se dos humanos abanando as caudas como se fossem cães. Na sexta geração as pequenas raposas não só abanavam as caudas como choramingavam para chamar a atenção dos humanos, cheirando-os e lambendo-os. Algumas gerações mais tarde, várias raposas apresentavam uma mancha branca no alto da cabeça, tal como acontece em cavalos, vacas, cães e muitos outros animais domésticos. Com o passar do tempo, alguns exemplares apresentavam as orelhas caídas, caudas e pernas mais curtas, e um crânio mais leve e estreito. Tudo isto provou que a seleção para a docilidade conduziu aos traços típicos da síndrome da domesticação referidos acima. A agressividade reativa baixou incrivelmente (ob. cit., pp. 67-72).

4 Isso acontece ainda hoje entre povos afastados da civilização, onde a pena capital é um instrumento supremo de igualitarismo. A pena de morte deve ter acontecido tantas vezes no passado que a nossa espécie herdou o temperamento calmo e menos agressivo que essa punição extrema impunha.

5 O processo de autodomesticação humana terá começado há pelo menos 300.000 anos e isso corresponde a 12.000 gerações. Isso é bastante tempo, se consideramos que a evolução dos lobos para cães se iniciou há aproximadamente 15.000 anos (ob. cit., p. 161).

6 Wrangham dá exemplos de atos considerados banais nos dias que correm mas que há apenas 300 anos podiam levar um indivíduo à pena de morte. Na América do século XVII um indivíduo podia ser condenado à morte por idolatria, blasfémia, rapto, adultério, bestialidade, sodomia e até masturbação (ob. cit., p. 143). Em sociedades primitivas, alguns motivos pelos quais um indivíduo podia ser condenado à morte eram igualmente fúteis aos olhos de hoje. Por exemplo, era banal ser-se executado por feitiçaria. Bruce Knauft, um investigador que estudou os Gebusi, um grupo de horticultores da Nova Guiné, durante 42 anos, registou 394 casos de pessoas executadas, sendo que 1/4 dos homens e 15,4% das mulheres foram condenados por feitiçaria (ob. cit., p. 161).

7 A pena de morte, que serviu em tempos para a nossa autodomesticação, não parece ter hoje em dia grande utilidade, nem é moralmente defensável. Richard Wrangham considera que ela deveria ser abolida nos Estados Unidos, país onde vive atualmente (ob. cit., pp. 283-4).

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O Nobel da Paz

Medalha criada pelo escultor norueguês Gustav Vigeland. Patente no Centro Nobel da Paz, em Oslo.

O homem é um animal violento, tal como a maioria dos seus primos primatas, sendo que a agressividade humana ultrapassa largamente tudo o que qualquer outro animal é capaz de fazer. Graças às suas linguagem e inteligência, o homem é o único ser vivo que mata membros da sua própria espécie por puro sadismo e até por mera diversão.

A velha questão sobre a origem da violência humana — se é inata ou adquirida — está há bastante tempo resolvida. Somos, sim, naturalmente violentos — e os genes da agressividade estão inscritos no nosso ADN. Vários estudos convergem para este diagnóstico: a observação de outros primatas, a descoberta de ossadas e utensílios com milhares de anos, o acompanhamento de povos que vivem em regiões isoladas do globo, e a investigação levada a cabo por várias disciplinas científicas, com o uso de tecnologias de ponta, incluindo a que permite a observação da atividade cerebral, como sejam as imagens obtidas por ressonância magnética funcional (RMf).

Aceitar a realidade da nossa natureza não nos deve impedir de lutar contra ela, antes pelo contrário. A luta pelo controlo da Natureza faz parte da nossa história — é sobretudo para isso que serve a Ciência — e a luta contra a nossa própria natureza é talvez a mais difícil e a mais desafiadora.

No entanto, na esperança de que escapemos ao que os rousseauianos consideram um “determinismo biológico”, há quem negue o caráter evolutivo da nossa agressividade. Esta perspetiva tem-nos conduzido a tentativas radicais de mudança da sociedade, mesmo que para isso seja preciso uma revolução (e muita violência), uma vez que destruindo as instituições que tornam o homem mau, emergirá o homem naturalmente bom.

Uma perspetiva completamente diferente é a dos que reconhecem a violência humana, e por isso destacam o papel das intituições liberais e democráticas no seu controlo, em particular no que toca à violência mais letal — a guerra que vem ceifando a vida de milhões e milhões de seres humanos inocentes. Um homem que mate outro é justamente condenado, mas um ditador que mate milhões passa frequentemente impune. Isto é possível porque só o homem é capaz de se associar em coligações de agressão proativa, nas palavras de Richard Wrangham.

Só reconhecendo que estamos sempre sujeitos ao surgimento de líderes violentos e criminosos capazes de arregimentar e comandar essas coligações, poderemos prevenir-nos, zelando todos os dias pelas instituições capazes de controlá-los e afastá-los do poder.

Os rousseauianos, mas também os marxistas, que em geral são as mesmas pessoas, tendem a desvalorizar o papel das instituições democráticas no que diz respeito à prevenção da violência e da guerra, referindo, com razão, que muitas democracias liberais também são belicistas.

Esquecem-se, porém, de que o caminho para a paz é longo, árduo e tortuoso (faz parte da luta referida acima). Nesse processo há países mais avançados, com os estados do Norte da Europa à cabeça, mas também há, além disso, uma correlação direta e positiva entre democracia e paz: os países mais democráticos são igualmente os mais pacíficos.

Esta correlação está sempre presente no espírito dos membros do Comité Nobel Norueguês e corresponde a uma posição pragmática e tanto quanto possível objetiva que, obviamente, não agrada à maioria dos crentes das ideologias radicais.

Aqueles que admitiam ser possível a atribuição do Nobel da Paz a um pseudodemocrata como Donald Trump não conhecem os critérios de decisão, nem o espírito que norteia a ação, do Comité Nobel Norueguês.

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Escapadela a Marrocos

Nadando em Tiguemine Sarah.

Há relativamente pouco tempo descobrimos que há voos diretos entre Faro e Marraquexe, operados pela Ryanair. Quando analisámos os preços, com voos de ida e volta a €30, decidimos de imediato fazer uma escapadela — que acabou por ser de quatro dias e meio — a Marrocos. Além dos preços, os horários dos voos eram também excelentes, o que nos permitiria otimizar o tempo de estadia em terras berberes.

O nosso voo partiu às 12:05, e às 13:20 estávamos a aterrar em Marraquexe.

Estávamos um pouco apreensivos com o aluguer do carro — tanto que fizemos um seguro contra todos os riscos. Era a única coisa que nos preocupava e, por sinal, quando saímos pelo último portão do aeroporto não vimos ninguém à nossa espera com a placa da locadora erguida, tal como estava indicado na página de reserva do booking.com, onde contratáramos o aluguer da viatura. Procurámos, circulámos, esperámos e, uns vinte minutos depois, reparámos num homem com uma placa, mas, em vez de a ter erguida, segurava-a numa mão descaída abaixo da cintura. A nossa intuição levou-nos a espreitar, e verificámos que estava inscrito na placa o nome da locadora — Green Motion — e lá fomos transportados até ao escritório, a uns 4 kms de distância, para tratar das formalidades. Surreal.

No terraço de Tiguemine Sarah.

No escritório da empresa foi-me solicitado um pagamento de 400 dirham (MAD), cerca de €37, por ser um condutor com mais de 65 anos, algo que não tinha verificado aquando da reserva online. Não adiantou reclamar, tive mesmo de desembolsar esse valor e ainda deixar uma caução de 17.000 MAD, cativos no nosso cartão de crédito.

Eram umas duas da tarde, tínhamos muito dia pela frente, e não deixámos que aquilo o estragasse.

Depois de enchermos o depósito, rumámos ao alojamento que tínhamos escolhido e sobre o qual tínhamos as melhores referências. A expectativa era alta e não foi frustrada. Tiguemine Sarah é um empreendimento lindo, um oásis entre terrenos áridos, com as montanhas do Atlas ao fundo. Tudo ali é equilíbrio e harmonia: o verde da vegetação, o ocre do edificado, o azul do céu e da piscina.

Come-se maravilhosamente em Tiguemine Sarah, e as pessoas são igualmente maravilhosas. Além delas, há quatro cães simpáticos e tranquilos, e um majestoso felino, de seu nome Winston Churchill. Os cães bebem água da piscina e o mesmo fazem os pássaros, inúmeros, que pela propriedade circulam. As árvores altas que ladeiam o poente o e o nascente do recinto retangular, talvez do tamanho de um campo de futebol, proporcionam sombra, pelo menos nalgumas espreguiçadeiras, durante a maior parte do dia. Ler um livro, ou simplesmente dormitar numa delas, é um prazer divino.

Negociando nas montanhas do Atlas.

O ambiente todo — desde o ar à água, passando pelo silêncio entrecortado pelo chilrear dos passarinhos, até ao resfolhar suave que uma leve brisa levanta — convida ao langor. O nosso quarto (o nº 1) é espaçoso, bem decorado, limpo, e tem uma enorme varanda debruçada sobre a piscina. Ao fundo, azuladas, as montanhas do Atlas. Dormimos muito bem na nossa primeira noite.

No dia seguinte esperáva-nos um pequeno-almoço soberbo. Não podemos esquecer a sopa berbere (sim, eles tomam-na ao pequeno-almoço), o mel com manteiga e o sumo de frutas, com banana, pêssego e laranja. Os doces, feitos por uma das irmãs — Gigi — são simplesmente maravilhosos. Não apetecia sair, mas já tínhamos programa e tivemos de vencer a preguiça. Saímos, ao meio-dia, na direção das montanhas do Atlas.

Para começar, o google maps mandou-nos por um atalho em terra batida de cerca de 2 kms. Nenhuma viatura se cruzou connosco, felizmente, e lá atingimos a estrada nacional N9, que liga Marraquexe a Ouarzazate. Pouco tempo depois começámos a subir. A certa altura estávamos aflitos para irmos à casa de banho e parámos em Taddarte. Entrámos num café, aliviámo-nos e pedimos um chá de menta. Todos foram simpáticos e respeitosos connosco. Seguimos viagem montanha acima.

Aït-Ben-Haddou ao nascer do sol. Grandes filmes foram rodados aqui.

Passado algum tempo e muitas curvas apertadas, chegámos ao ponto mais alto do nosso percurso — Tizi Tichka. Daqui vê-se a estrada que acabámos de subir, uma cobra pequenina, lá bem no fundo. Este é um ponto de paragem quase obrigatória e vê-se sempre gente circulando, carros e autocarros parados, bancas de vendedores de pedras coloridas, extraídas das montanhas em torno. Estávamos a 2.260 metros de altitude e, claro, a temperatura tinha descido um (ou dois) punhado de graus.

Retomámos viagem e, logo três ou quatro quilómetros depois, em vez de continuarmos pela N9, infletimos à esquerda e entrámos na P1506. Esta estrada segue sempre ao longo de um rio, nesta altura do ano quase seco, mas ainda assim com água suficiente para alimentar uma escolta de vegetação, que segue ao longo de ambas as margens durante quilómetros e contrasta fortemente com a paisagem desértica que se sobrepõe naturalmente em toda esta região. Passámos por Télouet, uma cidade de dimensão significativa, mas também por inúmeras aldeias e vilas antigas, encaixadas nas encostas adjacentes ao leito do rio, aproveitando tudo o que o líquido precioso que ele transporta pode proporcionar.

Cruzando o rio.

Continuámos ao longo do Vale de Ounila até que, finalmente, por volta das 5 da tarde, chegámos a Aït-Ben-Haddou. Fomos diretamente para o alojamento que tínhamos reservado — Dar INNÂ. Aqui iríamos ficar na próxima noite e tomar o pequeno-almoço na manhã seguinte, pelo inacreditável preço de €22,96. Achraf recebeu-nos de braços abertos e deu-nos dicas preciosas relativamente a locais onde poderíamos jantar. Dar INNÂ dista uns 700 metros do centro de Aït-Ben-Haddou, pelo que fomos de carro até lá.

Aït-Ben-Haddou é uma aldeia muito antiga, na margem esquerda do rio, mas na margem direita foi construída uma nova aldeia, onde a maioria das pessoas mora e onde os turistas encontram os serviços de que necessitam. Na aldeia antiga, que é o que toda a gente quer ver, vivem apenas meia-dúzia de famílias.

Ksar (alcácer) muito antigo, fortificado desde o período almorávida e reconstruído várias vezes com os mesmos métodos ancestrais, Aït-Ben-Haddou, por onde passavam as caravanas antigas na sua rota entre o deserto do Saara e Marraquexe, é considerado um exemplo sublime da arquitetura tradicional marroquina e, como tal, foi eleito Património Mundial, pela Unesco, em 1987. Aït-Ben-Haddou acolheu, nos últimos anos, inúmeros realizadores, atores e equipas de rodagem, cujo trabalho contribuiu para um número impressionante de séries e filmes.

O cenário é, de facto, magnífico.

Museu do Cinema em Ouarzazade.

No entanto, a melhor hora para fotografá-lo não é ao pôr do sol, mas antes ao nascer do sol, algo que descobrimos passados alguns minutos de ali chegarmos. Claro que combinámos voltar bem cedo no dia seguinte, mas, depois de hora e meia circulando pelas ruelas estreitas, já anoitecera, a fome atacara e fomos procurar um dos restaurantes que Achraf nos indicara para jantarmos. Comemos um tajine vegetariano e no final bebemos o tradicional chá de hortelã. Voltámos ao alojamento porque estava previsto levantarmo-nos bem cedo no dia seguinte.

Acordámos às 6:30, ainda durante uma noite mal dormida. Estacionámos o carro no centro da vila e atravessámos o rio em direção ao ksar. (O rio tem pouca água e é fácil cruzá-lo pisando uns sacos de areia estrategicamente colocados do lado nascente, embora haja também uma ponte de cimento construída recentemente do lado poente). Em frente ao ksar há um enorme monte de areia, semelhante a uma duna gigante, e é relativamente fácil subir até ao topo e daí desfrutar de uma vista previlegiada sobre Ait-Ben-Haddou. É o que algumas pessoas fazem, sobretudo as mais jovens, e nós fizemo-lo também. Quando o sol nasceu, inundou de luz o ocre das fachadas do ksar, conferindo-lhes um tom de ouro que nós aproveitámos para registar nos nossos cartões de memória.

Um café excelente tomado na estrada.

De seguida regressámos ao alojamento, arrumámos as coisas e preparámo-nos para o pequeno-almoço. Achraf serviu-nos uma refeição simples, mas deliciosa, com pão, queijo, mel, sumo e chá de hortelã. Despedimo-nos e fizemo-nos à estrada. Continuámos no mesmo sentido do dia anterior até apanharmos de novo a N9. Chegámos a Ouarzazate, uma cidade de dimensão considerável, onde existem vários estúdios e um museu de cinema. Demos uma pequena volta por lá, sem grande profundidade, e voltámos pela mesma N9, agora em sentido contrário e sem qualquer desvio.

Já tínhamos reparado, através dos quilómetros percorridos, em vários carros ao longo da estrada onde se serve café. Decidimos experimentar. Pensáramos que fosse café de “saco”, mas qual foi a nossa surpresa quando verificámos que, no porta-bagagens, estava instalada uma enorme máquina de café expresso. Mas não um café qualquer — um café delicioso! Estávamos mesmo a precisar. Mais à frente comprámos fruta (uvas e bananas) num mercadinho. Já tínhamos passado por Tizi Tichka e continuávamos a descer, descer… Não tínhamos muita pressa, o nosso destino era um jardim peculiar que fica muito perto de Tiguemine Sarah, a uns 3 kms, e, quase sem dar por isso, estávamos quase a chegar.

O Anima alberga obras de arte surpreendentes.

Anima é um jardim mágico criado por André Heller, um artista, poeta, cantor, realizador e ator austríaco. Os trabalhos de criação do jardim começaram em 2008 e prolongaram-se por oito anos. O espaço alberga obras de Pablo Picasso, Keith Haring, IgorMitoraj, Monika GilSing e muitos outros. Há também uma exposição permanente, com obras de Hans Werner Geerdts (1925-2013), um artista alemão que viveu em Marrocos e era amigo de André Heller. Há quem considere Anima o mais belo jardim do mundo. A nós fez-nos lembrar, em parte, o Jardim Gulbenkian, mas também o House on Fire, em Eswatini, e o jardim de Claude Monet, em Giverny. Há ainda um bar/restaurante, onde petiscámos antes do regresso a Tiguemine Sarah.

Fomos recebidos com alegria, como se nos estivéssemos ausentado durante muito tempo. Estávamos em casa de novo e aproveitámos para descansar. Às sete da tarde descemos ao jardim para apreciarmos o belo couscous que encomendáramos no dia anterior. O jantar estava delicioso. Não apetece sair deste local tão especial, onde a comida, conjugada com o ambiente, faz baixar a pressão arterial, desacelera o ritmo cardíaco e deixa corpo e espírito em paz um com o outro. Ficámos por ali mais um tempo e pouco depois de subirmos ao quarto estávamos a dormir profundamente.

Uma surpresa em cada curva.

Além de tudo o mais, é ótimo o horário de check-out em Tiguemine Sarah — meio-dia — pois permite usufruir do espaço, nomeadamente da piscina, durante toda a manhã. Laila, a proprietária, perguntou-nos quando era o nosso voo e quando soube que era apenas às 10 da noite, disse que poderíamos ficar mais tempo, tinha o quarto disponível. Recusámos educadamente, pois não queríamos abusar da simpatia daquela família e, afinal, ainda não tínhamos visitado Marraquexe. Quando soube que queríamos ir a Marraquexe, Laila deu-nos duas boas dicas. A primeira foi que deixássemos o carro no parque de estacionamento de um centro comercial (Carre Eden) e a segunda foi que fôssemos ao Grand Café de la Poste, bem pertinho do centro comercial.

Entretanto, passámos uma boa parte da manhã no jardim e na piscina. Pouco depois das onze fomos pela última vez ao quarto, arrumar as nossas coisas, tomar banho e prepararmo-nos para sairmos. Descemos, pagámos a conta (4 jantares, taxas municipais, bebidas) e despedimo-nos. No total, pagámos €87, o que, para a qualidade dos serviços, pode ser considerado uma pechincha. A reserva do quarto por quatro noites, com pequeno-almoço, custara-nos, previamente, €151,20. As três irmãs (uma cozinheira, uma doceira e uma administradora que também dá uma mão na cozinha) vieram despedir-se. Também vieram François, co-proprietário, marido de Laila, e Houcine, mais um irmão das três irmãs (Laila, Jamila e Zahra).

Gostaríamos de voltar, um dia, com mais família. Veremos.

No Grand Café de La Poste.

Fizemos o que Laila recomendou. Estacionámos no centro comercial (5 horas por 20 MAD, cerca de €1,87), e fomos beber um chá tradicional marroquino ao Grand Café de la Poste. Por feliz coincidência, o GCLP comemora este ano um século. Laila dissera-nos que Churchill, Roosevelt e o rei de Marrocos se haviam ali encontrado, mas não conseguimos confirmar essa informação. Porém, parece que Churchill esteve mesmo lá — e também Charles de Gaulle, Antoine de Saint-Exupéry, Joseph Kessel, Jacques Majorelle, Paul Bowles, Jean Genet, Yves Saint Laurent, Pierre Bergé, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Cat Stevens1, entre outras personalidades, nós incluídos.

Não tínhamos grandes planos para Marraquexe. Fomos a pé até à Medina e voltámos. Não vimos grande coisa, portanto, além de um bonito parque, o que, face ao calor intenso, acabou por ser o mais agradável. Pouco depois das 5 da tarde saímos de Marraquexe. Numa pequena estação de serviço perto da agência do aeroporto da Green Motion, mandámos lavar o carro (em Marrocos tem de se entregar o carro lavado ou paga-se uma pesada indemnização) e fomos entregá-lo. O trânsito era muito intenso àquela hora, mas desenrascámo-nos bem. Às 22:10 o avião da Ryanair levantou voo. Antes da meia-noite estávamos ao volante do nosso carro, em Faro. Pouco depois, após quatro dias fora, estávamos de novo em casa. Desta vez, na nossa própria casa.

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1 https://www.lopinion.ma/Retro-Verso-L-Histoire-emblematique-du-Cafe-de-la-Poste-de-Marrakech_a57037.html

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