A guerra de Putin contra as mulheres

“Os Cossacos de Zaporíjia escrevendo uma Carta ao Sultão Turco”, de Ilya Efimovich Repin (imagem retirada de: https://www.meisterdrucke.pt/).

Transcrevemos abaixo um trecho do livro A Guerra de Putin contra as Mulheres, da escritora estonia-finlandesa Sofi Oksanen. O livro é de 2024, em ambas as edições — a portuguesa e a original.

Quando a minha avó estónia ia às compras na cidade, era atendida por vendedoras que falavam russo. Na União Soviética era uma profissão muito prezada pois dava acesso a bons negócios por baixo da mesa. Nos grandes armazéns, em particular, estes empregos eram exercidos por russófonos. Como o self-service só chegou bastante mais tarde, e apenas em certas lojas, era preciso pedir à vendedora os produtos pretendidos para que ela os fosse buscar à prateleira. A minha avó cresceu na Estónia independente e, por isso, não tinha aprendido russo na escola. Se um cliente falasse estónio era repreendido: “Fala a língua dos humanos!” A humilhação e o rebaixar ao nível animal daqueles que não falavam russo tornava-se assim o dia a dia dos estónios.

Hoje em dia, na Ucrânia, os torturadores dirigem-se às suas vítimas ucranianas em russo: “Não fales a língua dos porcos!”

Na União Soviética e na Rússia, a língua dos humanos é o russo. As outras são as dos animais.

No seu livro Humanity, o filósofo e historiador Jonathan Glover analisou os fatores que conduzem à violência extrema. Quer se trate de Mao, Hitler ou Putin, os mecanismos que propiciam atos de brutalidade são surpreendentemente semelhantes. Tanto na União Soviética como na Alemanha de Hitler, as populações a liquidar foram desumanizadas. Com isto, enfraquecia-se uma atitude de compaixão e respeito reservada à humanidade, aquilo que Glover chama “recursos morais”. A ideia é minar estas qualidades humanas enquanto tudo corre bem no país empenhado na via dos crimes de guerra, remover a barreira moral que existe em relação aos crimes de sangue, construindo e difundindo uma imagem denegrida do inimigo através dos feeds de notícias, de tomadas de posição e de histórias. O grupo visado começa a sofrer medidas opressivas, é desumanizado, reduzido à categoria de animal, depois de inseto e, por fim, de mera abstração. Matar civis não constitui um problema quando não existe a obrigação de tratá-los como seres humanos. O genocídio é a fase final. Nas valas comuns, as pessoas deixam de ter direito ao seu nome e à sua identidade.

Os genocídios, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade partilham um denominador comum: o Estado genocida prepara o terreno antes de passar à ação. O genocídio e os crimes de guerra começam através de palavras que criam uma realidade. A linguagem populista, polarizada, é a principal matéria-prima. Embora o discurso de ódio nem sempre conduza ao genocídio, o genocídio é sempre precedido por um discurso de ódio, que se inflama passo a passo, e que é geralmente misógino. A violência sexual genocida cometida na Ucrânia é um exemplo extremo daquilo que o populismo autoritário é capaz e do seu objetivo: a destruição total de um povo e de um Estado. Neste sentido, a propaganda russa é um fator crucial na viabilização dos crimes de guerra. No Ruanda, uma estação de rádio muito popular desempenhou um papel determinante na preparação do genocídio e na sua execução. Os diretores da Radio Télévision Libre des Mille Collines (RTLM) foram condenados a prisão perpétua por genocídio. A mesma pena foi aplicada a um apresentador e ao editor da revista Kangura, que incitava ao ódio contra os Tutsis.

A propaganda interna russa move-se da mesma forma há décadas. Encontra eco nos velhos estereótipos acerca do inimigo que perduram. As gerações anteriores estavam habituadas a ver os não russos como fascistas, nazis, indivíduos doentes devido ao seu “nacionalismo”. A utilização de termos estigmatizantes era habitual e moralmente aceite há várias gerações. Repetidas pelas autoridades, pelo sistema educativo, pelos meios de comunicação social e pela justiça, estas mentiras tornaram-se uma verdade comummente aceite. Em 2014, quando o ultranacionalista Aleksandr Dugin exortou os seus concidadãos a matarem todos os ucranianos, mesmo na Rússia a sua posição foi considerada demasiado radical, resultando no seu despedimento da Universidade de Moscovo. Em 2022, com a grande ofensiva, muitos políticos retomaram o seu apelo de outras formas. Em menos de dez anos, declarações deste tipo banalizaram-se no discurso político russo.

O vocabulário desumanizante tem uma longa tradição na Rússia, a vários níveis da sociedade. No jargão oficial da URSS, os membros de um grupo humano colonizado eram designados pelo termo genérico “elementos”. Nos vários documentos dos serviços de segurança que tive a oportunidade de ler, o que mais me surpreendeu talvez tenha sido a linguagem utilizada: as construções são quase todas passivas. As ordens, recomendações e comunicados são assinados com nomes, mas o corpo do texto é sempre redigido na voz passiva, o que minimiza a responsabilidade do signatário. Não existe a sensção de que se está a dar ordens ou a executar medidas opressivas. Apenas se obedece a instruções superiores. Não é surpreendente que, aquando do colapso da URSS, os funcionários dos serviços de segurança não tenham publicado memórias nas quais lamentavam os seus atos ou o facto de terem participado na opressão. Não se arrependeram da forma como tinham tratado os “elementos”, pois enquanto “elementos” era como se de blocos de cimento se tratassem.

A pesada burocracia que dilui a responsabilidade individual nas cadeias de comando e nas reorganizações era bem conhecida na Alemanha de Hitler, tal como a progressiva desumanização dos judeus destinada a pôr em marcha o Holocausto. Desde a Segunda Guerra Mundial tem havido um extenso e cuidadoso estudo do percurso que levou ao Holocausto, e as obras que todos os anos são publicadas sobre o tema mostram que as pessoas querem saber mais. Pergunto, porém, quantos livros foram publicados no Ocidente sobre a retórica desumanizadora através da qual a URSS justificava os seus crimes contra os direitos humanos no Bloco de Leste? Será que faz parte do currículo escolar de um único país ocidental?

O KGB comandou os autores do revisionismo histórico soviético, fornecendo todo um léxico, a partir de diretórios e dicionários atualizados com regularidade e onde cosntavam, nomeadamente, epítetos. Os termos associados aos “Estados liquidados” eram altamente estigmatizantes e falaciosos. Em contrapartida, os adjetivos associados à União Soviética serviam para realçar a grandeza, o poder, a invencibilidade e outras características heroicas. Os olhares dos censores era inescapável, e este jargão não surgiu de forma espontânea: as instruções do KGB e o uso repetitivo de atributos eram fundamentais. As reações de caráter emocional eram importantes e induzidas através de epítetos: quando se associam apenas palavras negativas a certas coisas, as pessoas acabam por sentir repugnância por elas. O jargão oficial tornou a linguagem soviética redundante, pesada e difícil de compreender.

O poeta Lev Rubinstein afirmou que a propaganda era “a morte do significado”. Parece-me uma excelente formulação. Uma vez que pensamos através de palavras, só quando forem devolvidos os significados que correspondem à realidade é que a linguagem poderá despertar e, ao mesmo tempo, iluminar o pensamento. Foi por esta razão que os Estados bálticos aboliram as expressões soviéticas após a restauração da independência. A linguagem da URSS era um idioma ideologicamente puro cujos significados não correspondiam à realidade. Descrevia uma utopia na qual certos “elementos” deixavam de existir, tornando-a real.

A linguagem soviética permitia proceder às deportações, interrogatórios e perseguições. Deste modo, todos os russos tinham o direito de tratar os estónios como tratavam a minha avó, que não merecia ser atendida na loja porque não falava “a língua dos humanos”. Este jargão passou para o novo milénio, e através do exército de trolls da Rússia tem silenciado aqueles que denunciaram os crimes da Rússia contra os direitos humanos, durante mais de dez anos, nas redes sociais. A mesma linguagem foi utilizada para justificar o bombardeamento de barragens e hospitais ucranianos, e justificou o massacre de Bucha.

Na Rússia, a linguagem da era soviética nunca foi condenada. Enquanto o debate pós-colonial aboliu o vocabulário pejorativo nas outras antigas potências imperiais, nada disso teve lugar na Federação Russa, apesar da breve recuperação democrática no início da década de 1990, que tornou possível falar do passado e investigar de forma mais livre e menos censurada. Não sei se a retórica fascista que estigmatiza e demoniza o inimigo se teria dissipado espontaneamente sem o governo de Putin, mas o discurso de ódio e a linguagem do Estado totalitário não podem coexistir com os valores democráticos, tal como os retratos de Estaline e a admiração pelos símbolos que personifica não podem coexistir com os ideais democráticos. Não há coexistência possível.

Os teóricos do Partido Comunista compreendiam que a língua era um instrumento do pensamento, por isso o enfraqueciemnto das línguas nacionais era uma missão importante em toda a URSS. Aqueles que dominavam o russo começaram a pensar como os russos, o ponto de partida étnico do Homo sovieticus. Como resultado da russificação iniciada durante a era czarista, o russo era já a língua de ensino em muitas regiões. Na Ucrânia, por exemplo, o ucraniano foi várias vezes proibido. Estaline chegou mesmo a banir os carateres ucranianos que não constavam do alfabeto russo. O fraco conhecimento e implantação da língua russa na região do Báltico incomodava e dava dores de cabeça ao Partido. Era também uma forma de resistência passiva por parte das populações ocupadas.

Embora os Estados bálticos tenham encetado a descolonização na década de 1990, o processo foi mais prolongado na Ucrânia, tendo, contudo, a Revolução da Dignidade conduzido às leis da descomunização. Posteriormente, a grande ofensiva russa levou a uma desrussificação, a ponto de os autores que escreviam em russo terem passado a fazê-lo em ucraniano: a língua russa é um instrumento de opressão e supremacia russa.

Até agora, e ao contrário da antiga URSS, a propaganda da Federação Russa não teve um objetivo ideológico. No entanto, além da construção de estereótipos acerca do inimigo, ambas partilham o hábito de alterar o significado das palavras. A ocupação era chamada “amizade” e “libertação”; a resistência, “loucura”, “doença” ou “crime”. No início da guerra no leste da Ucrânia, a Rússia falava do “genocídio do Donbass”, cometido contra os russos e russófonos da região, o que não era verdade. O nacionalismo russo é descrito como “patriotismo”, quando se trata de nacionalismo. À guerra na Ucrânia chama-se “operação especial”, quando se trata de uma guerra. A escolha das palavras mostra que Moscovo tem consciência da relutância das pessoas em relação à guerra. Putin está, por isso, empenhado em mantê-la fora da Rússia. Assim, a grande ofensiva começou por se chamar “operação especial”, tendo sido criminalizada a utilização de termos diferentes dos oficiais a fim de transmitir a imagem de uma pequena operação, longínqua e circunscrita, que não podia, de forma alguma, dizer respeito a toda a nação. Esta necessidade de manter a guerra à distância dificultou a mobilização, pois as pessoas iriam compreender que se tratava afinal de contas de uma guerra e que todos estavam envolvidos. Na primavera de 2022, os russos estavam longe de imaginar que os seus filhos poderiam ter de matar os primos, pois antes da Ucrânia os combates desenrolaram-se sempre em regiões distantes e a Rússia não levava a cabo uma ofensiva deste género desde a Segunda Guerra Mundial. Uma das missões de Putin é manter a guerra fora da Rússia, física mas também mentalmente, e conseguiu-o manipulando a linguagem.

O Kremlin não esperava que o conflito durasse muito tempo — talvez pelo facto de predominar na Rússia um grande desconhecimento da história da Ucrânia, da qual se conhecia apenas a versão russa, igualmente adotada pelo Ocidente. A forma como a Rússia assimilou a cultura ucraniana alimentou a ideia de que os ucranianos eram “pequenos russos provincianos” sem cultura própria.

Antes da grande ofensiva, uma exposição de Ilya Repin (1884-1930) percorreu a Europa, tendo sido a maior exposição alguma vez apresentada fora da Rússia. No Museu de Arte do Ateneu, na Finlândia, assim como nas notas explicativas no Petit Palais, em Paria, o artista foi a presentado como um pintor da alma russa. Quando eu estava a escrever um artigo sobre este assunto em 2022, o Google também informava que Repin era russo, embora o próprio, nascido na Ucrânia, se considerasse descendente de cossacos ulanos de origem polaca, sendo a expressão da ucranianidade central na sua obra.

A exposição continha um dos seus quadros mais conhecidos, Os Cossacos da Zaporíjia Escrevendo uma Carta ao Sultão da Turquia (1880-1891), emprestado pelo Museu Russo de São Petersburgo. Os visitantes talvez pensassem que estavam a apreciar uma pintura russa, como indicavam as notas explicativas. Na realidade, o quadro refere-se à Ucrânia. Para os zapórogos, a ambição de alcançar independência em relação à Rússia era essencial, e o quadro representa o hetmanato cossaco. A história deste Estado autónomo é importante para o nascimento dos ideais democráticos na Ucrânia porque, ao contrário da Rússia, não existia um regime de servidão e os seus governantes eram eleitos por uma assembleia geral. A Ucrânia de hoje baseia-se nas ideias dos cossacos. Ao longo dos séculos, chegaram ao território ucraniano imigrantes e refugiados provenientes dos vários impérios: austríaco, austro-húngaro, otomano e russo. Rory Finnin, professor de Estudos Ucranianos em Cambridge, descreve a identidade nacional ucraniana como a história de vários indivíduos que se unem em torno de um ideal anti-imperialista. Foi justamente isso que atraiu as pessoas durante séculos, e é isso que faz da Ucrânia a antítese da Rússia.

Na primavera de 2022, circulou na Internet uma fotografia que recria a composição de Repin no campo de batalha: os soldados ucranianos mandavam assim um recado a Moscovo.

Definir Ilya Repin como um pintor russo é um exemplo típico de apropriação cultural por parte da Rússia, segundo a qual a história cultural da Ucrânia não constituiu um todo independente. Note-se que os museus ocidentais têm apoiado esta política colonial. Quando vista através dos olhos do colonizador, a identidade de um povo e a sua luta pela independência tornam-se invisíveis. O racismo russo em relação aos ucranianos e o tratamento inferiorizante de que são alvo reforçaram a imagem que Moscovo tinha dos ucranianos como seres submissos e incapazes de resistir. No imaginário russo, a Ucrânia, mas também a Polónia e os outros países bálticos, são considerados invensões de povos pequenos, emotivos e histéricos. Daí a surpresa perante a resistência ucraniana, também sentida no Ocidente.

******************************

A nossa edição:

Sofi Oksanen, A Guerra de Putin contra as Mulheres, Objetiva, Lisboa, 2024 (pp. 67-73).

******************************