Popper, 122 anos

No átrio da Universidade de Viena.

Passam hoje 122 anos sobre o nascimento de Karl Raimund Popper, na Viena do início do século XX, em 1902. Popper viveu, por isso, tempos conturbados, tendo sobrevivido a duas guerras mundiais, que inevitavelmente influenciaram o seu pensamento. Este filósofo vienense foi um “revolucionário” das ideias e pode dizer-se, tomando de empréstimo as palavras de Bryan Magee, que a filosofia de Popper é uma “filosofia de ação” — daí que muitos a tenham aproveitado para as suas atividades profissionais. Magee, na biografia que escreveu sobre Popper, em 1973, cita políticos, artistas e cientistas (incluindo vários prémios Nobel) que afirmaram ter transformado as suas vidas profissionais e pessoais graças ao pensamento de Karl Popper1.

No meio século posterior à publicação do livro de Magee, ou seja, desde 1973 até hoje, multiplicam-se os que, de alguma forma, passaram a ver o mundo de forma diferente, após lerem e estudarem a obra do maior filósofo da ciência do século XX. Popper põe quase tudo aquilo que julgamos conhecer de pernas para o ar e ajuda-nos a ver a realidade por uma perspectiva completamente diferente. Ele aborda criticamente as ideias de Platão, Hegel, Marx, Freud, Wittgenstein, Heidegger, Chomsky (só para citar os mais famosos), que tantos consideram monstros sagrados da cultura ocidental, e desconstrói, quando não desmascara, as respetivas doutrinas. E um campo vastíssimo, que vai desde a epistemologia à política, passando pela teoria da evolução e a ética, foi reconstruído por Popper.

(A grande filosofia começa, de facto, pela demolição de castelos).

Comecemos pela epistemologia. Neste campo, Karl Popper resolveu dois problemas. O primeiro, fruto do seu encontro com o marxismo, foi o de estabelecer um claro critério de demarcação entre ciência e pseudociência: uma teoria que não seja passível de ser testada ou refutada não pode ser considerada científica; o segundo foi o problema da indução: não se pode construir uma teoria a partir de observações, não importa em que número, pois há sempre a possibilidade de uma última observação invalidá-la.

Kant já havia mostrado que o conhecimento não começa nos sentidos, mas sim no nosso intelecto (que Kant chama de entendimento), sendo independente daqueles, ou seja, a priori, mas Popper vai mais longe nas consequências: não é possível ter a certeza de que uma teoria é verdadeira, mas é sempre possível que a mesma seja falsa. Os cientistas devem, portanto, tentar falsificar as teorias em presença (daí o método popperiano ser conhecido por falsificasionismo), incluindo as próprias, para desenvolverem outras que melhor correspondam aos factos e possam, assim, ser consideradas provisoriamente verdadeiras. Desta forma se constrói o edifício científico e nos aproximamos da verdade — com a consciência de que nunca podemos ter a certeza de a encontrarmos. Por outras palavras, todo o conhecimento é conjetural.2 O matemático e cosmólogo Sir Hermann Bondi afirmou: nada mais há para a ciência do que o seu método, e nada mais há para o seu método do que o que foi dito por Popper.3

Já no que toca à teoria da evolução, Karl Popper inverte o papel tradicionalmente atribuído aos organismos, na sua relação com o ambiente. Segundo ele, os seres vivos não têm apenas uma capacidade de adaptação, não são seres passivos, pelo contrário, procuram ativamente novos nichos ecológicos, tentando e errando, sempre em busca de melhorarem a sua situação. A própria vida pode ter nascido após milénios de tentativas e erros, até ao aparecimento das primeiras células. Todos os organismos, “desde a amiba a Einstein”, procuram constantemente melhores condições de vida, explorando e transformando o meio ambiente. Os organismos vivos são seres que criam expectativas, capacitados com conhecimento inato por forma a resolverem problemas ambientais diversos. O pica-pau criou o seu bico forte na busca por uma nova fonte de alimento. E todos os organismos exploram o ambiente na busca de um mundo melhor: as formigas constroem formigueiros, os macacos usam pedras como ferramentas, os castores constroem barragens, os seres humanos saem de África para explorar o mundo. A vida toma decisões ousadas e faz escolhas criativas.

Paul Nurse, geneticista e biólogo celular britânico, vencedor do Nobel da Medicina, corrobora no livro O que é a Vida? a visão de Popper: A vida está constantemente a fazer experiências, a inovar e a adaptar-se à medida que vai mudando o mundo e o mundo muda à sua volta.4 Também Ray Noble, que escreveu, em parceira com seu irmão Denis Noble, Understanding Living Systems, publicado em 2023, considera que este livro, escrito a duas mãos, foi fortemente influenciado por Popper.5

Os organismos mais avançados na busca por um mundo melhor são os seres humanos modernos, e isto deve-se à sua linguagem específica. (Os outros seres vivos também têm linguagem, mas não aos níveis descritivo e argumentativo, exclusivo dos humanos). É a linguagem própria do sapiens que permite a criação de uma cultura particular— a religião, a arte, a filosofia e, sobretudo, a ciência — a que Popper apelidou de mundo 3. Isto conduz-nos diretamente aos três mundos de Popper. O mundo 1 é constituído pela totalidade das coisas físicas, vivas ou inanimadas, tudo o que existe, toda a matéria; o mundo 2 é o das consciências humanas individuais, o mundo da subjetividade, do pensamento, da argumentação — através do qual fazemos a ligação, nos dois sentidos, entre o mundo físico (1) e o mundo da cultura (3); e o mundo 3 é o das produções humanas, da ciência, das obras de arte e de engenharia, das ideias registadas em livros, artigos e textos filosóficos. Através do mundo 3, nós transformamos constantemente o mundo 1. Então, qual a consequência do desenvolvimento da linguagem humana e da criação do mundo 3, o mundo da cultura e da ciência? A principal consequência, em termos evolutivos, é a de que os seres que não desenvolveram a linguagem da ciência precisam arriscar as próprias vidas na sua busca por um mundo melhor; em contrapartida, nós podemos testar o mundo com as nossas teorias científicas, e deixá-las morrer por nós. A teoria da evolução de Popper está, assim, estritamente ligada à sua epistemologia.6

Já no que concerne à filosofia política, Karl Popper é o filósofo da liberdade, considerada o mais importante valor social. Popper enfatiza isso mesmo numa passagem da sua autobiografia:

Continuei a ser socialista durante vários anos, mesmo depois da minha rejeição do marxismo; e se pudesse haver um socialismo combinado com a liberdade individual, ainda seria socialista. Porque nada poderia ser melhor do que viver uma vida modesta, simples e livre numa sociedade igualitária. Levou-me algum tempo a reconhecer isto como não sendo mais do que um lindo sonho, a reconhecer que a tentativa para realizar a igualdade põe em perigo a liberdade e que, se a liberdade se perde, nem sequer entre os não livres haverá igualdade.7

Porém, a liberdade só é possível se formos capazes de impor limites ao poder. Uma sociedade saudável deve ter ao seu alcance meios pacíficos para destituir os governantes que querem abusar do poder. É por isso que Popper considera perigoso e infrutífero concentrarmo-nos sobre quem deve governar — questão central para os filósofos sociais, desde Platão a Marx — e defende que devemos antes interrogar-nos sobre qual o sistema político que devemos construir para garantir que poderemos ver-nos livres dos governantes que querem perpetuar-se no poder. A questão tradicional quem deve governar? deu origem a ideologias radicais e à violência, a questão defendida por Popper, de que forma podemos livrar-nos dos governos indesejáveis sem derramamento de sangue?, está na base da democracia liberal e do estado de direito democrático, com a sua tradicional separação de poderes. De facto, não basta ter um sistema em que governe quem foi votado pela maioria, é sobretudo indispensável que os governantes estejam limitados por regras que evitem uma ditadura.

A este propósito, o físico quântico David Deutsch escreveu em O Início do Infinito:

Popper aplica o seu princípio básico “como podemos detectar e eliminar o erro?” à filosofia política sob a forma de “como podemos livrar-nos dos maus governos sem violência?” Da mesma forma que a ciência busca explicações experimentalmente verificáveis, um sistema político racional facilita o mais possível a detecção de um mau líder ou política, e a persuasão de outros de que é esse o caso, e a sua remoção sem violência. Tal como as instituições científicas estão estruturadas de forma a evitar consolidar teorias, mas antes expô-las à crítica e à verificação, também as instituições políticas não deveriam dificultar a oposição pacífica aos governantes e às medidas políticas, personificando antes uma tradição de discussão pacífica e crítica destes e das próprias instituições, e de tudo o resto. Assim, os sistemas de governo devem ser julgados não pela sua capacidade profética de escolher e instalar bons líderes e políticas, mas pela sua capacidade de remover maus líderes já instalados.8

Assim, só a democracia liberal garante a possibilidade de nos vermos livres dos governantes nefastos. E também só ela nos garante a liberdade, a limitação da violência e a esperança da paz. Se a liberdade não fosse o valor mais alto, os tiranos deste mundo não se uniriam contra ela, como sempre acontece. Independentemente dos posicionamentos ideológicos, os ditadores de todos os continentes, sejam de esquerda ou direita, unem-se em torno do companheiro Putin, pois acima das posições ideológicas relativas, está o ódio absoluto ao mundo livre. Popper considerava que a oposição dos liberais ocidentais aos totalitarismos nazi e estalinista do século XX era a continuação da luta travada pela democracia ateniense contra a tirania espartana, na Grécia Antiga. Pois bem, essa luta continua hoje entre extremistas que apoiam ditadores e os democratas que resistem. A mesma luta milenar: opressão versus liberdade.

Mas, independentemente do ramo da filosofia de Karl Popper que abordemos, há que compreender a raíz do seu pensamento filosófico. Mariano Artigas, que foi professor de filosofia na Universidade de Navarra, em Espanha, expôs o caráter humanitário do sistema popperiano — num excelente artigo (aqui), que intitulou, precisamente, As Raízes Éticas da Epistemologia de Karl Popper — raízes fundadas na luta contra a violência. Popper sublinha a urgência de anularmos ou diminuirmos drasticamente o sofrimento evitável causado pelas ideologias utópicas, os nacionalismos, a cultura romântica, o culto do herói, a pseudociência, as profecias históricas, as religiões intolerantes. Escreve Artigas:

Devemos ler Popper e interpretar os seus argumentos à luz de valores éticos, nomeadamente do seu compromisso com a dignidade humana, a liberdade, a razão e a verdade. Caso contrário, corremos o risco de não o compreendermos.9

Karl Popper não gostava de modas e não surpreende que, no mundo cada vez mais polarizado de hoje, ele esteja fora de moda, como, aliás, sempre esteve. Não sabia prever o futuro, falava e escrevia de forma clara e simples, e detestava definições. Era avesso à arrogância intelectual. O seu lema era: posso estar enganado e tu certo, mas, pelo esforço, podemos aproximar-nos da verdade.10 Considerava, ainda, que vivemos no melhor mundo de sempre — o que, de resto, corresponde aos factos11 — pelo que era considerado um otimista ou, como sinteticamente o descreveu Micchelle-Irène Brudny, um filósofo feliz.12

Convenhamos que isto não é empolgante para a maioria. Como é que um filósofo não tem uma ideia sobre o futuro? Bom, para Popper o futuro é aberto, depende de múltiplos fatores imponderáveis, e os profetas de todos os quadrantes, utópicos ou distópicos, são charlatães. A prioridade da nossa ação deve centrar-se no mundo presente, no sofrimento que nele existe, e não num qualquer futuro utópico: é nosso dever lutar pela diminuição drástica da violência e do sofrimento a ela associado. Não permitais que os vossos sonhos de um mundo maravilhoso vos alheiem das reivindicações dos homens que vivem aqui e agora13— eis o ponto de partida do pensamento político de Karl Popper.

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Notas e referências:

1 Magee, Brian, Popper, Fontana Press, London, 1973, pp.9-10.

2 Popper, Karl, The Logic of Scientific Discovery, Routledge, London and New York, 1959 (ed. orig. 1934).

— Popper, Karl, La Connaissance Objective, Champs Flammarion, Paris, 1991 (ed. orig. 1979).

— Popper, Karl, Pós-Escrito à Lógica da Descoberta Científica, vol. I, O Realismo e o Objectivo da Ciência, Dom Quixote, Lisboa, 1987 (ed. orig. 1956).

3 Magee, Brian, ob. cit.

4 Nurse, Paul, O que é a Vida? Editora Vogais, Amadora, 2021 (ed. orig. 2020), p. 46.

5 Noble, Raymond & Noble, Denis, Understanding Living Systems, University Press, Cambrigde, 2023.

6 Popper, Karl, Pós-Escrito à Lógica da Descoberta Científica, vol. II, O Universo Aberto, Dom Quixote, Lisboa, 1988 (ed. orig. 1956).

— Popper, Karl, Um Mundo de Propensões, Editorial Fragmentos, Lisboa, 1991.

— Popper, Karl, A Vida é Aprendizagem, Edições 70, Lisboa, 2001 (ed. orig. 1999).

7 Popper, Karl, Busca Inacabada — Autobiografia Intelectual, Esfera do Caos, Lisboa, 2008, p. 57.

— Popper, Karl, Unended Quest — An Intellectual Autobiography, Open Court, Illinois, 1976, p. 36.

— Popper, Karl, In Search of a Better World — Lectures and Essays From Thirty Years, Routledge, London, 1994.

8 Deutsch, David, O Início do Infinito, Gradiva, Lisboa, 2013 (ed. orig. 2011), pp. 310-11.

9 https://www.unav.edu/web/ciencia-razon-y-fe/the-ethical-roots-of-karl-poppers-epistemology

10 Popper, Karl, O Mito do Contexto — Em Defesa da Ciência e da Racionalidade, Edições 70, Lisboa, 1999 (ed. orig. 1996), p. 15.

11 Pinker, Steve, O Iluminismo Agora — Em Defesa da Razão, Ciência, Humanismo e Progresso, Editorial Presença, Lisboa, 2018.

12 Brudny, Michelle-Irène, Karl Popper: Un Philosophe Heureux, Bernard Grasset, Paris, 2002.

13 Popper, Karl, Conjecturas e Refutações, Almedina, Coimbra, 2003 (ed. orig. 1963), p. 481.

— Popper, Karl, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, vol.I, Editorial Fragmentos, Lisboa, 1993 (ed. orig. 1945).

— Popper, Karl, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, vol.II, Editorial Fragmentos, Lisboa, 1993 (ed.orig. 1945).

— Popper, Karl, After the Open Society, Routledge, London and New York, 2008.

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Fausto Bordalo Dias

O Barco Vai de Saída — uma canção icónica.

Vi-o e ouvi-o várias vezes ao vivo, a primeira das quais no início dos anos 80, na Amadora, e a última no CCB, em outubro de 2018, quando já se lhe notava alguma debilidade. Em 1982, assisti, na companhia do meu querido amigo Branquinho, à peça “Fernão Mentes?”, encenada por Hélder Costa e interpretada pela companhia de teatro “A Barraca”, a qual incluía várias canções do então futuro álbum “Por Este Rio Acima”, baseado, tal como a peça, na obra de Fernão Mendes Pinto, “Peregrinação”.

Nesses anos 70 e 80, eu e alguns amigos muitas vezes cantámos as músicas de Fausto em autocarros, barcos, comboios, nas nossas viagens de fim de semana, divertindo uns e incomodando outros, fazendo jus à nossa juventude irreverente, quando a viola era uma arma que podia ferir tímpanos, mas não matava ninguém. Por todos esses anos e pelos que se seguiram continuei a ouvir Fausto. A canção “O Barco Vai de Saída” foi adotada como uma espécie de hino de Alfama, que cantávamos com vigor e calor sempre que a oportunidade surgia, geralmente em jantaradas no interior do bairro, mas também fora dele.

As letras de Fausto são fabulosas — um facto nem sempre notado. As composições, por seu turno, têm a sua marca indelével: ritmos bem sincopados, com notórias influências da música tradicional portuguesa, um extenso leque de instrumentos de percussão do folclore tradicional, arranjos requintados, interpretações rigorosas, técnica apurada e um timbre de voz único.

Sói dizer-se que os grandes artistas não morrem, mas Fausto Bordalo Dias morreu hoje, aos 75 anos. Vivos continuam os que podem apreciar as suas letras, a sua música e o seu génio.

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