Lúcio Flávio Pinto

Lúcio na Praça da República, em Belém.

Lúcio Flávio Pinto é um jornalista brasileiro que vive em Belém do Pará, no Brasil. Natural de Santarém (também no Pará), a sua vocação jornalística começou cedo: com 15 anos de idade apresentou um programa de rádio considerado subversivo pelas autoridades, e um ano depois trabalhou como repórter no Província do Pará. Aos 18 anos decidiu sair de Belém, acabando por fixar-se em São Paulo (após uma breve passagem pelo jornal carioca Correio da Manhã), trabalhando como repórter em vários jornais e revistas, incluindo na imprensa alternativa, entre 1971 e 1988. Em 1973 formou-se em sociologia pela Universidade de São Paulo1 . Pouco depois retornou a Belém para montar uma rede de sucursais do Estadão, na Amazónia. As suas reportagens conquistaram os leitores do jornal, permitindo o financiamento das longas incursões, quer de avião, quer de navio, que Lúcio realizava na vasta região amazónica.

A carreira de Lúcio Flávio Pinto alterou-se significativamente em 1987, quando, inconformado, rompeu definitivamente com a “grande imprensa” e criou o Jornal Pessoal — uma publicação quinzenal que perduraria por mais de 30 anos — não aceitando publicidade para não depender de ninguém e prosseguir livremente a sua missão: expor a verdade e os factos. No primeiro número deste novo jornal de 12 páginas, Lúcio implicava dois empresários na morte de um parlamentar, divulgando pelos seus próprios meios o que fora impedido de publicar n’ O Liberal, jornal de Belém, com o qual colaborava. O Jornal Pessoal, que, ao que parece, foi inspirado no periódico I.F. Stone’s Weekly, do jornalista americano Isidore Stone, inspirou por sua vez uma aluna da Universidade de São Paulo 2 como tema da sua tese de doutoramento. O JP tornou-se uma referência para muitos que, lendo-o, se interessavam pelo jornalismo independente, pelo que se passava no mundo, no Brasil e, claro, na Amazónia. Efetivamente, nesta nova e longa etapa da sua atividade jornalística, Lúcio Flávio pôde consolidar conhecimentos e ideias que desenvolvera quando fora correspondente do Estadão na Amazónia (e iniciara, pela sua extrema curiosidade, ainda antes), e tornar-se, assim, um dos maiores especialistas, se não o maior, sobre esta região tão importante do nosso planeta, sobre a qual escreveu vinte e um livros.

Hoje, com 74 anos, Lúcio Flávio Pinto já não publica o Jornal Pessoal. Diagnosticado com a doença de Parkinson desde 2018, foi aconselhado pelos médicos a diminuir a sua frenética atividade. Em 8 de julho de 2023, numa mensagem no seu blogue A Agenda Amazônica de um Jornalismo de Combate, ele anunciava o fim da sua “atividade jornalística pública diária”3. Apesar disso, ainda publica no seu blogue vários artigos por dia, pois, como vincou nessa mesma mensagem, continuará “a acompanhar o dia a dia do Pará, da Amazônia, do Brasil e do mundo”.

Vivendo num país onde a profissão de jornalista não deixa de ser uma atividade perigosa, Lúcio Flávio Pinto correu vários riscos em prol da busca da verdade e da sua respetiva divulgação pública. Alvo de processos judiciais, espancamento e ameaças de morte, jamais vacilou na luta contra “o tráfego de droga, o desmatamento e a corrupção”4, e a sua resistência, quiçá obstinação, foi reconhecida por diversas organizações, sendo de destacar: os 4 prémios Esso de Jornalismo e o Prêmio Especial Vladimir Herzog, em 2012, com que foi contemplado no Brasil5; o Colombo d’ Ouro para a Paz (1997)6, que lhe outorgaram em Itália; o prémio Liberdade de Imprensa Internacional (2005)7, que sua filha, Juliana Pinto, recebeu por ele em Nova Iorque; e a distinção atribuída pelos Repórteres sem Fronteiras, ao integrá-lo na lista dos 100 Heróis da Informação (que inclui também o timorense José Belo), em 2014. O secretário-geral desta organização, Christophe Deloire, disse, à época: “Estes heróis da informação são uma fonte de inspiração para todos os homens e mulheres que aspiram à liberdade”8.

A oportunidade de conhecer Lúcio surgiu quando soubemos que nos iríamos deslocar a Belém por motivos familiares. Entrámos em contacto com ele para tentarmos combinar um encontro e isto não se revelou minimamente difícil, pois Lúcio Flávio é realmente despretensioso, afável e simpático. (Há inúmeros testemunhos da sua amabilidade, sobretudo de antigos alunos9). Eu e Fla encontrámo-nos com ele num local do centro de Belém, e logo após as primeiras palavras descobrimos que temos algo em comum: uma admiração quase ilimitada por João Guimarães Rosa, o grande escritor cordisburguense. Lúcio, que possui uma enorme biblioteca (diz-se que mais de 40 mil livros)10, demonstrou ser grande conhecedor das obra e biografia de Guimarães Rosa, e, em poucos minutos, ampliou a forma como eu e Fla víamos ambas.

Quase em cima do acontecimento, pensámos que talvez Lúcio nos concedesse uma pequena entrevista e preparámos algumas perguntas. Ele acedeu de pronto. É essa pequena entrevista que aqui deixamos, buscando, quiçá, o impossível: descobrir alguma nova faceta do já multifacetado e extraordinário ser humano que é Lúcio Flávio Pinto.

***

ILoveAlfama (ILA) — Lúcio, comecemos por uma curiosidade: o senhor tem origens portuguesas?
Lúcio Flávio Pinto (LFP) — Sim, meu avô materno era português.
ILA — Gostaríamos de falar um pouco sobre o seu percurso. Sabemos que ainda jovem foi para São Paulo e se formou lá em sociologia…
LFP — Sociologia política, bacharel em sociologia política.
ILA — E ficou trabalhando por lá depois, não é verdade?
LFP — Eu entrei num programa de mestrado com uma tese de meu orientador, que era o Oliveiros Ferreira, que me disse “essa tese que você vai fazer é uma pós-graduação sanduiche, passa direto para ser doutor. Eu queria escrever isso mas nunca escrevi”. Eu comecei o curso, fiz alguns créditos, mas achei que se eu ficasse em São Paulo iria fazer uma carreira académica e iria me desligar da Amazónia. Então eu decidi voltar para a Amazónia no final de 1974 e larguei o curso. Você tem 8 anos para retomar o curso que você interrompeu. Todo o ano meu orientador que era também meu chefe no Estadão dizia “volte, volte, volte”, aí no último ano ele disse “você vai ser jubilado” (perda de direito à matrícula), e eu disse: “não posso fazer nada”. Acho que essa foi a grande diferença em relação a todos os meus colegas de geração. Todos eles foram embora. Quando você vai embora, você perde o elo da continuidade do processo histórico, você pode ser condicionado por estar num lugar e não ver direito, não ter distanciamento crítico para ver determinadas coisas. Mas eu sempre fazia o seguinte: ia para o exterior e voltava, ia para São Paulo e voltava, para me distanciar e ver o que eu estava fazendo. E o que me distinguiu, a minha carreira dos outros, é que eu estava aqui e tive apoio institucional do jornal e dinheiro para viajar pela Amazónia. Porque viajar pela Amazónia é muito caro.
ILA — A Amazónia é muito grande, não é?
LFP — É. Por exemplo, em 1976 teve uma grande cheia, a maior de todas, que até então a maior tinha sido a de 53. Eu fretei um barco e durante 8 dias andei por todos os rios da Amazónia e o barco era só para mim, um boiadeiro enorme… Hoje ninguém faria mais isso. Às vezes eu estava num lugar e fretava um teco-teco, um aviãozinho, e ia para outro lugar, o jornal pagava, sabia que eu ia dormir com uma boa matéria.
ILA — Que jornal era esse?
LFP — O Estado de S. Paulo.
ILA — Do qual era correspondente?
LFP — Sim, trabalhei lá e fui correspondente aqui. Trabalhei 18 anos nele.
ILA — Quando é que o senhor sentiu vontade de ser jornalista?
LFP — Eu sempre fui jornalista. Eu conto assim como folclore lá na minha família, que aos cinco anos eu comecei a estudar no jardim de infância. No primeiro dia de aula eu fui para a aula e voltei empolgado , cheguei e entrei em casa: “mamãe, mamãe, Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil por 1500 cruzeiros!”
ILA — (risos…)
LFP — Quer dizer, dei uma informação errada, mas já tinha uma informação. Desde então eu fiz jornal escrito à mão, jornal mimeografado, acho que hoje já ninguém mais sabe o que é um mimeógrafo, é uma máquina de imprimir. Então eu fiz dois jornais mimeografados — “O Democrata” e “O Social”. A minha preocupação já era essa. Até que aos 16 anos eu me tornei jornalista profissional.
ILA — Digamos que é uma vocação desde sempre…
LFP — Eu vou dizer o seguinte: o meu pai lá em Santarém, ele foi político, ele foi prefeito, deputado, e ele era uma pessoa que estudou na escola muito pouco, mas ele era muito curioso, falava inglês e era revendedor de livros. Tinha uma sala onde ninguém podia entrar que era a dos livros que ele revendia. Um dia a sala estava aberta e cheia de livros— e o mote do jornalismo é a curiosidade. Aí entrei na sala e me sentei. E foi quando vi minha mãe também entrando. Normalmente ela me ralhava, mas eu estava com o dicionário Lello Universal, em 5 volumes, numa edição de capa dura e cheia de bicos de pena, toda ela cheia de bicos de pena, além de muita abonação, um grande dicionário. Eu era pequenino, mal conseguia virar as páginas do dicionário, e minha mãe sentou e começou a ler. E a primeira coisa que me interessou foi o ábaco, que vem na letra “A” e o primeiro bico de pena era desenhando um ábaco. E eu perguntei “o que é isso?”, e a mamãe me contou que era para calcular, e eu me interessei pelo ábaco e muitos anos depois fui entender o que era o ábaco e o seu significado verdadeiro. Quando foi criado o primeiro computador no MIT, nos Estados Unidos, em 51, um operador de ábaco ficou do lado do computador e fez as operações mais rápidas que o computador, e até hoje é uma matéria de disciplina universitária na China. Há operadores de ábaco até hoje.
ILA — Interessante… Por outro lado, algo que realmente impressiona é a quantidade de matéria que o senhor escreve todos os dias. Como consegue estar tão bem informado?
LFP — Esse é um preço terrível. Até uma certa fase da vida, a minha ansiedade era favorável porque eu fazia muita coisa ao mesmo tempo graças à ansiedade. Hoje, olha, eu tremo, porque eu tenho Parkinson, e a ansiedade ficou terrível. Então eu estou pagando um preço alto na velhice por ter sido uma pessoa tão interessada nas coisas, que escrevia 15, 20 matérias por dia. É uma coisa que é natural em mim.
ILA — E essa eficiência de escrita é desde sempre ou foi adquirida com a experiência?
LFP — Bom, foi melhorando. Perguntaram: por que é que o diabo é tão inteligente? Não é porque ele é o diabo, é porque ele é velho. Aliás, de certa forma, eu tenho uma associação criativa com o diabo: às vezes eu sento na máquina e quero escrever um elogio. Aí o diabo diz “a tua função não é escrever elogio, é escrever crítica”. Aí eu escrevo a crítica. Então é difícil eu elogiar, quando elogio é porque realmente eu considero que é muito bom. E eu não distingo amigo de inimigo. Eu já perdi muitos amigos porque escrevi contra eles. Eu tenho uma máxima: “roubou dinheiro do povo, é meu inimigo”. Mas voltando à questão, eu acho que se escreve bem, lendo muito. A verdadeira atividade intelectual não é escrever, é ler. Então, quem não lê, mal sabe, mal fala e mal vê.
ILA — Sabemos que na área da sua formação há muitas escolas sociológicas, mas parece-nos que hoje o Lúcio é bastante independente em relação a qualquer uma delas. Foi sempre assim?
LFP — Foi sempre assim. Eu sou o típico iconoclasta — o meu objetivo é buscar a verdade. Para mim, a verdade é construída com provas de demonstração. Eu não posso dizer a verdade sem demonstrar que ela é a verdade. Então por isso eu tenho uma formação técnica muito rigorosa, não brigo com os factos. Se os factos me dizem que eu estou errado, eu digo que estou errado. Se os factos dizem que o partido tal está errado, eu digo que está errado. Então eu não penso duas vezes se o que vou escrever é bom ou ruim, favorável ou não. Eu quero demonstrar que o que estou escrevendo é verdade. Por isso é que quando comecei a escrever sobre usinas hidrelétricas, eu fui para os Estados Unidos conhecer as usinas hidrelétricas americanas, e a primeira usina que usou escada de peixe foi no rio Columbia, no estado do Oregon. Fui lá e vi com meus próprios olhos. Então eu sou uma pessoa curiosa, eu sou Tomé, eu quero que me provem que é verdade. Sempre estou exigindo e por isso eu repito sempre a frase do Millôr Fernandes: “jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”.
ILA — A Amazónia é a sua grande luta, parece-nos. Mas para mudar as políticas para a Amazónia teriam que mudar as políticas do próprio Brasil. Como vê a política brasileira, hoje?
LFP — O interessante é que quem teve o projeto mais consolidado, mais sólido sobre a Amazónia foi o estado colonial português, na época de Pombal. Pombal foi o último déspota esclarecido de Portugal. Desde então só tem déspotas, o esclarecimento foi deixado para trás. Então, o que ele fez? Ele investiu dinheiro enorme, criando uma estrutura aqui em Belém, grandes igrejas, palácio do governo, que são prédios e estruturas que não tinham nenhuma coerência com a cidade, que a cidade não tinha condições de manter. Mas ele achava que Portugal ia perder o Brasil, mas não ia perder a Amazónia. Então a Amazónia sempre foi um organismo estranho ao corpo nacional. A integração nacional que o Brasil fez da Amazónia foi a pior de todas. Porque ela negou a autonomia da Amazónia, não ouviu a população e tinha dois princípios: 1- não havia vida inteligente na Amazónia; 2- o espaço amazónico era inútil, era um espaço perdido porque não tinha ocupação humana nem atividade económica. Então se desencadeou um processo de irracionalidade, com a destruição da floresta, a destruição das populações indígenas e a imposição de um modelo de fora para dentro que fez com que a Amazónia fosse hoje uma grande colónia mundial, exportando minério de ferro, manganês, ouro, bauxita para o mundo inteiro. Então ela hoje é uma sub-colónia de um colonialismo, que é exatamente como foi na época da colónia portuguesa. O estado brasileiro não tem nenhuma capacidade de identificar e responder, reconhecer e respeitar a condição amazónica, que é ter muita água e ter muita floresta. Desde então o que tem acontecido? Menos água e menos floresta. Então o caminho da Amazónia é a destruição. Inexorável.
ILA — Não vê alternativa?
LFP — Haveria. Eu tenho uma proposta que eu venho apresentando há muitos anos, mas ninguém leva em consideração. Seria o seguinte: criar o kibutz científico. Você está na área da floresta, coloca lá um curso de engenharia florestal, no meio da mata. Esses estudantes, eles vão entrar para a graduação, mas eles só vão sair se se formarem doutores em engenharia florestal, por exemplo, ou silvicultura. Mas ele vai ser doutor não só pelo estudo académico teórico, ele vai ter que ter um projeto que ele vai ter de provar que o que ele pensa é verdade. Então ele implanta um projeto de regeneração natural, de reflorestamento, de espécies nativas, exatamente o contrário do que tem sido a forma de ocupação da Amazónia. E se ele conseguir provar que aquilo é viável economicamente, ele recebe o título de propriedade da terra e o título de doutor, senão ele não recebe coisa nenhuma. Então ao invés da ciência vir no rasto das frentes económicas, ela vem na frente, dizendo: “Não pode fazer isso, não pode fazer isso porque é contra a ciência”. E hoje o cientista é mero académico, não tem poder de transformação. Só acredito nisso hoje, o resto eu não acredito mais.
ILA — Não tem experiência no terreno…
LFP — Não, não tem. Seria inteiramente novo. Os projetos que eles realizariam seriam avaliados permanentemente pelos melhores cérebros do mundo que viriam para cá. Se é um projeto de manejo de água, chamam os australianos, chamam os canadenses, chamam os holandeses, ele vai ter que fazer um projeto coerente com aquela região onde ele está e dialogar com a população nativa, não com uma atitude paternalista, mas com a atitude de um colega de experiência, de atividade económica, e ao mesmo tempo tem de responder à ciência mais avançada do mundo. Nós temos a maior bacia hidrográfica do mundo, mas nós não conhecemos quase água. Quem conhece são os holandeses, que vivem de domar o mar.
ILA — Uma última pergunta. Sabemos que tem uma grande biblioteca. Poderia indicar algum ou alguns autores que o tenham verdadeiramente influenciado?
LFP — Bom, eu comecei cedo lendo Marx. E aprendi a ler o Marx sem considerar o marxismo uma teoria científica e sem o considerar também o abc da revolução. Toda a parte voluntariosa do marxismo, de fazer a revolução através da ditadura do proletariado, isso não vale nada. Isso aí é profecia que não deu certo e virou tirania em todas as partes em que foi aplicada.
ILA — Uma religião…
LFP — É, uma religião. Porque ela é fechada, ela é dogmática, ela tem o seu catecismo, e isso eu detesto, eu aprendi a respeitar a liberdade como o bem maior do ser humano, e não tem liberdade nesses países, tanto que eles não chamam de socialismo eles chamam de socialismo real porque nunca existiu socialismo nesses países, só tirania. Mas ele [Marx] como um grande filósofo e economista é inevitável. Só se pode entender o mundo atual passando por ele, mas não ficando nele. Marx foi uma influência boa porque não me tornou marxista, continuei a ser uma pessoa independente. Eu li também um grande historiador daqui da região chamado Domingos Antônio Raiol que escreveu sobre a cabanagem, um livrão, “Motins Políticos”. Isso me identificou. Eu também li o padre Bettendorf, que é um holandês que foi quem começou a colonização da minha terra, onde nasci, Santarém. E cada vez que eu me sinto fraco em relação à Amazónia eu releio o padre João Daniel. Padre João Daniel era um jesuíta que o Pombal expulsou, como a todos os jesuítas, naquela época. Ele ficou preso em Lisboa. Eu sou tão curioso que fui ver que livros ele leu quando estava na prisão — ele morreu na prisão — livros que foram editados em Portugal quando ele estava preso. Como é que ele leu? Aí eu fui ler a correspondência dele que fora liberada. Imagine a cena: ele na prisão escreveu o livro “O Tesouro Descoberto no Rio Amazonas”. Você tem que ler o padre João Daniel. Esse livro é uma enciclopédia sobre a Amazónia até o século XVIII. Uma enciclopédia completa: peixes, plantas, árvores, tudo, a antropologia a arqueologia, e aí cita dados precisos, e a mitologia dizia que ele escreveu isso de memória na prisão. Eu não acreditei. Então, na verdade o Pombal lia as cartas dele, e o Pombal liberava as cartas ou não, e liberava os livros para ele e se informava com ele porque tinha uma admiração intelectual de déspota esclarecido, esclarecido suficiente para saber o valor do padre e ao mesmo tempo déspota que não podia libertá-lo porque mandara prender todos os jesuítas. Então é uma coisa fantástica e nunca ninguém escreveu sobre isso.
ILA — Interessante…
LFP — É uma coisa interessantíssima sobre o papel da inteligência. Eu comparo mais ou menos com o Gramsci, Antonio Gramsci. Ele ficou preso 9 anos e o Mussolini de certa forma deixou que ele escrevesse as “Cartas de Cárcere”, que é um dos documentos mais importantes, que também tem uma influência enorme para mim. Eu li várias vezes todas as cartas dele. Nessas cartas, tem uma carta em que a mulher dele lhe disse: “o nosso filho Giulio já sabe escrever da direita para a esquerda e debaixo para cima”. Aí ele da prisão, sofrendo que só, deprimido, diz: “que bom, tem uma tribo no Tibete que é a única no mundo que escreve debaixo para cima e da direita para esquerda, vai ser muito útil para o nosso filho saber disso”. O princípio pedagógico que ele tinha!… Então, na verdade o Mussolini como déspota esclarecido que era, um fascista, mas um fascista com projeto, que não era um projeto de mero poder, na verdade queria ser o príncipe do fascismo, no conceito de Maquiavel. Quando estava morrendo ele disse “não vão dizer que o Gramsci vai sobreviver a mim, nem que morreu na minha prisão”. Então ele liberta-o, e o Gramsci morre fora da prisão.
ILA — Lúcio, muito obrigado.
LFP — Por nada, foi um prazer.

******************************

Fontes:

1https://somostodoslucioflaviopinto.files.wordpress.com/2012/02/arq2_miolo_dossic2ac.pdf

2 https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-27042009-115830/publico/4846515.pdf

3 https://lucioflaviopinto.wordpress.com/2023/07/08/e-continuamos/

4 https://www.reporter-ohne-grenzen.de/fileadmin/Redaktion/Downloads/Helden_der_Pressefreiheit/ROG-Helden_der_Pressefreiheit_2014.pdf

5 https://vladimirherzog.org/34-premio-vladimir-herzog-vencedores/

6 https://www.archiviodisarmo.it/premio-colombe-d-oro-per-la-pace.html

7 https://cpj.org/awards/awards-release-05/

8 https://rsf.org/en/rwb-publishes-profiles-100-information-heroes

9 https://dedemesquita.com.br/?p=6932

10 https://www.publico.pt/2011/08/16/jornal/lucio-flavio-pinto-o-rebelde-com-causa-de-belem-22698340

******************************

******************************

Desconhecida's avatar

Autor: Jorge Costa

Fez percursos académicos nas áreas das Filosofia, Comunicação Social, Economia, Gestão dos Transportes Marítimos e Gestão Portuária, e estuda outras disciplinas científicas. Interessa-se igualmente por Arte, nas suas diversas manifestações, e também por viagens. Gosta de jogar xadrez. O seu autor preferido, desde que se lembra, é Karl Popper. Viveu em locais diversos, sobretudo em Portugal e no Brasil, pelo que se considera um cidadão do mundo. Atualmente vive em Cabanas, no Sotavento algarvio. Gosta de revisitar, sempre que pode, a bela cidade de Lisboa e, nela, o bairro onde nasceu, Alfama, o mais popular da capital, de traça árabe, debruçado sobre o Tejo — esse rio mítico, imortalizado por Camões e Pessoa, poetas maiores da Língua Portuguesa. Não é, porém, um bairrista, característica que deplora, a par dos clubismo, partidarismo e nacionalismo. Ama a Liberdade.