Conferência de Lisboa de 1987

Minhas Senhoras e meus Senhores,
Quero, em primeiro lugar, agradecer ao Presidente, Dr. Mário Soares, bem como ao coordenador desta conferência, Professor Fernando Gil e, logo a seguir, ao meu amigo João Carlos Espada, o terem tornado possível este encontro e o convite para nele participar. Em segundo lugar, quero esclarecer à partida que não pretendo convencer-vos com os meus argumentos. Embora procure apresentá-los da maneira mais simples e mais evidente, tenho plena consciência de que não são perfeitos. Errar é próprio dos homens — e reconheço que errei muito ao longo da minha vida de mais de 85 anos. Nasci em Viena e a grande experiência da minha vida foi a época da Primeira Guerra Mundial — que foi desencadeada pela Áustria, o meu próprio país — e o pós-guerra. Nascido numa família de pacifistas, durante algumas semanas de 1919 (ainda não tinha 17 anos), fui atraído pelo comunismo, pois os comunistas russos tinham assinado o Tratado de Paz de Brest-Litovsk (o primeiro tratado de paz) e feito muita
propaganda daquilo a que chamavam o seu pacifismo. Uma experiência convenceu-me, porém, de que o Partido Comunista não se opunha à violência e não hesitava em pôr em risco vidas humanas, mesmo as dos seus próprios apoiantes. Essa experiência levou-me a reconsiderar a Teoria Marxista, contra a qual me revoltei um pouco antes de completar 17 anos. Concluí que não apenas eu, mas ninguém mais, sabia o suficiente para basear nos seus conhecimentos uma decisão que pudesse conduzir ao derramamento de sangue de outras pessoas em prol de um mundo melhor. Plenamente consciente da minha ignorância acerca da sociedade e do seu futuro, acabei por verificar que a Teoria da História de Marx e a sua profecia sobre o advento do socialismo, embora engenhosas, tinham muitas falhas.

Afastei-me então da política, exceto, evidentemente, naquela medida em que todo o cidadão responsável tem o dever de se interessar por ela e de sobre ela refletir. No entanto, emocionalmente, continuei durante muito tempo a sentir-me socialista. Não querendo envolver-me na vida política ativa, procurei provar a mim próprio a seriedade do meu credo socialista tomando-me trabalhador manual. Experimentei trabalhos
muito pesados, trabalhando com uma picareta na construção de estradas. Mas como não consegui aguentar fisicamente o esforço, resolvi trabalhar como aprendiz de marceneiro. Passei o respectivo exame, mas descobri que também não era suficientemente bom nesse ofício. Por fim, tornei-me professor primário. Desempenhei esta função razoavelmente, e ainda mantenho contactos com alguns dos meus antigos alunos, que hoje têm 63 anos de idade. Conto-vos tudo isto para explicar que nunca tive ambições académicas, de facto, durante os meus estudos na Universidade de Viena nunca sonhei ser professor universitário. Foi só quando publiquei o meu primeiro livro,
A Lógica da Descoberta Científica, que comecei a pensar em tal hipótese. Frequentei a Universidade não para seguir uma carreira docente, ou mesmo uma carreira de investigador, mas simplesmente porque entendia que um operário socialista devia ter inteira liberdade para estudar o que quisesse. Estudei matemática, física e um pouco de química, apenas por gosto. E estudei o marxismo em profundidade e em termos críticos, acabando por reconhecer não apenas alguns dos seus erros mas também a sua atitude de arrogância intelectual. Descobri que, dois mil e quinhentos anos antes de mim, Sócrates tinha dito: “Sei que nada sei — e mal isso sei: só sei, portanto, que não sei. Mas quero saber e quero aprender.” Foi ao amor pelo conhecimento, juntamente com a consciência da nossa própria ignorância, que Sócrates chamou “Filosofia”, palavra que significa “ânsia de conhecer”. O mesmo Sócrates disse que todos nós ansiamos por aquilo que não temos — neste caso, a sabedoria. Infelizmente, a tradição socrática quase desapareceu, A maior parte dos filósofos pensam que sabem.
Quando tomei consciência que Hitler estava prestes a invadir a Áustria, emigrei com a minha mulher para a Nova Zelândia, onde me fora oferecido um lugar de professor na Universidade de Canterbury, e no dia em que Hitler ocupou a Áustria decidi escrever outro livro em defesa da democracia. Os meus interesses teóricos continuavam orientados para as ciências naturais. Mas senti que era meu dever defender a democracia. Isso tornou-se o meu esforço de guerra. Enquanto as bombas de Hitler caíam sobre Londres, o meu primeiro livro em inglês era aceite para publicação; e foi publicado em Londres em 1945 sob o título A Sociedade Aberta e os seus Inimigos. O livro foi muito bem recebido. No mesmo dia em que estava a escrever esta conferência recebi do meu editor inglês quatro exemplares da décima oitava edição inglesa. Assim, o livro ainda está vivo quarenta e dois anos depois. Devo, no entanto, confessar que a Teoria da Democracia que nele defendo não me parece ter sido entendida, nem assimilada.
Aparentemente a minha teoria é muito diferente daquilo que as pessoas geralmente acreditam e, ao mesmo tempo, muito semelhante ao que, na prática, fazem os democratas; e, de um modo geral, era demasiadamente simples para chamar a atenção. Eis a razão por que gostaria de a explicar aqui, mais uma vez. Não só admito como sublinho que posso estar enganado. Mas defenderei aqui que a minha Teoria da Democracia é muito simples, fácil de entender por todos, muito diferente da velhíssima Teoria da Democracia que a generalidade das pessoas têm por adquirida e, finalmente, que tem muitas consequências, sobretudo de ordem prática. Quero sublinhar este último aspeto e, ainda, o facto de a minha teoria evitar expressões grandiloquentes e abstratas como “liberdade” e “razão”.
Acredito na liberdade e na razão, mas não é sobre estes termos, demasiadamente abstratos e altamente susceptíveis de má utilização, que pode construir-se uma teoria simples, prática e fecunda. Além do mais, e como é sabido, nada se ganha com definições. O que disse até aqui deve ser tido como uma Introdução ao tema desta conferência, no qual vou agora entrar, dividindo-a em três partes principais. Na primeira, apresentarei muito resumidamente aquilo que pode chamar-se a Teoria Clássica da Democracia: a teoria do governo do povo. A segunda parte será um breve esboço da minha teoria mais realista, a qual, devo dizer, ainda é nova — embora tenha sido publicada há quarenta e dois anos. A terceira parte é essencialmente uma descrição das consequências práticas da minha teoria, em resposta à pergunta: “Que diferença prática introduz esta nova teoria?”


1. A Teoria Clássica da Democracia


Em duas palavras, a teoria clássica da democracia defende que o poder reside no povo e que este tem o direito de o exercer. Podem invocar-se
muitas e variadas razões para justificar que o povo tenha esse direito, mas não é necessário que aqui me ocupe delas. Vou antes fazer uma breve referência aos seus antecedentes históricos e terminológicos. Platão foi o primeiro teórico a sistematizar as várias formas que pode revestir a Cidade-Estado. De acordo com o número dos governantes, classificou-as em Monarquia — governo de um só homem bom — e Tirania forma distorcida da Monarquia; em Aristocracia — governo de vários homens bons — e Oligarquia — forma distorcida da Aristocracia; e, finalmente, em Democracia — governo de muitos homens, de todo o povo. A Democracia não tinha duas formas: uma vez que os muitos sempre formaram uma turba, a Democracia era distorcida em si própria. Se examinarmos mais nitidamente esta classificação, e se nos perguntarmos qual o problema que estava na base do pensamento de Platão, concluiremos que era exatamente o mesmo que se encontra na base de todas as outras teorias. De Platão a Karl Marx e de Karl Marx para cá, o problema foi sempre o de saber quem deve governar — quem deve governar o Estado. A resposta de Platão a esta pergunta era simples e ingénua: devem governar os melhores. Se possível, deve governar, sozinho, o melhor de todos; em segunda escolha, alguns dos melhores, os Aristocratas. Mas nunca os muitos, a Demos, a Turba. Mesmo antes do nascimento de Platão, a prática ateniense era precisamente oposta: era o povo, a Demos, que devia governar. A prática romana começou por revestir a forma de Aristocracia, mais tarde substituída pela de Monarquia Cesarista, que em dado momento adoptou o princípio de que o poder deve ser confiado ao General escolhido pelo Exército.
Na Idade Média dizia-se: Deus é quem manda e fá-lo através dos Seus legítimos representantes humanos. A Reforma veio pela primeira vez pôr em causa este princípio de legitimidade, seguindo-se-lhe a Revolução Inglesa de 1648-49 ao proclamar que, por direito divino, era ao povo que competia governar; mas nesta Revolução a soberania divina do povo foi imediatamente utilizada para a instauração da ditadura de Oliver Cromwell. Após a morte do ditador, voltou-se ao princípio da legitimidade; cuja violação pelo próprio monarca legítimo provocou a incruenta Segunda Revolução Inglesa de 1688 e o desenvolvimento da democracia britânica através do fortalecimento gradual do Parlamento. O carácter singular deste desenvolvimento deve-se precisamente à experiência de que as querelas ideológicas fundamentais sobre quem deve governar só tinham conduzido, afinal, a consequências catastróficas. A legitimidade real, bem como o governo do povo, haviam deixado de ser princípios em que se podia confiar. Na prática, havia uma monarquia de legitimidade assaz duvidosa, criada por vontade do Parlamento, cujo poder ia aumentando constantemente. Até aos nossos dias, o Problema de Platão não voltou a ser seriamente reposto.
Karl Marx, que não era um político britânico, estava ainda dominado pelo problema de Platão, que formulava da seguinte maneira: “Quem deve governar? Os Bons ou os Maus — os trabalhadores ou os capitalistas?” E mesmo aqueles que, em nome da liberdade, rejeitavam pura e simplesmente o Estado, não conseguiam libertar-se das malhas da velha e enganosa questão — eram os anarquistas, adversários de qualquer forma de governo. Tenho simpatia pelos esforços infrutíferos que fizeram para se libertarem do velho problema de saber quem deve governar.


2. A mais realista Teoria da Democracia


No meu livro A Sociedade Aberta e os seus Inimigos sugeri que uma questão inteiramente nova deveria ser reconhecida como o problema
fundamental de uma teoria política racional. Formulei-a nos seguintes termos: como deverá ser constituído um Estado de modo a que os maus governantes possam ser afastados do poder sem violência, sem derramamento de sangue? Ao contrário da velha questão, trata-se de um problema essencialmente prático, quase de carácter técnico. As chamadas democracias modernas dão todas elas bons exemplos de soluções práticas para o problema, mesmo que as não tenham conscientemente concebido para tal efeito. Todas consagram, com adaptações, o princípio fundamental de que os governos podem ser afastados do poder pelo voto da maioria. No entanto, em teoria, todas se baseiam ainda no velho problema, bem como na ideologia nada prática segundo a qual é ou deve ser o povo (ou seja, o conjunto da população adulta), por direito próprio, o verdadeiro e único governante. É óbvio, porém, que em parte alguma o povo realmente governa. Quem manda são os governos (e, infelizmente, as burocracias também: os funcionários públicos — our uncivil masters, como lhes chamou ChurchillI — aos quais é difícil, se não mesmo impossível, responsabilizar pelos atos que praticam). Apresso-me a explicar desde já as consequências desta minha formulação, que é muito simples, prática e tipicamente não filosófica. Em primeiro lugar, é evidente que ela não colide com a prática corrente das democracias ocidentais, tais como a da constituição britânica não escrita e as muitas constituições escritas que, em graus diferentes, tomaram como modelo o parlamento britânico. É essa prática que a minha teoria — o meu problema e a sua solução — procura descrever. Por essa razão, posso chamar-lhe uma Teoria da Democracia, embora não seja, de modo algum, a teoria do governo do povo, é antes, se assim quiserem, o Estado de Direito que postula a demissão não violenta dos governos através do voto da maioria.Em segundo lugar, a minha teoria evita facilmente os paradoxos e dificuldades da teoria velha. Dou-vos um exemplo. “O que deve ser feito, se o povo votar a instauração de uma ditadura?” Obviamente, se o voto for livre, não é provável que tal aconteça. Mas se acontece, que fazer? Muitas constituições exigem uma maioria qualificada de dois terços ou mesmo de três quartos (ou seja, mais do que uma maioria simples) para uma alteração das normas constitucionais, como seria, neste caso, um voto contra a democracia. Mas esta exigência mostra que se encara tal alteração como possível; e, ao mesmo tempo, se abandona o princípio segundo o qual a vontade da maioria “não qualificada” é a última fonte do poder — ou seja, que quem manda efetivamente é o povo, através do voto maioritário. Todas estas dificuldades teóricas desaparecem se se puser de lado a velha questão “quem deve governar?”, substituindo-a por um novo problema, de ordem prática: qual a melhor maneira de evitar situações em que um mau governante causa demasiados danos? Quando se diz que a melhor solução conhecida é a de uma norma constitucional que permita a demissão do governo através de um voto maioritário, isso não significa que o voto maioritário seja sempre o voto certo, nem sequer que o seja normalmente. Significa apenas que tal solução, embora imperfeita, é a melhor que até agora se inventou. Winston Churchill disse um dia, de brincadeira, que a democracia é a pior forma de governo — com excepção de todas as outras formas conhecidas. A questão é esta: quem tiver vivido sob outra forma de governo — ou seja, num regime ditatorial que não pode ser alterado sem derramamento de sangue — sabe que vale a pena lutar pela Democracia, por imperfeita que ela seja como forma de governo. E que, creio, vale a pena morrer por ela. Esta é, no entanto, uma opinião pessoal e penso que seria um erro tentar convencer os outros a aceitá-la. Creio que podemos basear toda a nossa teoria no facto de apenas existirem, em matéria de governo, duas alternativas: a ditadura ou qualquer forma de democracia. Não baseamos a nossa opção nas virtudes da democracia, que podem ser questionáveis, mas única e exclusivamente no carácter nefasto da solução ditatorial, que, esse, não oferece dúvidas. Não só porque o ditador tende a fazer mau uso dos seus poderes, mas também porque o ditador, mesmo que seja benevolente, retira a responsabilidade a todos os outros, privando-os assim dos seus direitos humanos. Creio ser esta uma base suficiente para preferir a opção democrática, ou, por outras palavras, uma norma legal que permita afastar os maus governos.


3. Uma aplicação desta teoria simples

Falei, até aqui, das diferenças teóricas entre a teoria velha e a teoria nova. Vou agora ocupar-me das diferenças práticas entre uma e outra, tendo escolhido para tal efeito o problema da representação proporcional. A teoria velha, segundo a qual o poder deve ser exercido, como que por direito natural ou divino, pelo povo e para o povo, considera que o princípio da representação, proporcional é uma componente essencial da democracia: todas as opiniões têm o direito de ser ouvidas e a justiça exige que estejam representadas no Parlamento, ou na Câmara dos Representantes, na proporção do número de pessoas que nelas votaram. Negar tal direito será, portanto, um ato de injustiça.
Em minha opinião, este argumento é ideológico, sendo, no mínimo, questionável. Em primeiro lugar, atribui — ainda que só indiretamente — um estatuto a partidos políticos que de outra forma o não obteriam. Isto porquanto que não são apenas as opiniões, mas também os partidos políticos, que é suposto estarem proporcionalmente representados. E se as opiniões dos homens merecem sempre o maior respeito, os partidos políticos, enquanto instrumentos típicos de promoção pessoal e de poder, com todas as possibilidades de intriga que isto implica, não podem de forma alguma ser identificados com opiniões.
Os partidos não necessitam ser mencionados, nem receber qualquer estatuto oficial numa constituição que não preveja a representação proporcional. Os eleitores de cada círculo mandam para a Câmara os seus representantes pessoais. O deputado assim eleito ou atua só ou, se assim o entender, faz combinações com outros — mas em qualquer dos casos tem de explicar ao seu eleitorado as razões por que as fez. É seu dever representar, da melhor maneira que puder, os interesses de todos quantos residem na circunscrição por que foi eleito. Na esmagadora maioria dos casos, tais interesses são idênticos aos de todos os cidadãos do país, da nação. São esses que tem que defender da melhor maneira que lhe for possível. É esse o único dever dos representantes que deve ser consagrado na Constituição. O representante eleito só deverá considerar a hipótese de se responsabilizar também perante um partido político quando estiver convencido de que, ligado a ele, cumprirá melhor o seu dever perante os que o elegeram. Consequentemente, é sua obrigação abandonar o partido sempre que verificar que pode desempenhar melhor o seu dever fundamental sem ele, ou ligado a outro partido político.

Se a Constituição previr a representação proporcional então a situação será diametralmente oposta. De acordo com o principio da representação proporcional, o candidato apresenta-se ao eleitorado exclusivamente como representante de um partido político. Se for eleito, ele deve-o, sobretudo, se não exclusivamente, ao facto de ser representante desse partido. Assim, a sua principal lealdade deve ser para com o partido, sendo seu dever nunca votar contra o partido que o fez eleger. Ao contrário, ele fica moralmente vinculado a esse partido. Se não puder conciliar a lealdade partidária com a sua consciência, tem a obrigação moral, em meu entender, de se demitir do partido e do parlamento, mesmo que a Constituição lho não imponha. De facto, o processo pelo qual foi eleito retira-lhe responsabilidade pessoal, transformando-o mais em máquina de votar do que em pessoa dotada de pensamento e sentimento próprios.
Na minha opinião, isto basta para condenar o princípio da representação proporcional. Em política, precisamos de indivíduos com ideias próprias e dispostos a assumir pessoalmente responsabilidades. Admito que tal seja difícil de atingir qualquer que seja o sistema de partidos, mesmo sem representação proporcional. E reconheço igualmente que ainda não se descobriu uma solução que dispense os partidos. Se temos que ter partidos políticos, então a Constituição não deve aumentar deliberadamente, pela adopção do sistema de representação proporcional, a sujeição dos nossos representantes às máquinas e às ideologias partidárias.

Até aqui, a minha argumentação contra a representação proporcional desenvolveu-se dentro dos limites da teoria velha, segundo a qual, é o povo quem manda. Mas como já vimos que a teoria não é válida, podemos agora considerar alguns problemas práticos muito simples. A consequência política principal da representação proporcional é a tendência para aumentar o número de partidos. À primeira vista, pode ser uma consequência desejável, na medida em que a existência de um maior número de partidos significa uma maior possibilidade de escolha, mais oportunidades e menos rigidez. Significa também uma maior distribuição do poder e das influências. Sustento, porém, que esta visão das coisas é totalmente errada. No fundo, a existência de muitos partidos traz grandes dificuldades à formação de governos e põe obstáculos à duração de governos coesos. Se a representação proporcional se baseia na ideia de que a influência de um partido deve ser proporcional ao seu poder eleitoral, é
inevitável a criação de um sistema pluripartidário cuja consequência prática, na maioria dos casos, é a formação de governos de coligação.
Muito frequentemente, tal situação atribui aos pequenos partidos políticos uma influência desproporcionada — quando não decisiva — na formação dos governos e no respetivo processo decisório. Acima de tudo, porém, a responsabilidade definha, pois num governo de coligação todos os parceiros têm uma responsabilidade reduzida. A representação proporcional, assim como o aumento do número de partidos que provoca, pode portanto ter efeitos nocivos na questão fundamental, que é, como disse, a maneira de derrubar um governo através do voto, nomeadamente através de uma eleição parlamentar. Os eleitores são levados a prever que nenhum dos partidos irá obter maioria absoluta e, deste modo, não votam contra qualquer deles. Em consequência, ninguém encara o dia das eleições como um
Dia do Juízo: como um dia em que um governo responsável se apresenta para ser julgado pelos seus atos e omissões, pelos seus êxitos e fracassos, e em que uma oposição responsável critica o que o Governo fez ou não fez, explicando quais as medidas que deviam ter sido por ele tomadas e porquê.
Em vez disso, o eleitorado é levado a encarar como uma mera flutuação temporária de popularidade — e não como um veredicto de “culpado”— a
perda de cinco ou dez por cento dos votos sofrida por um partido.
Com o decurso do tempo, o povo habitua-se à ideia de que nenhum partido político ou nenhum dos seus líderes pode ser responsabilizado pelas
suas decisões. Tal como o vejo, o dia das eleições deve ser realmente um
Dia do Juízo. Como Péricles disse em Atenas, 430 anos antes de Cristo, “embora apenas alguns possam dar origem a uma política, todos somos capazes de a julgar”. Podemos enganar-nos no nosso veredicto, evidentemente — e enganamo-nos muitas vezes. Mas se tivermos vivido sob o governo de um partido e sentido as suas repercussões, temos pelo menos algumas qualificações para o podermos julgar. Tudo isto pressupõe, no entanto, que o partido no poder e os seus líderes possam ser totalmente responsabilizados pelos seus atos. E isso pressupõe, por seu turno, que o governo seja maioritário. No caso, pouco frequente, do governo de um único partido detentor de uma maioria absoluta, mesmo se a maioria dos cidadãos desiludidos votarem contra ele, não podem facilmente ser afastados do poder. Na realidade, num sistema de representação proporcional, se esse partido no poder (podendo ser responsabilizado pelos seus atos) vier a perder a sua maioria, continuará a ser, muito provavelmente, o maior partido e, com a ajuda de um dos partidos mais pequenos, formará um governo de coligação. Assim, o líder censurado do partido maior continuará a deliberar o governo, contrariamente ao voto da maioria e com o auxilio de um dos pequenos partidos cuja política, em teoria, pode estar muito longe de “representar os anseios do povo”. É sabido que um partido pequeno pode derrubar um governo, mesmo sem necessidade de novas eleições e, sem um novo mandato dos eleitores, constituir um novo governo com partidos da oposição — numa violação grotesca do fundamento da representação proporcional: a ideia de que a influência de cada partido deve corresponder ao número de votos que conseguiu obter nas urnas. Para tornar viável um governo de maioria, necessitamos de algo parecido com o sistema bipartidário que existe na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, Mas a prática da representação proporcional torna-o difícil de conseguir. No interesse da responsabilização parlamentar, defendo o sistema bipartidário, ou pelo menos algo que se lhe aproxime. Um tal sistema garante a existência, nos dois partidos, de um processo contínuo de autocrítica.
Referir-me-ei agora a algumas das objecções mais correntes que se fazem ao sistema bipartidário. Primeira objecção: um tal sistema impede a formação de outros partidos. Eu admito isso. Mas nós vemos mudanças consideráveis no interior dos dois maiores partidos ingleses e americanos. O impedimento ao aparecimento de novos partidos não significa, portanto, uma negação da flexibilidade. O ponto é que, num sistema bipartidário, o partido vencido tem que levar muito a sério a sua derrota eleitoral; pode procurar uma reforma interna dos seus objetivos, ou seja uma reforma ideológica. Se o partido sofre duas ou mesmo três derrotas sucessivas, a busca de novas ideias pode tornar-se frenética, o que obviamente, é uma consequência.
E isto pode acontecer mesmo quando a perda de votos não tiver sido excessiva, mas apenas de uma pequena percentagem. Mas num sistema com muitos partidos e com coligações tal não acontece. Uma pequena perda de votos, nomeadamente, não provoca quaisquer preocupações, pois, não tendo os partidos responsabilidades bem claras, é tomada como fazendo parte das regras do jogo. As perdas diminutas não são encaradas a sério, nem pelos chefes partidários, nem pelo eleitorado: ninguém se alarma. Mas uma democracia precisa de partidos que sejam mais sensíveis e,
se possível, que vivam em clima de alerta permanente. Só dessa maneira podem ser levados a fazer a sua autocrítica. De resto, a tendência
para a autocrítica depois de uma derrota eleitoral é muito mais pronunciada em países com sistemas bipartidários do que em países onde existem diversos partidos. Assim, a minha resposta à primeira objecção é que, contrariamente ao que pode parecer à primeira vista, um sistema bipartidário tende a ser mais flexível do que um sistema multi partidário. A segunda objecção é a seguinte. A representação proporcional permite o aparecimento de novos partidos, possibilidade que, sem ela, fica muito diminuída. A simples existência de um terceiro partido pode melhorar grandemente a actuação dos dois grandes partidos. A minha resposta: reconheço que pode muito bem ser assim. Mas o que acontece se aparecerem cinco ou seis desses novos partidos? Outra resposta é que se corre o risco de um pequeno partido ser investido num poder desproporcionado, se puder ele próprio decidir a qual dos dois grandes partidos se juntará para formar um governo de coligação. A terceira que gostaria de discutir é a seguinte: o sistema bipartidário é incompatível com a ideia da sociedade aberta — com a abertura a novas ideias e com a ideia de pluralismo. A minha resposta é que tanto a Grã-Bretanha como os Estados Unidos são nações muito abertas, que uma abertura completa seria obviamente autodestrutiva, tal como o seria uma liberdade completa; que a abertura cultural e abertura política são coisas diferentes; e que a atitude certa perante o
Dia do Juízo político pode ter muito mais valor em política do que um debate sem fim — e certamente muito mais do que uma conferência sem fim!
Obrigado pela vossa atenção, e agora fico à espera dos vossos severos ataques à minha argumentação.

******************************

A nossa edição:

Karl Popper, Em Busca de um Mundo Melhor, Editorial Fragmentos, Lisboa. 1989, pp. 220-229.

******************************