O princípio do otimismo

As possibilidades que pairam no futuro são infinitas.

Quando digo “É nosso dever mantermo-nos otimistas”,

isto abrange não só a abertura ao futuro, mas também que todos contribuamos

para ela em tudo o que fazemos: somos responsáveis pelo que o futuro nos reserva.

Por isso é nosso dever não profetizar o mal, mas antes lutar por um mundo melhor.

Karl Popper

O Mito do Contexto (1994)

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A questão “Como podemos ter esperança de detectar e eliminar o erro?” ecoa na afirmação de Feynman de que “a ciência é tudo o que aprendemos sobre o modo de não nos iludirmos”. E a resposta é basicamente a mesma para o processo de tomada de decisão e para a ciência: é necessária uma tradição crítica, em que se busquem boas explicações — por exemplo, explicações sobre o que correu mal, o que poderia correr melhor, que efeitos tiveram diferentes políticas no passado e que efeitos teriam no futuro.

Mas que utilidade têm as explicações se não permitem fazer previsões, e por conseguinte não podem ser experimentalmente testadas, como acontece na ciência? É esta a verdadeira questão: como é possível o progresso na filosofia? Como digo no capítulo 5, este é obtido através da busca de boas explicações. A concepção errada de que as provas não podem desempenhar um papel legítimo na filosofia é uma relíquia do empirismo. O progresso objetivo é possível, de facto, na política, como é na moral em geral e na ciência.

Tradicionalmente, a filosofia política tem-se centrado num conjunto de assuntos a que Popper chamou a questão de “quem deveria governar”. Quem deveria exercer o poder? Um monarca, os aristocratas, padres, um ditador, um pequeno grupo, “o povo” ou os seus representantes? E isto leva-nos a outras questões relacionadas, por exemplo, “como deveria ser educado um rei”, “quem deveria ter direito ao voto numa democracia”, “como garantir um eleitorado informado e responsável”.

Popper realçou que esse tipo de questões tem raízes na mesma concepção errada da pergunta — “de que forma as teorias científicas derivam dos dados sensoriais?”, que define o empirismo. A resposta reside na busca de um sistema que “deriva” ou justifica a escolha certa de um líder ou governo partindo dos dados disponíveis — como direitos adquiridos, a opinião da maioria, a forma como alguém foi educado, entre outros. A mesma concepção errada subjaz igualmente ao optimismo e ao pessimismo cegos: ambos esperam que haja progresso aplicando uma simples regra ao conhecimento existente, a fim de determinar as possibilidades a ignorar, por um lado, e a ter em conta, por outro. A indução, o instrumentalismo e mesmo o lamarquismo cometem todos o mesmo erro: esperam o “progresso sem explicações”. Esperam que o conhecimento seja criado por decreto com apenas alguns erros e não por um processo de variação e selecção que produza uma torrente contínua de erros e simultaneamente os corrija.

Os defensores da monarquia duvidavam que qualquer método de escolha de um líder através do pensamento racional e do debate pudesse ser aperfeiçoado com um critério mecânico previamente estabelecido. Era o princípio da precaução posto em prática, e que deu origem às habituais ironias. Por exemplo, sempre que os pretendentes ao trono afirmavam possuir mais direitos hereditários que o titular, estavam com efeito a citar o princípio da precaução como justificação de uma mudança súbita, violenta e imprevisível — por outras palavras, do optimismo cego. O mesmo se aplicava quando os próprios monarcas favoreciam mudanças radicais. Consideremos ainda os utópicos revolucionários, que normalmente conseguem apenas destruição e estagnação. Embora se trate de optimistas cegos, o que os define como utópicos é o seu pessimismo quanto à definitiva impossibilidade de aperfeiçoamento da sua suposta utopia, ou das suas propostas violentas para a alcançar e consolidar. Adicionalmente, são à partida revolucionários porque, pessimistas, não acreditam que muitos outros sejam persuadidos da verdade final que pensam conhecer.

As ideias têm consequências e a abordagem do “quem deveria governar?” na filosofia política não é apenas um erro de análise académica: tem sido parte integrante de quase todas as más doutrinas políticas da história. Se o processo político é visto como um motor que põe os governantes certos no poder, então justifica a violência, pois enquanto o sistema adequado não estiver estabelecido nenhum governante é legítimo e, uma vez estabelecido com os governantes designados no poder, a oposição torna-se oposição ao que está certo. O problema passa então a ser como travar os opositores dos governantes e suas políticas. Pela mesma lógica, todos os que pensam que os actuais governantes ou políticas são maus devem inferir que a questão “quem deveria governar?” tem sido respondida erradamente, e portanto que o poder dos governantes não é legítimo, ao contrário da oposição, inclusivamente pela força. Assim, a própria questão “quem deveria governar?” implora por respostas violentas e autoritárias e tem-nas obtido, frequentemente. Conduz os que estão no poder à tirania e à consolidação de maus governantes e más políticas; conduz os seus opositores ao tumulto e à revolução.

Os apologistas da violência têm em geral consciência de que nada disso teria de acontecer se todos concordassem quanto aos líderes certos, mas isso significa concordar quanto ao que está certo e, existindo esse acordo, os governantes não teriam então nada que fazer. De qualquer modo, um tal acordo não é possível nem desejável: as pessoas são diferentes e têm ideias próprias, os problemas são inevitáveis e o progresso consiste em resolvê-los

Assim, Popper aplica o seu princípio básico “como podemos detectar e eliminar o erro?” à filosofia política sob a forma de “como podemos livrar-nos dos maus governos sem violência?”. Da mesma forma que a ciência busca explicações experimentalmente verificáveis, um sistema político racional facilita o mais possível a detecção de um mau líder ou política, e a persuasão de outros de que é esse o caso, e a sua remoção sem violência. Tal como as instituições científicas estão estruturadas de forma a evitar consolidar teorias, mas antes a expô-las à crítica e à verificação, também as instituições políticas não deveriam dificultar a oposição pacífica aos governantes e às medidas políticas, personificando antes uma tradição de discussão pacífica e crítica destes e das próprias instituições e de tudo o resto. Assim, os sistemas de governo devem ser julgados não pela sua capacidade profética de escolher e instalar bons líderes e políticas, mas pela sua capacidade de remover mais líderes já instalados.

Toda essa posição é o falibilismo em acção. “Supõe” que os governantes e as políticas serão sempre imperfeitas — que os problemas são inevitáveis. Mas supõe também que o seu aperfeiçoamento é possível: os problemas têm soluções. O ideal segundo o qual isto funciona não é que nada inesperado aconteça. mas sim que, quando acontecer, será uma oportunidade de mais progresso.

Por que motivo desejaria alguém tornar os líderes e políticas que eles próprios favorecem mais vulneráveis a uma saída? Na verdade, prefiro perguntar primeiro: “por que razão desejaria alguém sequer substituir maus líderes e más políticas?” Essa questão poderá parecer absurda, mas talvez o seja apenas na perspectiva de uma civilização que vê o progresso como dado adquirido.. Se não esperássemos o progresso, por que motivo esperaríamos que o novo líder ou as novas políticas, escolhidos por qualquer método, fossem de alguma forma melhores que os anteriores? Pelo contrário, deveríamos esperar então que quaisquer mudanças fossem, em média, tanto benéficas como nocivas, E então o princípio da precaução avisa: mais vale um mal conhecido que um bem por conhecer. Há aqui um nó apertado de ideias: se supusermos que o conhecimento não aumentará, então o princípio da precaução será verdadeiro, e, supondo que o princípio da precaução é verdadeiro, não podemos dar-nos ao luxo de deixar que o crescimento cresça. A menos que as expectativas de uma sociedade sejam que as suas futuras escolhas serão melhores que as actuais, lutará no sentido de manter as suas instituições e política imutáveis. Assim, o critério de Popper apenas pode ser obedecido por sociedades com expectativas de crescimento do conhecimento — e um crescimento imprevisível. Mais ainda, que esperam que “este crescimento ajude”.

Esta expectativa é aquilo a que chamo optimismo e posso descrevê-lo, na sua acepção mais geral, como se segue:

Princípio do optimismo

“Todos os males são causados por conhecimento insuficiente”

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A nossa edição:

David Deutsch, O Início do Infinito, Gradiva, Lisboa, 2013, pp. 307- 12.

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A prova do bilhete

Um bilhete eletrónico da Air France e um bilhete eletrónico da TAP. No primeiro vemos rapidamente o que nos interessa — o código de reserva, as datas de viagem, os horários, a bagagem contratada — no segundo não há qualquer destaque destes elementos básicos, perdidos numa sopa de letras.

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Pedro Nuno Santos, o promissor delfim do PS, prepara-se para concorrer à liderança do partido em 2026 “seja contra quem for” (capa do Expresso, última edição). Ambicioso, convencido (tem os tiques, o ar altivo e a plasticidade de José Sócrates) e aparentemente competente, PNS levou os comentadores encartados, a imprensa em peso e os muitos atónitos cidadãos a uma espécie de idolatria com o seu regresso à Assembleia da República.

Este retorno triunfal deve-se quase exclusivamente ao desempenho de PNS perante a CPI à gestão da TAP, que muitos consideram ter reabilitado completamente o antigo ministro. Para lá das conclusões preliminares da CPI — que, na mesma edição do Expresso, o economista Luís Marques considera “um verdadeiro manifesto contra a propriedade pública de empresas, principalmente as que operam em sectores sujeitos à concorrência” — em que PNS é ilibado de qualquer ação suspeita, além do seu aval à polémica indemnização a Alexandra Reis, vejamos que papel teve, de facto, PNS enquanto responsável máximo do ministério que tutela a TAP.

Em primeiro lugar, Pedro Nuno Santos defendeu com unhas e dentes o resgate financeiro da TAP, alegando que a companhia é indispensável ao país, social e economicamente. Mas tal como o deputado Carlos Guimarães Pinto tantas vezes esclareceu, se a TAP falisse, outra companhia ocuparia o seu espaço, certamente com muitas empresas nacionais a prestarem os habituais serviços complementares. Com isso poupar-se-iam milhares de milhões de euros ao erário público (os portugueses já enterraram mais de 3,2 mil milhões de euros na TAP).

Em segundo lugar, Pedro Nuno Santos argumenta que, tal como Portugal, todos os estados apoiaram financeiramente as suas companhias aéreas. Mas esquece-se de referir que o apoio de Portugal é, em percentagem do Orçamento de Estado, mais de quatro vezes superior ao de qualquer outro país, e que várias companhias aéreas internacionais já ressarciram os respetivos estados pelo apoio prestado, o que não se verifica e ninguém acredita que se venha a verificar em breve em Portugal.

Em terceiro lugar, sob a tutela política de PNS, a TAP continuou a prestar um serviço péssimo aos seus clientes.

Vejamos o caso simples, mas sintomático, de um bilhete eletrónico. A TAP, ao contrário das outras companhias aéreas, não consegue apresentar um bilhete eletrónico facilmente legível (ver imagem). O bilhete eletrónico da TAP é um amontoado de caracteres que o cidadão comum tem dificuldade em compreender. Se durante 3 anos PNS não teve a capacidade nem a sensibilidade para alertar os gestores da companhia para algo tão simples e necessário como atualizar um bilhete eletrónico, que capacidade e sensibilidade terá para resolver as coisas mais prementes que atormentam o povo português?

Mas, para lá do bilhete eletrónico, os viajantes portugueses da TAP sabem que, embora a tenham financiado generosamente, continuam a contar com um péssimo serviço: viagens caríssimas, opacidade na relação com o cliente, reclamações sem resposta, indemnizações tardias, greves, atrasos crónicos nos voos de longo curso. E nada disto foi resolvido durante a tutela de PNS.

Pedro Nuno Santos é o ideólogo de uma ala do PS próxima da esquerda mais radical. Manipulador (lembremo-nos que mentiu comprovadamente no “caso Alexandra Reis”) e antiliberal, tem uma conceção estatizante da política e da economia. Extremamente convencido, PNS é um homem de convicções fortes e de grandes causas, mas falta-lhe o sentido prático e a sensibilidade para as coisas concretas que podem melhorar a vida das pessoas.

Dizem-nos que é inteligente, e talvez seja. Mas de que serve ao povo uma grande inteligência, prisioneira de uma ideologia qualquer?

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Quinhentos dias de uma Guerra Infame

Pormenor de uma rua em Cabanas de Tavira (foto de 2022).

Trata-se apenas de um número simbólico porque amanhã passará a 501 e assim sucessivamente, ninguém sabe até quando durará a Guerra da Ucrânia. E trata-se sobretudo de muitos milhares de mortos e de um sofrimento imenso provocados pela eterna estupidez humana.

(Sim, toda a gente sabe como somos capazes do melhor e do pior).

Aqueles que apoiam, toleram ou compreendem — descarada ou envergonhadamente — o criminoso que iniciou esta guerra, são coniventes.

Dizem-nos que Putin é um ser racional e que há alguns bem piores do que ele. É verdade. Hitler também era racional e também tinha comparsas ainda piores do que ele.

Mas isso não quer dizer que ambos não sejam dois dos piores assassinos em série da história da humanidade. E também não quer dizer que estes verdadeiros assassinos algum dia parariam de matar se não fossem travados.

Querer isentar de responsabilidade o dono da Rússia por estes 500 dias de sofrimento, transferindo-a para quem quer que seja — incluindo essa entidade (que tantos desconhecem nas suas origem, diversidade e profundidade) apelidada “Ocidente” — é uma ignomínia sem nome.

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O Piroceno

Stephen J. Pyne é professor emérito da Universidade do Arizona e um historiador ambiental, dedicado há mais de 50 anos à história do fogo e à sua relação com os humanos. (Foto retirada de: https://www.facebook.com/springcreekproject/photos/a.298781216840275/5135340209850994/).

A relação do homem com o fogo é ancestral. Sem fogo não existiria humanidade. E a forma como o fogo se propaga depende em muito da forma como as sociedades humanas se organizam. Isto é algo que os homens primitivos já sabiam, mas que, com o desenvolvimento científico e tecnológico tendemos a esquecer. Passámos a domar o fogo e a circunscrevê-lo ao interior de máquinas e utensílios — na indústria, nos transportes, nas nossas fábricas e cozinhas.

Com o abandono dos campos e a concentração das populações nas grandes cidades — e a consequente acumulação de combustíveis (sobretudo combustíveis finos) — os fogos florestais tornaram-se incontroláveis. Criámos uma verdadeira idade do fogo — o Piroceno1 . Urge retomar práticas ancestrais (o que já se faz nas sociedades onde o estudo do fogo está mais avançado) como, entre outras, o fogo prescrito ou controlado e “precisamos de recordar que o fogo não é simplesmente uma ferramenta, uma presença ou um processo a ser manipulado, mas sim uma relação”2.

Temos de compreender que não podemos viver sem o fogo e que, apesar do seu poder destruidor, ele não é nosso inimigo.

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Notas:

1 O termo “Piroceno” foi cunhado pelo próprio Pyne no ensaio The Fire Age, publicado em maio de 2015 na revista Aeon.

2 Ob. cit., p. 181.

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A nossa edição:

Stephen J. Pyne, Piroceno — De como a Humanidade criou uma Idade do Fogo e o que virá a seguir, Livros Zigurate, Lisboa, 2023.

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