Adeus ao trema

Prova de como no Brasil o AO90 é considerado com outras elegância e leveza e muito mais humor, é esta crónica de Luís Fernando Veríssimo, publicada no “Zero Hora”[1], de 31 de março de 2013, sob o título “Adeus ao trema”.

“A reforma ortográfica acabou com o trema, e só então me dei conta de que eu nunca o tinha usado. Sempre o ignorei. Os revisores, se quisessem, que acrescentassem os tremas onde cabiam. Por vontade própria, nunca botei olhos de cobra em cima de nenhum “u”. E agora que o trema desapareceu oficialmente, fiquei com remorso. Como me penitenciar? Peço só mais uma oportunidade para compensar meu descaso com o trema usando-o num texto. Li que, com a reforma, o trema só continua a ser usado legitimamente em nomes estrangeiros como Müller e Anaïs. Uma história para Müller e Anaïs, portanto. Atenção revisor: mantenha todos os tremas.

Uma história com seqüência e conseqüência. Talvez uma história policial: a dupla Müller e Anaïs atrás de delinqüentes. Ou uma história de excessos eqüestres levando ao uso freqüente de ünguentos. Ou simples cena doméstica. Müller e Anaïs na cozinha do seu apartamento, eqüidistantes de um pingüim em cima da geladeira. Müller acaba de chegar da rua com um pacote.

– Anaïs, esse pingüim…

– Quequitem?

– Eu não agüento esse pingüim, Anaïs.

– Ele está aí há cinqüenta anos e só agora você nota?

– Cinqüenta anos, Anaïs?

– Está bem, cinco. Um qüinqüênio.

– Não se usa mais pingüim em geladeira, Anaïs. É uma coisa do passado. Como o trema.

– Pois eu gosto e está acabado. O que você trouxe nesse pacote?

– O que mais poderia ser? Lingüiças. As ultimas com trema que tinham no super.

Pronto. Acho que estou redimido. Adeus, trema. E desculpe qualquer coisa.”

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[1] Jornal diário de maior tiragem no Rio Grande do Sul.